Ano 4 • Número 169
R$ 2,00 São Paulo • De 25 a 31 de maio de 2006
Polícia decreta pena de morte na periferia de São Paulo
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Execuções sumárias de pessoas sem vínculo com o tráfico comprovam denúncias de abusos Fotos: Greenpeace
s assassinatos de cinco moradores do Capão Redondo, zona Sul da capital paulista, dia 16, são mais uma ilustração sangrenta da história de violência das polícias do Estado de São Paulo. Os crimes à queima-roupa, cometidos por quatro homens que abordaram as vítimas sob os gritos de “Mãos na cabeça! É a polícia”, aconteceram em meio à onda de ataques promovidos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e contra-ataques desencadeados pelas forças policiais em busca de “suspeitos”. O governador Cláudio Lembo descartou a realização de uma matança, apesar de reconhecer que pode ter havido “eventuais inocentes” mortos. Organizações de defesa de direitos humanos pressionam a Secretaria de Segurança Pública para divulgar a lista dos mortos “em confronto”. O ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Antônio Funari Filho, revelou que há indícios de irregularidades em diversas mortes. Pág. 3
Soldados da ONU abusam de crianças Tropas em missão de paz e funcionários da Organização das Nações Unidas na Libéria estão envolvidos em casos de prostituição infantil nas comunidades e nos campos de refugiados internos desse país. A denúncia foi feita em relatório da organização Save the Children, que no final de 2005 realizou estudo na região. Empregados de entidades de ajuda humanitária também estão envolvidos em casos de exploração sexual infantil na costa Oeste da África. Pág. 5
A pedagogia do povo contra a dominação O mundo está alienado de si mesmo. O capital, como se fosse um ser autônomo, leva a humanidade à sua destruição, exigindo uma produção desenfreada, que devasta a natureza. O filósofo húngaro István Mészáros, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, afirma que só a educação popular – formulada e sistematizada pelo povo – pode deter a deterioração do ambiente e a conseqüente falência da vida. Pág. 8
Já está no ar o novo formato da Agência Brasil de Fato na internet. No endereço ( w w w. b ra s i l d e fa t o. c o m . b r ) , você poderá encontrar nossa produção diária de conteúdo exclusivo, entre reportagens, entrevistas e análises, além das edições anteriores do jornal impresso. Em breve, os assinantes terão uma seção específica para acessar a edição da semana. Vamos colocar no ar também um link para rádios comunitárias de todo o país baixarem documentos em áudio e poderem retransmitir para seus públicos locais.
Agronegócio - Cerca de mil pessoas participaram, em 21 de maio, da Marcha pela Floresta em Pé, em Santarém (PA), em defesa da agricultura camponesa e contra a monocultura da soja. Os manifestantes, de diversas entidades, repudiaram as agressões sofridas por ativistas do Greenpeace, que, dois dias antes, foram espancados por funcionários da empresa Cargill. Os ecologistas realizavam um protesto pacífico contra o porto ilegal da transnacional, instalado há três anos na cidade. Quatro ativistas ficaram feridos e 16 foram detidos pela polícia.
EDITORIAL O triste espetáculo fora dos campos da Copa A encruzilhada agrícola O planeta inteiro vai estar ligado, a partir do dia 9 de junho, nos jogos da Copa do Mundo, que se realiza na Alemanha. O espetáculo esportivo vale a pena, assim como a torcida. Mas, nos arredores dos campos de futebol, redes de prostituição promovem um dramático show
de violência contra mulheres, vítimas do tráfico, que muitas vezes são exploradas ou forçadas a se prostituir. Os empresários do sexo agenciam mulheres em diversos países, principalmente nações pobres, prometendo dinheiro fácil. Pág. 7
TV digital: pesquisas teriam sido cooptadas
No México, repressão aos camponeses
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jornal Brasil de Fato tem enfatizado que o país carece de um projeto nacional, popular, que unifique as forças populares e oriente as ações da sociedade e do Estado. Enquanto as forças populares não conseguirem acumular forças em torno de um projeto, continuará o atual modelo de domínio internacional sobre a economia e o Estado. Isso acontece em todos os setores da economia e da sociedade, onde o capital internacional subordina os interesses nacionais aos interesses de lucro e exploração. E assim é também na agricultura. Desde o governo Collor, e depois com mais profundidade nos governos FHC 1 e 2, a agricultura passou a se submeter aos interesses de transnacionais. Nesse modelo, encontraram aliados entre os proprietários capitalistas de terra, construindo uma máfia chamada por eles de agronegócio. Assim, recolonizaram economicamente o país e o deixaram ainda mais dependente das exportações de matérias-primas agrícolas. Hoje, praticamente metade do PIB agrícola depende de soja, cana, café e laranja. Nenhum desses produtos atende às necessidades básicas do povo brasileiro. Durante três anos, as transnacionais cantaram em prosa e verso que sustentavam o Brasil, e que seus ganhos, provenientes das exportações, estavam lá em cima. Não quiseram dividir os lucros fantásticos. Ao contrário. Exigiram a manutenção do subsídio estatal. Agora, o câmbio está baixo, voltou a chover nos
Estados Unidos e a produção de soja se normalizou por lá. Não aumentou em nada o mercado externo europeu e veio a crise sobre o tal agronegócio. Qual foi a saída? Mudar o modelo e reconhecer sua incompatibilidade com os interesses nacionais? Nada! As empresas correram para pressionar o governo, exigindo uma parcela ainda maior da mais-valia social. O governo, refém de interesses eleitorais, atenderá. Serão mais R$ 6 bilhões de dinheiro público transferido para não mais do que 30 mil fazendeiros abastados. Os pequenos agricultores também enfrentam uma crise. Uma crise gerada pela concentração de renda, que inibe o consumo. Os preços dos produtos agrícolas são controlados por meia dúzia de agroindústrias. Faltam políticas públicas que tratem a agricultura familiar e camponesa como um todo. O crédito rural é insuficiente para organizar o sistema produtivo com base na agricultura familiar. Mas, afinal, onde está a saída? A saída está em um projeto que organize a agricultura com base nos pequenos e médios estabelecimentos, voltado para a produção de alimentos e para o mercado interno. Enquanto isso, a cada crise, o Estado das elites brasileiras garante as taxas de lucro dos “capitalistas-risco-zero”.
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DEBATE
CRÔNICA
Brasil: depósito de pneus usados importação de pneus recauchutados está proibida no Brasil desde 1991 sob uma legislação extensa de proibição geral de importação de bens usados, vigente há 50 anos. No entanto, diferentes liminares aprovadas pelo Poder Judiciário, por iniciativa de empresas que reparam pneus, têm permitido a entrada, de 1990 a 2004, de mais de 34 milhões de pneus recauchutados. Conscientes das implicações que os pneus usados ocasionam ao meio ambiente, os europeus elaboraram uma legislação que proíbe depositar pneus usados em aterros sanitários em seus territórios, a qual entrará em vigor em meados desse ano. Isso cria um problema ambiental de grandes dimensões à União Européia (UE), na forma de 300 milhões de pneus descartados por ano. A solução encontrada é abrir os mercados do Sul para mandar seus resíduos, utilizando-se, para tanto, das ferramentas da Organização Mundial do Comércio (OMC). A questão dos pneus usados importados é uma problemática ambiental e de saúde pública, capaz de aumentar absurdamente o passivo ambiental brasileiro. Após o período de reutilização dos pneus recauchutados, parte se transforma em resíduos de difícil compactação, outra parte em foco de incêndio e, por último, torna-se lugar propício à reprodução de agentes transmissores da dengue e da febre amarela. Um estudo feito pelo Ministé-
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rio da Saúde brasileiro em 2003 revelou que em 284 municípios de diversos Estados os pneus foram o principal foco de reprodução do mosquito aedes aegipti, transmissor da dengue. A UE acionou em julho de 2005 o mecanismo de resolução de controvérsias da OMC para questionar a legislação brasileira de importação de bens usados e, mais especificamente, a forma com que proíbe a importação de pneus usados. O painel da OMC foi estabelecido em janeiro desse ano e está em andamento. A UE exige o mesmo trato que o Brasil dá ao Uruguai, como sócio do Mercosul para seus pneus usados. Trato este estabelecido no Tribunal Comercial do Mercosul, no qual o Brasil foi obrigado a abrir suas fronteiras para os pneus uruguaios. A diferença é que recebemos desse país, no máximo, 130 mil pneus usados por ano, enquanto que da UE receberíamos cerca de 30 milhões. O Brasil possui a maior frota de automotores dos países em desenvolvimento, descartando cerca de 40 milhões de pneus por ano. Isso o torna um mercado muito atrativo para os milhões de pneus utilizados e descartados pelos países europeus. A importância desse tema tem despertado a preocupação da sociedade civil brasileira. Diversas organizações de direitos humanos e ecologistas vêm impulsionando uma campanha que alerta sobre os riscos para o meio ambiente e a saúde pública que derivam das importações de milhões de pneus.
Nos últimos dois anos, a importação de pneus usados para remodelagem no Brasil se agravou, não somente em termos quantitativos, mas também qualitativos; em 2004 recebemos 7,5 milhões de pneus e, em 2005, 10,5 milhões. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) elaborou uma cartilha informativa na qual estabelece seu posicionamento em relação aos pneus usados que são importados. Admite-se que o governo federal não é contra o reaproveitamento de pneus, também aclara que o aproveitamento deve ter como prioridade carcaças brasileiras e não favorecer a importação dos pneus da UE. Segundo o MMA, “não é verdadeira a justificativa apresentada por empresas reformadoras, de que a maioria das carcaças nacionais não pode ser recuperada devido aos danos causados pelas condições das rodovias”. Diante disso, o MMA reconhece que é necessário aperfeiçoar a coleta, o controle ambiental e a fiscalização de suas próprias dependências para garantir todo o ciclo. Mas para isso é preciso “o fim da importação dos pneus usados”.
