Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 4 • Número 177
R$ 2,00
São Paulo • De 20 a 26 de julho de 2006
www.brasildefato.com.br
Guerra no Oriente Médio
As opções da esquerda em ano eleitoral
Muçulmanos se unem contra ataques de Israel à Palestina e ao Líbano
A
cados, abandonam rivalidades e se unem contra o inimigo comum. O governo iraniano alerta o israelense que não vai tolerar agressões à Síria. Exige a retirada das tropas do Líbano e da Palestina. O conflito se
alastra. Seiscentas pessoas foram mortas nos ataques, desde 28 de junho. Israel mobiliza sua população. Dos 7 milhões de habitantes, 3 milhões têm treinamento militar. O Oriente Médio está em guerra. Países
ocidentais, omissos, encaram o conflito como rotineiro, resultado da instabilidade corrente da região. O impasse, gerado pelo belicismo israelense, pode gerar um conflito longo e mundial. Pág. 5 Ahmed Deeb/ Word News
s maiores correntes do Islã - sunismo e xiismo - se aliam para resistir às ações militares de Israel, que invadiu a Palestina e o Líbano. O Hamas e o Hezbollah, organizações dos países ata-
Três alternativas de estratégia dividem a esquerda, neste ano eleitoral. PT e PCdoB acreditam na reeleição do presidente Lula para acentuar as mudanças iniciadas pelo primeiro mandato e impedir o retrocesso simbolizado pela candidatura de Geraldo Alckmin, do PSDB. PSOL, PSTU e PCB identificam na campanha de Heloísa Helena um meio para enfrentar e superar o neoliberalismo. A Consulta Popular concentrará suas forças nas lutas sociais, como a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce. Pág. 3
Governo omisso alimenta a violência em SP
Povos árabes do Oriente Médio, de credos e nacionalidades diferentes, se aliam para combater Israel, cujo exército ocupa a Palestina e o Líbano
Os desafios do novo ministro da Agricultura Pág. 4
Mexicanos nas ruas contra fraudes
Missão investiga ação dos EUA no Paraguai
Pág. 7
Movimentos haitianos se organizam por mudanças
Pág. 7
Cansadas da ingerência internacional e de governos neoliberais, as organizações populares do Haiti se preparam para tomar o poder. Unificam pautas e articulam mobilizações conjuntas. Essa é a experiência narrada por Marc-
EDITORIAL
O
Essa dominação imperialista conta com o apoio das burguesias locais e dos governos enfraquecidos ou cooptados pela idéia de que, seguindo a receita dos ricos, atingirão o status de esquerda civilizada e amadurecida. Esses governos acreditam que, seguindo receituários e cumprindo acordos nocivos aos interesses da população, poderão ingressar no restrito clube dos países ricos. Clube que sobrevive graças à rapinagem internacional que promove. Afinal, de que adianta sentar à mesa dos banqueiros internacionais se no interior do Maranhão há pessoas morrendo por falta de vitamina B? Infelizmente, esse debate parece passar longe das disputas eleitorais deste ano. As discussões se restringem às fofocas de corredores, à troca de cargos e favores, à garantia de benefícios individuais, às denuncias de corrupção (que deve ser combatida, sempre, com todo o rigor da lei). Enfim, o debate político se restringe àquilo que o pensador marxista Antônio Gramsci chamou de pequena política. Enquanto a grande política, a definição do destino do país, a elaboração de um projeto estratégico de desenvolvimento que atenda os interesses e necessidades do povo, é posta de lado. Talvez seja esse esvaziamento da política a principal razão de a
esquerda brasileira estar tão desunida neste processo eleitoral. A unidade política, dos que querem transformar a realidade, não se dá pelas vontades pessoais ou discursos ideológicos. Acontece em torno de propostas, estratégias e projetos políticos. Na ausência deles, cada um se dá o direito de fazer a defesa de sua proposta, de eleger seus inimigos, de buscar as alianças políticas mais convenientes. Não fazem nada mais que o jogo da direita, que aposta sempre no fracionamento das forças progressistas para perpetuar seu domínio político. Caberá aos movimentos sociais e às forças progressistas a tarefa de deslegitimar e apresentar alternativas ao sistema capitalista. Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de uma unidade e de inovar nas formas de organização social e política. Torna-se imperioso resgatar o sonho, a utopia da transformação social. Os seres humanos são dotados de inteligência e capacidades que lhes possibilitam construir uma sociedade superior à capitalista.
Arthur Fils-Aimé, diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Para ele, a Missão da ONU, comandada pelo Brasil, impede a solução dos problemas do país. Pág. 6
Douglas Mansur
É preciso resgatar a utopia modelo neoliberal, implementado desde o início da década de 1990, não se limitou a hegemonizar o capital financeiro sobre o produtivo, privatizar as empresas estatais e desnacionalizar a economia. A democracia do Estado burguês foi reduzida a um acessório decorativo. Os direitos e as liberdades democráticas do Estado burguês não são concessões da burguesia, mas conquistas da classe trabalhadora, obtidas com as lutas que se opuseram aos interesses e aos objetivos da elite brasileira. O neoliberalismo conseguiu fragilizar ainda mais a democracia e as instituições do Estado. A privatização e a desnacionalização da economia, associadas ao predomínio dos interesses do capital financeiro, promoveram uma verdadeira desestruturação dos centros internos de decisão política e de planejamento estratégico. Os organismos internacionais, financeiros e comerciais exercem verdadeiros papéis de polícia, vigiando, inibindo e, sempre que necessário, reprimindo toda e qualquer tentativa de romper com a agenda neoliberal imposta aos países da periferia do sistema capitalista. Há um esforço draconiano para desqualificar e silenciar as propostas que se opõem ao modelo neoliberal e, principalmente, ao sistema capitalista.
À mercê de nova onda de ataques atribuídos à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), o Estado de São Paulo sofre as conseqüências da falta de políticas públicas de segurança. Entidades de defesa de direitos humanos denunciam a ação revanchista e inócua da polícia no combate ao crime, enquanto apontam situações de barbárie em um presídio de Araraquara – onde 1.400 detentos, expostos a sujeira e doença, ocupam um espaço destinado a abrigar 400. Pág. 4
MOBILIZAÇÃO POPULAR – Quase duas mil pessoas acompanharam a Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, que celebrou os 30 anos de martírio do padre João Bosco
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DEBATE
CRÔNICA
A saga da diáspora africana
A era da mediocridade
alvador (BA) sediou entre os dia 12 e 14, a 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad). Não é um acontecimento qualquer. É a primeira vez que se discute em um evento deste porte, no Novo Mundo (a 1ª Ciad foi em Dacar, no Senegal), o sentido passado e presente da saga dos africanos carregados para fora de suas terras pelo escravismo colonial nas Américas. Os netos dos africanos escravizados que para cá foram trazidos nos navios negreiros, ou tumbeiros,compõem hoje uma parcela considerável dos povos americanos. Em alguns países, como o Haiti e a Jamaica, são a esmagadora maioria da população. Em outros formam uma expressiva minoria, como os EUA, onde são perto de 40 milhões. No Brasil, predominantemente mestiço – de uma mestiçagem talvez sem paralelo –, é provável que sejam maioria. Como o são certamente em Salvador, a maior cidade negra fora da África. Em um leitura mais ampla, é possível dizer que toda a espécie humana compõe uma grande diáspora africana. As últimas descobertas da ciência atestam que o homo sapiens nasceu de um tronco único, no Continente Negro, provavelmente no vale do Rift, no Quênia atual. A diáspora que ocupa a Conferência de Salvador, porém, tem um sentido mais preciso: é aquela provocada pelo tráfego negreiro, nos três séculos e meio desde 1502, quando os primeiros africanos escravizados chegaram na Ilha de São Domingos (Antilhas), até outubro de 1855, data do último desembarque conhecido de um tumbeiro, em Serinhaém, Pernambuco.
