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Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 4 • Número 181

R$ 2,00

São Paulo • De 17 a 23 de agosto de 2006

www.brasildefato.com.br

Douglas Mansur/ Novo Movimento

Conquista – O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra inaugurou, dia 12, o Assentamento Comuna da Terra Irmã Alberta, na região de Cajamar, na grande São Paulo

Pág. 3

Brasil, paraíso das transnacionais País perde com isenção de impostos sobre remessas de lucros de empresas ao exterior

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ivres de impostos, milhares de dólares saem do país, todos os anos, sob a forma de lucros e dividendos de filiais de transnacionais. Com isso, desde 1996, o país deixou de arrecadar R$ 18,5 bilhões. Também vem dessa data o privilégio dessas empresas de descontar do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido os pagamentos

aos sócios, a título de remuneração de juros sobre o capital investido. As remessas de transnacionais cresceram 85,2% em 2005 (9,1 bilhões de dólares, um recorde até então). No primeiro semestre, somaram 5,4 bilhões de dólares, avançando mais 44,1% na comparação com o mesmo período do ano passado. Pág. 5

EUA tentam desestabilizar Cuba

Hezbollah destrói mito israelense

Amparado pela ofensiva da mídia, que especula sobre “o risco de uma crise interna em Cuba”, George W. Bush prepara uma estratégia para extinguir o socialismo na ilha caribenha. Frei Betto, amigo do presidente cubano Fidel Castro, acha o esforço inútil: “A revolução está institucionalizada”. Pág. 6

Números indicam que o Hezbollah saiu vitorioso, após 34 dias de conflito. Apesar disso, jornais controlados por grandes corporações econômicas insistem no mantra de que “Israel ganhou a guerra”. Na prática, o cessar-fogo é apenas um intervalo anterior a uma guerra maior, que se anuncia. Pág. 7

Comunicação popular não tem vez, com Lula

Retratos da revolução na Nicarágua

Pág. 4

Pág. 8

Agronegócio quer mais transgênicos Dia 9, Walter Colli, presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), praguejou contra a militância que combate os transgênicos, desejando que “passem a depender de insulina”. Dias antes, O

Estado de São Paulo chamou de “guerrilha administrativa” um grupo da CTNBio defensor do princípio da precaução. Apesar da Comissão manter a produtividade, o lobby pró-transgênico espuma de raiva frente à lentidão

na liberação de seus produtos. O governo resiste. Para o deputado estadual Frei Sergio, não poderia ser diferente: “Se Lula ceder mais, nem precisa da CTNBio, deixa plantar e pronto”. Pág. 3

EDITORIAL

Guerra permanente

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epois de inúmeras sessões protelatórias que permitiram a Israel semanas para destruir cidades e massacrar a população no Líbano, a Organização das Nações Unidas (ONU) produz essa caricatura de cessar-fogo, que tenta garantir as posições de tropas internacionais e o desarmamento do Hezbollah. Isto é, a decisão da ONU favorece amplamente Israel, como ocorreu na guerra do Kosovo, quando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), coalizão de países capitalistas, bombardeou de modo criminoso a Iugoslávia. Que moral têm os governos europeus hoje para falar em cessar-fogo, diante do crime que cometeram antes? Na verdade, o cessar-fogo não é resultado de qualquer atitude humanista da ONU, mas de uma relação de forças que se estabeleceu a partir da resistência crescente do Hezbollah e das massas árabes, o grande apoio que esses combatentes granjearam junto à população do Líbano. Até mesmo velhos colaboradores do imperialismo, como o atual primeiro-ministro libanês, Fuad Siniora, e um anterior, como Jumblat, são obrigados a elogiar e defender publicamente o Hezbollah, indicando uma vitória social-revolucionária importantíssima das massas árabes contra Israel e os EUA. Vale destacar que o presidente estadunidense George W.

Bush havia confiado no plano genocida do primeiro-ministro israelense Elmut Olmert, que pedia um pouco mais de prazo para “limpar” a área e destruir o Hezbollah. A resistência heróica – nela se inclui Ibraim, jovem revolucionário brasileiro-libanês que morreu lutando contra o nazismo israelense – frustrou os planos do imperialismo de avançar em posições para atacar no futuro a Síria e o Irã. Esse era o plano. A resistência obrigou até mesmo que Condolezza Rice fosse pessoalmente ao Conselho de Segurança da ONU – algo inédito – para apressar um cessar-fogo antes que a onda antiimperialista se generalizasse por todo o Oriente Médio e levasse de roldão vários dos governos árabes que são marionetes dos EUA. Vários desses governos começaram a fazer também declarações de reconhecimento ao Hezbollah, expressão dessa vitória social-revolucionária imposta a Israel. Porém, o cessar-fogo não tem perspectivas de estabilidade. O imperialismo dos EUA irá buscar outras motivações para dar vazão a sua única forma de existência, hoje: a indústria bélica, a produção de guerras e a rapina de recursos minerais, onde quer que eles estejam. Essa é a razão dos novos carregamentos de armamentos feitos nos últimos dias dos EUA para Israel. Basta lembrar que Israel, embora tendo uma população de menos de

6 milhões de habitantes, recebe 58 % de toda a ajuda externa estadunidense em armamentos. Ou seja, é impossível que Israel adote outra posição política, a não ser que derrotado pelas massas árabes e também pelo movimento de massas israelense que preconiza uma coexistência pacífica com o mundo árabe, reconhecendo os direitos do povo palestino a ter um Estado e um país autônomos. A vitória social-revolucionária do Hezbollah deve ser saudada por todos os movimentos progressistas do mundo e pelos povos e países que são também alvo das ações agressivas dos EUA. É muito importante que os movimentos progressistas de todo o mundo organizem campanhas de apoio à reconstrução de escolas, hospitais e casas no Líbano, enviem delegações de militantes para participar dessa reconstrução. São formas para construir a consciência e o movimento internacional antiimperialista, já que, inevitavelmente, o imperialismo está sempre preparando planos mais sinistros, mais sangrentos, pois necessita parar o curso da história, a evolução da consciência das massas em todo o mundo.


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DEBATE

CRÔNICA

O papel da mídia e o imperialismo

Os 80 anos de Fidel

Maria Luisa Mendonça

Leonardo Boff

ma das indagações mais freqüentes sobre a capacidade do governo estadunidense de legitimar suas intervenções militares ou de seus aliados, como Israel, é sobre como grande parte da opinião pública permanece apática, mesmo diante de evidentes crimes de guerra. Desde a 1ª Guerra Mundial, os Estados Unidos desenvolveram um sistema de comunicação intimamente ligado a seus interesses militares. Aliás, uma das principais funções das rádios, em sua origem, foi orientar e entreter soldados nos campos de batalha. Desde então, foram desenvolvidos mecanismos cada vez mais sofisticados de dominação ideológica pela mídia comercial. Em seu livro Manufacturing Consent (Manufaturando o Consenso), Noam Chomsky e Edward Herman analisam esses mecanismos e identificam o que chamam de “filtros” desse “modelo de propaganda”. Eles argumentam que a mídia não influencia somente a opinião pública, mas atua principalmente estabelecendo uma agenda política. Isso significa estabelecer não só “o que” o público deve pensar, mas também “sobre o que” devemos pensar, por meio de “escolhas, ênfases e omissões” de temas e opiniões. A repetição de idéias e o contexto dado a determinados fatos têm efeitos poderosos. As guerras promovidas pelos EUA não seriam possíveis sem o apoio da mídia. O primeiro “filtro” identificado por Herman e Chomsky está relacionado ao controle da mídia comercial por monopólios privados, onde o objetivo principal é o lucro. A principal conseqüência desse modelo é a exclusão da consciência de classes, com resultados bem mais “efetivos” do que a censura estatal em tempos de ditadura.

O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar os que não gostam de Cuba ou de Fidel Castro. Não me importo com isso. Se não vês o brilho da estrela na noite escura, a culpa não é da estrela mas de ti mesmo. Em 1985 o então Cardeal Joseph Ratzinger me submeteu, por causa do livro Igreja: carisma e poder, a um “silêncio obsequioso”. Acolhi a sentença, deixando de dar aulas, de escrever e de falar publicamente. Meses após fui surpreendido com um convite do comandante Fidel Castro, pedindo-me para passar 15 dias com ele na Ilha, durante o tempo de suas férias. Aceitei imediatamente pois via a oportunidade de retomar diálogos críticos que junto com Frei Betto havíamos entabulado anteriormente e por várias vezes. Demandei a Cuba. Apresentei-me ao comandante. Ele imediatamente, à minha frente, telefonou para o Núncio Apostólico com o qual mantinha relações cordiais e disse: “Eminência, aqui está o Fray Boff; ele será meu hóspede por 15 dias; como sou disciplinado, não permitirei que fale com ninguém nem dê entrevistas, pois assim observará o que o Vaticano quer dele: o silêncio obsequioso. Eu vou zelar por essa observância”. Pois assim aconteceu. Durante 15 dias seja de carro, seja de avião, seja de barco me mostrou toda a Ilha. Simultaneamente durante a viagem, corria a conversa, na maior liberdade, sobre mil assuntos de política, de religião, de ciência, de marxismo, de revolução e também críticas sobre o deficit de democracia. As noites eram dedicadas a um longo jantar seguido de conversas sérias que iam madrugada a dentro, às vezes até às 6.00 da manhã. Então se levantava, se estirava um pouco e dizia: “agora vou nadar uns 40 minutos e depois vou trabalhar”. Eu ia anotar os conteúdos e depois, sonso, dormia. Alguns pontos daquele convívio me parecem relevantes. Primeiro, a pessoa de Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é antes ético que político: como fazer justiça aos pobres? Em seguida, seu bom conhecimento da teologia da libertação. Lera uma motanha de livros, todos anotados, com listas de termos e de dúvidas que tirava a limpo comigo. Cheguei a dizer: “se o Cardeal Ratzinger entendesse metade do que o senhor entende de teologia da libertação, bem diferente seria meu destino pessoal e o futuro desta teologia”. Foi nesse contexto que confessou: “Mais e mais estou convencido de que nenhuma revolução latino-americana será verdadeira, popular e triunfante se não incorporar o elemento religioso”. Talvez por causa desta convicção que praticamente nos obrigou a mim e ao Frei Betto a darmos sucessivos cursos de religião e de cristianismo a todo o segundo escalão do governo e, em alguns momentos, com todos os ministros presentes. Esses verdadeiros cursos foram decisivos para o governo chegar a um diálogo e a uma certa “reconciliação” com a Igreja Católica e demais religiões em Cuba. Por fim uma confissão sua: “Fui interno dos jesuitas por vários anos; eles me deram disciplina mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão estadunidense tive que me aproximar da União Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente a teria abraçado e aplicado em Cuba.” E arrematou: “Se um dia eu voltar à fé da infância, será pelas mãos de Fray Betto e de Fray Boff que retornarei”. Chegamos a momentos de tanta sintonia que só faltava rezarmos juntos o Pai-Nosso. Eu havia escrito quatro grossos cadernos sobre nossos díálogos. Assaltaram meu carro no Rio e levaram tudo. O livro imaginado jamais poderá ser escrito. Mas guardo a memória de uma experiência inigualável de um chefe de Estado preocupado com a dignidade e o futuro dos pobres.