Leonardo Boff
Sebastián Valdomir é membro da ONG REDES - Amigos da Terra do Uruguai; Temístocles Marcelos Neto é coordenador da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT
Arte Brasil de Fato
Sebastián Valdomir e Temístocles Marcelos Neto
O desafio da violência A violência ocorrida nos meados de maio em São Paulo nos obrigam a pensar. Por que ela é tão recorrente? Para vislumbrar alguma luz temos que realisticamente partir dessa ambiguidade fundamental: a realidade por um lado vem marcada por conflitos e por outro vem perpassada por ordem e paz. Nenhum desses lados consegue erradicar o outro. Mesclam-se e se mantém num equilíbrio difícil e dinâmico. A arte consiste em manter a tensão buscando aquela convergência de energias que permitem o surgimento da paz, fruto de instituições minimamente justas e includentes e ordenações sociais sadias, custodiadas por um Estado que zela pelo equilíbrio, das tensões, usando, quando preciso, legitimamente da coerção. Se não houvesse essa busca do equilíbrio, possivelmente a socialidade seria impossível e os seres humanos ter-se-iam exterminados uns aos outros. A paz resulta da administração dos conflitos, usando meios não conflitivos. Assim, na construção da paz devem os interesses coletivos se sobrepor aos individuais, a multiculturalidade prevalecer sobre o etnocentrismo, a perspectiva global orientar a local. Importa sermos realistas e sinceros. Há violência no mundo porque eu carrego violência dentro de mim na forma de raiva, inveja e ódio que devem ser sempre contidos. A explicação da agressividade tem desafiado os pensadores mais argutos. Sigmund Freud parte da constatação de que existem duas pulsões básicas: uma que afirma e exalta a vida (Eros) e outra que tensiona para a morte (Thánatos) e seus derivados psicológicos como os ódios e as exclusões. Para Freud, a agressividade surge quando o instinto de morte é ativado por alguma ameaça que vem de fora. Alguém pode ameaçar o outro e querer tirar-lhe a vida. Então o ameaçado se antecipa
e passa a agredir e eventualamente a eliminar o ameaçador. Outro pensador contemporâneo, René Girard, afirma que a agressividade provém da permamente rivalidade existente entre os seres humanos (chamada por ele de desejo mimético). Essa rivalidade cria permanentes tensões e elabora sinistras cumplicidades. Ao concentrar em alguém toda a maldade e toda a ameaça, a sociedade torna-o um bode expiatório. Todos se unem contra ele para afastá-lo. Essa união instaura uma paz momentânea entre todos os contendores. Desfeita essa paz, inventa-se um novo bode expiatório (os terroristas, os traficantes etc.) e novamente se cria a união de todos contra ele e se refaz a paz perdida. Os antropólogos nos ajudaram também a entender a agressividade. Asseguram-nos que somos simultaneamente sapiens e demes não por degeneração mas por constituição evolucionária. Somos portadores de inteligência e de energias interiores orientadas para a generosidade, a colaboração e a benevolência. E ao mesmo tempo somos portadores de demência, de excesso, de pulsões de morte. Somos seres trágicos porque surgimos como coexistência dos opostos. Dada essa contradição como construir a paz? A paz só triunfa na medida em que as pessoas e as coletividades se dispuserem a cultivar, como projeto de vida, a cooperação, a solidariedade e o amor. A cultura da paz depende da predominância dessas positividades e da vigilância que as pessoas e as instituições mantiverem sobre a outra dimensão, sempre presente, de rivalidade, de egoismo e de exclusão. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.
CARTAS DOS LEITORES OS CIDADÃOS DE BEM Está se tornando comum nos últimos dias o destemido apoio dos auto-intitulados “cidadãos de bem” às ações da PM contra pessoas consideradas “suspeitas”. Essas ações têm terminado, como se sabe, na morte desses últimos, em ocorrências bastante suspeitas. Sob o mote “bandido bom é bandido morto”, a tragédia se apresenta na forma do extermínio indiscriminado, seja a vítima culpada, inocente ou meramente um suspeito. Senhores “cidadãos de bem”, a PM terá seu apoio para invadir a Daslu e trucidar os que ali se encontrarem, caso por exemplo a Madame Eliane seja condenada por sonegação? Se o banqueiro Daniel Dantas, frequentador assíduo do Palácio quando FHC era presidente, for declarado culpado em alguma das acusações que lhe fazem, como formação de quadrilha e espionagem, deverá ser varrido do mapa? E quanto ao ex-caixa de campanha de José Serra, Ricardo Sérgio de Oliveira, condenado por “gestão temerária” junto com outros dirigentes do Banco do Brasil, devido a empréstimos feitos pelo banco à Encol, que veio a falir? Podemos encomendar as coroas de flores para esses suspeitos? Humberto Amadeu Capellari Por correio eletrônico
VIDA FÁCIL O empréstimo de quase um bilhão de reais do BNDES à Volkswagen, e a dispensa por parte da mesma empresa de quase seis mil trabalhadores brasileiros em contrapartida, significa que os gringos continuam parasitando esse país de triste sorte. No Senado, o senador Artur Virgílio disse serem os presidentes da Venezuela e da Colômbia, pessoas sinistras. Então, para essas pessoas de vida fácil (alcunha apropriada para os políticos brasileiros), governante que usa as riquezas do país em benefício do seu povo é figura sinistra? E o que seria o governante que vende as riquezas do seu país a preço de banana e ainda empresta o dinheiro para pagar? E o outro arremedo de presidente que de operário virou puxa-saco de banqueiro? Para iniciarmos o processo capaz de tornar o Brasil um país realmente de todos devemos colocar Heloísa Helena no lugar desses pilantras que posam de presidentes da república. José Mário Ferraz Por correio eletrônico
PENA DE MORTE A violência em São Paulo e o número de mortos reforçam a tese da existência da pena de morte no Brasil. Nos EUA, existe a pena capital em al-
guns Estados, porém existem leis que autorizam ou não a execução. Aqui, a despeito de alguns defenderem a pena capital, ela já está implantada há muito tempo. Porém, sem julgamento. Lá como cá os mortos são os das camadas mais pobre da sociedade. A diferença é que os de lá tem direito a um julgamento. O promotor Carlos Cardoso, em entrevista a um jornal da mídia burguesa, disse: “Há preocupação que possa ser constituída por inocentes. Sabemos que setores da polícia agem fora da lei. Algumas mortes podem ser produto de pura vingança”. Nas palavras do promotor, não está descartado que policiais possam ter sido mortos por próprios colegas, e a culpa ser atribuída a bandidos. Emanuel Cancella Por correio eletrônico
ESQUECIDO O presidente lembrou que há uma relação entre as falhas na educação e a violência. Mas não lembrou que está no fim de um mandato de quatro anos e não tomou nenhuma providência concreta para evitar que 52% das crianças cheguem à 5ª série ou saiam das escolas públicas completamente analfabetas. Ergógiro Dantas Por correio eletrônico
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Isa Gomes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Silvio Sampaio • Assistente de redação: Bel Mercês • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NACIONAL CHACINA EM SÃO PAULO
Moradores denunciam crimes da polícia Dafne Melo e Tatiana Merlino da Redação
fossem loucos”, ironiza Marcos. Ainda de acordo com testemunhas, durante a chacina o Palio preto estava estacionado próximo ao local do crime, e os carros da Polícia Civil um pouco mais à frente, na mesma rua. Na manhã seguinte, policiais do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) foram ao local do crime. Dos sete moradores baleados, cinco morreram e dois sobreviveram. Questionada pela reportagem do Brasil de Fato, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública afirmou que a chacina ocorrida no Capão Redondo não entrou para as estatísticas ligadas às ações do PCC ou da polícia. Foi considerada um crime comum na cidade de São Paulo. A secretaria informou que um inquérito foi aberto no DHPP, mas que, para resguardar as investigações, não pode fornecer detalhes sobre as investigações. A Secretaria ainda afirmou que, em casos como esse, as testemunhas devem fazer denúncia na Ouvidoria da Polícia.
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pesar do frio, Maurício Assis de Menezes veste apenas calça jeans e camisa azul. São 2 horas da madrugada de terçafeira, dia 16, no centro do Capão Redondo, zona Sul de São Paulo. Acompanhado de seis colegas, o jovem de 28 anos abre o portão do bar de sua família – onde trabalha. Eles vão desenroscar as lâmpadas que iluminam a barraca de lanches, também familiar, que fica em frente ao bar. Mal saem na calçada, eles ouvem: “Mãos na cabeça. Polícia!” Em seguida, começam os tiros. Sem expressar reação, enfileirados e de costas, todos são metralhados por homens usando roupas escuras e gorro. Horas antes, na tarde de segunda-feira, mesmo diante das notícias da televisão sobre os ataques da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em toda a cidade, a família Assis de Menezes não tem medo. Mantém seu comércio aberto. Acreditam que, como o alvo da polícia são os criminosos do PCC, não há problemas. “A gente confiava na polícia”, diz o pai de Maurício, com uma foto da família nas mãos. À noite do mesmo dia, por volta das 23 horas, o que chama a atenção dos donos e dos freqüentadores do bar é um carro preto com vidros fumé, ocupado por homens com capuzes. O Fiat Palio passa vagarosamente em frente ao estabelecimento, junto com três carros da Polícia Civil, dois deles da marca Blazer. Marcos*, um dos irmãos de Maurício que também trabalha no bar da família, brinca: “Tá vendo esse carro preto aí atrás? É só para matar”.
Arquivo Pessoal
Em Capão Redondo, seis pessoas são assassinadas à queima roupa por homens que se identificaram como “polícia!” munhas não souberam informar o nome completo das outras vítimas fatais. Três delas foram identificadas pelo primeiro nome e apelidos e outra foi identificada apenas pelo trabalho que fazia na região.
OS MORTOS
MORTES SEM EXPLICAÇÕES Uma reportagem da Folha de S. Paulo do dia 21 de maio contabilizou 138 mortes à bala diretamente relacionadas com a onda de violência desencadeada pelo PCC, na semana passada, em todo o Estado. Somando-se o número médio de mortes que a capital e a região da Grande São Paulo apresentam em cinco dias, 65 mortes, “sobrariam” 69 mortes a serem esclarecidas pelo governo. O fato, entretanto, entra em contradição com declarações feitas pelo comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, Elizeu Eclair Teixeira de Borges. Segundo ele, a criminalidade rotineira, sem ligação com o PCC,
Maurício Menezes, morador de Capão Redondo, mais uma vítima da polícia
havia caído cerca de 50% desde que começou a onda de atentados. Borges afirmou que nenhum dos mortos em confronto com a polícia, desde o início dos ataques do PCC, era inocente.