S
ARQUIPÉLAGO CULTURAL
Nesse período, calcula-se que 12 milhões de africanos escravizados aportaram no Novo Mundo. E a população da África permaneceu estagnada, em cerca de 100 milhões de ha-
Antonio Cruz/ Agencia Brasil
Luiz Ricardo Leitão Bernardo Joffily
bitantes, pois, para cada pessoa aqui chegada como cativo, várias morriam no transporte, ou principalmente nas guerras fomentadas pelos tumbeiros. A diáspora teve portanto uma enorme importância para a África, assim como para as três Américas. E a ela se somaram, a partir da segunda metade do século passado, os seus ramos mais novos na Europa Ocidental (França, Reino Unido, Portugal). A despeito dos horrores que o marcaram, esse processo criou também um arquipélago cultural africano de notável vigor. Os que se interessam por estatísticas lembrarão que a África é o mais pobre dos continentes, e o que menos se desenvolve, castigado por guerras e pela pandemia da AIDs. E que em todos os países das Américas os negros e mestiços têm menor renda, maior taxa de desemprego, menos acesso à saúde e educação. Esses fatos reais convivem, porém, com outros que igualmente merecem atenção. Por exemplo: pouco depois que se criou a indústria de massa da música (com o fonógrafo, o disco e o CD, o cinema falado, a TV e a internet), e esta globalizou-se, a diáspora africana a hegemonizou. O jazz e seu primo mais jovem, o rock, o samba, o frevo, o axé, o reggae, o mambo, a salsa, o merengue, a cúmbia, e até a recentemente descoberta música
de Cabo Verde de Cesária Évora constituem uma superpotência musical. Que outra matriz cultural detém tantos discos de ouro e platina no planeta? E quem negará o seu parentesco, que tem tudo a ver com a diáspora negra? Tudo isso acontece e prospera sem que se reflita muito a respeito. A Ciad não é portanto uma dessas siglas engenhosas que a diplomacia cria às vezes, mas uma necessidade palpável, a reclamar atenção, debate, consideração. Já era hora do mundo da intelectualidade e das instituições oficiais se debruçar um pouco mais sobre uma realidade tão rica e palpitante. A julgar pela lista de participantes, há uma percepção diferenciada dessa necessidade. O presidente Lula, como anfitrião, marcou presença, assim como vários chefes de Estado e de governo, e ministros, principalmente da Cultura, como o brasileiro Gilberto Gil e o cubano Abel Prieto. Já o governo dos EUA não se fez representar. A segunda maior diáspora negra das Américas esteve presente na Conferência mas por meio de expoentes da sociedade civil, como o cantor e ativista do movimento negro Steve Wonder. Bernardo Joffily é jornalista, autor do Atlas Histórico Isto É Brasil 500 anos e editor do portal Vermelho (www.vermelho.org.br)
Cantada em verso e prosa pelas sereias da mídia como “a maior Copa de todos os tempos”, o evento da Alemanha tornou-se, afinal, um símbolo contundente desta era medíocre e banal que a globalização neoliberal nos impõe. Brasil e Argentina continuam a ser os celeiros da matéria-prima, mas o dono do empório ainda é o Velho Mundo, com seus estádios de cartão-postal. Dentro dos gramados, aliás, o badalado “espetáculo” foi tão pífio e requentado que até FIFA, essa mega-empresa que vende seu “produto” no planeta bola, já estuda novas medidas para aumentar o número de gols nos jogos e reacender no público sua paixão pelo nobre e violento esporte bretão. O talento, de fato, andou longe das quatro linhas. Cansadas pelo fim das ligas européias e mais preocupadas com os contratos milionários que esperavam assinar após o show, as estrelas não brilharam na Alemanha. E como “em terra de cego quem tem um olho é rei”, o francêsargelino Zidane logrou beliscar o título de “melhor jogador” do torneio, por meia dúzia de belas jogadas que fez nas últimas partidas da seleção francesa. Ao final, tudo não passou de um sonho de uma noite de verão: expulso da decisão após uma polêmica agressão ao italiano Materazzi, o maestro Zizu foi mais um a provar que há algo de podre no reino do futebol. Por outro lado, o título da aguerrida – porém opaca – seleção italiana lembrou-nos que, em um esporte totalmente coletivo, a vitória jamais poderá depender do brilho individual desta ou daquela celebridade da pelota. Para os brasileiros, em especial, a Copa deixou várias lições, quase todas amargas, mas de enorme valia para o nosso povo. Embora a seleção não deva ser vista como um índice ou retrato fidedigno do país, não julgo descabidas as analogias que alguns jornalistas e certos filósofos de bar trataram de estabelecer entre a sociedade brasileira e o microcosmo representado pela equipe de Parreira. De fato, há traços afins entre os dois “comandantes” (o presidente e o treinador), sobretudo o cinismo e a presunção das duas figuras. Lula, por exemplo, com a sua verborréia contumaz, não hesitou em declarar que “o sistema de saúde do Brasil é quase ideal” (sic); Parreira, por sua vez, não deixou por menos nas coletivas de imprensa: somos os pentacampeões do mundo, possuímos o melhor futebol do planeta e só perdemos a Copa por um acidente de percurso – tudo isso dito com a maior desfaçatez, entre sorrisos e chistes, durante uma entrevista paga (!) em um hotel da Barra da Tijuca, no Rio, como se estivesse regressando da Alemanha com a própria taça nas mãos... Invocando as estatísticas para exaltar os “méritos” do seu trabalho, Parreira apenas repete a mesma tática adotada pela equipe econômica do governo, cujos números apregoam o progresso de Pindorama, mas cujos resultados práticos se vêem na explosão do desemprego e da violência social país afora. A seleção canarinho veio a ser, pois, um espelho cristalino das elites tupiniquins: além de trair as expectativas dessa gente bronzeada que não cansa de mostrar seu valor e atribui à magia do futebol a sua própria identidade nacional, assumiu com total desfaçatez a política do “tô nem aí” que se difundiu em várias esferas da nossa vida pública. Que o diga o “ala” Roberto Carlos, após a inexplicável cena do jogo contra a França, quando se abaixou para ajeitar a meia, bem na hora do cruzamento que resultou no gol gaulês. Quem viu suas declarações ao “Fantástico” pode ter pensado que ele vive em outro planeta, tamanho o desdém que dedicou ao incidente. O pior, porém, é que ele não é o único a fingir-se de “morto” em plena era da mediocridade neoliberal: Lulas, Parreiras, RC e todos os netos de Brás Cubas e Macunaíma estão à vontade em Pindorama, zombando dos vivos e maquiando com suas ficções a triste realidade da nossa pátria sem chuteiras. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)
CARTAS DOS LEITORES CONFISSÃO Confesso: sou de direita. Voto e votarei no PSDB, sempre que for. Mas não sou burro. Encontrei, no quarto de minha filha, estudante de Pedagogia na Universidade de São Paulo, um dos exemplares do Brasil de Fato, edição de 6 a 12 de julho. Não concordo com a linha editorial do jornal e acho que algumas das matérias reproduzem o óbvio, sem entrar em um mérito mais analítico, como é o caso da CTEEP. Não é disso que vou tratar. Devo dizer que nunca havia lido um jornal em que se desse tanto destaque à questão africana. Minha família é de origem angolesa, por isso acompanho a questão de perto. A matéria “Transgênico, duro de engolir”, na página 7, explica o que ninguém mais quer ver: a culpa da miséria africana é dos mais ricos. E digo mais: não querem encontrar soluções para essa miséria, mas lucrar cada vez mais com ela. A África está na mira dos ricos, quer seja pelo petróleo ou outros recursos, como o solo e a água. No fim da década a África subsaariana provavelmente se tornará tão importante como fonte de importações energéticas americanas quanto o Médio Oriente. A África Ocidental tem uns 60 mil milhões de barris de reservas provadas de petróleo.
Angola fornece 4% das importações americanas de petróleo, as quais poderiam duplicar no fim da década. Matérias sobre a questão africana faltam para o público. Minha filha me disse que o jornal tem o compromisso de cobrir a questão africana toda semana. Só posso elogiar tal decisão, principalmente se forem feitas com a mesma qualidade jornalística da matéria sobre os transgênicos no continente. Parabenizo o repórter e o jornal. Acompanharei a cobertura do jornal. Não porque concorde com sua linha editorial, mas porque traz informações que ninguém mais traz. Parabéns pelo bom trabalho. Wladin Shitomir Jundiaí (SP) MOTIVAÇÃO Queremos parabenizar o jornal Brasil de Fato, pois foi a partir dele que nós criamos um pequeno molde intitulado Iara de Fato, que é um pequeno empenho de uma associação não governamental – Associação de Amigos e Amigas da Infância (AMINF), com o intuito de fazer valer nossas idéias e ajudar no crescimento de nosso distrito – Iara, no municipio de Barro (CE). Somos assinantes e muito fã do trabalho competente de vocês. Laura Hévila Barro (CE)
QUE PAPELÃO Ditas personalidades do mundo esportivo, musical e tecnológico desembocam numa campanha de baixa criatividade e de um perigo indutivo muito grande. Vendem suas imagens para recuperar a suja imagem duma das grandes inimiga da humanidade: “Aracruz Celulose”. Que papelão. O que que a despolitização, o oportunismo e a força do deus mercado não fazem com as pessoas. “Aracruz fazendo um bonito papel no mundo inteiro”. Que maravilha! Não acham? Os índios, os quilombolas e os pequenos agricultores do Espírito Santo, que sofrem diretamente com a expansão da monocultura do eucalipto, não acham! “E a seleção chega a Berlim”. Que papelão, hem, Gil? É bem verdade que o poder transforma as pessoas. Como pode o mesmo ministro que reconhece as comunidades quilombolas, legitima a Aracruz nos despejos a força desses povos de suas terras, hem? Diante disso nada mais a acrescentar. Pelé, Daiane, Seu Jorge, Marcos Pontes, Popó, Bernadim, Robert Scheit e o grande ministro Gilberto Gil estão, devotamente acunhado na vergonha brasileira. Que papelão! Emiliano Morais Por correio eletrônico
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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De 20 a 26 de julho de 2006
NACIONAL ELEIÇÕES
As opções da esquerda A esperança de mudar, de fato Luís Brasilino da Redação Convictos de que a disputa entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB) representa uma falsa polarização, os partidos PSOL, PSTU e PCB criaram uma chapa unificada, a Frente de Esquerda, para apoiar a candidatura da senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) à presidência. O PSOL foi formado após a direção nacional do PT expulsar quatro parlamentares que votaram, em 2003, contra a reforma da Previdência – quando uma emenda constitucional se tornou uma das primeiras atitudes neoliberais do governo Lula, criando um teto para as contribuições previdenciárias e, assim, estimulando os fundos de pensão privados. Outros quadros se somaram ao núcleo inicial, após o fim das eleições internas petistas, em setembro de 2005, movidos pelo desgaste causado por ações como a manutenção da política econômica sustentada pelo tripé neoliberal: juros altos, para frear o crescimento da economia e dessa forma combater a inflação; elevado superavit primário, de modo a possibilitar que a União honrasse seus compromissos com o mercado financeiro; e foco nas exportações para gerar divisas.