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A principal conseqüência desse modelo é a exclusão da consciência de classes, com resultados bem mais “efetivos” do que a censura estatal em tempos de ditadura. Um estudo de Ben Bagdikian (“O monopólio da mídia”) demonstra que cerca de 20 empresas controlam hoje mais da metade de todos os veículos de comunicação nos EUA e suas filiais em outros países. Isso significa controlar a produção de agências de notícias, jornais, revistas, livros, filmes, programas de rádio e televisão, além da indústria musical e digital. Bagdikian argumenta que essas empresas constituem um “Ministério Privado de Informação e Cultura”. Corporações de outra natureza (bancos, empresas bélicas etc.) têm controle acionário de grandes veículos de comunicação. Por exemplo, a General Electric (que produz desde lâmpadas

até material bélico e nuclear) controla a RCA e a rede de TV NBC; o The Wall Street Journal (que estabelece a agenda do noticiário econômico mundial) é controlado pela Dow Jones. O segundo “filtro” é a própria estrutura da mídia comercial, cujo principal objetivo é vender os produtos dos anunciantes. O conteúdo da mídia comercial, portanto, é voltado para as classes sociais com maior poder aquisitivo. Antes de se estabelecer essa estrutura, os jornais, por exemplo, dependiam da venda de exemplares para cobrir seus custos de produção. Atualmente, esses custos são cobertos por propaganda de grandes empresas e de governos. Dessa forma, esses veículos podem massificar sua produção e vender jornais por um preço muito mais baixo, o que dificulta a sobrevivência de publicações não-comerciais e facilita a massificação da ideologia das classes dominantes. A maioria das fontes de informação utilizadas pela mídia comercial e consideradas “confiáveis” são “oficiais” (através representantes de governos) ou de “especialistas”. Essa prática constitui o terceiro “filtro”, já que normalmente exclui opiniões divergentes da ideologia dominante. O governo dos Estados Unidos investe pesadamente nos setores de comunicação do Pentágono, da Casa Branca e do Departamento de Estado, que têm milhares de funcionários e um orçamento milionário, com o objetivo de influenciar os meios de comunicação nacionais e internacionais. Outro órgão estratégico é a Câmara de Comércio dos EUA, que tem uma rede de cerca de 150 mil lobistas. A influência de setores ligados a órgãos de governo ou empre-

sas por meio de lobby constitui o quarto “filtro”. A pressão pode ocorrer de forma direta, por contato com a direção dos veículos de comunicação sobre o conteúdo da programação, ou de forma indireta, pelo apoio a grupos que organizam campanhas de cartas, mobilizam acionistas e outros setores influentes.

O governo dos EUA investe pesadamente nos setores de comunicação do Pentágono, da Casa Branca e do Departamento de Estado, que têm milhares de funcionários e um orçamento milionário Para completar essa estratégia, o governo estadunidense necessita cultivar um inimigo externo. Durante as últimas décadas, esse inimigo foi sintetizado na ideologia anticomunista e atualmente na chamada “guerra ao terrorismo”. Essa ideologia é tão poderosa que arrasta até mesmo setores considerados “progressistas” em relação a outros temas, com forte apelo na mídia internacional. Para justificar suas atrocidades, o governo dos EUA precisa “desumanizar” setores que representam resistência à ideologia dominante e a mídia comercial é sua principal arma nessa batalha. Maria Luisa Mendonça é jornalista e integrante da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Leonardo Boff é autor de Virtudes para um outro mundo possivel (três tomos) pela Vozes de Petrópolis.

CARTAS DOS LEITORES SUGESTÃO Este jornal como uma conquista da classe trabalhadora, deveria, na minha opinião, promover um debate entre os estudiosos que defendem a candidatura do Lula e a candidatura da socialista radical Heloísa Helena. Penso que somente desta maneira, mais militantes socialistas e que defendem os interesses do povo irão comprender melhor o papel histórico que cumpre a Heloísa Helena. Também contribuirá para esclarecer o porque desta divisão da esquerda, ora o que significa um governo de esquerda se não um governo que cumpra o que Trotstky elenca como um programa de transição para o socialismo? E fica já a provocação. Quem não fez reforma agrária, quem cedeu ao longo dos anos para chegar ao poder, quem traiu a classe trabalhadora? Será que foram os parlamentares expulsos do PT, por não concordarem com o processo neoliberal que destruiu o PT como conquista de organização da classe trabalhadora? Leandro Santos Dias Por correio eletrônico NÃO CONCORDO Mantenho este contato após receber em mãos um jornal de vocês. Fica muito claro o apoio de vocês às ações das mulheres da Via Campesina. Acho isto um processo retrógado pois concordar com a destruição do patrimônio de terceiros é complexo. Entendo que o governo permitiu que isto acontecesse. Então porque não fazer algo contra o

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Miguel Cavalcanti Yoshida • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim

governo que deu esta liberação? Acho muito louvável a atitude em relação a preservação das matas, mas não posso concordar com a destruição. E o mais curioso é que tem religiosos que concordam com esta atitude manifestando apoio a este fato. Mas de toda forma, parabéns pela matéria Marco Aurelio Torres Por correio eletrônico MALDITA ARACRUZ Quais são os clientes da Aracruz Celulose! É nisto que temos que trabalhar. Denunciar a Aracruz lá fora aos compradores das ditas fabulosas fibras longas. Não adianta lutar contra a Aracruz no Brasil. Eles têm o apoio dos governos locais. Também é preciso fazer um levantamento sério do número de empregos gerados pela dita cuja, qual o verdadeiro valor e retorno social para os povos da região além das expropiacões impostas pela mesma. Temos que mudar as diretivas de protestos, temos que nos municiar com pesquisas sociais sérias e incontestáveis. Joseh Karlos Por correio eletrônico

ERRATA Diferentemente do que foi publicado na edição 180, o lucro da Companhia Vale do Rio Doce é equivalente aos recursos necessários para a construção de 125 mil moradias populares.

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815


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TRANSGÊNICOS

Eles têm pressa em lucrar às custas de prejuízos para o povo

Carlos Ruggi

NACIONAL

Apesar da submissão de Lula a seus interesses, capital quer mais e grita por rapidez na liberação de OGMs Luís Brasilino da Redação

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capital tem uma tática poderosa em sua incessante busca pelo lucro: não se satisfaz nunca. No governo Luiz Inácio Lula da Silva, a polêmica em relação aos transgênicos – colocando de um lado as transnacionais e os empresários do agronegócio e, de outro, trabalhadores rurais e ambientalistas – é uma boa demonstração dessa estratégia. Ao lado da política econômica concentradora de renda, o tratamento dispensado pelo governo à regulação dos organismos geneticamente modificados (OGMs) se destaca pela submissão aos interesses das elites. Lula editou duas medidas provisórias liberando o plantio e a comercialização de soja transgênica contrabandeada da Argentina. Além disso, sancionou um projeto de lei inconstitucional – hoje, a Lei de Biossegurança – conferindo à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) o poder de liberar produtos e sementes geneticamente modificadas sem a necessidade de estudos de impacto ambiental ou à saúde. Nada mal para os interessados em controlar a cadeia alimentar

desde a semente, certo? Errado. Com a aprovação da Lei de Biossegurança no Congresso, em março de 2005, a CTNBio teve seus trabalhos interrompidos, enquanto se desenrolavam os trâmites de sua regulamentação. Na prática, a comissão só voltou a funcionar em março. Porém, em decorrência das novas definições normativas e burocráticas, até agora a comissão não pôde se posicionar a respeito de liberações comerciais de produtos transgênicos.