De acordo com familiares, amigos e testemunhas, nenhuma das vítimas da chacina do Capão Redondo tinha relações com o PCC, nem passagem pela polícia. Os familiares de Maurício e teste-
Maurício Assis de Menezes, caçula de quatro irmãos, era um rapaz pacato, quieto, de poucas palavras. Trabalhava no bar da família desde os 14 anos. Saía pouco, gostava de alugar filmes para assistir em casa. A última vez que saiu a passeio foi a um churrasco na casa da mãe da namorada, no Dia das Mães. A namorada, grávida de dois meses, perdeu o bebê no dia seguinte em que Maurício foi assassinado. A morte do rapaz chocou amigos e a vizinhança “porque ele era o cara mais tranqüilo da região”, segundo testemunhas. Edson, conhecido pelos amigos como “Jaca”, tinha 22 anos. Casado, com dois filhos, trabalhava na lanchonete da família Menezes há cinco anos. Fanático por futebol, não perdia um jogo do São Paulo Futebol Clube. Renato, conhecido como “Brigadeiro”, tinha cerca de 35 anos. Trabalhava com artesanato e adorava ir à praia. Todos os anos, vendia flores durante o Dia das Mães. Tinha dois filhos. Um menino de 8 e uma garota de 19. Fã de teatro, sempre levava o filho a espetáculos gratuitos no centro da cidade. Davi era pouco conhecido das testemunhas, que apenas sabem que o rapaz trabalhava como motoboy. As testemunhas não sabem o nome da quinta vítima. De acordo com elas, era um senhor de idade avançada que trabalhava como catador de material reciclável no bairro do Capão Redondo. * Nome fictício
PORTAS FECHADAS
Sociedade se mobiliza para esclarecer abusos da Redação Duas semanas após o início da onda de violência desencadeada pelos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), autoridades já consideram quase certo haver inocentes entre os 109 mortos pela polícia “em combate”. Em audiência pública realizada no dia 19 de maio, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, o Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, advogado Antônio Funari Filho, afirmou que, pelas denúncias enviadas ao órgão, “muitos estão entrando na bala sem ter nada a ver”. O subdefensor Pedro Giberti, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e o governador de São Paulo, Claudio Lembo
(PFL), também admitiram essa possibilidade. Ganha força, assim, a versão dos fatos apontada pelas entidades de defesa de direitos humanos, de abusos da polícia. Na favela do Pilão (zona sul), por exemplo, testemunhas afirmam que a Rota executou três homens. Para a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, foram mortes em confronto. A Secretaria também se recusou a divulgar a lista de “suspeitos” mortos, o que causou indignação e desconfiança em diversos setores. No dia 22 de maio, o Ministério Público Estadual (MPE) ordenou que a lista fosse liberada em até 72 horas. Até o fechamento desta edição (dia 23), a lista ainda não havia sido divulgada.
Diante das suspeitas, o Conselho Regional de Medicina decidiu investigar os laudos a fim de averiguar se há casos de execução. O relatório final, concluído no dia 23 de maio, foi entregue ao MPE. Entidades de defesa dos direitos humanos se reuniram com o MPE para pedir a formação de uma comissão de acompanhamento das investigações das 109 mortes e das denúncias de ação de grupos de extermínio na periferia de São Paulo.
52 MORTES A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo encaminhou às corregedorias das polícias Militar e Civil uma ordem para que sejam apuradas 40 mortes de civis “em confronto” com a polícia.
Sérgio Andrade
Assustados, os irmãos resolvem fechar o bar. Mas os clientes não têm coragem de ir embora e permanecem dentro do estabelecimento, já com as portas fechadas. Cerca de três horas depois, os clientes decidem voltar para casa. Maurício lembra que deixou as luzes da barraca acesa. Junto com ele, está Edson, funcionário da lanchonete. Antes de ser assassinado, o jovem de 22 anos coloca em cima do balcão da barraca dois sanduíches que levaria para casa. De dentro do bar, Marcos ouve os gritos de “polícia!”. Da janela vê quatro homens. Desce correndo para explicar que “são todos trabalhadores”, mas é tarde demais. Os tiros já haviam começado. “Foram mais de 30”, conta. “Desci para procurar meu irmão. Todos os meus amigos me pedindo ajuda: ‘me ajuda, tá doendo demais’. O Edson dizia: ‘tá doendo demais, não me deixa morrer’. Todo mundo gemendo. O Renato tentava levantar e pedia ajuda. Meu desespero era procurar meu irmão”, conta Marcos, que encontrou Maurício morto atrás da barraca. Marcos conta que, em menos de dois minutos, 12 viaturas do 37º Batalhão da Polícia Militar chegaram ao local. “Chegaram socorrendo e começaram a recolher as cápsulas. Foi tudo muito rápido”. De acordo com a lei, quando há vítimas fatais a polícia não pode alterar a cena do crime. Deve aguardar a polícia científica para dar início à perícia. De acordo com Marcos, também não foi colhido nenhum depoimento no local. Em conversa com o irmão de Maurício, os policiais militares disseram que o ataque poderia ter sido feito por criminosos do PCC. As testemunhas duvidam. “Se eles eram do PCC, como o Palio preto ia estar logo atrás dos carros da Polícia Civil? A não ser que eles
Após pressão do Ministério Público, o secretário Saulo de Castro prometeu divulgar nomes dos suspeitos mortos
De acordo com Antonio Funari Filho, em pelo menos 22 dessas mortes há indícios de irregularidades. A investigação inclui outras 12 mortes de autoria de grupos que atuam encapuzados. O objetivo é saber se há envolvimento da polícia. As corregedorias devem apurar as queixas e encaminhar um relatório ao Ministério Público Estadual em 45 dias. Funari disse que parte das denúncias foi feita por familiares ou pessoas ligadas às vítimas. Em outros casos, a investigação foi iniciativa do próprio órgão, que foi informado pela imprensa.
MAIS IRREGULARIDADES Na audiência pública realizada dia 19 de maio, surgiram outras denúncias. A advogada Valdênia Paulino, do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, relatou um caso no Jardim Elba (zona Leste): agentes de segurança chegaram em uma favela com um mandato de busca e apreensão coletiva. “Isso é inconstitucional”, protestou Valdênia. A advogada ainda informou que a polícia fez uma encenação para as redes de TV que estavam no local. Entraram em um barraco de uma adolescente usuária de droga e escreveram, com carvão, “PCC” dentro de um coração que a menina havia desenhado na parede. “Criminalizam uma população já muito marginalizada”, lamentou Valdênia. Também foi citado, na audiência, o caso de dois jovens executados por dois homens encapuzados em Carapicuíba (Grande São Paulo). Os moradores teriam reconhecido os agressores como dois policiais militares que moram na região.
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NACIONAL CAMPANHA
Reestatização da Vale ganha força
Hamilton Octavio de Souza
Parlamentares e movimentos sociais se unem em campanha nacional pela CVRD
Proteção oficial Uma das medidas em gestação no Ministério da Fazenda para favorecer os exportadores é aumentar o prazo de internalização do dinheiro apurado com as vendas, atualmente de 210 dias. Assim, a empresa pode especular com o recurso no exterior, inclusive disfarçadamente no Brasil, e esperar o melhor momento para ganhar com a alta do dólar. É o chamado capitalismo de mãe para filho. Venezuela cresce Economistas e jornalistas econômicos brasileiros adoram criticar a política econômica do governo Hugo Chávez, de clara resistência e alternativa ao neoliberalismo. Para surpresa deles, a Venezuela registrou crescimento de 9,4% do PIB no primeiro trimestre deste ano, um dos maiores do mundo, e bem acima do crescimento brasileiro que segue fielmente cartilha neoliberal. Fascismo ianque Além de manter um campo de concentração na base militar de Guantánamo, com 490 prisioneiros afegãos e árabes desde 2002 sem qualquer acusação formal, os Estados Unidos aprovaram a construção de um muro de quase 600 quilômetros na fronteira com o México, país amigo que integra o acordo comercial da América do Norte (Nafta). Isso é que é exemplo de civilização! Moleza aérea Mais uma vez o dinheiro público do BNDES é destinado para empresas privadas falidas por má administração ou roubo escancarado. O banco não deu o dinheiro direto para a Varig, mas ofereceu crédito de 167 milhões de dólares para o comprador da empresa. Tudo, é claro, com juros baixos e ótimas condições de pagamento. É assim que funciona a transferência dos pobres para os ricos. Mamata rural A bancada ruralista reapresentou na Câmara dos Deputados o projeto – já vetado uma vez pelo Palácio do Planalto – que possibilita a renegociação das dívidas dos grandes proprietários rurais do Nordeste, de R$ 11,7 bilhões, com a União. Eles querem prazo de 25 anos, com quatro de carência, para pagar empréstimos contraídos nos últimos dez anos. Claro, com juros inferiores à inflação. Censura política O PDT do Tocantins solicitou ao Tribunal Superior Eleitoral a retransmissão de seu programa estadual – uma vez que, de acordo com o partido, as emissoras de TV cortaram quatro minutos da mensagem original, substituídos por trecho do programa do PDT paulista, com posição diferente sobre a conjuntura nacional. A medida deve atingir cinco redes regionais de TV. Conciliação total Mais uma vez o governo Lula se posiciona contra a instalação de uma CPI no Congresso Nacional, agora para investigar o desvio de recursos públicos na compra de ambulâncias envolvendo prefeituras e dezenas de parlamentares. Na lista dos suspeitos não aparece nenhum membro do PT, mas o partido não quer mexer com a corrupção de seus aliados do PTB, PP, PL e outras siglas da direita. Chacina urbana O governo de São Paulo protelou a identificação de dezenas de corpos levados pela polícia ao Instituto Médico Legal como sendo de “bandidos” ligados aos ataques do PCC. A imprensa burguesa demorou a questionar a autoridade sobre as circunstâncias dessas mortes, boa parte de civis sem qualquer ligação com o PCC. Mais uma vez a polícia retaliou nos pobres moradores da periferia.