DAQUI PARA A FRENTE Um dos dissidentes, o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), avalia que o PT já não representa mais um partido estratégico. Para ele, a candidatura de Heloísa Helena vem retomar um processo histórico de mudança, de transformação e afirmação do socialismo e de um programa democrático-popular contra o neoliberalismo. “Até para ter alguém que, de fato, combata o projeto da direita brasileira com o qual o PT se associou”, diz Valente. Seu companheiro de coligação e também candidato a uma vaga da Câmara
PT e o PCdoB apostam na reeleição para aprofundar as mudanças iniciadas no atual mandato. A Consulta Popular, entendendo que a esquerda não tem mais espaço para avançar por meio das eleições, investe nas lutas sociais e na formação da militância
César Ogata
O Brasil de Fato ouviu políticos e lideranças políticas sobre os caminhos da esquerda neste ano eleitoral. O PSOL, com o apoio do PSTU e do PCB, lança a candidatura de Heloísa Helena como alternativa às práticas neoliberais implantadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O
Federal, Dirceu Travesso (PSTU-SP), explica que a falência do PT criou a necessidade de uma alternativa de esquerda. Porém, Travesso ressalta a importância da candidatura apresentar, no processo eleitoral, uma alternativa que possa também se expressar depois em mobilizações, ocupações de terra, greves, organização de movimentos populares e luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e projetos do imperialismo, entre outras bandeiras da esquerda social.
COMO FAZER Empenhada em impedir que a conquista de cargos dentro do aparato estatal se consolide como o principal objetivo, a Frente de Esquerda prevê mecanismos para não ser cooptada pela institucionalidade burguesa – como entendem que aconteceu com o PT. Travesso, que é também do Movimento Nacional de Oposição Bancária, avisa não ter fórmula mágica para evitar que isso aconteça, mas dá pistas: “Controle da direção pela base, manter o centro na luta social, democracia interna, rodízio nos mandatos parlamentares e sindicais e discussão permanente de um programa de ruptura com o regime democrático burguês”. Travesso critica a posição do Movimento Consulta Popular: “Eles estão envergonhados de anunciar apoio ao Lula”, provoca. Ivan Valente confessa admiração pela Consulta mas explica que a participação no processo institucional, combinada com a organização popular, é uma necessidade da sociedade de massas e também da correlação de forças atual. “Não participando do processo eleitoral, perde-se a oportunidade de dialogar com milhões de trabalhadores e um instrumento de politização. Só há prejuízo se passar a mensagem de que a transformação virá simplesmente do voto”, completa Valente.
Movimento Consulta Popular aproveitará período eleitoral para denunciar os limites da democracia institucional burguesa
Alternativa à institucionalidade O Movimento Consulta Popular (MCP) aprovou, em Plenária Nacional, realizada em junho, a decisão de não se pautar pela definição do voto nas eleições deste ano. Isso significa não apoiar nenhum candidato, tampouco o voto nulo. O advogado Ricardo Gebrim, da coordenação nacional do MCP, avalia que a esquerda brasileira enfrenta um esgotamento político da estratégia centrada na luta eleitoral. “Durante muitos anos a eleição de Lula à presidência foi o elemento unificador da maioria da esquerda. Com a vitória em 2002 e o desempenho do governo, houve não só o esgotamento de um ciclo hegemonizado pelo PT mas também do ciclo centrado na luta eleitoral como um todo”, indica Gebrim. Sendo assim, a Consulta não irá se pautar pelo voto. Mesmo reconhecendo que as eleições ainda cumprem um papel importante, o advogado explica que o objetivo é evoluir na construção de uma força social para as lutas e aproveitar a questão eleitoral para denunciar os limites da democracia representativa. Para o MCP, esse modelo não abre espaço para que um projeto popular se viabilize.
Divulgação
EM TORNO DAS LUTAS
César Ogata
Apesar de reconhecer que existem candidaturas
melhores e piores, Gebrim analisa que escolher uma delas, ou optar pelo voto nulo, se insere na lógica de atribuir à questão eleitoral um papel que ela já não tem. “Declarar apoio a Lula significa validar um processo que não aponta perspectivas de transformação. Reconhecemos que muita gente valorosa da esquerda acredita nesse caminho para impedir um retrocesso na política nacional. Respeitamos aqueles que acreditam que é possível reunificar a esquerda na construção de uma frente eleitoral na candidatura Heloísa Helena. E respeitamos também os que acham que o voto nulo representa um protesto político. Mas, na nossa opinião, a esquerda brasileira não vai se reunificar em torno da definição eleitoral e sim em torno das lutas, em torno da definição de um plano comum e pode até se reunificar em torno da construção de um programa mínimo”, prevê o coordenador da Consulta. Segundo Gebrim, a isenção em relação à disputa eleitoral libera o movimento para construir as assembléias populares, empenharse na construção de uma campanha pela reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, lutar por tarifas elétricas populares e se inserir na reforma agrária. (LB)
Candidatura de Heloísa Helena vem retomar um processo histórico de mudança e transformação, diz Ivan Valente
Lula-lá para não retroceder O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é o candidato mais forte destas eleições. Apoiado também pelo PCdoB e PRB, sua vitória no primeiro turno foi confirmada na maioria das pesquisas de intenção de voto feitas nos últimos três anos e meio. Lula está muito à frente de seu principal oponente, Geraldo Alckmin (PSDB), em grande parte pelo desastre que foi o governo de seu antecessor, do também tucano Fernando Henrique Cardoso. Baseado nisso, dirigentes petistas como o deputado estadual Raul Pont (RS) mostram irritação diante da tese da “falsa polarização entre PT e PSDB”. “Isso é ma-fé ou provocação”, rebate Pont, secretário-geral nacional do PT. Para ele, Lula representa o campo democrático popular, de defesa da soberania nacional e de construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população. “(A polarização) é o elemento básico da conjuntura eleitoral que vivemos”, analisa Pont. Altamiro Borges, secretário de comunicação do PCdoB e editor da Revista Debate Sindical, ressalta, entre os dados positivos do governo Lula, a não criminalização dos movimentos sociais, a paralisação das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a manutenção do controle sobre as estatais, a retomada da contratação de servidores públicos. Borges também enumera os históricos de alguns assessores de Alckmin para combater o argumento da “falsa polarização”. “Na questão sindical e trabalhista, o assessor é o José Pastori (economista da Universidade de São Paulo), ícone da flexibilização trabalhista no Brasil e defensor do desmonte do sindicalismo. Na política agrária, o assessor é
o Xico Graziano, aquele que diz que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é banditismo social”, alerta Borges.
OPÇÕES Para Pont, a candidatura de Heloísa Helena é muito mais de crítica ao Lula e ao PT do que um projeto de governo: “Eles não têm unidade programática para governar o país. Se o PSOL e o PSTU tiverem que definir posições com a complexidade que se enfrenta em qualquer governo, explodem em 20 pedaços”. Borges acredita que o PSOL vai enfrentar um dilema durante a campanha: “Quero ver eles irem à televisão dizer que concordam com a política externa positiva, com as políticas sociais abrangentes. Para se afirmar, vão ter que atacar o governo Lula e, querendo ou não, contribuirão com a oposição de direita”. Um dos trunfos do Movimento Consulta Popular (MCP) com a postura de não entrar na disputa eleitoral é evitar fazer esse papel. Borges, entretanto, lembra das eleições presidenciais realizadas dia 2, no México. A Outra Campanha, promovida pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, também optou por não assumir posição e o resultado oficial do pleito apontou uma diferença de 220 mil votos em favor do candidato da direita. O mesmo poderia acontecer no Brasil sem o apoio da militância da Consulta. Para Raul Pont, faltou ao MCP capacidade de avaliação da conjuntura: “Hoje, existem vários partidos que se reivindicam do movimento popular ou da esquerda. Não é possível que nesse quadro não tenha alguém mais ou menos sintonizado com a Consulta Popular”. (LB)
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NACIONAL SEGURANÇA PÚBLICA
Novos ataques, velhos problemas Nova onda de ataques resulta de políticas equivocadas e da constante violação dos direitos humanos
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penas dois meses após as primeiras séries de ataques, o crime organizado voltou a realizar ações no Estado de São Paulo, entre os dias 11 e 16. Os ataques, atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC), teriam sido em represália à prisão e à transferência de líderes da organização criminosa para um presídio no Paraná. Porém, especialistas e integrantes de organizações de direitos humanos acreditam que os fatores que desencadearam os novos ataques vão além da questão factual. Entre as razões estruturais das ondas de violência está a situação de barbárie nos presídios de São Paulo – em uma das ações, em um supermercado, os criminosos deixaram bilhetes com a mensagem: “Contra a opressão carcerária”. Para pressionar os governos estadual e federal a tomar medidas mais eficazes no combate à violência, entidades como a Justiça Global, Pastoral Carcerária e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo levaram à Organização das Nações Unidas (ONU), na semana passada, uma denúncia sobre a situação no presídio de Araraquara, interior de São Paulo – onde o juiz José Roberto Bernardi Liberal não autorizou a transferência dos presos, alegando não ser sua incumbência, mas sim da Justiça Federal. O pedido foi feito pela Defensoria Pública de São Paulo em decorrência das graves violações dos direitos humanos no local.
