Ano 4 • Número 182
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 24 a 30 de agosto de 2006
www.brasildefato.com.br
Antonio Cruz/ABr
Sem reforma agrária, mais assassinatos e repressão Em Pernambuco, sem-terra são vítimas de violência resultante de conflitos e criminalização
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ois integrantes da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Pernambuco foram assassinados a tiros pelas costas, no dia 20. Enquanto os criminosos desfrutam a liberdade, a polícia do Estado prendeu um dos coordenadores nacionais do MST, Jaime Amorim, acusado de “mau comportamento” em mani-
festação contra George W. Bush, em novembro de 2005. Para dom Tomás Balduíno, os dois tristes episódios ilustram a criminalização dos movimentos sociais, promovida pela grande mídia e pelo Poder Judiciário. Os fatos descontextualizados camuflam a principal causa dos conflitos – a concentração fundiária no país. Pág. 3
A Colômbia sob controle militar dos EUA Sob a orientação estadunidense, o presidente Álvaro Uribe implementa na Colômbia um forte sistema de repressão e assassinatos de integrantes de movimentos sociais. A cada dia a sociedade colombiana se militariza mais, seja oficialmente, seja com o apoio de grupos de ultradireita formados por paramiliComitê de defesa do povo palestino e libanês faz protesto em Brasília contra a intervenção da ONU no Líbano, no dia 16 Raízes do Hezbollah – Único brasileiro que integrou uma missão de paz no Líbano, o presidente do Observatório Social, Kjeld Jakobsen, diz que o Hezbollah é muito mais amplo que um partido religioso e mantém alianças até mesmo com o Partido Comunista Libanês. “Nem todos os seus integrantes são necessariamente muçulmanos xiitas”, revela, em entrevista ao Brasil de Fato. Pág. 7
EDITORIAL
Um grito contra as injustiças
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o dia 7 de setembro, o povo brasileiro tem um compromisso: gritar contra as injustiças e o descaso das elites. É com esse espírito que será realizado o 12º Grito dos Excluídos no Brasil, sob o lema “Brasil: na força da indignação, sementes de transformação”. Caminhadas, celebrações, atos simbólicos, blocos em desfiles oficiais e tantas outras atividades envolverão milhares de pessoas em centenas de cidades do país. A exemplo do Brasil, o Grito dos Excluídos vai ecoar em mais de 20 países das Américas Latina e Central e do Caribe. E, em 12 de outubro, outras milhares de pessoas estarão reunidas em jornadas, manifestações, caminhadas ou celebrações sob o tema “Trabajo, justicia y vida”. O Grito é um eco principalmente contra a exclusão social, processo que vem se perpetuando na história do Brasil: em governos passados, recentes e, infelizmente, também no atual. “Não queremos esmola, queremos trabalho!”, disse uma dona-decasa ao ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, em Belo Horizonte (MG), quando ele falava a moradores em situação de rua sobre a Bolsa-Família. Essa reação mostra claramente que de nada valem as políticas compensatórias, ainda que ne-
cessárias, se junto com elas não são feitas mudanças estruturais – como a mudança na política econômica que privilegia o pagamento das dívidas, o superavit, o capital financeiro e o agronegócio, em detrimento das políticas sociais. As mudanças que realmente interessam aos milhões de excluídos do nosso país passam por amplas e profundas reformas agrária e urbana que, apesar de terem sido durante mais de 20 anos compromisso de campanha do atual governo, não estão sendo realizadas. Pelo contrário. As ações do governo têm privilegiado o agronegócio, que recebe por ano mais de R$ 40 bilhões de investimentos contra apenas R$ 10 bilhões para a agricultura familiar. Mesmo sabendo que a reforma agrária gera empregos no campo, o governo continua privilegiando o agronegócio, que expulsa 11 trabalhadores rurais a cada emprego que cria, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra. O Grito é também contra a corrupção. Mensalão, sanguessugas, desvios de recursos públicos são apenas alguns exemplos desse mal enraizado em nosso país. Aqui a corrupção passa a ser quase normal e não suscita mais indignação na população – pelo menos, não
de forma organizada para uma reação social. Recuperar a capacidade de nos indignarmos. É esse o grande apelo do Grito neste 7 de setembro. Indignação diante da fome, da miséria, da morte de trabalhadores. Indignação com a corrupção, com a violência, com as guerras espalhadas pelo mundo e com a nossa própria guerra que, só nos morros do Rio de Janeiro, mata mais do que a do Iraque ou a do Líbano. O Grito é contra a forma de política representativa, que não responde mais às demandas da população. Que não é mais legítima. O povo quer uma democracia direta e participativa. É preciso criar plebiscitos, referendos, conselhos populares, enfim, formas que garantam efetivamente a participação da população e que obriguem os políticos a fazer aquilo que favorece o bem comum. O Grito é por um projeto popular alternativo que ajude a construir o Brasil que queremos. Todos estão convocados a somar esforços na construção de um mundo melhor.
tares que mantêm uma íntima relação com o presidente – como conta o defensor de direitos humanos Fabio Serna, em entrevista ao Brasil de Fato. Para Serna, os EUA, sempre visando os interesses de seus oligopólios, buscam o controle militar sobre a América do Sul. Pág. 5
Renda continua Mulheres do Iraque em cenas concentrada, diz economista de amor e guerra Nove personagens contam suas tragédias e revelam suas emoções em meio ao caos de um país ocupado. Essas experiências, coletadas pela atriz iraquiana-estadunidense Heather Raffo, resultaram na peça As Nove Partes do Desejo. Clarisse Abujamra, que traduziu e adaptou o texto, encena o monólogo no Brasil. Pág. 8
Não é verdade, como pregam os discursos no horário eleitoral, que a distribuição de renda atingiu um dos melhores índices da história recente. O economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que o governo faz uma análise distorcida dos rendimentos. Pág. 4
Uma alternativa à monocultura de eucalipto
Manipulação em tribunal sobre Ruanda
Pág. 3 Márcio Baraldi
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De 24 a 30 de agosto de 2006
DEBATE
CRÔNICA
O teatro paulista de grupos
A morte e a ressurreição de nossos profetas
Márcio Baraldi
Marcelo Barros
Márcio Boaro inegável que o teatro paulista dos anos 60, com o Arena e o Oficina, representou um momento único para a cultura nacional. Mas, nos últimos anos, o teatro paulista vive outro momento importante. Embora seja diferente do anterior, época mais fértil em diversidade de sua história, atualmente um enorme número de grupos faz um trabalho de grande relevância. Para entendermos o que está ocorrendo é interessante que falemos um pouco sobre a década de 60. O teatro Arena foi formado no início dos anos 50 com pretensões artísticas e ideológicas. O divisor de águas foi a montagem de Eles Não Usam Black-tie, texto escrito pelo jovem Gianfrancesco Guarnieri. Uma peça que fala da história de uma greve; assunto que não é de ordem dramática, com um texto que, pela temática, fica nos limites do épico, já que o drama burguês não dava conta de retratar uma greve. O espetáculo caiu no gosto dos universitários. O Arena formou seu público quando foi fiel ao que acreditava. Nos anos 60, a ditadura militar fez com que os artistas do Arena seguissem outros caminhos e a censura impediu que outros tomassem seu lugar com a mesma força.
É
A troca de experiências entre estes grupos têm acontecido sistematicamente. Por iniciativa dos próprios coletivos, existem mostras e até um jornal com periodicidade incerta, mas com conteúdo relevante para entender o momento A partir do início dos anos 90, surgiram em São Paulo grupos interessados em uma forma de trabalho que não tivesse sincronia com o chamado teatrão, ou um teatro voltado unicamente ao retorno de bilheteria. São vários os motivos deste surgimento:
não havia mais o peso da repressão da ditadura. Terminada a década do hippies, ficou claro que não existia trabalho para todos os artistas, não havia onde absorver o trabalho destas pessoas, sem contarmos a insatisfação diante do que estava sendo feito e apresentado nos palcos.