Igor Ojeda da Redação
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arlamentares e sociedade civil estão reforçando as articulações para exigir a anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), ocorrida em 1997. Desde dezembro de 2005, quando decisão da desembargadora federal Selene Maria de Almeida, da Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, de Brasília, estipulou o prosseguimento de uma das diversas ações populares contra a privatização da empresa, o questionamento sobre a medida vem aumentando. O processo gerado pelas ações havia sido extinto em 2002 sem ter seu mérito analisado. A ação acatada pela juíza se baseia nas inúmeras ilegalidades da privatização da companhia, conduzida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A principal irregularidade se refere ao preço pelo qual a companhia foi leiloada (R$ 3,3 bilhões). Em março de 2005, o diretor financeiro da CVRD chegou a afirmar que esta, na época, já valia cerca de R$ 100 bilhões. No Congresso Nacional, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Público, que passou a articular a formação de comitês nos Estados. Já foram organizados comitês nos Estados do Pará, Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro. “Estamos divulgando o teor da decisão da juíza para a população e mobilizando a sociedade.
Porto da Vale do Rio Doce, em São Luís (MA): organizações sociais exigem a anulação da privatização
A idéia é coletar assinaturas em um abaixo-assinado para enviar ao presidente Lula”, explica a deputada federal Dra. Clair da Flora Martins (PT-PR), para quem a resposta da sociedade civil ao apelo pela reestatização está sendo muito boa. A deputada conta que já entregou cópias da decisão da juíza ao gabinete do presidente da República, à ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, à Procuradoria-Geral da República. Também será enviada uma cópia para a Advocacia-Geral da União. “Esperamos que o presidente e a União passem do estado passivo para o ativo, que reconheçam a nulidade do edital de privati-
zação e não interponham recurso”, diz a parlamentar.
ARTICULAÇÃO Em permanente diálogo com a Frente Parlamentar está a Coorde_ nação dos Movimentos Sociais (CMS), que decidiu se engajar na campanha pela reestatização da CVRD. Nos dias 1º e 2 de junho, um dos deputados integrantes da frente deve comparecer à plenária da juventude da entidade, que será realizada na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). “Uma das pautas do encontro vai ser exatamente o envolvimento da juventude nessa campanha. De lá devem sair também datas mais unifi-
cadas de mobilizações”, diz Gustavo Petta, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Para ele, o debate sobre a Vale ganha um caráter simbólico no período eleitoral, quando serão discutidos projetos para o país: “É preciso denunciar à sociedade brasileira o que representa para o Brasil a privatização de um setor tão estratégico”. A entidade estudantil realizará mobilizações e pichações e reproduzirá uma material de divulgação da campanha para ser distribuído nos centros acadêmicos, explica Petta, que destaca como uma das bandeiras a exigência da implementação da CPI das privatizações na Câmara dos Deputados.
DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA
Pela soberania no sistema de TV digital Dafne Melo da Redação “Esquizofrênica”. Essa foi a palavra que a pesquisadora Regina Mota escolheu para caracterizar a forma como o governo de Luiz Inácio Lula da Silva encaminha o processo de implementação da TV Digital no Brasil. Regina, que acompanhou de perto o desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), avalia os interesses em jogo no processo, incluindo a forte pressão exercida pelas radiodifusoras – em especial a Rede Globo – defensoras do padrão japonês, conhecido como ISDB. Brasil de Fato – Por que a senhora tem dito que a implementação da TVD no Brasil é uma questão de soberania e autonomia? Regina Mota – O Brasil, historicamente, resolve seus problemas apelando para soluções externas e copiando modelos estrangeiros. Isso tem duas dimensões: uma são as relações de dependência que às vezes obrigam o Brasil a fazer escolhas; outra é a falta de autonomia na construção de modelos próprios. Entretanto, o Brasil é um país que tem todos os recursos para ter outros modelos, sejam econômicos, sejam tecnológicos. No caso da TV digital, não precisamos inventar nada do zero. A maior parte dos técnicos e pesquisadores que trabalharam no SBTVD é, inclusive, formada fora do país e está muito consciente do que é a inserção dessa tecnologia. BF – Não havia grande expectativa de que o Brasil adotasse um sistema próprio? Regina – Desde o início, existia uma esquizofrenia. Na época em que o decreto saiu [decreto 4091, assinado em novembro
Agência Brasil
Lucros cambiais Setores empresariais exportadores continuam pressionando o governo para mexer no câmbio e valorizar o dólar diante do real. A ameaça é de queda de até 50% da produção e o aumento das demissões. Nessas horas, o postulado neoliberal da liberdade dos mercados é substituído pela intervenção providencial do Estado. Principalmente para reativar os lucros.
Arquivo Brasil de Fato
Fatos em foco
na casa das pessoas. Outra, é aproveitar algo que as pessoas já têm. Inclusive o que já têm como hábito: usar a TV. A China está pensando um modelo assim, a Índia também. São países que têm problemas semelhantes aos do Brasil. Problemas que não se colocam nos EUA, mas que para nós se colocam de uma maneira aguda.
Pesquisadora critica o fato de que a inclusão digital ficou de fora do debate
de 2003 pelo então ministro das Comunicações Miro Teixeira], os discursos não batiam. Depois veio o ministro Eunício de Oliveira, afirmando que o Brasil não teria sistema próprio. E a Globo, dizendo que o Brasil ia perder tempo, pois já existia a tecnologia. Tudo isso é simultâneo, pois o acordo com o Japão é muito antigo, vem da época do Fernando Henrique Cardoso. Na minha opinião, existiu uma dimensão pública, à luz do debate, e uma que continuou obscura. Paralelamente à abertura dos consórcios formados por universidades para fazer pesquisas sobre o sistema, houve acordos por trás, para se fechar com o ISDB. Inclusive, parte das instituições de pesquisa – para as quais o governo liberou investimentos de cerca de R$ 53 milhões – foi cooptada. Particularmente o Mackenzie e a Universidade de São Paulo (USP). Quando eles dizem “a pesquisa demonstra que”, se referem apenas ao que foi desenvolvido nessas duas instituições. Não falam do restante, pois os outros não trabalharam em cima do sistema japonês. Não houve ainda um momento de discussão
ampla das pesquisas, mostrando testes. O meu primeiro relatório, que tratava da legislação, foi muito debatido no CpqD. Mas o segundo, que abordava questões mais importantes, sequer foi citado. O que eu ouvi foi: “Não vamos mexer com a inclusão social, não”. Fiquei horrorizada. O assunto tinha mudado, discutia-se apenas o aspecto tecnológico. BF – O decreto fala da criação de uma rede universal de educação à distância. Isso não foi feito? Regina – Não. Os meios concretos não foram discutidos. Para isso, precisaríamos de estudos específicos, investimentos na criação de software, experiências-piloto. Por exemplo: o governo brasileiro tem uma boa experiência na área da tecnologia da informação, com a criação de telecentros. Essa experiência tem que ser aproveitada. Não é para construir uma estrutura paralela, mas fazer o esforço para que a TVD possa dar um upgrade enorme nas políticas públicas existentes. Numa tacada, a TVD pode universalizar isso. Uma coisa é colocar computador
BF – Na audiência no MPF, o representante do Ministério das Comunicações informou que a decisão pelo padrão se dará por decreto. Regina – Eu acho muito difícil, porque vai ser facilmente derrubado. Mas eles vão tentar. Fazer por decreto é não mexer em nada. É assim: vocês debatam o quanto quiserem, pesquisem o que quiserem, mas nós ficamos com a decisão tomada há cinco anos. Isso significa passar um trator em cima de toda a argumentação, de toda a pesquisa e do conhecimento que foi produzido. A meu ver, é criminoso. Mais uma vez, vai se optar pelos interesses menores. Não se pode escolher uma tecnologia com todo esse potencial para beneficiar apenas o grupo daqueles que exploram comercialmente um serviço de utilidade pública.
Quem é Pesquisadora e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Regina Mota participou de estudos sobre o sistema brasileiro de TV digital (SBTVD), levando o viés da inclusão social por meio de propostas de políticas públicas para a plataforma de serviços interativos.
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De 25 a 31 de maio de 2006
INTERNACIONAL LIBÉRIA
Soldados da ONU exploram crianças Igor Ojeda da Redação
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uitas vezes, o pior vem de onde menos se espera. A organização inglesa Save the Children (Salvem as Crianças) divulgou relatório contendo uma denúncia grave: funcionários e soldados da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) na Libéria, assim como empregados de entidades de ajuda humanitária, estão envolvidos em casos de exploração sexual infantil nas comunidades e campos de refugiados internos desse país da costa Oeste da África. Lançado no início de maio, o estudo foi realizado no final de 2005 em quatro campos de refugiados e em quatro comunidades, onde foram ouvidas 158 crianças e 167 adultos. O resultado mostra a outra face da intervenção humanitária. De acordo com o relato dos entrevistados, um alto número de crianças concorda em fazer sexo com homens mais velhos como meio de sobrevivência, em troca de dinheiro, comida e outros bens e favores. Todos afirmaram que o problema afeta mais da metade das garotas em suas localidades. Em muitas desses, existe o conhecimento de que meninas de 8 a 10 anos estejam envolvidas. “As mais jovens estão fazendo sexo com homens ricos por causa de dinheiro. Alguns deles são de dentro e outros de fora do campo. Algumas crianças se mudaram para a comunidade para viver com um desses homens que, em contrapartida, as mandam para a escola e ajudam sua família. Menores de idade são forçadas a atingir a maturidade sexual e, por causa disso, os índices de gravidez na adolescência vêm aumentando”, relata um dos entrevistados. Além disso, a incidência de garotas envolvidas no comércio sexual é muito maior que a de mulheres maduras, pois os homens podem oferecer para as mais novas muito menos dinheiro
Sophie Vanhaeverbeke/ ECHO
Organização denuncia o envolvimento de funcionários da Organização das Nações Unidas em prostituição infantil
Pesquisa da Save the Children revela que é grande o número de crianças liberianas vítimas da exploração sexual em troca de comida
pelas prestações. Ou seja: pequenas quantias de dinheiro; bens materiais, como roupas e celulares; favores pessoais; passeios em carros; alimentos básicos e até uma garrafa de cerveja ou a possibilidade de se assistir a um vídeo. Muitas vezes, os homens prometem algo em troca, mas acabam não cumprindo a palavra.