Luiz Carlos Leite
Divulgação
Dafne Melo da Redação
Justiça decretou sigilo nas investigações, impedindo que entidades de direitos humanos acompanhem esclarecimentos sobre as mortes de “supeitos”
De acordo com o relatório enviado às Nações Unidas, onde cabem apenas 140 pessoas, estão 1.400. As condições de alimentação são precárias: além de receber as refeições pelo teto, internos relataram ter achado cacos de vidro na comida. Não há eletricidade, e existem apenas 13 banheiros para todos os presos. “Os detentos têm sido obrigados a recorrer a sacos plásticos para realizar suas necessidades fisiológicas; os excrementos são empilhados em um
rão ser transferidos cem presos por semana.
canto do pavilhão, propiciando a proliferação de insetos e bactérias. O risco de uma epidemia é iminente”, diz o documento. Muitos estão adoecendo, sem receber atendimento médico. Por duas semanas, nenhum interno teve acesso a banho ou a qualquer produto de higiene pessoal. A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) alegou que os presos já estão recebendo alimentação adequada e tratamento médico. Entretanto, informou que só pode-
DESCONTROLE Para Frederico dos Santos, do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), os novos ataques provam que a polícia paulista não tem mais controle sobre o PCC: “Não há um setor de inteligência que previna e coíba essas ações. A polícia não está preparada para coibir esses ataques”. Em sua opinião, a forma como o
AGRICULTURA
Mudanças à vista? Gisele Barbieri de Brasília (DF)
governo e defensores da reforma agrária, estremecida por altos recursos concedidos desde o início do governo aos grandes produtores. Os pequenos produtores esperam do novo ministro medidas imediatas, como a atualização dos índices de produtividade para determinar se uma área está apta a ser desapropriada para fins de reforma agrária. “Esperamos que ele tire da gaveta a portaria interministerial que institui os novos índices. É inaceitável que, de um lado, o latifúndio brigue por tecnologia de ponta; e, de outro, pregue a manutenção de índices de produtividade dos anos de 1970”, avalia Áureo Scherer, integrante da direção do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Outro desafio para Guedes Pinto é tentar solucionar a dívida dos
grandes produtores com governo, bancos e fornecedores, que chega a R$ 20 bilhões. Todo esse passivo foi contraído somente na safra anterior e será refinanciado à taxa de 8,75% ao ano.
AGRONEGÓCIO PROTEGIDO
João Zinclar
Uma crescente tensão entre os defensores do agronegócio e os da agricultura familiar. É nesse ambiente que o novo ministro Luís Carlos Guedes Pinto assume a pasta da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em substituição a Roberto Rodrigues – cujo pedido de demissão, apesar da alegação de problemas pessoais, foi interpretado como uma evidência de que o agronegócio não pretende manifestar seu apoio explicito à reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Antes mesmo do governo Lula, a imagem do Ministério da Agricultura era a de uma pasta a serviço do agronegócio. A escolha de Rodrigues, ainda na primeira formação do governo, em 2003,
reforçou essa impressão: o ex-ministro é produtor de cana, ex-presidente da Associação Brasileira de Agribusiness e integrante de diversos conselhos representantes do agronegócio. A trajetória do ministro Luís Carlos Guedes Pinto, ex-secretárioexecutivo na gestão de Rodrigues, é bem diferente. Ele foi presidente da Companhia Nacional de Abastecimento(Conab), em 2003, e sempre manteve boas relações com organizações sociais que lutam pela reforma agrária, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ao assumir o cargo, no início do mês, o novo ministro evitou criar atritos com o agronegócio e declarou que manteria as políticas em curso. Guedes Pinto terá a difícil missão de melhorar a relação entre
Mais de cinco mil pessoas, entre religiosos, fiéis e membros de organizações e movimentos sociais, participaram da 29ª Romaria da Terra e das Águas, em Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Plenários debateram sobre o rio São Francisco, Reforma Agrária, Terras Públicas e Comunidades Tradicionais, entre outros temas
O descontentamento dos grandes produtores e defensores do agronegócio, mesmo após tantos ganhos na gestão de Roberto Rodrigues, é momentâneo, na opinião de José Juliano de Carvalho Filho, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e integrante da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra): “Eles têm a comodidade de um alto montante de recursos à disposição, mas temporariamente estão abalados pelas grandes dívidas e pela alta do real frente ao dólar, que prejudica as exportações, responsáveis por grande parte de seus lucros”. Segundo o professor, os produtores contam com a política de proteção do agronegócio perpetuada pelo governo Lula. “Criou-se uma visão falsa de que o agronegócio é a salvação. Quando estamos com os mercados internacionais em alta, os grandes produtores rurais lucram. Mas quando há problemas com esses mercados, temos uma socialização das perdas do agronegócio”, explica Carvalho Filho, referindo-se às constantes renegociações das dívidas dos produtores e aos fartos recursos públicos destinados ao setor. O ministro Guedes Pinto herda o peso de um pacote de R$ 50 bilhões lançado pelo governo federal, em maio, aos grandes produtores, enquanto a agricultura familiar – responsável pela produção, em média, de 60% dos produtos que a população consome – com apenas R$ 10 bilhões. (Leia a reportagem completa na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br)
governo estadual reage às ações do PCC, com revanchismo e buscando mostrar mais força, reforça a instabilidade na segurança pública. Ariel de Castro Alves, advogado e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, acredita que a resposta da polícia aos últimos ataques foi mais legalista do que nos ataques de maio. Foram 164 prisões e, de acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública (SSP), a polícia não fez vítimas. O quadro difere bastante da situação anterior. Até hoje, os números são incertos, e ainda investigados por entidades da sociedade e pelo Ministério Público. Os dados oficiais contabilizam 123 homicídios – 42 agentes de seguranças e 81 suspeitos, mortos pela polícia em confronto. Nesse número não são computadas as mortes de autoria desconhecida, que podem ter ocorrido por grupos de extermínio, com a possibilidade de participação de policiais. Frederico dos Santos conta que a Ouvidoria das polícias registra cerca de 70 denúncias desse tipo naquele período.
13 MORTES A última ação suspeita da polícia do Estado de São Paulo foi no dia 28 de junho: 13 supostos integrantes do PCC foram mortos a tiros, na cidade de São Bernardo do Campo. De acordo com a SSP, as mortes se deram em confronto, após a polícia descobrir que o grupo realizaria ataques contra agentes penitenciários. Dias depois, a Justiça decretou sigilo nas investigações, impedindo as entidades de direitos humanos de acompanhar os esclarecimentos sobre as mortes de “suspeitos”. Santos conta que, quando questionado pelas entidades, o juiz responsável alegou que todos os mortos tinham passagem pela polícia. “É um absurdo um poder constituído dizer isso. Não há pena de morte no Brasil. E, mesmo em países onde há, o criminoso é julgado antes”, protesta Santos. O fato mostra que a atuação do Judiciário também contribui para a situação de caos que reina em São Paulo. Alves aponta que o Judiciário não tem cumprido sua obrigação de fazer o Estado cumprir a lei, sendo conivente, por exemplo, com o quadro de violação dos direitos humanos nas prisões do país. “O Judiciário faz de conta que não tem participação nisso. Em São Paulo, temos um dos Judiciários mais conservadores. Não aplicam penas alternativas, vão lotando os presídios, e não os fiscalizam”, avalia Alves.
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INTERNACIONAL Fotos: Ahmed Deeb/ Word News
ORIENTE MÉDIO
O conflito se alastra Os ataques, que estavam restritos à Faixa de Gaza, atingem o Líbano; e muçulmanos se unem Marcelo Netto Rodrigues da Redação
O
conflito no Oriente Médio se alastra como nunca aconteceu nos últimos 20 anos e a improvável “união sagrada” entre xiitas, sunitas e alauitas, em resposta a ataques de Israel, já é uma realidade. As ações simultâneas que partem do Hamas, na Faixa de Gaza, e do Hezbollah, ao sul do Líbano, colocaram em cena a Síria e o Irã. O governo sírio é alauita, o Hamas é sunita e o Irã, assim como o Hezbollah, são xiitas. O medo de que a política promovida pelos Estados Unidos no Iraque impulsionasse um crescimento xiita – que se estenderia do Líbano ao Irã, passando pelo poder alauita da Síria e os xiitas iraquianos – se confirma agora como “um cerco” ao Estado de Israel, no que já pode ser chamado de guerra do Oriente Médio. Um milhão de pessoas deixaram o Líbano na última semana, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas. As mortes se multiplicam. Enquanto o conflito na Faixa de Gaza matou 87 palestinos e um soldado israelense, no Líbano, as vítimas fatais passam de 200 – contra 20, do lado israelense. Os feridos são mais de 600. Os israelenses de Haifa, por exemplo, têm apenas um minuto para correr para algum abrigo antiaéreo, após ouvir a sirene de aviso de mísseis. O barril de petróleo, cotado a 30 dólares às vésperas da invasão do Iraque, em 2003, hoje beira o recorde de 80 dólares. O Irã declarou que, se a Síria for atacada, o país de Ahmadinejad – que meses atrás declarou que Israel deveria ser apagado do mapa – assumirá esse ataque como se fosse contra o seu próprio território. Há suspeitas de que o Irã, na prática, já entrou no conflito. Segundo o Exército israelense, cerca de cem integrantes da Guarda Revolucionária do Irã estão no Líbano para ajudar o grupo islâmico Hezbollah – o qual tem usado mísseis de origem iraniana e munição síria. “O Hezbollah surgiu após a invasão israelense ao Líbano, em 1982, e o Hamas, durante a primeira Intifada (1987-1988). Ambos opõem-se radicalmente a Israel e aos Estados Unidos, que estão por trás da força israelense. Têm ideologias parecidas. O Hamas é formado por muçulmanos sunitas e o Hezbollah, por muçulmanos xiitas. Mas são aliados da Síria e do Irã, formando uma aliança regional contra Israel”, explica o professor de ciência política na Universidade Paris VIII, Gilbert Achcar. “A vitória eleitoral do Hamas foi festejada como uma vitória do Hezbollah. E também do Irã”, diz.