PROPAGANDA ENGANOSA A demora irritou os representantes dos interesses das transnacionais, que levantaram a voz contra o governo federal. A grande imprensa se encarregou de difundir a idéia de que integrantes da CTNBio ligados aos ministérios do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA) estariam “politizando e ideologizando” as discussões para, com isso, atrasar a liberação do comércio e das pesquisas com transgênicos segundo objetivos “obscurantista e antidesenvolvimentista”. O que os jornais comerciais não dizem, contudo, é que a produtividade da CTNBio é equivalente ou até maior, nessa etapa de

funcionamento pós Lei de Biossegurança. Desde março, quando voltou a operar, a Comissão já tomou 184 decisões técnicas, em apenas quatro reuniões. Funcionando durante todo o ano (12 reuniões ordinárias, no mínimo), em 2004, a CTNBio analisou 602 processos e pleitos; em 2003, 300; e em 2002, 280. Segundo Frei Sérgio Görgen, deputado estadual (PT-RS), a Comissão está tomando decisões a toque de caixa e sem a reflexão necessária. “O lobby pró-transgênico não admite pluralidade na ciência. Os defensores dos transgênicos são prisioneiros de um reducionismo que querem que seja absorvido por toda a sociedade”, critica o parlamentar.

GOVERNO RESISTE De todo modo, a pressão deu resultado: no dia 3, os onze ministros membros do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) se reuniram a pedido do presidente Lula. O lobby pró-transgênico, por meio da grande imprensa, sugeria a expulsão dos representantes do MMA e do MDA da CTNBio e a redução do quorum de dois terços da Comissão para liberações comerciais de transgênicos, entre

Manifestantes exigem a rotulagem para alimentos que contém transgênicos

outras medidas destinadas a acelerar o processo decisório. No entanto, tais sugestões não foram aceitas e as mudanças ficaram restritas à metodologia de trabalho e à estrutura da CTNBio. Frei Sérgio ironiza: “Lula fez tanta besteira em relação aos

“Que dependam de insulina”, pragueja presidente da CTNBio

DIREITO À TERRA

Douglas Mansur

MST inaugura assentamento em Cajamar, na grande São Paulo

Durante a inauguração, famílias plantaram mudas na área comum do Assentamento Comuna da Terra Irmã Alberta

Ana Maria Straube de São Paulo (SP) Há quatro anos, 40 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lutam pela desapropriação de uma área de 120 hectares na região de Cajamar, município de São Paulo. O plano inicial do governo do Estado era transformar a área, que pertence à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), em depósito de lixo. Após tentativas de negociação com o governo, o MST decidiu declarar a área um assentamento da reforma agrária. Assim, foi inaugurado, no dia 12, o Assentamento Comuna da Terra Irmã Alberta. A divisão dos lotes já começou a ser feita. Cada família deve receber 1,5 hectare, sendo que meio hectare será destinado à construção das casas e à produção familiar (pequenas

criações). O restante (1 hectare) vai para a área de produção coletiva, caracterizando o modelo chamado de comuna da terra. A sobra dessa divisão será destinada à preservação ambiental e ao reflorestamento. O cultivo de produtos hortifrutigranjeiros será feito de forma orgânica e agroecológica. Enquanto aguardam a legalização da área, prometida em diversas audiências entre o MST, o governo do Estado e a Justiça de São Paulo, as famílias já iniciaram a produção coletiva de alimentos e mantêm uma horta em formato de Mandala (círculo), para economizar água.

FESTA Para comemorar, as famílias fizeram uma grande festa que começou com o plantio de mudas na área comum do assentamento. Depois a confraternização foi feita em meia a barracas de comidas

e produtos da reforma agrária. Também houve apresentações culturais, com os grupos de teatro Calango e Arlequins, declamação de poesia, música latina, sambarock e hip hop. À tarde, um ato ecumênico contou com as presenças de dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da pastora Heidi, representante da igreja Confissão Luterana, de dom Simão, arcebispo de São Paulo, de Dom José Maria, bispo de Bragança Paulista, do padre Paulo Suez, do Conselho Indigenista Missionário Nacional (Cimi), além de representantes de várias outras congregações religiosas. A grande homenageada do dia, Irmã Alberta (CPT), religiosa italiana que dá nome ao acampamento, pediu uma benção para aqueles que lutam pela terra. Em seguida, um ato político reuniu diversos parlamentares próximos ao MST.

transgênicos que está tomando consciência de que não pode fazer mais. O quorum já é reduzido e a lei, altamente favorável aos transgênicos. O que temos é o mínimo do mínimo, para menos que isso não precisa nem ter a CTNBio, deixa plantar e pronto”.

Entre as inúmeras declarações baseadas no raciocínio raso de que o Brasil estaria “perdendo o bonde da história”, o destaque é para o editorial do Estado de São Paulo do dia 3: “Com enorme atraso, sacudido por numerosos alertas, o Planalto parece ter enfim despertado para os efeitos da bem-sucedida guerrilha administrativa movida pelos intratáveis opositores dos transgênicos e do agronegócio em geral, com assento na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). (...) O trabalho de sapa (sabotagem) dos partidários menos ou mais ostensivos do medieval movimento ‘Por um Brasil livre de transgênicos’ – em especial os representantes dos Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, e ainda do Ministério Público Federal – consiste essencialmente em multiplicar os empecilhos e manobras protelatórias para travar as deliberações da comissão”. O deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS) sugere, aos que acusam a militância contra transgênicos de medieval, uma visita ao Rio Grande do Sul: “Aqui, poderão constatar na prática o fracasso da soja geneticamente modificada. Um fracasso que custa fortunas ao país. O leque de problemas é infinito: produtividade, plantas resistentes, uso excessivo de veneno, adubação suplementar e exportações prejudicadas”. Para Frei Sérgio, não há nada mais moderno do que defender a transparência na informação pública, o ambiente e o alimento de qualidade na mesa da população. “O movimento por um Brasil Livre de Transgênicos é o que há de mais moderno na biotecnologia brasileira”, finaliza.

VERBORRAGIA O lobby pró-transgênico também faz ameaças. No mesmo dia 3,

a Folha de S. Paulo alertou para os riscos de milho transgênico ser contrabandeado da Argentina para o Rio Grande do Sul. Na reportagem, Ernesto Paterniani, consultor do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), organização não-governamental financiada por transnacionais do setor de sementes, afirmou: “Espero que isso (contrabando da Argentina) não aconteça com o milho porque sou contrário ao contrabando. Mas acho inevitável”. No dia 5, o jornal O Estado de São Paulo publicou a seguinte declaração de Leonardo Vilella, deputado federal ruralista (PSDB-GO): “O governo sempre protelou, empurrou com a barriga o assunto. Deixou grupos com opiniões divergentes na comissão para eles se degladiarem. Deu no que deu”. Como se um engenheiro genético e um especialista em direito do consumidor pudessem ter posições convergentes em todos os assuntos. Certamente, o parlamentar não sugere a saída do primeiro da Comissão. No dia 9, o jornal O Estado de São Paulo publicou entrevista na qual Walter Colli, presidente da CTNBio, conseguiu superar em insensibilidade todas as demais declarações. Perguntado sobre a quem interessaria a suposta lentidão da Comissão, Colli disparou: “Tem gente que, por questões psicológicas, não aceita transgênico. Fico torcendo para que esses radicais se tornem dependentes de insulina, um produto transgênico”. Afora a morbidez de tal desejo, causa espanto o presidente da CTNBio ignorar as diferenças entre a insulina transgênica, um medicamento utilizado sob controle médico, e os derivados, por exemplo, da soja, consumidos massivamente pela população, sem rotulagem. (LB)


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NACIONAL COMUNICAÇÃO

Muita repressão, pouca solução

Hamilton Octavio de Souza

Rádios comunitárias ainda não têm tratamento digno no Brasil

Ladainha elitista A imprensa burguesa resolveu requentar seus ataques ao déficit da Previdência – sempre, é claro, visando desqualificar o sistema brasileiro e abocanhar os recursos para os negócios privados. Mas se esquece sempre de lembrar que a maior parte do déficit tem a ver com o próprio modelo econômico que gerou tanto desemprego, informalidade e a conseqüente queda de arrecadação. Carência planejada Dados oficiais mostram que o governo Lula teve um desempenho fraco na área de saúde nos três primeiros anos de gestão, na verba total do ministério e no que foi efetivamente executado. De 2000 para 2005, a verba oficial subiu 16,6%, mas o que foi executado – em relação à verba orçamentária – não passou de 66,1% em 2003, 65,4% em 2004, e de 63,7% em 2005. Os números não mentem. Perdão partidário A CPI dos Sanguessugas conseguiu comprovar o envolvimento de 69 deputados federais e de 3 senadores com a máfia das ambulâncias superfaturadas. Mesmo sabendo que esses parlamentares desviaram recursos públicos, os partidos a que pertencem nada devem fazer para puní-los e impedir que sejam candidatos a um novo mandato. É a falência ética dos partidos dominantes. Lembrança cubana Em artigo veiculado pela Agência Adital, o teólogo Leonardo Boff lembra os 15 dias que passou em Cuba, a convite do comandante Fidel Castro, em 1985, na época em que estava sob a censura do Vaticano. Boff relata as conversas e a convivência com Fidel, e afirma: “Chegamos a momentos de tanta sintonia que só faltava rezarmos juntos o Pai-Nosso”. Uma história emocionante e atual. Informação democrática A organização criminosa PCC conseguiu o que a maioria do povo trabalhador não consegue: espaço na TV Globo para veicular as suas lutas e as suas reivindicações. Pena que a proeza do PCC tenha sido obtida pelo crime de seqüestro de um repórter da emissora. Sem conseguir controlar a violência em São Paulo, o secretário da Segurança Pública tentou censurar a transmissão do PCC. Proteção criminosa O Ministério Público ameaça de fechamento o site Orkut, da empresa estadunidense Google Inc., que se recusa a fornecer os nomes dos autores e os endereços das páginas que veiculam pornografia infantil, discriminação religiosa e sexual, neonazismo e incitação a vários tipos de crimes. A desobediência da empresa dos Estados Unidos é vista como um atentado à soberania do Brasil. Momento perigoso O período pré-eleitoral é sempre de muito risco para os interesses da maioria do povo brasileiro. É nesse momento que os banqueiros e os empresários conseguem fazer bons negócios – para eles, é claro – com os candidatos aos postos executivos e legislativos. Há movimentação forte para isenção de impostos e de empréstimos para as PPP (Parceria Público-Privada). Olho neles! Título enganoso Matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo afirma, no título, que os “salários continuam em alta”. No texto, porém, o estudo do IBGE informa que os salários sofreram queda contínua desde agosto de 2005 e o aumento registrado de maio para junho está longe de recuperar o que foi perdido em um ano. Ou seja, os salários foram muito achatados e agora estão menos achatados. Só isso.