EXPLORAÇÃO SEXUAL Homens entre 30 e 60 anos, com status ou dinheiro, são os principais envolvidos na exploração sexual de crianças. Oficiais dos campos de refugiados, funcionários de organizações não governamentais (ONGs), empresários, soldados em missão de paz e empregados da ONU, soldados do Exército liberiano, ex-combatentes, empregados do governo, oficiais da polícia, administradores de campos de refugiados e até professores são citados no relatório da Save the Children.
Empregados da ONU e das ONGs têm status superior por, normalmente, ganhar mais que os outros e terem acesso a veículos. Além disso, muitas vezes são responsáveis pela distribuição de comida e outros bens, o que pode ser usado como moeda de troca para atrair meninas. Já o comércio sexual com soldados da ONU foi descrito em todas as localidades onde um contingente estava baseado. Além disso, todos os entrevistados pela organização inglesa afirmaram que a presença de uma equipe de uma ONG exacerba o problema da exploração sexual de meninas. “Mais de 20 vezes homens me pediram para ir com eles em troca de dinheiro. Todos empregados de ONGs”, relata uma das garotas ouvidas. Outro entrevistado afirmou que mesmo os que estão no local para informar a população sobre exploração sexual e Aids, “durante a noite, são as mesmas
pessoas que correm atrás de meninas de 12 anos”.
PÉSSIMAS CONDIÇÕES A maioria dos entrevistados afirmou que, antes da guerra, as crianças não estavam envolvidas com a prostituição - ou estavam em um nível muito reduzido. A guerra civil que tomou conta da Libéria entre 1989 e 2003 causou a morte de 250 mil pessoas e obrigou mais de 1,3 milhão a deixarem suas comunidades. Em todo o país, foram organizados 25 campos para pessoas internamente deslocadas. Apesar de muitos liberianos dependerem da ajuda humanitária para sobreviver, residentes dos campos relataram que uma parte da comida fornecida a eles é desviada. Disseram também que nem sempre recebem a porção inteira e que, desde que a repatriação começou, essa foi reduzida. Alguns afirmaram não recebê-la há meses.
Por essa razão, muitas crianças acabam optando (sozinhas ou por pressão dos pais) pela prostituição para ajudarem no sustento de suas famílias. Além da severa privação econômica e da pressão dos pais, os entrevistados citaram como principais fatores que levam as menores de idade a entrar no comércio sexual as pressões de amigos e amigas e o desejo de ter os bens materiais que as outras crianças envolvidas têm. Os pais entrevistados se declararam impotentes em evitar que suas filhas entrem no mundo da prostituição por não terem como sustentá-las. Em alguns casos, as pessoas destacaram o “comércio sexual” como meio de sustentação de toda a família. Por essa razão, todos os entrevistados citaram a crescente resignação de adultos e crianças de que o sexo em troca de bens, serviços e como meio de sobrevivência está se tornando uma opção cada vez mais comum.
COLÔMBIA
As vítimas da guerra contra o livre comércio com os EUA Os protestos indígenas e camponeses contra o acordo comercial que a Colômbia negocia com os Estados Unidos deram lugar a uma intensa resposta militar do governo do presidente Álvaro Uribe, com saldo incerto de mortos, feridos e desaparecidos. Inclusive o defensor do povo (ombudsman) do departamento de Nariño, Carlos Mario Aguirre, foi hospitalizado na noite do dia 20 de maio, afetado por “gases proibidos disparados dos helicópteros”, segundo o não-governamental Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos (CPDH). As manifestações rurais aconteceram em 14 departamentos contra o tratado de livre comércio com os Estados Unidos. Segundo a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC), que convocou o protesto, ao qual se uniram organizações camponesas e comunidades negras, cerca de 50 mil pessoas participavam das mobilizações. “O uso de armas de fogo, helicópteros, punhais, arame farpado, proibição do acesso à água potável” foi apenas a terceira agressão contra organizações indígenas, camponesas e afro-colombianas, segundo a ONIC. “A primeira agressão que sofremos foi a tentativa de tornar invisível nosso protesto”, pois a imprensa local ignorou a convocação para a cúpula,
surgentes e antidroga do Plano Colômbia e do Plano Patriota, ambos com financiamento e coordenação militar dos Estados Unidos.
Indymedia/ Colômbia
Constanza Vieira de Bogotá (Colômbia)
ACORDO SECRETO
Indígenas e quilombolas se unem contra acordo comercial com Estados Unidos
afirmou a organização. “A segunda agressão foi a versão divulgada pelo governo de que este protesto está dirigido e imposto pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs, organização com 42 anos de insurgência)”, recordou a organização, “mentira esta que preparou a bala, o assassinato e a barbárie” contra as multidões. A ONIC agrupa 90 etnias que somam cerca de um milhão de indígenas neste país andino de 42,2 milhões de habitantes. A repressão ao protesto foi dura principalmente na região indígena do Cauca e em Nariño, embora também o tenha sido nos departamentos de Putumayo, fronteira com o Equa-
dor, e Meta, ao sul de Bogotá. Em Nariño, “os militares agrediram não somente manifestantes, mas também funcionários que procuravam evitar o confronto”, disse o secretário-executivo nacional do CPDH, Jairo Ramírez. Ali os protestos “fazem parte da convocação de organizações indígenas e camponesas em nível nacional” contra o tratado de livre comércio com os Estados Unidos, confirmou Ramírez. Mas “também são contra as fumigações e a erradicação forçada de cultivos de coca”, acrescentou. Em Nariño, recordou Ramírez, se concentram os plantadores de coca expulsos de outras regiões após operações contra-in-
As organizações camponesas temem que o prejuízo para a produção agrícola que pode causar o tratado de livre comércio com os Estados Unidos leve mais agricultores a plantar coca, de longe o cultivo mais rentável do país. A negociação sobre o tratado foi encerrada inicialmente em 25 de fevereiro, mas depois foi reaberta devido a divergências em áreas delicadas para o setor agrícola colombiano, cujo conteúdo permanece secreto. O governo da Colômbia anunciou que essas partes do tratado serão discutidas somente depois das eleições presidenciais do próximo dia 28 de maio, nas quais o direitista Uribe aspira à reeleição. Negociado durante dois anos pelo governo, o tratado, segundo os indígenas, coloca em risco suas culturas, seus povos, famílias, a dignidade e a própria vida “pela cegueira dos que se equivocam e utilizam o maior poder da história para converter em mercadoria tudo o que existe”. A ONIC também alertou que o tratado “encarece os medicamentos, provocando morte, destrói a produção agropecuária e a soberania alimentar, estabelece exageradas medidas a favor dos investidores estrangeiros”. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
País desenvolve armas próprias para combater guerrilha Bombas para aviões, torpedos e lançadores de granadas, fazem parte do arsenal que a indústria militar colombiana começou a desenvolver com tecnologia própria. A principal dessas novidades é uma bomba para operações aéreas, que está em fase de testes. Com sua produção local, a Colômbia pretende substituir as bombas que atualmente importa de Israel, África do Sul e Estados Unidos. “Trata-se de bombas MK de alto poder explosivo com capacidades muito particulares para a luta contra a guerrilha”, disse o gerente da Indústria Militar Colombiana (Indumil), o coronel da reserva Alvaro Villarreal. “Estamos na etapa de testes aerodinâmicos que constituem a última fase do projeto desse armamento, que esperamos comercializar no próximo ano”, acrescentou. A Indumil estima que sua produção própria de diferentes tipos de armas, munição e explosivos permite à Colômbia economizar cerca de 40 milhões de dólares anuais em importações. (Com agências internacionais)
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De 25 a 31 de maio de 2006
INTERNACIONAL MÉXICO
Tensão marca véspera de eleições O
México vive uma forte crise política a menos de dois meses das eleições. Recentemente, no conflito do qual foi palco o município de Atenco (Estado de México), os principais atores que configuram este momento político se encontraram, proporcionando um quadro ilustrativo deste emaranhado. De um lado, os três principais partidos na disputa pela presidência: PRI, partido conservador que já esteve no poder por mais de 70 anos, com seu candidato Roberto Madrazo; PAN, partido do atual presidente Vicente Fox, que lança à candidatura Felipe Calderón; e PRD, partido supostamente de esquerda, com López Obrador. De outro lado, o que seria o início de uma alternativa à política institucional: a “Outra Campanha”, mobilização nacional pacífica encabeçada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). A “Outra Campanha” teve início em janeiro deste ano e consiste em percorrer todo o país para unir as lutas sociais e atuar em uma esfera política autônoma àquela imposta pela via da democracia representativa.
INTERESSES DA WAL-MART Na madrugada do dia 4 de maio, mais de 3 mil policiais municipais (PRD), estatais (PRI) e federais (PAN) tomaram Atenco, conhecido por ter grande parte de seus habitantes organizados na Frente dos
Povos em Defesa da Terra (FPDT). A justificativa dada pelo governo para tamanha repressão foi o fato de que representantes da FPDT intervieram de forma violenta em apoio a 8 vendedores ambulantes de flores contra policiais que lhes impediam de ocupar seus postos de trabalho em frente ao Mercado Municipal de Texcoco, município vizinho a Atenco. De fato, na manhã do dia anterior, representantes do FPDT atendiam ao pedido dos floristas: testemunhar que o acordo estabelecido com o governo municipal, depois de um mês de negociações, permitindo que trabalhassem em frente ao Mercado Municipal, fosse cumprido. Mas isso não aconteceu. Um cordão policial impediu que os floristas ocupassem seus postos de trabalho. Afinal, o contrapeso aos vendedores ambulantes na disputa por esse espaço era feito pela gigante transnacional Wal-Mart. Acuados pela polícia, os manifestantes se refugiaram em uma casa na redondeza, da qual foram intimados a sair sob ameaça de prisão. Em resposta, os manifestantes de Atenco interromperam algumas estradas. Começava o conflito. O saldo: 220 presos, dois deles, Alvarez Felipe Hernández e Ignacio del Valle, dirigentes do FPDT, levados a um presídio de segurança máxima; muitos feridos dos dois lados; 5 deportados; mais de 30 denúncias de violação sexual por parte da polícia; inúmeras casas invadidas, destruídas e roubadas pela
Na repressão policial aos manifestantes de Atenco, 220 pessoas foram presas; movimento zapatista se apresenta como alternativa nas eleições
ALERTA VERMELHO Por que um conflito administrativo de um governo municipal
RACISMO NA ALEMANHA
Campanha em defesa dos presos políticos
Jogadores em perigo
Apesar da evidente campanha de desinformação iniciada pelos grandes meios de comunicação, como Televisa e TV Azteca, que encorajaram e encobriram a mão dura do governo, a repressão aos movimentos sociais de Atenco foi demasiada para que a mantivessem em sigilo por muito tempo. À medida que vão sendo revelados (a conta-gotas) os abusos policiais, a posição do governo em relação a esses “baderneiros” vai perdendo o apoio da opinião pública. Atenco passou a ocupar o centro da agenda política. Os três partidos envolvidos nesse massacre – Partido Revolucionário Institucional (PRI), Partido de Ação Nacional (PAN) e Partido da Revolução Democrática (PRD) – disputam as lentes distorcidas dos meios de comunicação e tentam, por meio delas, realizar suas campanhas eleitorais usando o que se passou para se promover. Ingenuidade pensar que cessaram os bombardeios da mídia, e dos políticos por meio desta. Recorrem a esse acontecimento, que foi o mais sanguinário de todo o governo Vicente Fox, para reiterar a necessidade de calar aqueles que “ameaçam a democracia no México”, ou seja, os movimentos sociais que resistem às políticas neoliberais de exclusão. Cada um desses partidos se candidata a realizar essa empreitada “civilizatória”, seja pela via do cacetete, com Roberto Madrazo (PRI), que já anunciou que “nem mais machetes, nem mais Atencos, nem mais Marcos”, pois será o presidente da segurança; seja pela via do diálogo, com López Obrador (PRD), quem, em verdade, tem demonstrado mais preocupação em se defender dos ataques lançados por seus adversários de que teria vínculo com esses movimentos sociais.