A partir do início dos anos 90, surgiram em São Paulo grupos interessados em uma forma de trabalho que não tivesse sincronia com o chamado teatrão ou um teatro voltado unicamente ao retorno de bilheteria A cada ano apareciam novos grupos que pensavam a produção teatral não como um produto. O chamado “teatro iogurte”, com data de vencimento e gosto padronizado. Buscavam uma forma que, em sincronia com suas pretensões estéticas e ideológicas, encontrassem eco com a população de sua cidade. A vontade de ver o novo, de obter algo que unisse o prazer estético à reflexão, que olhasse o cotidiano de forma crítica, crescia. Boa parte destes grupos se dedicam ao teatro narrativo. Além da mudança de objeto, as relações entre os integrantes do fazer teatral também foi alterada, já que os grupos optaram por formas de trabalho participativo, democrático, com a criação coletiva. Todos os artistas envolvidos no processo são criadores. O trabalho final é de autoria de todos, sem perder de vista as especialidades de cada função: se mantém o papel do dramaturgo, do diretor, do ator, mas a opinião de todos deve e é levada em conta. A troca de experiências entre esses grupos tem acontecido sistematicamente. Por iniciativa dos próprios coletivos, existem mostras e até um jornal com periodicidade incerta, mas com conteúdo relevante para entender o momento, o Jornal Sarrafo (www.jornalsarrafo.com.br).
A Lei de Fomento ao Teatro da Prefeitura da Cidade de São Paulo ajudou muito para a existência desse momento. Entretanto este movimento não surgiu em virtude dessa lei, mas a lei que surgiu pelo trabalho destes grupos que formaram o Arte Contra a Barbárie. A Lei de Fomento permite que exista um teatro voltado à pesquisa estética própria, sem a necessidade de estar em sincronia com a bilheteria. Não há como um grupo começar um novo trabalho se tiver de se preocupar com o retorno da bilheteria. Totalmente diferente do que ocorria há 30 anos, quando os espetáculos eram de terça a domingo, hoje o mais comum é termos três sessões por semana. Talvez seja possível inverter este quadro através de um trabalho integrado dos grupos com o poder público. Há outros exemplos, mas podemos falar um em especial. Em 2001, um grupo de jovens formou a Companhia Estável e recebeu a ocupação de um teatro da periferia de São Paulo, o Teatro Flavio Império, no bairro do Cangaíba, lugar que, na época, era desconhecido até pela vizinhança.
A vontade de ver o novo, de obter algo que unisse o prazer estético com a reflexão, que olhasse o cotidiano de forma crítica crescia Eles começaram um trabalho lento, convidando os moradores do entorno para conhecer o teatro e para assistir aos espetáculos. Devagar estas pessoas começaram a adquirir o hábito de assistir as peças que em nada pareciam com o que eles assistiam nos programas televisivos. Com o tempo, o número de pessoas interessadas cresceu, chegando a ter temporadas com lotação máxima. Esse trabalho só foi possível pelo apoio da Prefeitura. O curioso é que ele foi extinto pela mesma Prefeitura, quando a atual gestão quis priorizar o que chamamos de “teatro produto”. Márcio Boaro é diretor de teatro e integrante da Cia. Ocamorana de Pesquisas Teatrais
Neste mês de agosto, as comunidades de base e grupos cristãos populares choraram a partida definitiva de mais um dos queridos pastores e profetas que, por várias décadas, animaram e apoiaram a caminhada de libertação do povo oprimido. No dia 12 de agosto, em João Pessoa, faleceu dom Antônio Fragoso, bispo emérito de Crateús, no sertão do Ceará, e missionário popular em todo o Nordeste. Dom Antônio Fragoso tornou-se bispo de Crateús, justamente, quando o Brasil era tomado pela ditadura militar de 1964. Junto com dom Helder, ele foi um dos pouquíssimos bispos católicos que, desde o início, criticou o golpe militar e defendeu os direitos humanos. Na época, dom Helder era o bispo católico mais conhecido em todo o mundo e dom Fragoso era apenas um nordestino pobre que, como bispo, se colocava como servidor dos mais pobres. Os dois foram amigos e aliados inseparáveis. Conheci dom Fragoso na década de 60, em um encontro de lavradores em Olinda. Do sertão da Paraíba tinha vindo um carro com quatro lavradores. Ainda no sertão, na solidão de uma estrada imensa e vazia, o carro enguiçou. Os lavradores não conseguiam consertar a máquina e prosseguir a viagem. Foi quando parou outro veículo e desceu um companheiro e se dispôs a ajudá-los. Tirou a camisa, meteu-se debaixo do carro, sujou-se todo de óleo e poeira e entregou aos homens o carro em condições de prosseguir a viagem. Eles agradeceram e foram reencontrá-lo no encontro da pastoral. Nunca podiam imaginar que aquele homem tão simples e diante do qual eles falaram palavrões fosse o bispo dom Fragoso, que riu e explicou ser um companheiro comum em quem podiam confiar. O mundo atual, ferido por tantas violências e injustiças estruturais, assim como as religiões, permanentemente tentadas a viver em função de suas estruturas internas, precisam, mais do que nunca, do testemunho e da ação de profetas que ajudem as pessoas a retomar o rumo dos nossos sonhos mais coerentes e a devolver um coração a tantos projetos perdidos, agredidos ou, ao menos, desperdiçados. Agosto já nos levou o Hebert de Souza, Betinho (9 de agosto de 1997), dom Helder (27 de agosto de 1999), e agora dom Fragoso. Esses três profetas aqui citados tiveram em comum a opção de consagrar sua vida e todas as suas forças ao serviço dos pobres e da caminhada de libertação. Dom Fragoso, dom Helder e Betinho insistiam que os cristãos deveriam ter uma ação política transformadora da sociedade. Afirmavam que a democracia não é um modelo ou estrutura acabada. É algo que deve ser permanentemente aprimorado e aprofundado. Imagino no céu o encontro desses três companheiros gozando conosco que vivemos este tempo de alianças políticas espúrias e campanha eleitoral sem graça. Todos eles se pronunciariam contra a desesperança e a tendência do voto nulo. Certamente, no céu, estão vendo como nos devolver o humor e a esperança. Imagino dom Helder, cujo sétimo aniversário de falecimento recordaremos dia 27, nos dizendo com ironia: “Tenho carinho especial com as pessoas muito lógicas, muito práticas, muito realistas, que se irritam com quem crê no cavalinho azul”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais está no prelo o mais recente: Dom Helder, Profeta para o nosso Tempo, Ed. Rede da Paz, 2006
CARTAS DOS LEITORES DÍVIDA EXTERNA Se recordar é viver, acho que não vivo, pois não recordo de onde vem o contrato da dívida pública (que sem dúvida alguma beneficiou alguns particulares). Muito interessante a reportagem “Os pobres pagam a conta dos juros”, da edição 179 do Brasil de Fato (3 a 9 de agosto de 2006). Nós – classe trabalhadora – pagamos uma dívida que nunca trouxe nenhum benefício para nós. Isto sim é um assalto: pagar R$ 1.136 bilhões em 2005 com essa dívida, enquanto apenas R$ 16 bilhões foram investidos na educação. Parar de pagar essa dívida não é questão de “honrar os compromissos”. É questão de declarar nossa independência (1822?) e sermos protagonistas de nossa história. Romario de Assis Hipólito Barros Por correio eletrônico LUTA ESTUDANTIL Sou estudante da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Estudantes que ocupavam a reitoria da UEL por três dias foram expulsos dia 18, por um oficial de Justiça que portava um mandato de desocupação da reitoria. Foram chamados até policias militares para o cumprimento do madato, e os alunos estão proibidos de se manifestarem dentro de qualquer sala dessa instituição. Os estudantes reivindicavam melhores condições de “acesso e pemanência” de estudantes de baixa renda na universidade. Agora os estudantes estão acampados em frente à biblioteca central da UEL, dia
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Cassacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
e noite, por tempo indeterminado, ou melhor, até as suas reividicações serem alcançadas. Gostaria que o Brasil de Fato apurasse estas informações e mandassem uma reportegem para fazer uma materia sobre este assunto, ou diponibiliza-se um espaço para nós estudantes. Rafael Cícero Por correio eletrônico PREVIDÊNCIA SOCIAL Das inúmeras fraudes que ocorreram e continuam ocorrendo contra o patrimônio do sistema previdenciário brasileiro, a imprensa tem tratado apenas de uma das menores, senão a menor. É a que trata dos que buscam aposentar precocemente de forma fraudulenta, com pouca ou nenhuma contribuição, através do auxílio-doença ou de outros artifícios só possíveis com a conivência do funcionário corrupto. Raramente falam dos maiores golpes contra a Previdência Social. Em especial – sem falar nos praticados pelo próprio governo – deixam de lado as grandes quadrilhas como, por exemplo, a comandada pelo argentino César Arrieta que, apesar de condenado pela Justiça, continua livre graças a uma generosa folha de pagamento que mantém membros do Executivo e do próprio Judiciário como beneficiários de altos proventos mensais. Assim, acho incorreto que a imprensa ataque apenas as pequenas fraudes, as dos milhões, deixando de lado as dos bilhões, todas de fácil comprovação. João C. da L. Gomes Porto Alegre (RS) Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
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NACIONAL LUTA PELA TERRA
Assassinato de dois trabalhadores e prisão de dirigente do MST ilustram a criminalização da luta pela reforma agrária
João Zinclar
Criminalização e violência em Pernambuco Mariana Martins do Recife (PE)
U
m dia após o covarde assassinato de duas lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Jaime Amorim, coordenador nacional do MST, foi preso pela Polícia Militar quando voltava do velório de uma das vítimas, no município de Itaquitinga (PE), a 82 quilômetros do Recife. Amorim é acusado pelo Ministério Público Estadual (MPE) de “mau comportamento” em um protesto de repúdio à visita do presidente estadunidense George W. Bush ao Brasil, dia 5 de novembro de 2005. O mandado de prisão foi expedido pelo juiz Joaquim Pereira Lafayette Neto dia 4 de julho, com a alegação de que Amorim não tinha residência fixa e sua liberdade representava uma ameaça à ordem pública e à aplicação da lei penal. Porém, o que aconteceu foi que o MPE não informou o endereço de Amorim no processo. Assim, o juiz determinou que ele fosse citado por edital para comparecer à primeira audiência. Segundo os advogados que acompanham o caso, a citação foi feita de forma indevida. Amorim não tomou conhecimento da audiência, portanto não compareceu. “É estranho o processo ter corrido à revelia do réu. Jaime é uma pessoa pública, não precisava ser citado por edital. Ele tem endereço fixo (mora há anos com a família, em Caruaru). Assim como conseguiram localizá-lo para prender, o localizariam para citar, se fosse de interesse”, denuncia Marcelo Santa Cruz, do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Trabalhadores rurais sem-terra repudiam os crimes cometidos pelo latifúndio e a conivência do Judiciário, na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em 2005
No dia 22, o desembargador relator do caso, Gustavo Augusto Lima, negou o pedido de habeas corpus e solicitou mais informações. Até o fechamento desta edição, Amorim permanecia detido.