Dafne Melo da Redação

A

inda não foi com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva que as rádios comunitárias receberam tratamento diferenciado no Brasil, por parte do governo federal. Em janeiro, o próprio ministro da Secretaria Geral da Presidência, Luiz Dulci, admitiu que o governo Lula pouco fez para resolver a questão das rádios comunitárias no país. Na mesma ocasião, Dulci afirmou que a repressão sobre as “verdadeiras” rádios comunitárias deviam ser evitadas “a todo custo”. Na prática, não é o que tem acontecido. Prova disso foi o fechamento da Rádio Heliópolis, dia 20 de julho, pela Polícia Federal e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com respaldo do poder judiciário, por meio da determinação do juiz Hélio Egydio de Matos Nogueira, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo. A emissora – uma referência de comunicação democrática e popular no país – funcionava há 14 anos na favela de mesmo nome, a maior da cidade de São Paulo, com 125 mil habitantes. Segundo Gerônimo Souza, o Gerô, diretor da rádio, os documentos para a legalização da rádio foram enviados ao Ministério das Comunicações há oito anos, sem que nenhum retorno tenha sido dado. Álvaro Malaguti, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), afirma que a morosidade no caso de Heliópolis é padrão e que justamente por conta dessa incompetência do Estado em resolver a questão é que os comunicadores acabam sendo forçados a atuar na ilegalidade. “A Heliópolis se tornou presente na dinâmica social daquela área. Foi fruto da organização da associação de moradores, um exemplo de rádio com excelente projetos político-educacionais. A sociedade não pode ser penalizada pela incompetência do Estado, pela sua limitação e deficiência”, diz Malaguti.

CRIME? “Na hora ficamos sem ação. Não conseguimos reagir quando a polícia chegou e disse que estávamos cometendo um crime. É crime querer que as pessoas tenham consciência de seus direitos e deveres? Se isso é errado, não sei mais o que é certo. Ficou um vazio”, desabafa Gerô. O diretor da rádio conta que a reação da comunidade em relação ao fechamento foi imediata: “Uma moradora ligou para nós e disse:

Fechada pela pela Polícia Federal e pela Anatel no último dia 20, Rádio Heliópolis existia há mais de 14 anos na favela

‘calaram a nossa voz’. É isso, calaram a voz da Heliópolis”. A programação da rádio ia das 6h à meia noite, de segunda a domingo. Além de músicas, a rádio veiculava notícias. “A cada duas notícias gerais, uma sobre a comunidade”, explica Gerô. Apesar do fechamento, a produção da rádio continuou. “Continuamos a fazer entrevistas, a gravar vinhetas, deixando tudo pronto para quando voltarmos ao ar”, conta Gerô. A solução apontada pela própria Anatel foi que a rádio procurasse fazer parceria com uma instituição acadêmica para funcionar, legalmente, como um projeto experimental. A proposta foi aceita pela Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo. Os documentos exigidos já foram mandados pela Metodista à Anatel. Além da decisão da agência reguladora, a reabertura ainda depende de outras burocracias. Gerô conta que os equipamentos utilizados na rádio devem estar especificados na documentação. Como “o coração da rádio” foi apreendido, agora a correria é por parcerias que possam garantir a aquisição de novos aparelhos. O convênio com a universidade não irá alterar o caráter comunitário da rádio. “Ao contrário, com eles vamos buscar formação, promover cursos de locução, jornalismo”, informa o diretor da rádio.

claros para as novas, não seguiram o mesmo ritmo. De acordo com dados da Anatel, foram lacradas cerca de 800 rádios clandestinas, este ano. Em 2005, só no primeiro semestre foram fechadas 1200 rádios. Desses números, a agência não sabe quais tinham, de fato, caráter comunitário, mas segundo Malaguti, é constante os casos de rádios filiadas à Amarc que solicitam a assistência da associação. “As comunitárias estão sendo fechadas aos quilos”, diz. A falta de critério ao lacrar as rádios é uma das maiores críticas dos defensores da radiodifusão comunitária. Na prática, o governo não tem conseguido – ou mesmo tentado – separar o joio do trigo, ou seja, identificar entre as rádios clandestinas aquelas que cumprem a função social de prestar serviços à comunidade onde estão inseridas. Muitas emissoras ligadas a políticos ou a grupos religiosos se aproveitam do caráter de “comunitária” para tentar obter uma outorga. Muitas conseguem. “Apenas rádios que têm alguma articulação política

VALE DO RIO DOCE

Lançada campanha nacional pela reestatização Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)

POLÍTICAS Se a repressão às rádios clandestinas continuou a todo vapor, o estabelecimento de uma política de regularização do setor, revendo velhas outorgas e estabelecendo critérios

Centenas de pessoas participaram, dia 14, do lançamento nacional da campanha pela anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce. O ato teve de ser realizado em plena rua, na porta do Teatro João Caetano, pois o teatro foi fechado por ordem da governadora Rosinha Matheus, segundo denúncias do comitê pela anulação da privatização da Vale do Rio Doce. Fernando Peregrino, chefe de gabinete da governadora, atribuiu o fechamento a um “conflito de agenda” – o local estaria cedido para outro evento e por isso a administração do teatro teria impedido a abertura do local. Peregrino só não soube explicar o motivo pelo qual não acontecia nenhum outro evento no mesmo horário e nem soube informar de quem partiu a ordem

A moeda forte das concessões Não raro, são feitos paralelos entre a concentração fundiária e a concentração da comunicação no Brasil. Em ambos os casos, se beneficiam majoritariamente um pequeno grupo político-econômico que privilegia interesses privados em detrimento da função social de bens a que o povo tem direito, como a terra e os meios de comunicação. Pesquisas recentes provam o uso político das concessões de rádio e TV. Em novembro de 2003, na gestão do então ministro da Comunicação Miro Teixeira, foi divulgada a relação completa dos sócios das emissoras de rádio e de TV do Brasil. O documento apontava que pelo menos 30% dos senadores, direta ou indiretamente, tinham ligação com emissoras de rádio ou de TV. A lista permitiu, inclusive, que o sucessor da pasta, Eunício de Oliveira, fosse identificado como proprietário de três emissoras de rádio no Ceará e em Goiás. Um levantamento mais detalhado foi realizado pelo pesquisador Israel Bayma, da Universidade de Brasília (UnB), a partir de um cruzamento de dados da Anatel, do

Ministério das Comunicações e do Tribunal Superior Eleitoral. Detalhe: o estudo foi feito para a assessoria técnica do PT na Câmara dos Deputados, ainda em 2000. “Instrumentos de poder e de troca de favores e interesses, as concessões de rádio e televisão têm servido, no Brasil, como moeda de troca entre o governo federal e o setor privado”, diz o estudo. Das 3.315 emissoras de radiodifusão pesquisadas,37,5% são exploradas por políticos do PFL. Em seguida vem o PMDB, com sócios em 17,5% das emissoras. O PPB tem 12,5% e o PSDB e o PSB têm 6,25% cada. Todos os demais partidos não superavam 5% do total. Na época, não foi identificada nenhuma emissora ligada a políticos do PT. Seis anos depois, nenhuma nova pesquisa foi feita para avaliar se o governo federal recorreu à mesma prática de governos anteriores. O estudo também mostra que há 56 emissoras no Maranhão cujos sócios são integrantes da família Sarney. O sobrenome Barbalho aparece em outras 15 concessões no Pará. (DM)

obtêm outorgas. Não existe uma política definida de concessões, não há critérios definidos, transparentes”, denuncia Malaguti. Uma pesquisa feita pela Universidade de Brasília revelou que emissoras ligadas direta ou indiretamente a políticos têm 4,4 vezes mais chances de conseguir se tornar legal. Ou seja, na prática – apesar de um tímido esforço inicial ao montar um grupo interministerial para estudar e viabilizar uma solução para a questão – o governo petista deu continuidade ao histórico uso das concessões de radiodifusão como moeda política. Para Malaguti, uma das iniciativas que o governo federal poderia tomar é a descentralização das decisões no Minicom, por meio das delegacias regionais, o que tornaria os processos de licitação mais ágeis. Por fim, em um cenário ideal, segundo Malaguti, as rádios comunitárias deveriam ser inseridas dentro da criação de um sistema público de comunicação – como prevê a Constituição brasileira – recebendo financiamento público.

para que o teatro fosse “guarnecido” por uma patrulha da Polícia Militar, cujos integrantes tentaram prender um cantor de hip-hop que denunciava o “caveirão”, o veículo policial utilizado para reprimir em favelas do Rio de Janeiro. Em nota divulgada durante o protesto realizado na porta do teatro, os organizadores da campanha denunciaram “veementemente essa postura autoritária de Rosinha Matheus” e garantiram que a medida não afetará a luta que “há de se tornar uma das maiores lutas do povo brasileiro dos últimos tempos”. Vários oradores, entre eles o ex-Secretário de Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio, João Luiz Pinaud, destacaram a importância da campanha pela anulação da privatização da Vale e denunciaram o “roubo do nosso patrimônio” ocorrido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997.