Uma reportagem publicada pelo Brasil de Fato, na edição da semana passada (176), falava sobre o livro Código da Bíblia – segundo o qual existe um código matemático na Bíblia que prevê um ataque nuclear a Jerusalém, no dia 3 de agosto. Nesse código, chama a atenção a palavra “terremoto”, que aparece no noticiário dos últimos dias como a tradução do nome do míssel de origem iraniana Zilzal, utilizado pelo Hezbollah. Além disso, o conflito, antes restrito ao Sul de Israel, na Faixa
de Gaza, se transferiu para o Norte, com a entrada do Hezbollah. De acordo com o código, o ataque a Israel seria seguido por uma invasão vinda do Norte. Nasrallah, principal líder do Hezbollah, em diversas declarações à imprensa, disse que “Israel não consegue entender as pistas”, “Vocês (os israelenses) vão se surpreender de novo assim como se surpreenderam com Haifa”, “Nós podemos atacar vocês praticamente em qualquer lugar”. Os foguetes “terremoto”, de origem iraniana, do Hezbollah, podem atingir alvos
a 400 km de distância, o que põe Jerusalém na mira. Leia na Agência Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br) artigos sobre o conflito: do argentino Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz – “Israel se transformou em um Estado terrorista”; do bispo de Jales, Dom Demétrio Valentini; e do economista canadense Michel Chossudovsky, do Centro de Pesquisa da Globalização, para quem “os bombardeios israelenses podem levar à escalada da guerra no Médio Oriente”.
Segundo a ONU, um milhão de pessoas deixaram o Líbano na última semana e mortos passam de 200
OS MUÇULMANOS SE UNEM O professor da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo Franklin Goldgrub fala sobre o Islã, suas divisões e perspectivas de união. Brasil de Fato – Como explicar essa improvável união sunita-xiita, representada pelo Hamas (na Faixa de Gaza) e pelo Hezbollah (no Sul do Líbano)? Franklin Goldgrub – Ainda não existe uma boa compreensão acerca das bases socioeconômicas subjacentes à divisão do Islã. Supõe-se que as vertentes xiita, sunita, wahabita e alauita retratem as profundas diferenças socioeconômicas do vasto mundo muçulmano, similar ao que aconteceu ao longo da história do cristianismo. As rivalidades entre sunitas (que admitem a separação entre religião e Estado, lembrando o anglicanismo) e xiitas (em que religião e Estado são indissociáveis, como nos tempos em que o papado representava simultaneamente o poder espiritual e temporal) são apagadas quando se trata de enfrentar um inimigo comum, como Israel. Não é surpreendente que os alauitas, que governam a Síria, e os xiitas, que governam o Irã, se unam. BF – Qual a diferença básica de crença entre xiitas e sunitas?
Goldgrub – Os xiitas acreditam que a descendência de Maomé deveria ocorrer por parentesco. (Etimologicamente: Chiat Ali: Partido de Ali). Para os xiitas, Ali, genro de Maomé, deveria ter herdado o Califado e o Corão permanece como a referência central da fé islâmica. Para os sunitas, que representam a maioria dos muçulmanos, o Corão deve ser interpretado por um livro (Sunna), escrito a partir dos ensinamentos orais de Maomé, cuja finalidade seria adaptar e atualizar os ensinamentos originais do profeta a cada época e sociedade. Do ponto de vista econômico, o xiismo é tradicionalista e reflete os valores de uma sociedade sobretudo rural, enquanto o sunismo parece traduzir o papel predominante alcançado pelo artesanato e pelo comércio. BF – Bin Laden poderia formalizar a partir de agora uma união com o xiita Ahmadinejad? Goldgrub – Nada impediria uma aliança, mesmo que a rivalidade permaneça, no que se refere à liderança do Islã e à interpretação do Corão. Apesar da atribuição de uma filiação sunita a Bin Laden, é plausível que ele esteja mais próximo do wahabismo, vertente saudita do Islã, cujo radicalismo supera em muito o sunismo. (MNR)
O belicismo total de Israel João Alexandre Peschanski da Redação O inimigo é monstruoso e impiedoso. Precisa ser destruído, pois não hesitará em assassinar a nós todos. Lutamos em nome da liberdade e da democracia. Quem for contra as ações militares na Palestina e no Líbano, é contra Israel – é também nosso inimigo. As quatro frases resumem o discurso dos porta-vozes do governo israelense. Supostamente moderados e pacifistas, Shimon Peres, vice-primeiro-ministro, e Amir Peretz, ministro da Defesa, falam do “eixo do Mal, composto por Hamas, Hezbollah, Síria e Irã”. Conclamam a população israelense a resistir e manter-se solidária, pois “é a luta por nossa sobrevivência”. O primeiro-ministro, Ehud Olmert, descarta negociações diplomáticas com representantes da Palestina e do Líbano, países que mandou ocupar. Só pretende realizar reuniões se tais governos mostrarem disposição para desarmar o Hamas e o Hezbollah. “Israel mantém populações inteiras como reféns. Foi sua estratégia contra os palestinos e é o que faz contra os libaneses”, explica o cientista político francês Gilbert Achcar, especialista em relações internacionais do Oriente Médio, em entrevista ao Brasil de Fato.
ANIQUILAR O INIMIGO Os ataques israelenses objetivam o aniquilamento do Hamas e do Hizbollah, vistos como grupos legítimos em seus países. As organizações não têm campos de treinamento ou sedes claras. Seus integrantes vivem nas grandes cidades palestinas e libanesas, sistematicamente bombardeadas pelas tropas de Israel. “Israel ataca, massacra, tortura. O governo diz que é a estratégia correta, que ajudará israelenses e árabes. Quando algum grupo revida, assim como inimigos de guerra respondem a ataques, não é uma ação legítima, mas terrorismo, monstruosidade”, revela o pacifista israelense Michael Warschawski, para o Brasil de Fato. Ele participou de um protesto em Telaviv, no dia 16, exigindo a retirada das tropas israelenses da Palestina e do Líbano. Só havia 800 pessoas. “As pessoas têm medo de se manifestar, pois o governo criminaliza quem se opõe à guerra, dizendo que são traidores e aliados dos terroristas”, completa. Sedes de entidades pacifistas israelenses foram invadidas e destruídas por soldados. Warschawski denuncia a falta de oposição à guerra em Israel como decorrência do alto grau de militarização do país. Dos 7 milhões de habitantes, 3 milhões têm treinamento militar e podem ser mobilizados pelo exército, conhecido como Tzahal. Este tem armamentos de ponta, muitos vindos dos Estados Unidos, que envia, anualmente, 3 bilhões de dólares para o governo de Israel. O governo israelense não está disposto a mudar sua estratégia de guerra, analisa Achcar. “A arrogância e a violência dos ataques podem revoltar e unir a população libanesa contra Israel. Isso pode desestabilizar a região e estender o conflito, temporal e geograficamente”, conclui. Hamas – Movimento político palestino sunita criado em 1987, na cidade de Gaza, cuja sigla designa o Movimento de Resistência Islâmica. Preconiza a luta contra Israel, por todos os meios, visando a libertação da Palestina. No início do ano, o grupo venceu as eleições parlamentares palestinas superando o Fatah, de Yasser Arafat. O atual primeiro-ministro palestino Ismael Haniyeh pertence ao grupo. Hezbollah – Partido de Deus, em árabe, o Hezbollah nasceu como uma milícia islâmica xiita após a invasão israelense no Líbano, em 1982. É financiado pela Síria e pelo Irã. Seu principal líder é o xeique Hassan Nasrallah, considerado o herói responsável pela retirada das tropas israelenses do Sul do Líbano, no ano 2000.
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AMÉRICA LATINA João Alexandre Peschanski
HAITI
Cansados da ocupação Organizações populares querem construir instrumento político revolucionário e interromper intervenção da ONU seu líder está sob controle direto do imperialismo estadunidense? Não é um meio de exercer certa pressão sobre o governo para recuperar força na administração pública? O governo de transição de Boniface Alexandre e Gérard Latortue havia demitido vários funcionários de baixo e médio escalão, sob a alegação de tornar as instituições mais autônomas. Mas o que fizeram foi colocar seus protegidos na administração pública.