ASSASSINATO No dia 20, Josias de Barros Ferreira, de 28 anos, e Samuel Matias Barbosa, de 33, foram covardemente assassinados no acampamento Balança, às margens da BR232, no município de Moreno (PE), a 28 quilômetros do Recife. Cícero Soares de Melo, Luiz Nanai e um adolescente de 16 anos, que não fez disparos e foi identificado como filho de Cícero, são os principais suspeitos. Eles moravam no acampamento, mas eram vistos pelas famílias do Balança como infiltrados, a serviço de um político da região, com o objetivo de convencer as famílias a receber indenização pela desocupação da área. No acampamento Balança vivem, desde 2000, 59 famílias ligadas ao MST. Em janeiro, a empresa Copergás iniciou as negociações para a desocupação, com o intuito
de construir um gasoduto. O MST colocou como condição para a saída a acomodação das famílias em outro lugar, até a criação de um assentamento. “Entendemos que a obra é importante para o Estado de Pernambuco e estamos dispostos a desocupar, mas não podemos aceitar dinheiro. É contra os princípios do movimento”, explica Joba Alves, da coordenação estadual do MST-PE. Ferreira e Barbosa, que eram integrantes da direção estadual do MST, foram ao acampamento fazer uma assembléia com as famílias. Um pequeno grupo liderados por Cícero estava pressionando para que as pessoas recebessem as indenizações sem as garantias da reforma agrária. Na assembléia, realizada na noite do dia 19, foi deliberado pela maioria que não se aceitaria a indenização proposta e que continuaria a luta pelo assentamento. Na manhã do dia 20, de acordo com testemunhas, Josias e Samuel estavam no acampamento quando Cícero Soares, Luiz Nani e o adolescente chegaram ao
acampamento. Cícero mandou que fosse retirada a bandeira do MST do local para ele colocar uma dos sem-teto no lugar. Josias disse que a bandeira só seria retirada por cima do seu cadáver. Ao dar as costas, o agricultor foi alvejado. Samuel tentou socorrer o amigo e também foi baleado nas costas. Josias morreu na hora. Samuel foi socorrido com vida e levado ao Hospital da Restauração, mas não resistiu. Mesmo depois de alvejar os dois com tiros,
O fato descontextualizado criminaliza a luta pela terra Luís Brasilino da Redação “Líder do MST é preso.” Escrita em letras garrafais, essa foi a principal notícia do Jornal do Commercio do dia 22. Também na capa, o jornal O Estado de S. Paulo disparou: “Líder do MST é preso por ‘incitação ao crime’”. As bandeiras e reivindicações do movimento social são tiradas do contexto e o que fica é apenas a contravenção, o crime. Ao não investigar as causas da violência, a grande imprensa termina por incitá-la. Para dom Tomás Balduíno, presidente de honra da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a violência contra os trabalhadores sem-terra é conseqüência de um longo processo de transformação do movimento social em caso de polícia: “Isso atinge diretamente o pessoal mais organizado e, de forma seletiva, suas lideranças”.
DESERTO VERDE
REFORMA AGRÁRIA A Justiça também tem sua parcela de culpa. Balduíno acredita que a criminalização do movimento social contamina o Poder Judiciário, sempre conivente com o poder econômico ligado ao latifúndio. “Temos visto a impunidade dos verdadeiros criminosos, os mandantes e autores dos assassinatos, ao passo que a mínima suspeita contra algum sem-terra resulta nisso que estamos vendo”, lamenta dom Tomás.
A monocultura extensiva de eucalipto está devastando a natureza do Brasil
de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), lembrou que a maior arma de resistência das espécies ao longo da história tem sido a diversidade. As plantações de eucalipto, com uso de mudas clonadas, acabam com a diversidade de fauna, flora e até de hábitos de vida humana: “As pessoas são diferentes porque vivem em ambientes diferentes, que exigem modos de vida específicos. Se padronizamos a paisagem, vamos padronizando também a cultura das pessoas”. “A expansão da monocultura de eucalipto é inconstitucional”, afirmou no seminário o procurador do Ministério Público Federal Domingos Silveira. Segundo ele, a Constituição Federal deixa claro que a terra não pertence aos proprietários e sim à sociedade – tanto que a propriedade só é assegurada se a terra cumprir função social e para isso é
fundamental a “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente”. O procurador destacou que o Ministério Público Federal vai pressionar para suspender linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a silvicultura, e vai cobrar posicionamento do Conselho de Defesa Nacional – uma vez que empresas estrangeiras estão adquirindo terras em áreas de fronteira, como é o caso da Stora Enzo. Uma preocupação enfatizada por Silveira é de que a mídia construiu no imaginário social a idéia de que tudo que é verde representa a vida. Por isso, não é fácil convencer a sociedade de que o verde da monocultura de eucalipto provoca a morte da fauna e da flora, é tão prejudicial ao ambiente e à população quanto os desmatamentos.
Por trás desses conflitos, está a alta concentração fundiária do Brasil. Para dom Tomás, a reforma agrária criaria uma nova estrutura no campo, incorporando o povo da terra na condição de cidadãos plenos. “Infelizmente, dentro do governo (Luiz Inácio) Lula (da Silva) sentimos ter perdido a batalha para o agronegócio”, constata. Para ele, o país está retrocedendo aos tempos de colônia e se tornando uma província exportadora de produtos da monocultura. “No grão, mandamos para fora nosso humus, nossa água, nossa soberania e nossa dignidade. É a entrega do nosso patrimônio a título de garantir superávit, lucro concentrado nas mãos de poucos. Enquanto isso o povo empobrece, o pessoal vai morrendo no corte da cana, de cãibras, de trabalho forçado, competindo com máquinas cada vez mais fortes”, descreve o religioso. O geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor aposentado da Universidade de São Paulo, explica que a reforma agrária não avança por determinação política do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Prova disso está no cadastro de propriedades rurais do Incra, onde Umbelino identificou 120 milhões de hectares de terra em grandes imóveis improdutivos. Numa área como essa, seria possível assentar cerca de três milhões de famílias.