Samuel Tosta

Assalto eletrônico Entre 2001 e 2006, a inflação medida pelo IPCA foi de 50,6%, mas o aumento médio das taxas cobradas pelos bancos foi de 384%. Cada vez mais os inúmeros serviços cobrados pelos bancos aumentam sua participação nos lucros do sistema financeiro. Não é para menos, uma vez que os bancos assaltam as contas dos clientes quando querem, via computador, sem o uso de armas de fogo.

Samuel Tosta

Fatos em foco

Ato público teve que ser realizado fora do teatro, fechado pela governadora


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De 17 a 23 de agosto de 2006

NACIONAL TRANSNACIONAIS

Esse é o cálculo do que poderia ser arrecadado sobre as remessas de lucros das transnacionais ao exterior feitas desde 1996, quando ganharam isenção de todos impostos Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

D

epois, quando se fala que o Brasil é um verdadeiro paraíso fiscal, ainda há quem duvide. Desde 1996, as saídas de dólares do País, executadas por filiais de empresas e grupos transnacionais sob a forma de lucros e dividendos, não recolhem um único tostão de impostos. São isentos tanto do Imposto de Renda quanto da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), criada originalmente para financiar o sistema público de seguridade social. Apenas nos últimos cinco anos e meio, essas remessas significaram uma renúncia fiscal estimada em mais de 6,7 bilhões de dólares, calculadas com base no Imposto de Renda (15%), em vigor até 1996, sobre esse tipo de operação. Tomando-se a cotação atual do dólar, o Tesouro Nacional abriu mão de uma receita de praticamente R$ 14,5 bilhões, somente neste caso. Esses recursos equivalem, por exemplo, a quase todo o orçamento do Ministério de Educação de 2005 ou à construção de 483 mil moradias populares (a um custo de R$ 30 mil cada).

UM ROMBO PERMANENTE As transnacionais, é certo, investiram no Brasil, mas puderam utilizar toda a infra-estrutura montada no País, ao longo de anos, com recursos do contribuinte e de suas empresas, na construção de estradas, sistemas de água e esgoto, redes de comunicação e de energia e outros. Além disso, tive-

Arquivo Brasil de Fato

Governo deixa de arrecadar R$ 18,5 bi ram lucros mais do que proporcionais, distribuídos em grande parte a seus sócios estrangeiros sem que o Estado brasileiro recebesse um centavo. O buraco nas contas externas do país, aberto pela liberalidade e pelas vantagens fiscais asseguradas às transnacionais, na verdade, era totalmente previsível, como uma decorrência quase “natural” (diante das políticas adotadas neste e no governo passado) da enxurrada de investimentos estrangeiros registrada na “fase dourada” das privatizações, entre o final dos anos 90 e início da década atual. Essa “liberalidade” no tratamento dedicado ao capital estrangeiro, ampliada agora ao se autorizar o registro como investimento de operações de conversão de dívida externa bastante controversas, vem cobrando seu preço em anos mais recentes, sob a forma de um crescimento exponencial nas remessas de lucros e dividendos para as matrizes das transnacionais que assumiram o controle de boa parcela do capital das antigas empresas estatais brasileiras.

O que o país não arrecadou com as transnacionais poderia ter sido usado na construção de 483 mil moradias populares

neração por deixar seus recursos investidos nas empresas das quais são donos. Considerou-se que, se tivessem que buscar dinheiro no mercado para financiar suas operações e bancar seu crescimento, as empresas estariam obrigadas ao pagamento de juros que são lançados como despesas no balanço, reduzindo, portanto, o resultado líquido final e os impostos a pagar. A remuneração dos sócios, nes-

MAIS FUGA O “ralo” é mais amplo do que parece. Também desde 1996, as empresas em geral, incluindo as transnacionais e suas remessas, podem descontar do IR e da CSLL os pagamentos realizados a seus sócios a título de remuneração de juros sobre o capital próprio investido no empreendimento. A Receita Federal determinou, então, que os sócios teriam direito a receber alguma forma de remu-

Entre 1996 e 2001, as transnacionais despejaram no Brasil investimentos no valor acumulado de 142,455 bilhões de dólares, algo como 18% do Produto Interno Bruto (PIB) do País em 2005. O grosso desses recursos foi mesmo destinado aos leilões de privatização para a compra do controle ou de ações de estatais. A partir de 2002, o valor daqueles investimentos foi caindo até atingir 15,066 bilhões de dólares no ano passado. Mas, em sentido inverso, as remessas de lucros e dividendos, gerados pela operação de transnacionais em todos os setores da economia e não apenas naqueles privatizados, cresceram 85,2% ainda em 2005, saltando de 4,937 bilhões de dólares para 9,142 bilhões de dólares – um recorde até então. Só no primeiro semestre de 2006, essas remessas somaram 5,425 bilhões de dólares, avançando mais 44,1%

Valores em milhões de dólares Remessas/ investimentos em carteira

Total

1992

486

88

574

1993

1.431

399

1.830

1994

1.923

560

2.483

1995

1.818

750

2.568

1996

1.295

1.004

2.299

1997

3.845

1.447

5.292

1998

4.673

2.059

6.732

1999

2.832

1.283

4.115

2000

2.173

1.143

3.316

2001

3.438

1.523

4.961

2002

4.034

1.128

5.162

2003

4.076

1.564

5.640

2004

4.937

2.400

7.337

2005

9.142

3.544

12.686

2006 (1º semestre)

5.425

3.441

8.866

na comparação com o primeiro semestre do ano passado.

OUTROS “RALOS” O superavit do País com o restante do mundo, excluídas as contas financeira e de capital, onde se incluem os investimentos diretos, encolheu drasticamente no primeiro semestre, com queda de 41,3% na comparação com igual período do ano passado. O saldo em transações correntes murchou de 5,259 bilhões de dólares para 3,087 bilhões de dólares. Os números positivos do balanço de pagamentos, que resume toda a contabilidade do País em suas operações com o exterior, escondem ralos em diversas contas, que podem complicar o desempenho das contas externas caso mantenhase a tendência de rápido crescimento das importações e de desaceleração das exportações. O balanço de

U. Dettmar/ABr

Remessas/ investimentos diretos

Fonte: Banco Central do Brasil

Investimentos estrangeiros diretos recuam Valores acumulados em 12 meses, em milhões de dólares Período

Valores

Período

Valores

1996

10.792

2002

16.590

1997

18.993

2003

10.144

1998

28.856

2004

18.146

1999

28.578

2005

15.066

2000

32.779

2006 (até junho)

13.938

2001

22.457

Fonte: Banco Central do Brasil

Juros sobre o capital próprio Remessas feitas por empresas estrangeiras, valores em milhões de dólares Período

Valores

Período

Valores

2001

894

2004

1.507

2002

1.054

2005

2.073

2003

845

2006 (1º semestre)

1.231

Fonte: Banco Central do Brasil

capital próprio. Se tivesse cobrado os tributos normalmente, o Tesouro teria direito a recolher 1,8 bilhão de dólares, em valores aproximados – algo como R$ 4,0 bilhões. Na soma de remessas de lucros e de juros, o governo brasileiro abriu mão de 8,5 bilhões de dólares, representando quase R$ 18,5 bilhões pelo câmbio atual (o equivalente à construção de nada menos do que 617 mil casas populares).

Empresas ampliam retirada de dólares do país

Remessas de lucros e dividendos disparam

Período

tes casos, é calculada com base nas taxas praticadas no mercado. Portanto, quanto mais altos os juros, maior o ganho dos sócios e mais generosa a vantagem tributária para as empresas. Entre 2001, quando o Banco Central (BC) começou a divulgar esse tipo de estatística, e junho deste ano, as transnacionais remeteram a suas matrizes 7,6 bilhões de dólares como juros sobre o

Governo poderia investir também na geração de empregos, saúde e educação

pagamentos já registrou, no primeiro semestre deste ano, uma queda de 15,3% no superávit geral, que baixou de 9,632 bilhões de dólares nos primeiros seis meses de 2005 para 8,160 bilhões de dólares. Num reflexo direto do elevado volume de papéis e títulos vendidos por empresas brasileiras no mercado internacional, as despesas com o pagamento desses bônus mais do que triplicaram entre o primeiro semestre do ano passado e igual período deste ano, saindo de 5,414 bilhões de dólares para 19,075 bilhões de dólares. Essas despesas pressionaram para cima os gastos totais do país (governo e empresas) com o pagamento de prestações das dívidas de médio e longo prazos. As amortizações somaram 26,3 bilhões de dólares, saltando 117,5%.

PARAÍSOS FISCAIS Os investimentos estrangeiros em compra de participações em outras empresas instaladas no país cresceram 20,4% no primeiro semestre deste ano, puxados pelo dinheiro transferido de paraísos fiscais. Identificados por país de origem, aquele tipo de investimento passou de 7,744 bilhões de dólares para 9,326 bilhões de dólares, dos quais 26,1% vieram de paraísos fiscais. Em valores, empresas com sede em países que mantêm uma legislação tributária bastante generosa em relação a capitais estrangeiros remeteram ao Brasil, supostamente a título de “investimento”, um total de 2,435 bilhões de dólares na primeira metade deste ano. Esse valor representou um avanço de 291,4% em relação a igual período de 2005, quando o mesmo tipo de aplicação havia somado 622 milhões de dólares, correspondendo a 8% do total. Os dólares enviados por empresas das Ilhas Cayman, num exemplo, aumentaram 441,5%, atingindo 1,278 bilhão de dólares. Desde Luxemburgo, os “investimentos” no Brasil foram multiplicados em quase nove vezes (mais 775%), para 595 milhões de dólares. (LVF)


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AMÉRICA LATINA IMPERIALISMO

Enquanto Fidel se recupera de cirurgia, EUA prosseguem com estratégia para desestabilizar a ilha

Álvaro Villela

George W. Bush faz planos para Cuba Jorge Pereira Filho da Redação

“F

Bush, que defende a introdução de uma “economia de mercado” em Cuba, já definiu quem seria o interventor para a implementação do “sistema democrático” na Ilha

agrária e urbana. O plano de Bush propõe, ainda, a criação de um Comitê Permanente dos EUA para a Reconstrução da Economia e a privatização do sistema de saúde, eliminando o seu caráter universal e gratuito (leia mais sobre o plano Bush na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br).