Clive Freeman de Berlim (Alemanha)
Indymedia/ México
SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL Ainda que neguem, a presença do representante dos zapatistas, o subcomandante insurgente Marcos (Delegado Zero) na cidade do México é extremamente incomoda nesse período eleitoral. Seus chamados à mobilização extravasam o âmbito nacional: já foram realizadas mais de 100 ações em defesa dos presos de Atenco, em 22 países e em mais de 40 cidades. Libertar os 220 presos políticos será decisivo para que as eleições, a serem realizadas no próximo 2 de julho, se dêem sob um aparente contexto de tranqüilidade. Do contrário, serão realizadas sob um clima de mobilizações que colocaria em cheque sua legitimidade popular. Cabe a Fox essa decisão. Entretanto, já é evidente que essa crise é também uma crise da democracia representativa no México e a estimativa de que haja 73% de abstenções de votos não o deixa mentir. Este é um momento decisivo para este país. Se a opinião pública está descontente e não crê mais nesse sistema político, a “Outra Campanha” cada vez mais vem se consolidando como uma alternativa viável. Atenco formou o nó que atou essas diferentes perspectivas de atuações políticas e cujo desenlace contém distintas possibilidades para o rumo de México. (JAM)
“Outra Campanha” busca sensibilizar população contra as políticas neoliberais
se converteu em um conflito de tamanhas proporções? Os manifestantes de Atenco (“macheteros”, como lhes chamam) defendiam algo mais que um espaço para o comércio ambulante; defendiam a resistência ao modo
polícia durante a invasão policial, sem autorização, em busca de dirigentes e integrantes do FPDT.
de vida imposto pelo neoliberalismo. Os “macheteros” ganharam notoriedade quando, em 2001, opuseram-se à construção de um novo aeroporto internacional para cidade do México (DF); souberam defender suas terras negando-se a vendê-las. Nessas circunstâncias, camponeses de 24 localidades organizaram a FPDT, obrigando os grandes especuladores e seus representantes a abrir mão de um projeto milionário. As autoridades tiveram que se contentar em expandir o já existente aeroporto internacional da capital do México. Essa luta acabou por aproximar os “macheteros” dos zapatistas. A repressão do governo foi, sobretudo, uma agressão direta à “Outra Campanha”, da qual ambos os movimentos fazem parte. Justo no dia 26 de abril, o representante do EZLN, o subcomandante insurgente Marcos, nomeado Delegado Zero, havia realizado uma reunião no centro de Atenco com aqueles interessados em participar dessa nova construção política e, a partir dessa data, a segurança pessoal de Marcos estaria a cargo de uma comissão da FPDT. A resposta do EZLN às agressões sofridas por seus companheiros foi declarar um “Alerta Vermelho” por tempo indeterminado: até que todos os 220 presos políticos sejam libertados. Até lá, “todos seremos Atenco”, afirmou Marcos durante as mobilizações realizadas na capital federal.
Os jogadores estrangeiros que participarão da Copa do Mundo da Alemanha, especialmente se forem negros, deverão estar alertas diante de possíveis ataques, segundo ex-funcionários do governo e especialistas. O ministro do Interior, Wolfgang Schaeuble, garantiu que o país “é seguro para os visitantes estrangeiros”. Os 12 estádios em que serão disputadas as partidas do Mundial são “totalmente seguros”, acrescentou. Entretanto, nem todos compartilham dessa opinião oficial. O ex-porta-voz do governo anterior, Iwe-Karsten Heye, entrevistado pelo jornal socialdemocrata Vorwaerts, alertou que uma pessoa que não seja caucasiana não deve visitar determinadas localidades do país, por razões de segurança. Trata-se de “povoados médios de Brandenburgo (o Estado que rodeia Berlim); não recomendaria a ninguém com uma cor de pele diferente. É possível que não saiam vivos dali”, afirmou. O ex-ministro da Defesa, Peter Struck, disse que as declarações de Heye “não ajudam em nada”. No entanto, várias organizações concordaram com o que disse Heye. A Anistia Internacional afirmou que o ex-porta-voz expôs “um problema sério”. Por sua vez, Arwa Hassan, da organização Transparência Internacional, com sede em Berlim, disse que Heye fez o certo ao apontar o perigo. “Os negros correm risco especial de serem ridicularizados ou abordados por provocadores em alguns lugares do país”, acrescentou. A própria Arwa , alemã de ascendência egípcia, foi atacada há pouco tempo em um bonde no Norte de Berlim. “Começaram com comentários insultantes. Disseram que eu era estrangeira, puxaram meu cabelo
Kariya Aichi
Joana Aranha Moncau de Cidade do México (México)
Indymedia/ México
Repressão policial no município de Atenco une tendências políticas em disputa e mostra a força dos zapatistas
e me empurraram. Quando procurei ajuda com o condutor, me puseram para fora”, contou.
INCIDENTES As autoridades trabalham para impedir esses incidentes durante a competição. O prefeito de Nuremberg, Ulrich Maly, disse que foram tomadas medidas nesse sentido e que haverá “contínua vigilância durante todo o mundial”. Consultado sobre a violência que costuma cercar as partidas de futebol, e especialmente sobre os antecedentes de alguns fanáticos da seleção inglesa, Maly assegurou que “nenhum
país está mais preocupado com isso” do que a Grã-Bretanha. “Aqueles fanáticos com antecedentes de violência serão impedidos de entrar na Alemanha no próximo mês”, afirmou o prefeito. Acostumado a responder perguntas de visitantes sobre o papel de Nuremberg durante o período nazista, Maly disse: “Esse foi um capítulo horrível de nossa história. Agora, se vê outro, o de uma cidade moderna, tolerante, aberta ao mundo e muito entusiasmada com a perspectiva de dar as boas-vindas a muitos turistas neste verão”. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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De 25 a 31 de maio de 2006
INTERNACIONAL DIREITOS HUMANOS
Copa do Mundo de futebol ou da vergonha U
ma mulher sedutora, seminua, mostra seus seios em meio às bandeiras dos 32 países que participam da Copa do Mundo. Sobre a imagem, o slogan da competição: “Die Welt zu Gast bei Freunden” (do alemão, o mundo convidado na casa de amigos) se transforma: quem convida são as freundinnen, as amigas. Com essa enorme faixa, sobre a fachada de um prédio de dez andares, o Velho Pacha, bordel do centro de Colônia, sabia que começava um escândalo. Não havia razão, pensavam os publicitários, para que só o famoso Artemis de Berlim, seu principal concorrente, lucrasse com a polêmica internacional sobre a prostituição na Copa do Mundo, que começa dia 9 de junho. E a estratégia funcionou: a imprensa internacional começa a disputar a entrada do bordel, para conseguir a melhor entrevista ou fotografia. O Velho Pacha, preparando-se para a Copa, está em reforma. A renovação no primeiro andar está quase acabada – mais que novo para a chegada dos torcedores. Cinco partidas serão disputadas em Colônia. Armin Lobscheid, diretoradjunto do estabelecimento, admite ter realizado um “grande investimento” pois é “óbvio que há mais prostituição durante os grandes eventos”. Sabe que uma oportunidade como essa não aparece duas vezes. O Velho Pacha prepara os anúncios que serão distribuídos no entorno dos estádios e veiculados em táxis ou jornais. Dos 140 quartos do bordel, só 90 são ocupados, em média, por semana – “de 100 a 110, nos finais de semana”, diz Lobscheid. Ele espera casa cheia durante junho todo.
PARA TODOS OS GOSTOS No Velho Pacha, o esquema é parecido com o de outros locais: as mulheres alugam um quarto, entre 120 e 180 euros (de R$ 320 a R$ 500) por dia. Cinqüenta trabalham permanentemente no bordel. Esperam então os clientes, que entram no edifício após pagar 5 euros, pouco mais de R$ 10. Estão alinhadas, de dois a três metros de distância uma da outra, quase nuas. As paredes vermelhas reforçam a sordidez do lugar, com pouca ventilação. Nos diferentes andares, há opções para todos os gostos, como propagandeia o diretor-adjunto: bares, restaurante, sauna, mesas para striptease, apresentações eróticas, quartos para sessões sadomasoquistas... As mulheres, diz Lobscheid, são bem tratadas. Têm cabeleireiros privativos e massagens. “São essas coisas que fizeram o sucesso do lugar, que quase faliu faz dez anos. Quando as mulheres se sentem bem, os clientes também se sentem”, diz. Existem três outros Velho Pacha na Alemanha. Um deles em Munique, palco de cinco partidas. Nas doze cidades mobilizadas para a Copa do Mundo, os responsáveis pelo “empreendedorismo do sexo” se preparam. Esperam mulheres e clientes do mundo inteiro. Em Colônia, não se consegue acreditar na chegada massiva de 40 mil prostitutas durante a Copa do Mundo, número publicado pelos grandes meios de comunicação da cidade. Este é rejeitado, em coro, pelas autoridades e entidades, que o consideram excessivo. No entanto, ninguém se arrisca a fazer um prognóstico oficial.