Arquivo Brasil de Fato
De um lado, troncos de eucalipto, representando o deserto verde. Do outro, alimentos e flores, simbolizando a agricultura camponesa. No centro, uma intrigante questão: que futuro você prefere? Este foi o cenário de abertura do seminário “Os impactos da monocultura de eucalipto na vida dos povos”, realizado dia 16 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. O evento reuniu no mesmo espaço professores, donas de casa, ecologistas, metalúrgicos, trabalhadores das indústrias de calçados e alimentação, intelectuais, quilombolas, camponeses, feministas, estudantes. “Participaram 1.300 pessoas preocupadas com o enorme crescimento da monocultura de eucalipto destinada à produção de celulose”, avaliou Cláudia Prates, da Marcha Mundial de Mulheres, uma das organizações promotoras do evento. A geógrafa Dirce Suertegaray, professora da UFRGS, destacou que é enganosa a propaganda que governos e empresas fazem de que a monocultura de eucalipto é uma boa alternativa para gerar desenvolvimento econômico de forma ambientalmente sustentável. Segundo a pesquisadora, quem se beneficia com essa produção são apenas as empresas; para a sociedade, agravam-se problemas como concentração de terras, êxodo rural e destruição ambiental. Francisco Milanez, biólogo e conselheiro da Associação Gaúcha
Douglas Mansur/Novo Movimento
Eucalipto não gera desenvolvimento Christiane Campos de Porto Alegre (RS)
os assassinos ainda deram chutes, machadadas e mutilaram parte do corpo de Samuel, enquanto ele ainda estava vivo. Para o reverendo Marcos Cosmo, do MTST, que foi citado pela imprensa local como sendo o movimento ao qual o Cícero estaria ligado, essa não é uma briga entre semterra ou entre sem-terra e sem-teto: “Essas pessoas não pertenciam ao MTST. Não existe nem nunca existiu conflito entre nós e o MST”.
Violência contra os sem-terra é conseqüência de criminalização do movimento
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NACIONAL TRABALHO
O discurso vazio da redistribuição
Hamilton Octavio de Souza
Economista do Ipea desmente propaganda de que desigualdades sociais estão sendo reduzidas
Lucro financeiro A não ser o tráfico de drogas e o contrabando de armas, nada é mais lucrativo no Brasil do que o sistema bancário. No último ano, os bancos que operam no país alcançaram a rentabilidade média de 24,7% de lucro em relação ao patrimônio. Nenhuma outra atividade econômica consegue tanto. Graças, é claro, à excelente atuação do Banco Central, a mãe dos bancos privados. Tática eleitoral Questionado pela imprensa sobre a sua propaganda eleitoral sem a estrela e a identificação do PT, o candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu a seguinte explicação: “Isso é uma bobagem. Primeiro porque todo mundo sabe que sou do PT e todo mundo sabe que o PT tem a bandeira vermelha, tem a estrela”. Se é mesmo bobagem, não custa nada usar os símbolos partidários. Carreira promissora Em 1988, professores do ensino fundamental público do Maranhão denunciaram um deputado estadual que praticava extorsão para arrumar vaga nas escolas do interior. O tal deputado cobrava metade do salário de cada professor para mantê-los no emprego. O ex-deputado é agora o presidente do Conselho de Ética do Senado, senador João Alberto, do PMDB do Maranhão. Incoerência política Palco de lutas históricas em defesa do patrimônio nacional, das empresas estatais e da democracia, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) negou recentemente o seu auditório para a realização de ato da campanha pela anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, vendida de forma fraudulenta no governo FHC. Com a palavra o presidente da entidade, jornalista Maurício Azêdo. Números fatais O ufanismo expresso na publicidade oficial nem sempre combina com a real situação econômica e social do país. A queda no ritmo da produção industrial afeta diretamente a taxa de crescimento prevista para 2006, antes de 4% e agora de 3,5%. Na ponta do consumo, a inadimplência de julho aumentou quase 90% em relação ao mesmo período do ano passado. Por que o dinheiro está curto? Heroísmo audiovisual A TV Al-Manar, do movimento Hezbollah, foi um dos alvos preferenciais dos ataques de Israel no Líbano, mas a emissora não saiu do ar em nenhum momento. Os mísseis e as bombas destruíram uma das antenas e um dos prédios ocupados pela TV, e chegaram a atingir alguns jornalistas e técnicos. Mas nem assim a programação foi interrompida. Um exemplo do verdadeiro esforço jornalístico. Ameaça automotiva – 1 A empresa alemã Volkswagen ameaça fechar a fábrica de veículos de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, se não chegar a um acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos sobre a demissão de 3,6 mil trabalhadores. Atualmente a transnacional tem 12 mil funcionários naquela unidade, mas já teve mais de 40 mil, na década de 1980. O sindicato e o governo Lula estão com a faca no pescoço. Ameaça automotiva – 2 A chantagem da Volks é forte, especialmente porque o presidente da República e o ministro do Trabalho fizeram carreira sindical e política naquela base metalúrgica. É óbvio que a empresa está atrás de mais regalias, inclusive isenção de impostos (IPTU, IPI, ICMS etc.). A ameaça também contradiz o ufanismo oficial em relação a exportações, crescimento industrial e geração de empregos. Algo não está batendo! Decisão questionada O Ministério Público Federal de Minas Gerais entrou com ação civil pública para anular o decreto do presidente Lula que aprovou a implantação do modelo japonês de TV digital no Brasil. A medida aponta várias ilegalidades e irregularidades, entre elas a de que a opção presidencial usa um decodificador no aparelho de TV mais caro para o consumidor. O assunto promete render.
Tatiana Merlino da Redação
B
asta ligar a televisão ou o rádio no horário eleitoral para ouvir a cantilena de que nunca a distribuição de renda no Brasil foi tão efetiva como nesses últimos três anos. E tal feito seria um reflexo direto das políticas aplicadas pelo governo Lula, como o Bolsa-Família. Mas como isso pode ter ocorrido se o presidente petista optou por manter a mesma política neoliberal de seu antecessor tucano, Fernando Henrique Cardoso, combatida justamente por concentrar a riqueza no país? Para o economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Guilherme Delgado, a ilusão de que há redução das desigualdades sociais foi criada a partir de uma análise descontextualizada da realidade. Para ele, o governo Lula tem feito uma política “de caviar” para os ricos e de migalhas para os pobres. “O tamanho do caviar dos ricos aumentou, assim como aumentaram também as migalhas dos pobres”, afirmou.
DADOS ENGANOSOS A análise do pesquisador do Ipea parte da desconstrução de uma das bandeiras eleitorais do presidente Lula. O Planalto justifica que a desigualdade caiu usando como argumento a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse levantamento, feito em 2004, constatou que o brasileiro teve, em média, uma melhora de 3,6% na renda familiar, enquanto os 10% mais pobres ganharam 14,1% mais em comparação a 2003. Delgado explica que essa informação deve ser analisada com cautela. Segundo ele, a pesquisa do IBGE contabiliza, basicamente, “rendimentos do trabalho” e “rendimentos provenientes da seguridade social”. Somadas, essas duas fatias da composição da riqueza nacional equivalem a apenas um terço de toda a renda interna gerada no Brasil. “Quando não se esclarece isso, omite-se o destino e o perfil dos restantes dois terços da renda social que não vão às famílias”, escreveu
Douglas Mansur
Fatos em foco
Renda do trabalho perdeu força na composição das receitas familiares por conta de modelo econômico neoliberal do país
em artigo o economista. Ou seja, é verdade que as famílias receberam mais; no entanto, esconde-se que quem não vive do trabalho também recebeu uma renda maior. Outro dado interessante é que o rendimento familiar correspondeu a apenas 31% de toda a renda interna bruta em 2003. Em 1999, o percentual era de 34% – ou seja, havia maior participação do trabalhador na riqueza total produzida no país. “O resto da renda social que não vai às famílias é gerado nas empresas financeiras ou de administração pública”, afirma o economista, ressaltando que a atual política econômica promove a concentração das rendas provenientes dos juros e dos lucros em detrimento dos rendimentos dos salários e ordenados. Não é à toa que os números divulgados pelos bancos no primei-
ro semestre de 2006 mostram, por exemplo, um crescimento de 80,5% nos lucros.