E OS CUBANOS? Apesar da ansiedade dos falcões de Bush e da máfia de Miami para definir os rumos de Cuba, não é provável que a história seja escrita conforme os seus desejos. “Basta observar a atual relação de forças no continente para concluir que sopram ventos contrários às ambições imperiais de Washington, para não mencionar sua estratégia no Oriente Médio e no Golfo Pérsico. Uma aventura militar estaria destinada ao fracasso pela segura resistência cubana”, escreveu o jornalista do semanário uruguaio Brecha, Raúl Zibechi, especialista em América Latina. O brasileiro Frei Betto, amigo pessoal de Fidel, concorda com a

avaliação. “Hoje, comprova-se que a revolução está institucionalizada e não depende de ninguém em particular, pois existem 11 milhões de Fidel dispostos a seguir o sonho de José Martí”, disse o religioso, durante passagem por Cuba, dia 13, por conta de atividades programadas para o aniversário do comandante en jefe. Mas a melhor resposta às insinuações difundidas pela mídia corporativa foi dada pelo próprio Fidel e pelo povo cubano. Primeiro, no dia 14, a televisão cubana mostrou o encontro do líder revolucionário com seu aliado, o venezuelano Hugo Chávez e seu irmão Raúl Castro, provisoriamente à frente do governo cubano. Na gravação, Fidel aparece em um leito hospitalar, deitado, sorridente. Ele e Chávez usam a mesma camisa, vermelha, com a distinção de que o cubano ostenta no peito uma imagem das bandeiras dos dois países entrelaçadas. O venezuelano faz piadas: “Por que não aproveitamos e fazemos uma cirurgia plástica em seu nariz?”. Fidel diz, com

voz baixa: “Hugo... Ainda queres outra cirurgia?”. A cena impressiona, sobretudo porque é a primeira vez em que o líder revolucionário aparece convalescente, em uma cama de hospital. Uma carta, escrita pelo próprio Fidel após o encontro com Chávez e seu irmão, não deixa dúvidas da gravidade da cirurgia, feita em decorrência de um sangramento intestinal cuja causa ainda não foi divulgada: “Dizer que a estabilidade objetiva melhorou não é inventar uma mentira. Afirmar que o período de recuperação durará pouco e que já não existe risco seria absolutamente incorreto. Sugiro a todos que sejam otimistas, mas sempre prontos para enfrentar qualquer notícia adversa. Ao povo de Cuba, minha infinita gratidão por seu apoio. O país marcha e continuará marchando perfeitamente bem. Aos meus companheiros de luta, eterna glória por resistir e vencer o império, demonstrando que um mundo melhor é possível”. Apesar do tom preocupante da mensagem, o venezuelano Hugo

Chávez tratou de animar quem torce pela saúde de Fidel, prevendo que, pelo o que pode constatar, “Fidel vai se recuperar antes do tempo previsto”.

NAS RUAS Apesar de o líder revolucionário pedir, em seu afastamento, que as comemorações de seu aniversário fossem prorrogadas, a data não passou em branco. Uma apresentação musical, com vários grupos, foi realizada justamente em frente ao escritório dos Estados Unidos, na capital Havana. Dezenas de milhares de cubanos participaram dos festejos, entoando gritos de “Pátria ou morte, venceremos!”, entrecortados pelos refrões de salsa que embalaram a multidão pela madrugada. No campo, cerca de 100 mil pessoas se apresentaram para realizar trabalho voluntário em uma jornada que contou com a presença do ministro do Açúcar, general Ulisses Rosales del Toro. Por que será que nenhuma informação sobre isso foi publicada nos jornais brasileiros?

ARGENTINA

Repressão aumenta e se agrava da Redação A Coordenação Contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi) denuncia que, por trás do silêncio midiático e do discurso setentista, a repressão não deixou de aumentar e se aprofundar durante os três anos do governo do presidente Néstor Kirchner. Abuso policial, torturas, mortes nas prisões e delegacias, perseguições por razões políticas, repressões de mobilizações, “gangues” oficiais, ameaças aos presos políticos, não cumprimento de condenações internacionais, são alguns dos temas apontados no “Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Regime de Nestor Kirchner”, apresentado pela Correpi. Refutando que o governo do presidente Kirchner pode se chamar “o governo dos Direitos Humanos”, o relatório demonstra que tanto a repressão do controle social (ações indiscriminadas de policiais, torturas, mortes nas prisões e delegacias), como a repressão política aumentaram nestes três anos e mostram índices superiores a qualquer governo anterior.

Para a Correpi, a estratégia política do governo, em matéria de direitos humanos, é um dos eixos de sua permanente busca de legitimação. “Uma forma habilmente combinada de cooptação de referentes históricos no campo dos direitos humanos e de propaganda oficial, disfarçada de informação jornalística, tenta colocar a quem denunciamos o caráter de repressor deste governo como perigosos desestabilizadores, provenientes de uma esquerda qualificada com outras intenções”. Como uma expressão natural de um povo que vive em condições miseráveis, afirma o documento, se sucedem medidas de força, ocupações de fábricas, bloqueio de ruas, greves, manifestações. Kirchner e seus aliados provinciais respondem com repressão, operações de multi-força, abuso policial, militantes e trabalhadores presos e processados, e chamando de “terroristas” os trabalhadores em greve. Nos bairros, aumenta o abuso policial, se acumulam as denúncias de torturas e se multiplicam as detenções arbitrárias. A cada dia que passa, alguém morre numa prisão ou numa delegacia.

Damian Dopacio/Arquivo Brasil de Fato

idel Castro tem câncer terminal”; “as fotos de Fidel divulgadas na imprensa são falsas”; “o ‘povo cubano’ pode contar conosco para uma ‘transição democrática’”. Não que alguém esperasse algo diferente, mas essas declarações tão gentis, feitas por representantes do governo de George W. Bush na última semana, são apenas uma pequena amostra do compromisso dos Estados Unidos com a estabilidade na ilha revolucionária. Também não se trata de uma ação eufórica, após o anúncio do afastamento de Fidel Castro da presidência por motivos de saúde. As insinuações sobre o risco de uma “crise interna” em Cuba, as medidas supostamente tomadas para prevenir uma “migração em massa para os Estados Unidos”, estão inseridas em uma detalhada estratégia do governo Bush de acabar com a história do socialismo na ilha caribenha. E não se trata de teoria da conspiração, como podem acusar os mais incrédulos. Essa estratégia é pública, foi divulgada pela própria secretária de Estado, Condoleezza Rice, e pode ser acessada na página do governo dos Estados Unidos na internet. Para implementar o sistema democrático em Cuba, o governo Bush inclusive já se ocupou de definir quem seria o interventor para essa transição: Caleb McCarry, que é pago pelo povo estadunidense para ostentar o cargo de Coordenador para a transição em Cuba. McCarry teria um papel semelhante ao que desempenhou Paul Bremer, no Iraque. Uma de suas missões é “sensibilizar” a comunidade internacional em prol do plano de transição. O orçamento para essa tarefa é nada menos do que 80 milhões de dólares, como anunciou Rice. Não é à toa que, nessa guerra de informação, analistas da CIA são fontes da mídia corporativa para opinar sobre o estado de saúde de Fidel Castro, como Brian Latell, ouvido por O Estado de S. Paulo dia 15. Já o neoliberal The Wall Street Journal, mais preocupado com o mercado, especula em suas páginas as possibilidades de negócios que podem surgir com a abertura da economia de Cuba ao capital estrangeiro, a exemplo do que ocorre hoje na China. O plano de Bush diz defender, basicamente, a introdução de uma “economia de mercado” na ilha, dispensando a Cuba um tratamento colonial, mas alegando supostos “objetivos democráticos” para essa intervenção direta em assuntos cubanos. No entanto, do ponto de vista das políticas sociais, as propostas de Bush parecem não ser tão atrativas para uma pequena ilha caribenha, não tão farta de recursos naturais, mas que ostenta índices sociais (como a taxa de mortalidade) melhores do que a de muitos Estados estadunidenes. Por exemplo, para “enfrentar as necessidades humanas básicas”, os EUA querem “a realização de transformações profundas e dramáticas para eliminar todas as manifestações do ‘comunismo castrista’ e introduzir práticas democráticas e de livre mercado”. Além disso, os EUA querem que os descendentes de cubanos que deixaram o país após a revolução, em 1959, retomem terras que foram divididas entre a população durante o processo de reforma

Cordão policial cerca manifestantes no centro de Buenos Aires, em 2005

O relatório quer provar que, em sua gestão de governo, Kirchner foi empregando diferentes táticas repressivas, com o objetivo de recuperar a legitimidade perdida das instituições, a centralização do poder político e os meios de comunicação. Desde 25 de maio de 2003 até a data de 28 de julho de 2006, fo-

ram 505 as pessoas assassinadas pelas Forças de Segurança. Em sua maioria, jovens e pobres. A partir da 10ª apresentação do relatório, a Correpi tomou conhecimento de 95 novos casos de policiais que atiram sem nenhum procedimento prévio ou mortes por causa de tortura em prisões e delegacias, em 10 províncias. (Adital, www.adital.org.br)