PROSTITUIÇÃO FORÇADA Em Berlim, capital do país, a polícia conta 8 mil mulheres em 700 locais de prostituição e sabe que o número deve aumentar. Principalmente, devido à prostituição forçada. Aumentou o controle nas fronteiras para desestimular o tráfi-
Alemães dão boas-vindas aos torcedores estrangeiros: “O mundo convidado na casa de amigos”; no cartaz dos bordéis, quem convida são as freundinnen, as amigas
co de mulheres. No entanto, admite que, há alguns meses, mulheres são trazidas da África, da América Latina e da Europa do Leste para a Copa do Mundo. Pessoas teriam sido enviadas para recrutá-las na África, denuncia Amely-James Koh Bela, presidenta da associação Africa Prostitution. “Dizem às prostituas que a Copa do Mundo vai melhorar o nível de vida delas. Como a Alemanha legalizou a prostituição, pensam que poderão ficar e exigir documentos de estadia permanente”, conta. Como é mais fácil deslocar mulheres dentro da Europa, imigrantes africanas na França teriam sido enviadas para a Alemanha, revela Amely-James. Os bordéis se aproveitam da chegada dos jornalistas para fazer publicidade. O Artemis, desde o início de maio, realizou 58 visitas acompanhadas para a imprensa. E, de fato, os artigos se sucederam, dizendo que esse “megabordel”, de 3.500 metros quadrados, está locali-
zado a apenas três estações de metrô do estádio olímpico de Berlim. O Artemis foi aberto em setembro de 2005 e seus proprietários esperam resgatar o investimento para a construção durante o mês que durar a Copa do Mundo. Esperam um aumento da clientela em mais de 50%. A pedido de um dos donos do Artemis, Julia e Kiara, que certamente inventaram os nomes, aceitam posar para fotos, desde que seus rostos não sejam exibidos. São 10 horas da manhã e, apenas com calcinhas, sutiãs e sapatos de salto alto, como manda a norma do bordel. Têm 23 e 24 anos. No térreo, há saunas, salas de musculação, restaurantes e cinemas pornôs. Julia e Kiara trabalham com prostituição há quatro anos e dizem que nunca trabalharam em condições tão boas. Em outros lugares, dizem, há muito tráfico de droga e corrupção.
TRABALHO SEM PAUSA Em um bordel de Hamburgo, diz Kiara, o dono a obrigava a “traba-
lhar dez dias seguidos, sem pausa”. Nada disso acontece no Artemis, afirma, diante de seu chefe, onde há “bem-estar”. Associações de direitos humanos denunciam, entretanto, que as mulheres são obrigadas a fazer o “Französich total”, felação completa sem preservativo. Os clientes recebem o “tratamento especial” por 70 euros (R$ 190) em dias normais, mas o bordel está em promoção: 55 euros (R$ 150). No Artemis, as mulheres estão disponíveis em todos os lugares – nos cinemas, na sala de musculação, na frente de todos. Só não é permitido na piscina e no bar, “por motivos de higiene”. Aqui, a prostituição tem que ser limpa e bela. Há uma caixa de lenços a cada metro e um cheiro contínuo de desodorante. Além disso, os jogos da Copa serão transmitidos, em telões. “Sexo e futebol combinam”, disse, recentemente, o advogado do Artemis. (L´Humanité Dimanche, semanal francês parceiro do Brasil de Fato)
Mobilização contra o tráfico de mulheres Mais de 7 milhões de visitantes, principalmente homens, são esperados nas 12 cidades alemãs que vão hospedar os jogos da Copa do Mundo, em junho e julho. Em um país onde a prostituição é legalizada, os empresários do sexo se preparam e recrutam prostitutas. Uma pesquisa sobre clientes da prostituição, realizada por Claudine Legardinier e Saïd Bouamama, cita “a relação entre as atividades esportivas com a prostituição”. Testemunho de um cliente: “Só vou acompanhado de amigos. Jogo rúgbi e, após, o esforço, vem o reconforto”. No entanto, atrás disso, um tráfico internacional hediondo se organiza. A Organização das Nações Unidas reconhece como os três primeiros comércios internacionais as armas, as drogas e os corpos de mulheres. Para os organizadores do tráfico, o mercado do sexo é mais barato e menos perigoso que os outros, além de mais lucrativo. Mais barato: pôr uma mulher em uma calçada ou à venda na internet não exige qualquer tipo de investimento. Menos perigoso: passar as fronteiras é fácil, uma vez que se obtêm rapidamente vistos e passaportes. Em países onde a prostituição é legalizada, os lucros são “dinheiro limpo”. Os lucros do tráfico de pessoas para prostituição cresceram desde os anos 1990. Richard Poulin, sociólogo, autor de diversos livros sobre o tema, avalia que a globalização atingiu um de seus piores
Indymedia e L’Humanité (foto no detalhe)
Anne-Laure de Laval de Colônia (Alemanha)
Fifa e L’Humanité
Rede de prostituição está implementada ao lado dos estádios alemães, apesar do alerta de organizações feministas
Movimentos sociais alemães denunciam rede criminosa criada em função da Copa
modos de ação. “A industrialização do comércio do sexo está relacionada à globalização econômica”, diz. Estima-se a movimentação financeira anual da prostituição mundial em 60 bilhões de euros (R$ 162 bilhões), de acordo com dados da polícia européia. Na Alemanha, movimentos so-
ciais estão em alerta. A Coalizão Internacional contra o Tráfico de Pessoas e a Prostituição denuncia a rede criminosa que se criou no país anfitrião, em virtude da Copa do Mundo. Dizem: “Quatro milhões de crianças e mulheres são vítimas do tráfico de pessoas, 90% das quais para a prostituição”. (ALL)
Cartão vermelho para a Fifa Eduardo Sales da Redação O livro Foul! (Falta), do jornalista britânico Andrew Jennings, está causando pânico ao atual presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), Joseph Blatter. Jennings revela provas de compra de votos durante a eleição do dirigente. O autor publica a obra a poucos dias do início da Copa do Mundo, porém, no dia 3 de maio, a Fifa contou com a ajuda da Justiça suíça numa tentativa de censurar o livro. No entanto, dia 11 de maio, depois de muita pressão, a Fifa retirou a ação. Em seu livro, o jornalista afirma que, em 1998, a eleição para presidente da federação foi marcada por vasta operação de compras de votos e distribuição de contratos para garantir a escolha de Blatter. Também denuncia a gestão dos recursos da entidade e a venda ilegal de ingressos para os Mundiais. O livro acusa ainda dois protagonistas da cartolagem verde-amarela: Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), e João Havelange, ex-presidente da Fifa. Segundo Jennings, os dois teriam comprado votos em suas eleições. Havelange, por exemplo, teria contado com o apoio da Adidas para ser eleito em 1974. A obra conta como a transnacional de produtos esportivos decidiu apoiar o brasileiro contra o então presidente da Fifa, Stanley Rous. A empresa teria enviado envelopes com dinheiro aos delegados indecisos para que votassem em favor de Havelange. Em pouco tempo, a Adidas foi recompensada, ganhando o poder exclusivo de comercialização dos direitos da Fifa. “A publicação do livro não altera o procedimento da Copa do Mundo”, avalia o jornalista esportivo Juarez Soares, para quem a Fifa é uma “máquina de fazer dinheiro”. “Se os dirigentes já são corruptos nos países que compõem a Fifa, a própria Fifa torna-se corrupta também”, explica. Juarez afirma que, por serem entidades “privadas”, é muito difícil fiscalizá-las. “Se a reeleição fosse proibida na CBF e na Fifa, não haveria tantas irregularidades. João Havelange permaneceu anos na presidência.”