NÚMEROS POSITIVOS O economista do Ipea, no entanto, não questiona a melhora que houve no rendimento familiar, constatada pela PNAD. Delgado alerta apenas para a composição dessa renda para explicar o motivo pelo qual isso ocorreu. De acordo com ele, o que os números mostram são duas tendências: a de queda dos rendimentos “do trabalho” e de alta dos “oriundos da seguridade social”, como o pagamento de pensões e aposentadorias (veja quadro abaixo). De 1991 a 2003, por conta do modelo econômico neoliberal implementado no país, a renda do trabalho perdeu força na composição
Renda Pessoal – Domiciliar Evolução segundo fontes principais
Fontes de Renda
1991
2000
2003
Renda Familiar Total
100,00
100,00
100,00
Renda do Trabalho (%)
85,37
78,0
73,8
Renda da Seguridade (%)
10,2
16,0
22,4
Outras Fontes de Renda (%)
4,5
6,0
3,8
Fonte: Censo Demográfico - 1991 e 2000 e PNAD 2003
das receitas familiares, reduzindo sua participação de 85,3% para 73,8%. Já um movimento contrário foi verificado pelos rendimentos da seguridade social, cujos reajustes acompanham o salário mínimo. Essa renda subiu sua participação de 10,2% para 22,4% no mesmo período. Mas o que isso mostra? Que a melhora na renda familiar não partiu de políticas redistributivas ou de um modelo de crescimento econômico igualitário. Em vez disso, os dados da própria PNAD mostram que a renda familiar melhorou em decorrência da manutenção do pagamento de pensões e aposentadorias, direitos dos cidadãos conquistados na Constituição de 1988. “Os rendimentos da assistência social e da previdência compensaram a redução da renda do trabalho”, resume Delgado. Segundo ele, um dos erros do discurso eleitoreiro é concluir que a desigualdade está diminuindo em decorrência da ação política do governo Lula, em especial do Programa Bolsa-Família. Delgado afirma que o programa tem sua importância, “mas os dados comprovam que ele não foi responsável pela melhora do perfil da renda pessoal”. E cita um dado para comprovar isso: em 2005, os pagamentos do Bolsa-Família “corresponderam a um vigésimo dos pagamentos efetuados pelo INSS”.
POLÍTICA INDIGENISTA
Orçamento cresce, demarcações diminui Priscila D. Carvalho de Brasília (DF) Uma análise das ações específicas para os povos indígenas no orçamento brasileiro, entre os anos 2000 e 2005, conclui que aumentaram as aplicações da administração pública estatal, mas diminuíram os recursos destinados à regularização fundiária e à proteção dos territórios indígenas. Esse tipo de investimento é “estratégico para a sustentabilidade social e econômica desses povos”, na opinião do autor da análise, o pesquisador Ricardo Verdum, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Em valores reais, isto é, atualizados pela inflação, o orçamento indigenista cresceu 138%. Foi de R$ 144,7 milhões, em 2000, para R$ 345,4 milhões, em 2005. O período avaliado engloba os últimos três anos do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os três primeiros anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ao longo dos seis anos, a pesquisa constata que as políticas indigenistas foram distribuídas por diversos ministérios, o que resultou na “fragmentação e na falta de coordenação das ações”. A análise aponta também que a participação
indígena na gestão das políticas públicas não passou das intenções. “Falta uma instância que articule políticas, que dê diretrizes gerais. Esta é a idéia de propostas como a da criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. E falta incluir indígenas na formulação de programas, definir se teremos uma reedição da velha política integracionista, agora aliada a um discurso de inclusão social, ou se é algo novo, voltado para a autonomia das comunidades de definir políticas voltadas para elas”, afirmou Verdum em entrevista ao jornal Porantim, publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Contrapondo-se ao aumento dos gastos totais, o estudo constata a diminuição do gasto com demarcação de terras indígenas desde 2002. O maior investimento ocorreu em 2001, quando foram gastos R$ 67,1 milhões, 151% a mais do que no ano anterior. Daí para a frente, os valores caíram de R$ 53,3 milhões, em 2002, para R$ 42,49 milhões em 2005. No orçamento de 2006, essa tendência se mantém, pois estão previstos R$ 42 milhões para o mesmo conjunto de ações. Do total de investimentos, que soma cerca de R$ 1,5 bilhão, 64,5% (cerca de R$ 1 bilhão) foram gastos
com ações de prevenção, controle e recuperação da saúde indígena, de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em relação à saúde, a análise da aplicação do orçamento termina com questionamentos: “Considerando as constantes invasões indígenas às sedes da Funasa nos Estados; as denúncias de uso político da máquina administrativa e de desvio de recursos; as greves de funcionários; os problemas de relacionamento envolvendo técnicos contratados e indígenas; a persistência de situações graves de saúde, como os casos dos Guarani e dos Xavante, e o agravamento dos problemas de saúde entre os Yanomami, se faz urgente avaliar o que está gerando tudo isso, apesar do aumento dos recursos financeiros alocados no orçamento”.
CRÉDITO E APOIO TÉCNICO O estudo indica, nos últimos seis anos, que aumentaram os gastos com suporte a projetos de geração de alternativas econômicas para a população indígena, mas avalia que os resultados práticos ainda estão “aquém das expectativas”. “No Ministério do Meio Ambiente, os Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI) ficaram pratica-
mente parados ao longo dos três primeiros anos do governo Lula, em meio à crise que decorre da falta de definição sobre seu destino político e administrativo, da burocratização do processo orçamentário interno do ministério e da perda de prestígio junto ao movimento indígena da Amazônia. O projeto Carteira Indígena, que conta com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social para apoiar pequenos projetos de organizações indígenas, também sofreu cortes de recursos e vem tendo dificuldades de superar a ainda incipiente capacidade de monitorar e assessorar os projetos apoiados”, diz Verdum na análise publicada pelo Inesc. Funcionando desde 2001, o PDPI duraria até 2006, mas será prorrogado para permitir que a verba do projeto que ainda não foi aplicada – quase dois terços do total – possa ser utilizada. Ainda restam R$ 24 milhões para aplicação em projetos. Entre as mudanças ocorridas durante o governo Lula, Ricardo Verdum avaliou como positiva a expansão das ações do Ministério do Meio Ambiente para além da região amazônica e o aumento da atuação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
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De 24 a 30 de agosto de 2006
MILITARIZAÇÃO
EUA e Colômbia unidos contra a resistência
Susana Perez Diaz/ECHO
AMÉRICA LATINA
Comunidades camponesas e indígenas são alvo de violações em estratégia que visa dominação econômica imperialista tráfico, é um fracasso. Só no caso da Colômbia, nos últimos cinco anos, a quantidade de hectares cultivados de coca passou de 300 mil para 600 mil. Na verdade, o Plano Colômbia é uma estratégia de controle militar da região, sob a desculpa da luta contra o narcotráfico. Na Colômbia, estamos em um estágio superior do Plano Colômbia, o Plano Patriota, fundamentalmente um exercício militar. Começou em 2003, no sul do país, dedicado, nos dizem, a combater, exterminar e derrotar militarmente a insurgência das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). No entanto, dois anos depois, no fim da primeira fase, a capacidade de fogo das Farc continua incólume. Os principais resultados foram a prisão, no Equador, de um dirigente do secretariado, Simón Trinidad (em 2003), e a detenção, também ilegal, na Venezuela, de um porta-voz internacional, Rodrigo Granda (em 2005). Ou seja, os principais resultados contra as Farc estão sendo obtidos por meios ilegais, em associação com policias locais corruptos e com participação da CIA (agência estadunidense de inteligência). Não correspondem à eficácia dos exércitos colombiano e estadunidense na Colômbia. Estamos tendo indícios de que se inicia uma nova fase do Plano Colômbia, para além do sul. Seria implementada no centro, com maior aporte técnico, para operações apoiadas por inteligência via satélite dos EUA, e com a idéia de capturar pessoas como troféus de guerra, no nível do secretariado das Farc. Isso vai ser acompanhado por um exercício sistemático de violação de direitos, de agressão contra as comunidades camponesas e indígenas – supostamente a base social da insurgência. Sabemos que essas pessoas são apresentadas como terroristas, que terão de comprovar sua inocência. Não é a Justiça que deve demonstrar que são culpados. Inverte-se o ônus da prova.