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INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

A guerra da (des)informação continua Números indicam que Hezbollah saiu vitorioso; jornais insistem no mantra de que “Israel ganhou a guerra” Marcello Casal Jr/ABr

Crianças libanesas com foto do líder do Hezbollah, Nassan Nasrallah, que está sendo comparado ao líder egípcio Gamal Abdel Nasser – que liderou um movimento pan-arabista em 1952

Marcelo Netto Rodrigues da Redação

T

ática número um prescrita no “manual de redação de guerra” dos jornais controlados por grandes corporações econômicas: manipular a informação em favor de Israel. Exemplo: durante as três primeiras horas após o início do “cessar-fogo”, no dia 14, Israel já havia matado seis integrantes do Hezbollah. Mas os jornais esperaram por mais 20 horas para poder estampar “Hezbollah rompe a trégua”, em suas páginas na internet. Tática número dois: martelar rótulos contra os “inimigos” dos Estados Unidos e de Israel. A ordem é usar o adjetivo “terrorista” ao escrever a palavra Hezbollah, apesar de, semanas atrás, até mesmo a União Européia ter rejeitado essa forma de tratamento ao grupo xiita libanês. Por último, a mais importante, tática número três: recitar o mantra “Israel ganhou a guerra”, apesar de todos os números e análises provarem o contrário. Sem se esquecer de um detalhe: nenhuma linha que lembre os três soldados israelenses seqüestrados – usados como justificativa de Israel para lançar bombardeios contra civis –, os quais não foram resgatados. A imprensa comercial cumpre o seu papel na guerra da “desinformação”, defendendo os interesses dos seus donos. Já se disse que a liberdade de imprensa não existe; existiria, sim, a liberdade de empresa. A brincadeira poderia ser publicada como notícia. Não é à toa que o principal indicador de ações da Bolsa de Nova York, Dow Jones, também seja dono do The Wall Street Journal e parceiro da agência Associated Press (leia artigo na seção Debate, na pág.2) – fonte da maioria das notícias republicadas, na íntegra, pelos maiores jornais brasileiros. A mídia cria as suas verdades. Assim, destaca o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em texto sobre a guerra, “os israelenses são patriotas e os palestinos são terroristas”. Assim, continua ele, “a chamada comunidade internacional não se angustia em nada com o fato de Israel ter 250 bombas atômicas, embora seja um país que vive à beira de um ataque de nervos [e acaba se preocupando com o Irã]”.

Declaração da Missão de Paz da Sociedade Civil Internacional em visita ao Líbano Beirute, 14 de agosto de 2006 Nós, membros da delegação internacional de paz, que inclui Índia, Filipinas, Brasil, Noruega, França e Espanha, expressamos nossa solidariedade com o povo do Líbano em sua resistência às agressões israelenses. A vitória da resistência libanesa sobre Israel inspirou os povos do mundo, que vêem nela uma reafirmação do poder do povo. A resistência quebrou, pela primeira vez, o mito sobre a invencibilidade israelense e sua suposta superioridade política e militar na região. Esta vitória é uma derrota para os projetos dos EUA-Israel para “um Novo Oriente Médio”, que é um outro termo para o expansionismo sionista e a hegemonia estadunidense, que são partes integrais do projeto imperialista global. A corajosa Resistência Nacional Libanesa conduzida pelo Hezbollah e por seu secretário-geral Hassan Nasrallah foi responsável por essa vitória histórica. A unidade do povo libanês, através das religiões e das classes, e a resistência da sociedade civil foram também centrais à vitória sobre Israel e os Estados Unidos. Nos juntamos ao Líbano no luto pela morte de todos os civis inocentes. Nós condenamos a política israelense de matança de civis como um instrumento de terror de Estado. O ataque israelense a civis é uma violação grave das leis internacionais e deve ser tratado como crime de guerra. Nós expressamos simpatia também pelo compromisso dos trabalhadores emigrantes estrangeiros no Líbano que foram deslocados nessa agressão. Nós exigimos que seus governos lhes dêem todo o auxílio necessário. Esta é uma parte importante do deslocamento em grande escala de um milhão de libaneses, criando a principal crise humanitária. A política israelense da “punição coletiva” destruiu a infra-estrutura civil – inclusive os complexos residenciais, vilas inteiras no sul do Líbano, pontes, estradas, prédios do governo, estações de gás – o que requererá bilhões de dólares para sua reconstrução. Nós conclamamos toda a comunidade internacional a ajudar o povo do Líbano nesta gigantesca tarefa de reabilitação e reconstrução.

Assim, a mídia comercial dá a contribuição para que deixemos de nos perguntar: “Terá sido o Irã o país que lançou as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki?”

FOGOS DE ARTIFÍCIO A mídia comercial tenta, de forma prematura, garantir que a guerra acabou – para acalmar o mercado. Só que, na prática, ambos os la-

Nós damos boas-vindas ao cessar-fogo e à chamada para a retirada imediata e incondicional das tropas israelenses do Sul do Líbano. Israel deve pagar a reparação pelas vítimas da agressão. Nós conclamamos o movimento global da paz, incluindo o movimento israelense pela paz, para resistir à agressão Israel-EUA. Nós condenamos o papel da mídia internacional, que cooperou com a estratégia israelense e estadunidense da desinformação. Nós recomendamos: 1. A composição de um tribunal internacional de crimes de guerra para julgamento dos responsáveis políticos e militares israelenses pelos crimes contra a humanidade; o movimento internacional da paz deve coordenar este processo; 2. A retirada das tropas israelenses do Líbano, incluindo as das Fazendas Shebaa; 3. O estabelecimento de um Estado Palestino soberano e independente; 4. A retirada das tropas israelenses das Colinas de Golã; 5. A liberação de todos os prisioneiros em cadeias israelenses; 6. O fim da ocupação estadunidense no Iraque e no Afeganistão; 7. O fim de todas as ameaças estadunidenses e israelenses ao Irã e à Síria. Integrantes da missão: Walden Bello, Focus on the Global South, Filipinas / Mohammed Salim, MP, Communist Party of India (Marxist), Índia / Kjeld Jakobsen, CUT Brasil e Aliança Social Continental / Mujiv Hataman, MP, Anak Mindanao, Filipinas / Seema Mustafa, Resident Editor, Asian Age, Índia / Kamal Chenoy, All India Peace and Solidarity Organization, Coalition for Nuclear Disarmament, Índia / Kari Kobberoed Brustad, Norsk Bonde-Og Smakbrukarlag, Noruega, La Via Campesina / Gerard Durand, Confederation Paysanne, França, La Via Campesina / Feroze Mithiborwala, Forum against War and Terror, Mumbai, Índia / Vijaya Chauhan, Rastra Seva Dal (Youth Organization), Índia / Herbert Docena, Focus on the Global South, Filipinas / German Guillot, intérprete, Espanha.

dos estão encarando o cessar-fogo apenas como um intervalo entre o primeiro e o segundo round da guerra. Os atores envolvidos sabem que uma guerra com maiores dimensões virá pela frente, muito provavelmente com a participação direta da Síria e do Irã. Enquanto isso, tanto o primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, quanto o líder do Hezbollah, Nassan

Nasrallah, declararam-se vencedores do conflito, em pronunciamentos oficiais. Mas com uma diferença. A fala de Nasrallah foi recebida com fogos de artifício por todo o Líbano; a de Olmert, com críticas que colocam sua cabeça a prêmio. A seu favor, Nasrallah conta com o fato de ter destruído “o mito da invencibilidade israelense e sua suposta superioridade política

e militar na região” (Veja, abaixo, a Declaração da Missão de Paz da Sociedade Civil, em visita ao Líbano), ao arrastar a guerra por 34 dias, sem sinais de apatia, sem aviões, sem tanques. Além disso, se beneficia de estar sendo alçado, aos 48 anos, ao status uma vez reservado ao líder egípcio Gamal Abdel Nasser – que liderou um movimento pan-arabista, após ter derrubado, em 1952, o governo pró-britânico do rei Faruk, no Egito. Depois de impingir a Israel sua batalha mais longa contra os árabes até o momento, Nasrallah conseguiu a proeza de agradar a “gregos e troianos”, sunitas e xiitas – e até mesmo a cristãos libaneses. Em fevereiro, o Hezbollah contava com apenas 29% de apoio dentro do Líbano, hoje esse índice saltou para 87%. Os números da guerra ajudam a entender as mudanças de opinião. O Hezbollah matou, em sua grande maioria, militares. Israel, por sua vez, civis. Dos cerca de 150 israelenses que morreram, mais de 100 eram militares. Dos cerca de 1.000 libaneses mortos – além da esmagadora maioria ser civil, um terço eram crianças. A Força Aérea Israelense – que conta com 700 aviões-caça – realizou 8.700 missões contra o Hezbollah, ao passo que o grupo xiita lançou contra Israel 4.000 foguetes e alguns mísseis. Mas mesmo com tamanha discrepância de poderio de fogo, o Hezbollah admite ter perdido aproximadamente o mesmo número de homens que Israel – apesar de o último afirmar que matou 475 guerrilheiros. O fato é que enquanto a resolução 1.701 das Nações Unidas – que prevê a retirada das tropas israelenses do sul do Líbano, e a sua substituição por 15 mil soldados libaneses – não se efetiva, a guerra verbal entre os atores coadjuvantes tende a ocupar espaço na mídia. O presidente da Síria, Bashar Assad, no dia 15, cutucou o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, dizendo que o “novo Oriente Médio” ao qual o governo estadunidense aspira tornou-se uma ilusão, com a resistência demonstrada pelo Hezbollah. Assad respondia às declarações que Bush havia dado, seguindo o script, no dia anterior, de que o Hezbollah havia sido derrotado pelas tropas de Israel.