João Alexandre Peschanski da Redação
N
em tutela internacional, nem governos neoliberais. A população haitiana constrói seus próprios instrumentos políticos. Nas organizações populares, falase em tomada do Estado, dentro de alguns anos. Mas os desafios são muitos, analisa Marc-Arthur Fils-Aimé, diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque. É preciso enfrentar e denunciar a ocupação. Começando pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), que mantém o controle militar no país. Em seguida, vêm os outros mecanismos de influência da comunidade internacional, como a ingerência nas instituições haitianas. Depois, a cumplicidade do governo do país com as potências. Por fim, a divisão das organizações populares, rachadas e fragmentadas. Energia para criar uma alternativa existe, revela Fils-Aimé: “Muitas forças de esquerda, fragmentadas, consideram que é o momento de criar uma força revolucionária capaz de tomar o poder”.
BF – O ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, seqüestrado por tropas estadunidenses, apesar de ser um aliado dos EUA, vai voltar ao país? Fils-Aimé – As organizações partidárias de Aristide se mobilizam abertamente por seu retorno. São sinceras quando dizem que
A concretização da ingerência sobre o Judiciário reforça a ocupação de nossa nação BF – O governo brasileiro considera a intervenção uma ajuda humanitária. Fils-Aimé – A concretização da ingerência sobre o Judiciário reforça a ocupação de nossa nação, que depende em 60% do financiamento internacional para pagar funcionários e 100% para realizar
Marc-Arthur Fils-Aimé é diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque (ICKL), centro de educação popular haitiano. Suas análises de conjuntura são publicadas por diversos meios de comunicação do país caribenho. Ele assessora o movimento Tèt Kole Ti Peyizan Haïtien (TK, em português, Cabeças Juntas de Pequenos Camponeses Haitianos). eleições. Alguns analistas pensam que o atraso do pleito territorial, que devia ter acontecido antes do presidencial, de acordo com o calendário do Conselho Eleitoral Provisório (CEP), decorre de a comunidade internacional não querer aumentar o número de funcionários públicos. Haveria um acréscimo de 3 mil trabalhadores, necessários para desenvolver a democracia, dispensáveis na perspectiva das potências. BF – Qual a estratégia das instituições internacionais, como a ONU e o Banco Mundial? Fils-Aimé – É baseada em uma visão neoliberal. Defendem um ajuste estrutural do Haiti, pregando medidas como a privatização de empresas estatais lucraQuadro de Coope- tivas, a paralisação da ração Interina produção nacional, o (CCI) – Elaborado estímulo à abertura ao em 2004, sob orienmercado internacional. tação do Banco Mundial, define as Préval já se alinhou, linhas políticas do anunciando a privatigoverno do Haiti, geralmente neolibe- zação da empresa de rais. Foi escrito por telecomunicações e do técnicos estrangeiBanco Nacional de Créros, sem participação da sociedade dito (BNC). Ele aceitou o haitiana. Prega a privatização de em- Quadro de Cooperação presas e recursos Interina (CCI), que vai naturais, além de valer até o outono de priorizar o cresci2007. A maioria de mento econômico em vez das necesseus ministros defende o sidades sociais. neoliberalismo.
Agência Brasil
Brasil de Fato – Desde a eleição de René Préval, a quem muitos movimentos sociais decidiram “apoiar de modo crítico”, como está a situação política no Haiti? Marc-Arthur Fils-Aimé – Não mudou. Não se pode esperar grandes transformações desse governo que defende a ocupação do país. A maioria das organizações populares, instituições alternativas e personalidades de esquerda ou progressistas apoiou criticamente sua eleição para manifestar rejeição a outros candidatos tradicionais, como Charles Henry Baker e Leslie Manigat, que representavam uma guinada ainda mais à direita no cenário político. Mas sabíamos que Préval não ia enfrentar a estrutura neoliberal, que começou a se desenvolver na ditadura de Jean-Claude Duvalier (que governou de 1967 a 1986), caracterizada pela adoção da mais baixa taxação alfandegária do Caribe, com o objetivo de abrir nosso mercado. A medida sufocou a produção nacional e fez do Haiti, outrora um grande produtor de arroz, um dos maiores importadores per capita desse grão no mundo. Até agora, o novo governo, sob a direção de Jacques Édouard Alexis, não fez qualquer mudança no aparelho estatal e se contenta em dar declarações vagas visando agradar a todos. Mesmo a problemática da impunidade, apesar de seu peso enorme na política nacional, não foi alvo de ações do governo. A insegurança reapareceu, principalmente sob a forma de seqüestros, chegando a 60 casos desde abril, de acordo com relatório da polícia nacional.
BF – A Organização das Nações Unidas (ONU) está colocando o Poder Judiciário sob tutela. Qual o impacto dessa medida? Fils-Aimé – O país está realmente ocupado. Não se trata da análise de alguns iluminados. Nessa perspectiva, o Poder Judiciário, e a polícia como seu auxiliar, estão, desde o golpe de Estado de Aristide, em 1991, sob o controle internacional. Inicialmente, pela França; depois, pelo Canadá. A comunidade internacional quer intensificar seu controle sobre essa instituição, dito pelo novo responsável do secretariado-geral da ONU no país, o guatemalteco Edmond Mullet. Ele declarou que pretende concentrar mais poder do que seu antecessor. O governo parece ignorar esse discurso, que ataca ainda mais a soberania nacional. Advogados e juízes protestaram.
Quem é
Governos ricos não têm interesse em facilitar o desenvolvimento de outros países
BF – Qual sua avaliação sobre a atuação da Minustah, instalada desde 2004? Fils-Aimé – Não só a minha avaliação, como a dos que defendem a ocupação, é negativa. A Minustah não evitou uma onda de seqüestros, fenômeno que o Haiti jamais havia vivido. Se houve uma certa calmaria no período das eleições, não foi resultado da ação da Minustah, mas da convicção e da disciplina da população. O principal escândalo desse pleito foi o roubo de votos, encontrados em um lixão. A responsabilidade pela segurança dos postos eleitorais era da Missão. Atualmente, a violência ressurgiu – prova que nenhuma instituição nacional ou estrangeira tem o controle sobre as ruas. Para a maioria da população, a Minustah age com indiferença em relação à violência; para a pequena parcela rica, o descontentamento em relação às tropas é porque não reprimem mais violentamente os grupos pobres. Os 500 milhões de dólares destinados anualmente à Missão são quase inúteis. Se fossem colocados a serviço da polícia e justiça haitianas, contribuiriam para melhorar as duas instituições e ajudar a sociedade. BF – Como está a campanha de desarmamento do país, responsabilidade da Minustah? Fils-Aimé – O desarmamento da população é um fiasco total. Recuperou-se 250 armas, das 170 mil que se estima haver no Haiti. A comunidade internacional culpa a população, dizendo que o país é caótico e ingovernável. Mas há uma relação entre as potências e a instabilidade do país: a injustiça e a desigualdade social são resultado das políticas neoliberais que implementam. Os governos ricos não têm interesse algum em facilitar o desenvolvimento de um país, independentemente de seu tamanho. Tal esforço deve surgir do próprio povo. BF – A situação dos direitos humanos é calamitosa. A Minustah pretendia organizar encontros com entidades da sociedade civil para debater o tema. Isso ocorreu? Fils-Aimé – Os dirigentes das instituições internacionais têm o gatilho rápido para encontrar respostas que os desresponsabilizem. O mesmo ocorre quanto aos direitos humanos, sacrificados em nome de uma tal luta pela estabilidade do país. Não há melhoria, não há diálogo entre entidades e a ONU. Mandam e desmandam.
Para a maioria da população, a Minustah age com indiferença em relação à violência BF – Qual a estratégia das organizações populares? Fils-Aimé – O Haiti está cheio de organizações. É preciso diferenciá-las. Há as organizações sociais, que reúnem setores diversos, com objetivos diversos. Há as organizações populares, que lutam pela transformação da sociedade, e acreditam que a educação das massas e a construção de um instrumento político autônomo são o desafio estratégico atual. Fala-se em tomada de poder, transformar o Estado e colocá-lo a serviço da maioria da população. Muitas forças de esquerda, fragmentadas, consideram que é o momento de criar uma força revolucionária capaz de tomar o poder. A população não quer ser massa de manobra de personalidades conhecidas. Mas isso é um grande desafio, pois, como aproximar as organizações, tão separadas umas das outras? BF – Organizações camponesas pretendiam criar uma frente ampla. Fils-Aimé – Foi criada. Chama-se Plataforma Nacional das Organizações Camponesas (Panopla). O objetivo era reunir os dois principais movimentos do país: Tèt Kole Ti Peyizan Haïtien (TK, Cabeças Juntas de Pequenos Camponeses Haitianos) e Mouvman Peyizan de Papay (MPP, Movimento Camponeses de Papay). Tèt Kole, após o apoio de Chavannes Jean-Baptiste, do MPP, à candidatura de Baker à Presidência, saiu da Panopla. A Plataforma ainda existe, mas perdeu sua dimensão nacional, com a saída do TK. Atualmente, outra organização está sendo criada, a Coordenação Nacional de Reivindicação dos Camponeses Haitianos (Conarepa), que reúne TK, a Federação de Agrupamentos Camponeses de Belle-Fontaine, entre outras. Está em pleno processo de formação.