Igor Ojeda de Assunção (Paraguai)
S
empre sob o pretexto do combate ao terrorismo e ao narcotráfico, os Estados Unidos lançam mão da Colômbia para consolidar sua estratégia militar para a América Latina. Usam o presidente Álvaro Uribe e o antigo Plano Colômbia – depois rebatizado Iniciativa Regional Andina e, após 11 de setembro de 2001, renomeado Plano Patriota – para atingir objetivos claros: reprimir qualquer resistência ao modelo econômico vigente e manter o controle sobre a região amazônica. Agem em benefício de seus oligopólios, lembra Fabio Serna, defensor de direitos humanos na Colômbia e um dos integrantes da Visita de Observação Internacional que entre os dias 16 e 20 de julho esteve no Paraguai com a missão de recolher informações sobre a presença de tropas estadunidenses no país e a relação destas com as denúncias de violações de direitos humanos de camponeses por parte dos militares paraguaios (leia reportagens nas edições 178 e 179 do Brasil de Fato). Serna fala sobre as violações aos direitos humanos resultantes da militarização e sobre a relação íntima do presidente Álvaro Uribe com grupos paramilitares de ultradireita, mas se mostra esperançoso em relação ao futuro de seu país, que há muito tempo segue a cartilha neoliberal de Washington: “Apesar de toda a repressão que está sendo implementada, dos assassinatos sistemáticos de milhares de pessoas, hoje há numerosas expressões sociais de resistência”. Brasil de Fato – Qual a relação entre o plano dos Estados Unidos no Paraguai e o Plano Colômbia? Fabio Serna – Existe o Plano Puebla-Panamá, que está sendo implementado desde a fronteira do México com os EUA até a fronteira do Panamá com a Colômbia. Há o Plano Colômbia, que estigmatizou as relações com a região andina a partir do narcotráfico. E agora temos o Paraguai, como a consolidação de um eixo Colômbia-Paraguai na ponta-de-lança da política militar estadunidense e da política exterior dos EUA para a América do Sul. Vê-se a conformação de uma teia militar de controle absoluto dos EUA em função das necessidades de seus oligopólios, de suas transnacionais, porque sequer é algo que o governo estadunidense explore comercialmente. São os oligopólios que financiam o governo estadunidense os que usufruem de tudo o que existe nesses países.
diplomático. Seu trabalho é assessorar as Forças Armadas da Colômbia contra insurgentes. Mas há várias décadas se sabe da presença secreta de todas as agências de segurança estadunidense. Estamos falando da CIA, da DEA (agência anti-drogas), do FBI (polícia federal estadunidense), que realizam trabalhos encobertos, monitoram a vida colombiana. Quando precisam, eles consultam a base de informação sobre a pessoa que querem pressionar. Nas principais capitais, a idéia é os militares ajudarem a controlar os movimentos urbanos de apoio à insurgência.
Pela primeira vez na história colombiana, um movimento de esquerda se converte na segunda força política BF – Além da guerrilha e dos movimentos sociais, outros grupos de esquerda sofrem criminalização? Serna – A Colômbia foi cenário, de 1986 a 1995, de um genocídio contra a União Patriótica, um grupo político que surgiu no marco dos acordos entre as Farc e o governo de Belisario Betancourt com o propósito de criar condições para a desmobilização da guerrilha e para a participação das Farc na política institucional. Nas primeiras eleições presidenciais de que participaram, com a candidatura de Jaime Pardo Leal, depois assassinado, conseguiram a votação mais alta – 350 mil votos, 10% do total – de um partido que não os dois tradicionais, Liberal e Conservador. No entanto, em poucos anos ficou claro que a ultradireita, a direita militarista e os setores retrógrados do Exército não estavam dispostos ao que se qualificou como uma abertura política. A União Patriótica foi literalmente exterminada, em um genocídio de mais de 3.500 militantes, incluindo dois candidatos presidenciais, vários congressistas, centenas de consejales (equivalente a vereadores), numerosos prefeitos. Agora mesmo estamos numa conjuntura política por um lado muito interessante, pois, pela primeira vez na história política
ECHO/Karin Michotte
BF – Em que pé está o Plano Colômbia, hoje Plano Patriota? Serna – O Plano Colômbia foi apresentado como uma estratégia de luta contra o narcotráfico. Está sendo implementado na Colômbia, principalmente, no Equador, no Peru e na Bolívia, sendo chamado de Iniciativa Regional Andina. Tem dois componentes: um militar, de luta contra o narcotráfico, para promover a erradicação de cultivos de coca e de amapola. E outro social, com o desenvolvimento social e econômico das comunidades necessariamente afetadas pelo plano. Como estratégia contra o narco-
BF – Sabe-se qual o contingente de soldados estadunidenses na Colômbia? Serna – Oficialmente, a autorização é para a presença de 600 a 800 militares, oficiais de treinamento que estão realizando trabalhos por todo o país, fundamentalmente de treinamento das forças militares. A eles se agregam uns 600 mercenários que vêm de transnacionais da morte como DynCorp, filial da Halliburton, empresa da qual Dick Chenney, vicepresidente dos EUA, é acionista. Esses mercenários têm passaporte
Violência na Colômbia é responsável por enorme quantidade de refugiados, que já ultrapassou 3 milhões desde 1985
Inúmeros refugiados não têm acesso à água e saneamento básico
colombiana, um movimento de esquerda, o Pólo Democrático, se converte na segunda força política. Ao mesmo tempo, revive-se as preocupações com o que foi o genocídio contra a União Patriótica. Antes de sair da Colômbia (meados de julho), tínhamos informações muito fidedignas sobre ameaças a integrantes e dirigentes do Pólo Democrático. BF – Quais as conseqüências do Plano Colômbia para a população colombiana? Serna – Um processo gravíssimo de polarização, que resulta na divisão da população, na sustentação ideológica da violência. É perverso o manejo das comunidades camponesas, negras e indígenas por meio de subsídios para que organizem os informantes, as redes de inteligência civis a serviço dos corpos militares. Isso se traduz em desconfiança e temor generalizados, em imobilidade. Claro, há também a devastação dos campos colombianos com as fumegações, que acabam com os cultivos, afetam os animais, mas que principalmente causam danos à população. BF – Como os grupos paramilitares se situam nesse contexto? Serna – A estratégia paramilitar começou a ser desenhada em 1962, a partir de uma visita que o general do Comando Sul, William Yarborough, fez a meu país, quando deixou um memorando secreto recomendando a criação de estruturas paramilitares que contribuíssem para conter a ameaça do inimigo comunista. Hoje, os paramilitares, pelo que parece, têm vida própria. São basicamente o eixo escuro da política militar de guerra suja. No final de 2005, foi aprovada uma lei de indulto, de perdão generalizado, chamada de Lei de Justiça e Paz, que prevê penas para delitos atrozes, de lesa humanidade (massacres, desaparecimentos forçados, assassinatos extrajudiciais), de até oito anos, em lugares especiais, como os sítios dos próprios condenados, colônias de férias etc. Ou seja, não vão para a cadeia e a lei tampouco os obriga a devolver os bens furtados. Estamos falando de pelo menos 4 milhões de hectares tomados dos camponeses. Esse novo momento, que vai permitir que os paramilitares tenham representação no Congresso, atuem economicamente com riquezas acumuladas pelo narcotráfico e pela exploração e furto das comunidades, vai convertê-los em atores legalizados da política econômica e da dinâmica do país. BF – Qual a relação entre o presidente Álvaro Uribe e os paramilitares? Serna – É muito curioso que as fazendas do presidente estejam localizadas no coração do domínio dos paramilitares. Depois disseram que o presidente estava comprando terras em zonas de presença paramilitar porque são estratégicas na economia do país para o futuro. Também chama
atenção que em várias regiões do país fomos testemunhas de como as estruturas paramilitares fizeram campanha a favor do presidente, tanto na eleição de 2002 quanto na de 2006. Em parte, eles têm a certeza de que esse é um presidente que vai prover as garantias jurídicas, políticas e econômicas para poderem consolidar seu projeto de ultradireita, fascista, de controle total da população. BF – Isso pode explicar a fácil vitória de Uribe nas últimas eleições? Serna – Na verdade, não foi tão fácil. Foram gastos centenas de bilhões de dólares em propagandas, subsídios, corrupção. Essa reeleição foi muito custosa. Apenas 50% dos mais de 26 milhões de colombianos aptos a participar das eleições, em maio, compareceram às urnas. Desses 13 milhões, 7 milhões votaram em Uribe. Isso significa um apoio de somente 22%. O curioso é que os principais centros onde ele se saiu muito bem foram as comunidades populares urbanas. Isso tem a ver com a política da cenoura e do garrote. A política do garrote trata de prisões arbitrárias, massivas e invasões de domicílios. A da cenoura é a política de subsídios a setores específicos. Ou seja, o presidente esteve fazendo campanha pela reeleição durante quatro anos. Se somarmos quanto se gastou em todo esse exercício, veremos que foi economicamente muito custoso. Claro que, no roubo que está em curso no país, na entrega às transnacionais, na privatização do público, o lucro dos setores que investiram nessa campanha vai ser extraordinário. É importante notar também que, apesar de toda a repressão que está sendo implementada, apesar de toda a perseguição, de toda a estigmatização, dos assassinatos sistemáticos de milhares de pessoas, hoje há numerosas expressões sociais de resistência contra esse modelo. É importante ressaltar que a Colômbia não está vencida. Há colombianos exercendo seus direitos, mesmo com altíssimos custos de perseguição. Essa votação tão alta da esquerda, as expressões organizadas contra o Tratado de Livre-Comércio com os EUA, contra a política social contra a agressão às comunidades mostra que o consenso ao qual nos condenaram nesses últimos anos não conseguiu imobilizar as organizações sociais, destruir o tecido social. Há exemplos muito impactantes de comunidades de paz, de organizações de vítimas, que se convertem numa mensagem não somente para a Colômbia, mas para a humanidade.