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CULTURA

De 17 a 23 de agosto de 2006 Fotos: Maria Sirley dos Santos

ENTREVISTA

Oito anos dedicados à Nicarágua Brasileira que viveu a experiência revolucionária sandinista mostra a luta da sociedade nicaraguense Arturo Hartmann de São Paulo (SP)

M

aria Sirley dos Santos, nascida em Bragança Paulista, interior de São Paulo, dedicou oito anos de sua vida ao processo político e social que tomou conta da Nicarágua durante a década de 1980. A Revolução de 19 de julho, que fez 27 anos no mês passado, foi derrotada. Mas deixou legados, lembranças e traumas que ainda não foram apagados da memória e da consciência da sociedade nicaragüense. Maria Sirley – no mês passado realizou uma exposição com fotos de suas viagens à Nicarágua, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema-SP – voltou ao país em 2004, para uma palestra na Universidade de Leon. Nesta entrevista, ela fala de sua experiência, das dificuldades da revolução e do resgate dos valores sandinistas. Brasil de Fato – Quando você foi à Nicarágua pela primeira vez? Maria Sirley – Comecei a ir para lá na década de 1980, depois da revolução, mais ou menos em 1981. Fui como uma internacionalista e também para fazer pesquisas para meu mestrado. Fiz um curso na Pontifícia Universidade Católica (PUC), “Especialização na América Latina” e Florestan Fernandes, meu professor, me apontou a perspectiva de analisar o processo revolucionário sandinista. Outra razão foram amigos que eu tinha na Nicarágua, como Fernando Cardenal [jesuíta que foi ministro da Educação do goverrno sandinista]. Como eu era secretária de Relações

Internacionais do PT, misturaram-se a questão intelectual e a política.

Douglas Mansur/Novo Movimento

BF – Quando você conheceu Cardenal? Maria Sirley – Durante o processo da revolução. Nós montamos uma coordenação de solidariedade à Nicarágua, e eu coordenava as ações em São Paulo. Por meio desse comitê ajudamos na vinda de Cardenal, Daniel Ortega [comandante da revolução nicaraguense e presidente do país, de 1985 a 1990], entre outros. A coordenação era também um lugar para aqueles que queriam fazer doações.

Quem é Formada em Geografia, Pedagogia e mestra em Ciências Sociais, Maria Sirley é autora de Pedagogia da Diversidade e integrante da Associácion de Educadores de Latinoamerica y Caribe. Já trabalhou como diretora de Educação da cidade de Santo André (1997 a 2000) e atuou na secretaria de Educação de Santos (1989 a 1994). Atualmente coordena a coleção de livros “Sociedade educativa: consciência e compromisso”, que terá um livro de sua autoria, Geografias da terra, de homens e mulheres da América Latina. Maria Sirley desenvolve um projeto do estudo dos Zapatistas e do resgate da dignidade do povo indígena por meio da importância da cultura maia.

BF – E na Nicarágua, como atuou? Maria Sirley – Realizei vários trabalhos, nesses oito anos de idas e vindas. Ajudei na formação dos Comitês de Defesa Sandinista (CDSs), trabalhava em educação, fiz a formação política de alguns grupos camponeses – porque eles não entendiam direito o funcionamento das cooperativas – e fiz orientação aos Comitês de Desenvolvimento Infantil. Aí, cuidávamos das crianças deixadas pelas das mães que iam para a guerra. Também ajudei na colheita. Fazia o que era preciso. BF – Em que cidades você ficou ? Maria Sirley – A maior parte do tempo vivia em Manágua e Masaya, cidade de artesãos. Era uma cidade importante da revolução, pois dali saíram as primeiras bombas artesanais. Também dali saiu o coro de anjos, crianças que tocavam panela na época da guerra. Ajudava em um jornal chamado Boñequito del pueblo, para orientar as crianças se houvesse ataques aéreos. BF – No campo da educação e da formação das po-

As viagens à Nicaragua resultaram em exposição fotográfica de imagens que Maria Sirley fez do povo nicaraguense

pulações, quais as especificidades dessa revolução? Maria Sirley – A questão religiosa. Eram todos padres que estavam como ministros. Eles diziam: “entre revolução e religião, não há contradição”. É um povo muito religioso. Se não houvesse envolvimento da Igreja, não haveria revolução. Mas havia representantes de setores da Igreja muito conservadores, como Ovando Bravo. Ele se juntou aos Estados Unidos para fazer oposição aos sandinistas. Mas o mais difícil foi a visita do Papa João Paulo II, em 1983. Foi uma coisa que marcou negativamente o país. Eu ajudei a organizar as pessoas, a enfeitar a cidade. Mas nós esperávamos que o Papa desse um apoio, principalmente às mães dos meninos que iam para a guerra com 14 e 15 anos. Esperávamos uma oração e ele não deu uma palavra a favor dos sandinistas, ficou ao lado de Bravo. Isso foi um balde de água fria, as pessoas saíram da praça chorando. Havia toda aquela esperança de um povo religioso de que o Papa falasse para eles ou rezasse por eles. Nada. Foi indiferente e duro. Acho que ali foi um ponto de curva descendente e um elemento marcante da queda do processo revolucionário. BF – Que outras causas do fracasso da revolução você percebeu no interior da sociedade? Maria Sirley – Outra peculiaridade na queda foi a singularidade de ter uma população no Oceano Pacífico colonizada por espanhóis, os sandinistas que fizeram a revolução;

e no Atlântico, populações colonizadas por ingleses, índios de vários grupos. Eles falam inglês e têm uma cosmovisão completamente diferente das populações do Pacífico. Uma das formas de minar o processo revolucionário foi infiltrar nesses grupos – nos quais já começávamos um trabalho de alfabetização – seitas religiosas como Testemunhas de Jeová e os evangelistas, incentivadas pelos Estados Unidos, que começaram a jogar esses indígenas contra os sandinistas. Diziam que suas crenças não seriam respeitadas. Aí, esses grupos da costa do Pacífico se juntaram com os Contra, em Honduras. Também houve a estratégia, dos Estados Unidos, de queimar propriedades agrícolas, destruir toda a plantação. Toda noite, éramos chamados por causa de uma queimada. Todos os produtos eram destruídos nas cooperativas, nas propriedades estatais. Além disso, com o povo miseravelmente pobre, sem alimentação, e além do mais com muita gente morrendo na guerra, o governo sandinista tornou obrigatório o serviço militar para jovens de 14, 15 e 16 anos. As famílias não aceitavam porque morria muita gente. Em cada emboscada, morriam 20. BF – Houve corrupção também dentro do governo sandinista? Maria Sirley – Houve sim. Também houve a despolitização. Por isso acho que os sem-terra fazem certinho, porque estão trabalhando na formação política. Não adianta fazer nada se não há consciência política desenvolvida. Eles

não tinham, eles queriam tirar o [Anastasio] Somoza [ditador nicaraguense que governou o país por duas vezes, a última de 1974 a 1979] e daí acharam que a guerra tinha acabado, quando estava apenas começando. Mas com a religiosidade abalada, as seitas, a destruição da estrutura econômica e das fazendas produtoras, começa a corrupção – até com a venda de produtos que vinham dos centros de solidariedade no mercado negro. Todos os elementos colaboraram para a queda, e ainda, com esse quadro, os partidos de oposição não davam trégua.

Não adianta fazer nada se não há consciência política desenvolvida BF – Você voltou à Nicarágua? Maria Sirley – Voltei à Nicarágua depois de 15 anos, em 2004, em outras condições. Fui convidada pela Universidade de Leon para fazer uma conferência. Pensei: “vou falar de [Augusto César] Sandino, quer queiram, quer não queiram”. Falei sobre o [educador brasileiro] Paulo Freire e fiz um paralelo sobre o que era o “Exército de Loucos”, o que era o “Exército de Sandino”, a preocupação dele com a educação, pois ele acreditava que a educação era o caminho para a libertação dos povos, igual a Freire. Para minha surpresa, lógico que tinha gente contra, mas a maioria se expressou

a favor. Eram sandinistas. Contavam-me que aquele era um outro momento histórico, que a revolução que podiam fazer agora era educativa. Fui a uma Assembléia Sandinista, o que me lembrou da época que vivia lá. Eles estão tentando por uma via institucional. BF – Qual o legado da revolução nicaraguense? Maria Sirley – A idéia permanece, os princípios permanecem. Em Manágua, eles fizeram um monumento a Sandino – Revolucionário que empre- Sandino, endeu uma guerra onde Sode guerrilhas contra a intervenção esmoza o tadunidense em mandou seu país, durante o m a t a r. início do século 20. Foi assassinado No inteem 1934. rior, há monumentos a Sandino. As organizações de massa continuam organizadas, mas agora se tornaram ONGs, pois não têm subsídios do Estado. A questão do coletivo continua. Há um professor que era da minha época, que continua trabalhando com alfabetização e libertando territórios. Há inúmeras cidades chamadas territórios livres do analfabetismo. Eles estão correndo atrás do prejuízo, tudo que perderam estão conquistando outra vez, agora por outra via. Eles bobearam, por corrupção e outros motivos, mas estão tentando recuperar o país e os ideais. A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) é um partido forte, FSLN – Organização política de f i c o u esquerda criada em sendo um 1962, seguindo os ideais de Augusto partido Cesar Sandino. político e faz uma boa administração de cunho social nas cidades, se fortalecendo localmente.


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