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AMÉRICA LATINA
O povo nas ruas, contra as fraudes
Fotos: Divulgação
MÉXICO
Milhares de simpatizantes de López Obrador se mobilizam pela recontagem dos votos na eleição presidencial
Para Obrador, os resultados das atas da votação e a contagem foram falsificados
Daniel Cassol de Porto Alegre (RS)
presidente, Vicente Fox. Em seu discurso, dia 16, Obrador defendeu uma “resistência civil pacífica” e a recontagem voto por voto. O resultado definitivo da eleição será confirmado pelo Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação no dia 6 de setembro. Obrador, durante a mobilização, enumerou os desvios do processo eleitoral: a atitude tendenciosa do Instituto Federal Eleitoral durante a campanha, a manipulação dos sistemas de computação (questionados pela oposição), a falta de eqüidade na compra de espaços publicitários nos meios de comunicação, a procedência desconhecida do dinheiro usado “por nossos adversários”, o ativismo ilegal dos grupos de interesse criados, a guerra suja, o uso de programas e recursos públicos ao candidato da direita e a forte ingerência do presidente da República. “E posso dizer que, além de tudo isso, os resultados das atas da votação e a contagem foram
U
m milhão e meio de pessoas, segundo os organizadores. Cerca de um milhão e cem mil, na contagem da polícia. E pouco menos de 900 mil pessoas, de acordo com a imprensa conservadora, incluindo a brasileira. De qualquer forma, o número de simpatizantes do Partido Revolucionário Democrático (PRD) que estiveram no centro da Cidade do México, domingo, 16 – para denunciar a fraude nas eleições presidenciais mexicanas do dia 2 de julho e exigir a recontagem de votos, como defende o candidato derrotado Andrés Manoel López Obrador, do PRD – é mais que o triplo da primeira mobilização, realizada no mesmo local, dia 8. A manifestação foi convocada por Obrador. No resultado oficial, ele ficou a menos de 1% de Felipe Calderón, candidato do Partido da Ação Nacional (PAN), do atual
Nova mobilização está marcada para o dia 30
falsificadas”, resumiu o candidato do PRD.
RECONTAGEM De acordo com o PRD, 60% das mais de 130 mil atas eleitorais contêm “erros aritméticos”. Seriam mais de um milhão e meio de votos não computados, de acordo com as denúncias do partido de Obrador. O candidato foi supostamente derrotado por uma diferença de 220 mil votos (35,88% a 35,31%). “Tenho a certeza absoluta de que, se a recontagem de votos for feita, será demonstrado que nós vencemos limpa, legal e legitimamente as eleições de 2 de julho”, afirmou. Na estratégia do PRD para pressionar pela recontagem de votos – ou simplesmente deslegitimar um futuro governo Calderón –, estão previstos acampamentos cidadãos nos 300 Conselhos Distritais do México, ações de resistência pacífica, cujo caráter não foi divulgado, e uma nova mobilização para o dia 30, também na capital do país.
Para os dirigentes do PAN, que qualificaram a mobilização como “irrelevante”, as manifestações de Obrador fazem parte de uma estratégia de chantagem. Acrescentam que a recontagem não é um mecanismo previsto em lei e acusam o político do PRD de promover um clima de “intranquilidade” para o futuro governo de Calderón.
IMPÉRIO DA FRAUDE A possível fraude ocorrida nas eleições de 2 de julho não é novidade em um país em que a elite sempre soube, trampa (fraude) atrás de trampa, perpetuar-se no poder. “O México é um país que viveu, durante décadas, sob o império da fraude”, escreveu, dia 15, Víctor Toledo, articulista do jornal mexicano La Jornada. “Depois de tantos anos de luta para termos o privilégio de contar com um instrumento como o Instituto Federal Eleitoral, este foi destroçado em poucos dias e, agora, estamos como em 1970, quando Gustavo Díaz Ordaz nos impôs
como presidente Luis Echeverría Alvarez. Ou talvez pior, como em 1988, quando apesar da vitória de Cuauhtémoc Cárdenas, Miguel de la Madrid nos impôs Carlos Salina”, escreveu o jornalista Jaime Avilés, também do La Jornada. E é justamente esse histórico que dificulta qualquer previsão sobre uma eventual crise institucional no México ou de legitimidade do governo Calderón. O que se pode afirmar é que Obrador está conseguindo despontar como líder da esquerda partidária mexicana e que o PRI, que no século passado manteve-se no poder por sete décadas, sofreu um impacto negativo. Foi denunciando fraudes eleitorais que Obrador tornou-se conhecido na política nacional, em 1994, quando incendiou uma polêmica sobre a manipulação dos resultados que o impediram de chegar ao governo do Estado de Tabasco, na vitória de Roberto Madrazo (PRI), que concorreu a presidente no dia 2 de julho e ficou com um esquecido terceiro lugar.
PARAGUAI
Igor Ojeda de Assunção (Paraguai) A presença de tropas estadunidenses, a crescente militarização da zona rural e a criminalização dos movimentos camponeses, fenômenos que vêm se acentuando há dois anos, no Paraguai, geraram a convocação de uma Visita de Observacão Internacional ao país, por parte da Campaña por la Desmilitarización de las Américas (Cada), rede hemisférica de organizações contra a militarização do continente. A missão, que iniciou atividades no dia 16 e deve encerrar a visita dia 20, conta com a presença de diversas entidades de países como Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, França, México e Uruguai. Entre elas, a Rede Social de Direitos Humanos, o Observatorio Latinoamericano de Geopolítica e o Servicio Paz y Justicia América Latina. Decidida durante o 6º Fórum Social Mundial, em janeiro de 2006, em Caracas (Venezuela), a visita faz parte da campanha “Desmilitarizemos nossas consciências, as instituições e a sociedade”, da Cada. Seu objetivo fundamental é “observar o processo de militarização do país, com a criminalização dos protestos sociais, a utilização das Forças Armadas
Igor Ojeda
Militarização e terror no campo
Missão internacional se encontra com líderes camponeses
no campo como uma forma de repressão e controle social e tudo o que tem significado a mobilização de tropas paraguaias ao interior”, segundo Orlando Castillo, do Servicio Paz y Justicia de Paraguay (Serpaj-Py), principal entidade organizadora da visita. A missão internacional pretende obter a maior quantidade de dados possível sobre essas questões e sobre outras, como a assinatura do Convênio de Imunidade para as tropas dos EUA, promulgado como lei em maio de 2005; a assessoria aos militares paraguaios conduzida
pelos estadunidenses; a instalacão oficial de escritórios de segurança do governo dos EUA – Escritório Federal de Investigaçao (FBI), Agência antidrogas (DEA) e Agência Central de inteligência (CIA). Para facilitar o trabalho e a abrangência da visita, a missão intenacional se dividiu em três grupos. Um, com foco na cidade de Concepción, região onde há a maior presença militar estadunidense e onde ocorre a maior parte dos exercícios militares. O segundo grupo vai a Mariscal Estigarribia, cidade do chaco
paraguaio onde está localizado o aeroporto que supostamente pode ser utilizado como pista de pouso de aviões de guerra de grande porte dos EUA. O terceiro permanece em Assunção, onde estão se reunido com organizações camponesas, sindicais e autoridades. Para Ana Esther Ceceña, da Cada, um convênio como o assinado entre os governos paraguaio e estadunidense significa, na realidade, que o Estado não pode fazer nada frente à presença estrangeira: “Ou seja, caso tropas presentes no país matem alguém, isso será considerado como dano colateral do trabalho que eles estão realizando na região, e não se poderá sequer levar o caso à Justiça”. O convênio prevê, entre outras coisas, a realização, entre julho de 2005 e dezembro de 2006, de 11 exercícios militares bilaterais em qualquer parte do território paraguaio e a formação de militares do Paraguai por parte do Pentágono. Segundo Castillo, a presença militar de tropas paraguaias assessoradas por militares dos EUA no interior do país, em vez de representar maior segurança, representa maior insegurança. “Os índices de mortes de camponeses aumentaram, assim como os índices de despejos violentos, de repressões. A tensão e o medo da população é
muito maior desde que os comandos móveis das Forças Armadas foram para a região rural”, diz. Existem, inclusive, relatos de casos de torturas e de estupro – “justificdos” pelo combate ao terrorismo e à guerrilha. Para isso, o Estado paraguaio busca vincular organizações camponesas às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e utiliza como prova qualquer documentos com informações sobre Che Guevara, a revolução cubana, Lenin, Stalin etc. A identificação de camponeses com grupos terroristas e guerrilheiros tem influência direta dos escritórios de segurança e militares dos EUA, segundo o Serpaj-Py. “Recebemos denúncias informais de que em toda a parte Sul do Paraguai começaram hostilizações contra grupos e organizações camponesas e de que estaria se criando um ambiente de terror. Nos interessa muito observar isso, falar com as pessoas, ver realmente o que estão percebendo dessa presença militar”, alerta Ana Esther, para quem há antecedentes desse tipo de ação com o Plano Colômbia, no país andino. De acordo o Serpaj-Py, mais de dois mil camponeses paraguaios sem terra estão sendo processados por realizar ocupações.