Quem é
Defensor de direitos humanos na Colômbia, Fabio Serna é integrante do Movimento Continental de Cristãos pela Paz com Justiça e Dignidade. Participa de várias investigações sobre violações de direitos humanos em seu país.
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AMÉRICA LATINA CUBA
Na primeira semana em que Fidel Castro se afastou do governo, nenhuma convulsão, nenhum temor Elizabeth de Souza Lorenzotti de Havana (Cuba)
“E
sta noite milhões de crianças no mundo vão dormir nas ruas. Nenhuma delas é cubana”, diz um cartaz em Havana. Fosse só por isso, a revolução cubana já teria valido a pena. Mas sabemos que tem mais: a universalização da educação e da saúde, a memória sempre mantida viva, em qualquer lugar do país que se vá, a alegria nunca perdida, o ritmo, o talento musical, esportivo, científico. Tantas coisas incomuns em países da América Latina, passados 500 anos. Onze milhões de habitantes que levam uma vida difícil, mas há 47 anos são um exemplo da história de Davi contra Golias. A batalha mais recente, entre tantas lutas, foi o colapso da União Soviética. Em 1994, na grande crise, o povo praticamente não tinha o que comer, a não ser água com açúcar e mingau de ervilha. A abertura a algumas empresas e ao turismo foi a solução encontrada pelo país que sofre o indecente bloqueio estadunidense há quase 50 anos. Solução que trouxe problemas, como a diferenciação social, a prostituição, o câmbio negro. Mas não maiores dos que os que sentimos aqui, no Brasil.
TRANQÜILIDADE
condenados nos EUA porque defenderam Cuba de uma invasão aérea executada por exilados em Miami.
CRIATIVIDADE A história de Davi contra Golias tem sempre um novo e paciente capítulo. O mais recente é este. Numa esquina do Malecón, o murinho à beira-mar de sete quilômetros de extensão, existe o escritório de interesses dos EUA, desde o governo Jimmy Carter. Ficam lá e moram na ilha, em mansões, evitam circular. Em Washington, existe um escritório cubano, igualmente isolado. Próxima ao local, a Tribuna Antiimperialista Jose Marti é sede de atos políticos e shows. Ali também fica o “Monte das Bandeiras”: 138 bandeiras negras com a estrela branca içadas pelos cubanos em janeiro, em resposta a um letreiro luminoso gigantesco instalado no último andar do prédio, com mensagens de “liberdade” em que os estadunidenses atacam Cuba. Ali, na noite de 12 de agosto e madrugada de 13 – as bandeiras negras foram trocadas pelas bandeiras nacionais –, houve uma imensa “Cantata pela Pátria”, em homenagem ao aniversário de Fidel. Mais de cem artistas – cantores, músicos, atores – desfilaram para uma vasta platéia essencialmente jovem – esparramada pelo Malecón. Logo que se noticiou a doença de Fidel, jornalistas estrangeiros foram impedidos de entrar na ilha. Um deles, da Folha de S. Paulo, já depois disso, tentou fazêlo e foi despachado de volta. O jornal publicou enorme matéria denunciando o caso – e talvez tenham feito essa encenação toda de propósito. Existem mais de cem correspondentes da imprensa internacional em Havana, de todos os grandes jornais e agências do mundo, mas nenhum brasileiro. Aliás, os maiores jornais brasileiros hoje só têm correspondente em Washington... – de onde, aliás, costumam escrever sobre Cuba.
AGRESSÕES DO NORTE O único país pobre do mundo que acabou com a miséria e que há mais tempo resiste às agressões estadunidenses é este. E a não ser que os esquizofrênicos do Norte despejem suas bombas na ilha –, o que parece improvável, mas no sanatório geral mundial, nada é impossível – não será fácil, nem breve, detonar a experiência socialista. A luta dos cubanos contra invasores não é de 1959, tem mais de cem anos, como comprovam as 138 bandeiras
Em Havana, cartazes e muros trazem mensagens do governo; bandeiras negras ocupam a praça onde fica a Tribuna Antiimperialista
da Tribuna José Marti, cada uma representando um ano de luta, desde o domínio espanhol. A população é organizada, como se sabe, a partir de cada bairro. Todos os dias, desde a cirurgia de Fidel, havia manifestações de apoio em diferentes locais do país. A TV entrevistava o povo: velhos, mulheres, crianças pelas ruas, todos muito bem articulados, expressando seu apoio e dizendo estar preparados para qualquer adversidade. Impossível treinar tanta gente para rezar por uma possível cartilha na TV. Mas os problemas são muitos no dia-a-dia. Um motorista de táxi clandestino, engenheiro mecânico, nos contou que desistiu da profissão porque não conseguia sobreviver. Inteligente e culto, informadíssimo sobre o Brasil. A maioria dos cubanos se vira em vários bicos. Os médicos, engenheiros, que chamamos aqui de profissionais liberais, ganham menos que os taxistas legais. Já se providencia com urgência a formação de novos médicos, porque há 25 mil profissionais cubanos prestando serviços a países pobres. Esses recebem uma ajuda
cubana e, às vezes, também do país onde exercem a profissão. Só aqui no Brasil, aliás, foram recusados pela corporação de branco: não reconhecem o seu diploma. E mesmo com a enorme falta de médicos nos rincões longínquos brasleiros, não se permitem os cubanos, que, sabemos, têm uma das medicinas mais avançadas do mundo, à qual recorrem inúmeros brasileiros.
Comissão de Assistência para uma Cuba Livre, dirigida por Caleb McCarry – um dos conspiradores para a queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, do Haiti. Ele também é chamado pelos cubanos de procônsul de Bush para a anexação de Cuba. Pois Bush e sua fiel Condoleezza estão “solicitando apoio” dos “países amigos” para se posicionarem contra
AFROCUBANOS
COLÔMBIA
Logo após a doença de Fidel, o arcebispo de Havana, cardeal Jorge Ortega, pronunciou-se contra a intervenção estadunidense. Em seguida, houve um culto ecumêmico, com católicos, protestantes, evangélicos e afrocubanos. Cuba foi um Estado ateísta até pouco tempo atrás, mas as restrições ao culto religioso vêm sendo diminuídas desde 1991. Oficialmente, a população é católica, mas a maioria dedica-se às religiões afrocubanas, ou santería, de linha iorubá, basicamente a mesma do candomblé, em que há um sincretismo com a religião católica e os mesmos nomes de orixás: Xangô, Yemanjá, Oxum. Enquanto isso, nos EUA existe desde 2003 uma tal
Desde que Fidel foi internado, a população permanece confiante e promove manifestações de apoio diárias em diferentes locais do país
a continuação do atual regime em Cuba, e o procônsul tem uma dotação de 80 milhões de dólares para a tarefa. Um recurso que seria muito melhor empregado, sem dúvida, em New Orleans, assolada pelo furacão Katrina, onde grande parte da população negra e pobre não conseguiu mais voltar a seus lares arrasados. Alguém imagina isso acontecendo na ilha?