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CULTURA
De 25 a 31 de maio de 2006
Educação contra a alienação
Greenpeace
NOVOS VALORES
O filósofo húngaro István Mészáros alerta sobre as perversidades do capitalismo contemporâneo João Alexandre Peschanski da Redação
O
mundo está preso a uma espiral destrutiva, a lógica do capital, que pode causar seu desaparecimento. Destrói-se a natureza, pensando que se está estimulando a produção de mercadorias necessárias para o bem-estar humano. Justificam-se ataques militares, que geram massacres, como se fossem as únicas formas de deter a violência. Tais anomalias não revoltam a maioria da população, pois estão encobertas em uma capa que turva sua compreensão. Esta, de acordo com o filósofo húngaro István Mészáros, se chama alienação. “É a perda de controle sobre as atividades humanas que poderíamos e deveríamos controlar”, diz. Mészáros esteve em São Paulo para o relançamento de seu livro A teoria da alienação em Marx (Boitempo Editorial, 2006), quando concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato. Falou sobre os aspectos mais perversos do capitalismo e da lógica do capital, fenômenos que insiste em diferenciar. Explicou que, onde há alienação, estão os elementos que podem derrocar a dominação do povo. O alimento das práticas de transformação social é a educação. “É preciso recuperar o sentido da educação, que é conhecer-se a si mesmo, aprender por diferentes meios. O pensamento crítico precisa ser desenvolvido pelo povo, pois só ele tem a força de se libertar”, diz. Brasil de Fato – Em A teoria da alienação em Marx, o senhor afirma que se tornou uma necessidade histórica problematizar o conceito de alienação. Por quê? István Mészáros – A sobrevivência da humanidade está ameaçada, não só em razão da potência militar de alguns países, mas também em virtude da devastação da natureza. Precisamos modificar, radicalmente, nosso modo de vida ou desapareceremos. Chegamos a esse ponto porque há um poder, do qual estamos alienado, que controla o sistema social, em vez de nós mesmos dirigirmos nosso destino. Poderosos interesses econômicos determinam o modo como devemos nos relacionar com a natureza, nos levando à nossa própria destruição. Na ECO-92, encontro internacional realizado no Rio de Janeiro em 1992, várias promessas foram enunciadas por governos, incluindo o estadunidense, para deter a devastação ambiental. Mas elas são descumpridas, quando Protocolo de Kyoto – Conjunto o presidente de metas para a George W. redução de gases poluentes, os quais, Bush deixa de acredita-se, estejam assinar o Proligados ao aquetocolo de Kyoto, cimento global. O apesar de recoprotocolo, assinado nhecer que os por 141 países, mas não os Estados Estados Unidos Unidos, principal são responprodutor dessáveis por um ses gases, entrou em vigor em fevequarto dos dareiro de 2005, mas nos à natureza. não surtiu qualquer A devastação é tipo de efeito. irreversível. BF – O capitalismo contemporâneo funciona na lógica da produção destrutiva. As máquinas do sistema não páram, mas seu funcionamento é perverso, pois exaurem o planeta. Mészáros – Os Estados Unidos assumem um papel determinante no direcionamento do poder alienado que dirige os destinos da população mundial. A maioria dos outros países não é melhor,
mas não consegue competir com o império. Ao mesmo tempo, a condição de superpotência dos EUA é paradoxal, pois o país passa por grandes dificuldades econômicas, manifestadas pela existência de uma dívida catastrófica, que não tem como ser quitada. Os juros só são pagos com dinheiro extraído de outros países, por meio de acordos de comércio injustos ou intervenções militares. Antes, o capitalismo se orgulhava de ser uma destruição produtiva, mas sua manifestação imperialista se sustenta na lógica da produção destrutiva. A alienação, absolutamente dominante, é o alicerce dessa lógica perversa. BF – Por que decidiu basear sua análise em Os manuscritoseconômico-filosóficos, do pensador Karl Marx, de 1844? Mészáros – Essa obra representa o momento da Karl Marx (18181883) – Filósofo e maturação da economista revoteoria do capilucionário, nascido tal que Marx na Alemanha, que criou as bases teóri- vai apresentar cas do comunismo. em outros texSuas obras vão tos, como O desde a crítica ao capital. Ele dimodo de produção capitalista à estraté- zia que o mungia que os trabalhado estava camidores, explorados nhando para a dentro desse sistema, devem assumir capacidade de para alcançar sua se autodestruir. liberdade. Hoje temos poderio militar para nos destruir mais de mil vezes. Há algumas décadas, quando Estados Unidos e União Soviética disputavam a hegemonia mundial, falava-se na teoria da destruição mútua assegurada. O poderio nuclear das duas potências mantinha um certo equilíbrio planetário. Hoje, pelo menos uma dúzia de países têm armas nucleares e a possibilidade de um confronto com bombas atômicas não é descartável. Além disso, outros armamentos, principalmente químicos, põem em risco a humanidade. Teóricos do PentáPentágono – Sede gono, que não do Departamento posso chamar de Defesa do gode outra coisa verno dos Estados senão de louUnidos. cos, defendem o uso de armas de destruição em massa contra países que resistem à dominação total dos Estados Unidos. O resultado de pensamentos como esse é a situação do Iraque, onde mais de 100 mil pessoas já morreram. A insanidade, com base na influência do Pentágono, se tornou a lógica dominante das relações internacionais.
A insanidade, com base na influência do Pentágono, se tornou a lógica dominante das relações internacionais BF – Como o senhor define alienação? Mészáros – É a perda de controle sobre as atividades humanas que poderíamos e deveríamos controlar. O sistema social é uma construção humana e deveria ser controlado pelos homens, mas está longe de nós, fora de nosso alcance, está alienado. Está, algumas vezes, usurpado. BF – Como fazer esse controle? Mészáros – Não tem como ser controlado sob a hegemonia do
Em Santarém (PA), organizações sociais protestam contra a transnacional Cargill, que cultiva soja transgênica na Amazônia
poder do capital. A alienação não é algo mágico, que cai do céu, mas é parte fundamental do que chamo metabolismo social de humanidade. A alienação é um tipo de controlador do capital, que não se preocupa com o destino do planeta, mas com sua própria reprodução, infinita. A ironia da humanidade é que conseguiu desenvolver instrumentos suficientes para manter-se, para que todos tenham o que comer, mas são usados para estimular uma realidade destrutiva. A lógica do capital é estimular a alienação, pois faz com que a população aceite esse paradoxo. A alienação leva à racionalização da insanidade, o que cria a ilusão de ser a ordem correta das coisas. É o modo como se gera a ideologia dominante. Quando a invasão do Iraque começou, a justificativa era a existência de armas de destruição em massa. Três anos depois, vemos massacres, ruínas, sofrimento, mas nada do tal armamento. Essa incongruência foi racionalizada, impedindo que levasse à revolta dos que acreditaram nas justificativas do governo estadunidense. Mesmo assim, a alienação também está no fato de se acreditar que os problemas da humanidade podem ser resolvidos com violência. A mudança dessa dominação, que coloca em risco a sobrevivência do planeta, depende de uma ação revolucionária que vá além da lógica do capital. Dois elementos podem gerar essa ação revolucionária: a defesa da natureza e a resistência ao belicismo. BF – Em Os manuscritos, Marx fala em diferentes formas de alienação, mas destaca a dos homens em relação a eles mesmos e seus pares. Como pensar em uma ação revolucionária, se estamos dispersos e atomizados? Mészáros – A lógica do capital força uma competição destrutiva dos humanos. A competição, em si, não é ruim. Pode levar à superação de limites e até a novas formas de cooperação. Hoje, a competição é antagônica: alguém tem sempre que ser destruído. Gera uma onda de medo, o que serve de suporte para governos autoritários. A base de nossa vida social, a produção e a reprodução das condições de nossa sobrevivência, fica fora de nosso controle. Aqui, mais uma vez, está a alienação. A própria noção de economia, fundamental para nossa vida, é desvirtuada. Antes, queria dizer poupar. Hoje, é consumir, ao último nível possível. Quebrar a alienação é repor as definições históricas juntas, mostrando a trajetória do conhecimento de cada conceito e prática. BF – A União Soviética, a China e a Iugoslávia, países que reivindicaram o comunismo, não se preocuparam mais do que os capitalistas com a natureza. Mészáros – Nunca tivemos países realmente comunistas. Esses três países desafiaram, de fato, o capitalismo, mas nunca se des-
vencilharam do poder do capital. Encontraram outras formas de fazê-lo existir. Um dos países que mais devastou o ambiente foi a União Soviética, que poluiu territórios imensos. A construção do socialismo não pode se desligar da preocupação com a ecologia, base de nossa sobrevivência. A questão não é só derrubar o capitalismo ou os Estados capitalistas, que podem até ser facilmente derrubados, mas criar um novo poder, que enfrente a lógica do capital. A União Soviética é prova de que os Estados capitalistas podem ser derrubados e, depois, restaurados. A raiz do problema não é o capitalismo – um sistema recente dentro da história da humanidade – mas a lógica do capital. Os países citados se diziam comunistas, mas mantiveram a lógica da produção destrutiva. Pensavam que tinham que produzir mais do que os Estados Unidos, controlar mais áreas de influência. Seguiram, na verdade, a mesma lógica. Não foram buscar os sentidos originais dos conceitos e conhecimentos, como a definição antiga de economia ou as contradições apontadas por Marx. Reinterpretaram a alienação, mas mantiveram-na como lógica dominante. BF – O grande desafio da humanidade é desenvolver uma cultura crítica, no sentido político do termo, em relação às práticas sociais, atualmente alienadas. Mészáros – Não basta manter a crítica em sua cabeça ou para um círculo fechado, é preciso fazer a ponte com a realidade. A crítica tem que ser o alimento para organizar um movimento de massa para transformar a lógica do capital. Isso exige que as pessoas críticas assumam a responsabilidade de mudar os rumos. Mas como isso é possível se apenas alguns estão no comando político e outros estão excluídos das decisões? Como esperar que as pessoas assumam a responsabilidade pelas decisões se nunca fizeram isso, nem acham que sabem como fazer? BF – A própria noção de que alguns sabem e outros têm que ser comandados é ideológica. A alienação mantém essa visão, que gera pessoas inseguras, fáceis de manipular. Mészáros – Não se pode perder de vista a necessidade do confronto. Os excluídos têm que questionar a razão de sua exclusão. Daí, vão chegar à conclusão de que não há nada que a justifique. BF – Como se dá essa tomada de consciência? Mészáros – Não pode se dar simplesmente por um grupo de intelectuais. O pensamento crítico precisa estar ao alcance de e ser desenvolvido por uma massa de pessoas. O problema é que, desde a mais tenra idade, nas escolas, as pessoas são ensinadas a ser pacatas. Muitas pessoas nem têm acesso à educação formal. Formas alternativas de educação
devem ser desenvolvidas pelo povo. É preciso recuperar o sentido da educação, que é se conhecer a si mesmo, aprender por diferentes meios, criativos e alternativos. O pensamento crítico precisa ser desenvolvido pelo povo, pois só ele tem a força de se libertar. Não há fórmula mágica, além da necessidade de estimular a criatividade que a alienação tenta destruir.
A crítica tem que ser o alimento para organizar um movimento de massa para transformar a lógica do capital BF – Marx diz que é preciso buscar o ponto de contradição do sistema, pois só nele está a chave para a emancipação. O senhor está dizendo que é preciso desmistificar os mecanismos de alienação? Mészáros – A alienação só pode ser vencida com educação. Há uma relação dialética, é claro. Não se acaba com a alienação simplesmente passando uma lei: a alienação está proibida. Isso gera mais alienação. A educação precisa ser orientada para uma humanidade sustentável. É uma pedagogia com clara intenção política, a de libertar o povo, mas não é dogmática, pois emana do próprio povo. Ressalto que essa educação é emergencial. É preciso assumir a responsabilidade sobre a transformação dessa perspectiva, não tão distante, de um mundo prestes a desaparecer. O primeiro passo é parar a competição destrutiva e estimular uma interação positiva entre os homens. João Alexandre Peschanski
Quem é Autor do clássico Para além do capital, o húngaro István Mészáros nasceu em Budapeste, em 1930, onde se graduou em Filosofia. Integrou a Associação de Escritores Húngaros, editou a revista da Academia de Ciências, Magyar Tudomány, e a revista mensal Eszmélet. Após a revolta de 1956, abandonou o país. Em 1995, foi eleito membro da Academia Húngara de Ciências. Em 2006, recebeu o título de Pesquisador Emérito da Academia de Ciências Cubana.