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CULTURA
De 20 a 26 de julho de 2006
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TEATRO
Globalização nos tempos de Nassau Cia. Ocamorana retoma invasões holandesas no Nordeste, a partir de leitura crítica do capital internacional Cristiane Gomes de São Paulo (SP)
O
s conceitos de globalização e de capital internacional parecem recentes, na história da humanidade. Esses termos começaram a ser usados em grande escala no começo da década de 1990. É nessa época também que as questões de mercado se transformam em prioridade na chamada aldeia global. Mas sabemos que as aparências enganam, principalmente quando se olha para a história com olhos críticos. É o que mostra o espetáculo teatral A guerra dos caloteiros, da Companhia Ocamorana de Pesquisas Teatrais, em cartaz na cidade de São Paulo. A peça trata da chegada dos holandeses ao Nordeste brasileiro, no século 17, quando a Companhia das Índias Ocidentais resolve investir em um lucrativo produto, o açúcar. Para isso, necessita de terras e mãode-obra: solo brasileiro e trabalho dos africanos escravizados. “A globalização é um rótulo, um equívoco cultivado por ideólogos estadunidenses. O capitalismo sempre foi global e uma das suas primeiras figuras foi o holandês, que já veio com um sentido de industrialização e uso de mãode-obra escrava. Por isso, o único jeito decente de tratar essa invasão é lembrando a primeira figura do capitalismo na história. Estamos contando uma aventura do capital. A Companhia das Índias Ocidental, de propriedade dos holandeses, ocupou o Nordeste brasileiro por uma questão de negócios”, afirma Iná Camargo Costa, autora do texto teatral, juntamente com Márcio Bonaro, diretor do espetáculo.
A guerra dos caloteiros é a primeira parte da trilogia A guerra da libertação divina
ANÁLISE
Marcos Soares A atividade teatral paulistana tem produzido resultados surpreendentes nos últimos anos. As pessoas falam de um “renascimento” das experiências interrompidas em 1968, quando a truculência militar ampliou seus alvos para incluir não apenas os movimentos populares, mas também a atividade cultural e intelectual de esquerda. Trata-se de centenas de grupos de teatro empenhados numa pesquisa de linguagem exigente, mais ou menos ligada às experiências do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. O objetivo mais amplo é falar das agruras e realizar diagnósticos sobre as benesses do capitalismo mundial e suas conseqüências mais catastróficas. Nosso renascimento, entretanto, pode contar pouco com políticas culturais interessadas. Ao contrário de dramaturgos como William Shakespeare, cuja importância era inseparável dos investimentos da coroa inglesa, os artistas da periferia do capitalismo são obrigados a fazer um exercício constante de nadar contra a maré de políticas cada vez mais direcionadas pelas exigências do mercado e da indústria cultural. Nesse sentido, a mera existência das peças já constitui um pequeno milagre. A surpresa fica por conta da qualidade dos espetáculos: a decisão de atuar fora do cerco do investimento – e da vigilância estética e temática – do apoio oficial levou a um desenvolvimento realmente espantoso. Está aí a boa notícia: não precisamos ser condescendentes.
CAPITALISMO E PROSTITUIÇÃO Dessa situação já nascem as ressonâncias iniciais do espetáculo A guerra dos caloteiros. As intenções se explicitam desde as primeiras cenas: trata-se de um espetáculo sobre o capitalismo mundial e, num certo sentido, sobre as próprias condições de possibilidade de existência da peça. No início, duas reações diante da situação de crise internacional: a primeira é a de Glete, futura dona do primeiro bordel globalizado do Recife, que dá ao capitalista holan-
dês uma lição sobre os movimentos e objetivos do capital utilizando justamente a linguagem que lhe é mais familiar – a da prostituição – que dá contornos sinistros à sua “fábula exemplar”. A segunda é a do sermão, onde o bispo conclama a população recifense para a guerra de expulsão dos holandeses. O tom religioso passa rapidamente, e em crescendo, da defesa da moral e dos bons costumes para o elogio da propriedade privada e dos interesses dos senhores de engenho. Estão dados aqui o início e o fim de peça, o ponto de partida e de chegada justapostos para mostrar as diversas faces do mesmo processo: interesses escusos, mentiras deslavadas, prostituição e exploração generalizadas sob diversas camadas mais ou menos bem-sucedidas de disfarce ideológico.
HISTÓRIA A CONTRAPELO É no bordel em Recife que grande parte da peça se desenrola. Com a modernização trazida pela empreitada civilizadora holandesa, tudo se modifica rapidamente, aos trancos e barrancos, e a prostituição também é obrigada a se refinar, passando da antiga dona portuguesa, reduzida a gerente, para as mãos mais competentes da empreendedora holandesa Glete. Os poucos habitantes que ficam na cidade após a invasão, sem ter para onde ir, se viram como podem, passando “malandramente” do desejo de defender o solo nacional contra os invasores estrangeiros para uma situação de adaptação cômoda e amizade de cor bem brasileira com os “hereges calvinistas”. É essa a base a partir da qual o espetáculo procura combinar duas linhas paralelas: de um lado, o bordel como metáfora do Brasil e do capitalismo local/mundial; de outro, as “notas de rodapé” na forma de comentários textuais e musicais que pontuam a histórias das prostitutas e contam um dos episódios “heróicos” da história nacional, do ponto de vista de seus perdedores: negros, mulheres e pobres. Entre o emaranhado de
pequenos enredos que se cruzam e se comentam, a história de Xica é uma das mais ilustrativas: negra, pobre e prostituta, ela revela a face mais cruel das vítimas do progresso modernizador. Mas é talvez do ponto de vista da forma que os assuntos da peça mais se adensam. Pois o clima de “salve-se quem puder”, que, convenhamos, caracteriza não apenas a vida das personagens da peça, mas a de boa parte do povo brasileiro, leva a uma tentativa de encenar o caos com certo “exagero” do tom desabusado. A mistura caótica de referências culturais – que vão dos temas musicais de E o vento levou e de Cinderela, passa pela bossa-nova e pelos clássicos da canção estadunidense e inclui uma hilária leitura do poema Navio Negreiro, de Castro Alves –, não apenas atualiza o argumento do espetáculo, mas dá a ver o lado grotesco da nossa mania de copiar os avanços e detritos da cultural mundial, meio sem respeitar contextos, num clima de liquidação cultural de dar pena. Tudo isso embalado por uma gramática de gestos, que cobrem um leque amplo que vão da pornografia ao humor barato, e que complicam a ambição literária do texto. Ao mesmo tempo, nunca sentimos que o humor derrapa no tom celebratório que caracteriza o elogio pós-moderno ao “multiculturalismo” do mundo globalizado. De certo modo, o movimento geral do espetáculo é o de subsumir o caos dentro de uma certa lógica, uma direção que organiza os conteúdos. É a procura desse equilíbrio entre a desfaçatez e a “aula de História”, entre a variedade caótica de procedimentos cênicos e a montagem de um teorema e de uma organização central que melhor demonstra o caráter do capitalismo mundial, que anda no fio da navalha entre o caos e a inevitabilidade, entre a “liberdade” e o cálculo. Esta, a maior conquista da Guerra dos caloteiros. Marcos Soares é professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP)
TRILOGIA A guerra dos caloteirosé a primeira parte da trilogia A guerra da libertação divina. A segunda montagem mostrará a guerra entre holandeses e brasileiros (em nome de Portugal). A última peça da trilogia vai dar o arremate na desconstrução da versão oficial da história, repleta de falsos heróis e histórias mal contadas. “Quem tiver a oportunidade de ver as três peças poderá fazer o enlace de tudo e perceber até onde somos atingidos por essa realidade do capital internacional. E este é o exercício do teatro: fazer pensar criticamente”, defende Clóvis Gonçalves, integrante do elenco. A busca, nas raízes históricas, das questões enfrentadas pelo capitalismo atual também permeia a montagem. “É interessante pensar no dinheiro acumulado pelas ações vindas do tráfico negreiro e do açúcar. Empresas como Shell e Philips têm hoje um dinheiro que, apesar de ser legalmente delas, têm origem no acúmulo dessas práticas históricas. Essas empresas estiveram ligadas ao tráfico negreiro”, diz Benito Carmona, também do elenco.
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Retomada de experiências
Bonaro explica que a idéia de tratar esse tema surgiu quando o Ocamorana ocupava o Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Influenciado pelas peças do Arena – como Arena conta Zumbi – o grupo decidiu que, em seu primeiro trabalho de dramaturgia própria, falaria sobre questões históricas. “Em vários documentos oficiais, durante o período das invasões holandesas é mostrado o momento em que a nação brasileira e o exército nacional surgiram. O lugar do encontro de índios, europeus e negros que deu origem ao povo brasileiro. Mas é preciso perceber o quanto essa versão é mentirosa”.
Montagem está em cartaz no Teatro Fábrica até dia 30
PARA ASSISTIR Teatro Fábrica – até 30 de julho Rua da Consolação, 1623 Sextas e sábados às 21h30; domingos às 20h30 Engenho Teatral – 5 e 6 de agosto Ao lado da estação Carrão do metrô Teatro Paulo Eiró – a partir de 11 de agosto R. Adolfo Pinheiro, 76, Santo Amaro