Assassinado mais um sindicalista Igor Ojeda da Redação
Fotos: Beatriz Faleiros
Ao contrário do que a mídia internacional, ávida pelo fim do regime, noticiava quando o presidente Fidel Castro ficou doente, não havia tanques nas ruas, nenhuma convulsão, nenhum temor. Havia, sim, uma ansiedade: saber o que aconteceria no próximo capítulo da novela brasileira Senhora do Destino, exibida pela TV cubana em dias alternados. Uma paixão nacional. De resto, filas nos cinemas e na eterna sorveteria Copélia, sob o sol escaldante de 34 graus que torra a pele como se fosse de 40. Mas o mar, o céu azul incrível e o perfil de Havana são um bálsamo. Assim como o espaço, totalmente público, algo de que não nos damos conta e já perdemos nos países capitalistas, onde a paisagem é roubada por milhares de outdoors de publicidade. E os shopping centers tornaram-se uma espécie de espaço privado-público onde prevalece o primeiro: a praça não é mais do povo. Nossos olhos descansam na paisagem de Havana, e os cartazes de propaganda do governo são poucos. Há, sim, em todos os prédios – de hotéis a restaurantes –, as fotos dos Cinco de Guantánamo, presos e
Fotos: Beatriz Faleiros
A vida em Havana e a resistência da Ilha
A repressão aos movimentos sociais fez mais uma vítima na Colômbia. No dia 17, o sindicalista Carlos Arturo Montes Bonilla, 53 anos, pai de sete filhas, foi assassinado com vários tiros em frente à sua casa em Barrancabermeja, cidade no centro-norte do país. Bonilla era dirigente do Sindicato Nacional de Trabalhadores das Indústrias Gastronômicas, Hoteleiras e Similares e, há dois anos, tinha se filiado ao Sindicato Nacional de Trabalhadores da Indústria de Alimentos (Sinaltrainal). Segundo comunicado do Sinaltrainal, Bonilla estava participando de atividades sindicais no porto petroleiro e divulgava denúncias contra a transnacional Coca-Cola. Ainda segundo a organização de trabalhadores, “este crime faz parte da política de terror e extermínio contra os sindicalistas e o movimento social, que vem sendo executado dentro da denominada segurança democrática e es-
tado comunitário do governo de Álvaro Uribe Vélez” (veja entrevista na página 5). Criado em 1982, o Sinaltrainal abriga trabalhadores de empresas como a Nestlé, Coca-Cola, Unilever e Kraft. Desde 1986, 16 de seus membros foram assassinados. Destes, sete trabalhavam em engarrafadoras da Coca-Cola. Seus dirigentes acusam grupos paramilitares, a serviço das transnacionais, de serem os responsáveis pelas mortes. O presidente do Sinaltrainal de Barrancabermeja, Luis Alberto Díaz, afirmou ao jornal colombiano Vanguardia que Bonilla havia recebido ameaças no ano passado, e acrescentou: “além disso, deve-se lembrar que todos no sindicato estamos ameaçados”. De acordo com o que a família da vítima relatou ao Vanguardia, era aproximadamente 22h40 quando Bonilla voltava para casa depois de beber e jogar bilhar com alguns amigos. O sindicalista foi morto quando abria a porta de sua residência.
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INTERNACIONAL RUANDA
Tribunal penal para estrangeiro ver João Alexandre Peschanski da Redação
D
oze anos após o massacre de Ruanda, que deixou cerca de um milhão de mortos, fantasmas continuam assombrando a Organização das Nações Unidas (ONU), acusada de omissão por entidades de direitos humanos. A instituição tinha 2.600 soldados no país no início da carnificina, que durou cem dias, mas os impediu de intervir. E ordenou que 2.330 deles abandonassem Ruanda. Outro dado da violência desenfreada: entre 250 mil e 500 mil mulheres estupradas, 70% das quais foram contaminadas com o vírus da aids, de acordo com a organização não-governamental (ONG) Anistia Internacional. Desmoralizada, a ONU criou, em fevereiro de 1995, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR), com o objetivo de julgar os responsáveis pelo massacre. Investiu pesado para sua redenção. O TPIR, com sede em Arusha, na Tanzânia, recebeu 255,9 milhões de dólares entre 2004 e 2005, de acordo com dados da própria instituição. São 1.042 funcionários, de 85 nacionalidades diferentes, sob a presidência do juiz norueguês Erik Møse. A atuação do tribunal é comemorada pela ONU, principalmente pelo secretário-geral, o ganense Kofi Annan. Desde sua criação, 72 pessoas foram presas, 27 das quais já julgadas. No entanto, denuncia o jornalista francês Thierry Cruvellier, entrevistado pelo Brasil de Fato, o TPIR é refém do jogo de interesses de grandes potências e do governo ruandês. “É um tribunal da comunidade internacional. Quem o criou, o fez do modo que mais lhe convinha. Está desconectado da sociedade. Imagine um genocídio no Brasil, daí a ONU instala um tribunal em [a capital argentina] Buenos
Donald E. Miller02
Julgamentos realizados pela ONU sobre massacre de 1994 servem interesses políticos de países ricos
Filmes denunciam omissão da ONU
Foram cerca de um milhão de mortos no genocídio do Ruanda, que a ONU não tentou conter
Aires e convoca juízes da Suécia, Guatemala e Nova Zelândia, que não conhecem o Brasil. Como se sentirá o povo? Do mesmo modo que os ruandeses: indiferentes e distantes”, desabafa Cruvellier, o único jornalista a cobrir ininterruptamente o TPIR, sobre o qual escreveu o livro O Tribunal dos Vencidos: um Nuremberg para o Ruanda.
PROPAGANDA DAS POTÊNCIAS O TPIR serve para a Bélgica, os Estados Unidos e a França – também acusados de terem se omitido no momento de impedir a onda de violência – propagandearem sua preocupação humanitária. Os governos belga e francês se recusaram a intervir. Em documentos oficiais, veiculados por ONGs, o governo estadunidense afirmou que teria a atitude de um “espectador” – bystander, em inglês.
É uma vitrine. Mas os bastidores mostram outra preocupação das potências: garantir boas relações com o atual governo do Ruanda, comandado pelo ditador Paul Kagame. A economia do país, com 8,6 milhões de habitantes, 60% dos quais abaixo da linha da pobreza, está sendo reestruturada, sob orientação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM). Os países ricos se aproveitam disso para reforçar a dependência do país, forçando a privatização de setores estratégicos da economia e de serviços. Procuram também vender produtos – enquanto exporta 63 milhões de dólares em bens, Ruanda importa 287 milhões de dólares. “A legitimidade de Kagame decorre do fato de ele posar como o responsável pelo fim do massacre. Nas declarações do TPIR, é essa versão dos fatos que ele exige que seja contada e as potências se mo-
bilizam para que seja assim. Mas não conta como também massacrou seus rivais para chegar ao poder. Houve violência após a violência”, revela Cruvellier. O jornalista afirma que a interpretação da história recente do Ruanda – a causa do conflito, seus desdobramentos – é onde se trava a disputa política atual do país. “Até que isso se resolva, haverá violência”, diz.
MEMÓRIA E HISTÓRIA O TPIR poderia servir como instrumento para recuperar a memória do massacre. Segundo Cruvellier, documentos e depoimentos valiosos são coletados, mas são manipulados pelo interesse das potências. O acesso aos dados é restrito. “A história do massacre, contada pelos funcionários, é caricatural. Entre 1996 e 2005, os juízes só foram uma vez ao Ruanda, acompanhados de uma escolta militar e jornalística.
A decisão da Organização das Nações Unidas (ONU) de não intervir no massacre ruandês é objeto de duas produções cinematográficas. Em Hotel Ruanda, de 2004, o diretor Terry George descreve a preparação da carnificina, que deixou cerca de um milhão de vítimas, muitas assassinadas a golpes de machadinha. No meio da onda de violência, o gerente de um hotel – estrelado por Don Cheadle – abriga e salva 1.200 pessoas. Em Aperte as Mãos do Diabo, baseado no livro homônimo de Romeo Dallaire, o general canadense que comandava as forças da ONU no Ruanda em 1994 relata como o Conselho de Segurança da instituição decidiu não intervir para deter o massacre. Dirigido por Roger Spottiswoode, o filme, previsto para ser lançado em 2007, mostra o esforço de Dallaire para obrigar a organização a agir. Apesar de não receber apoio, ele tentou, como pôde, salvar vidas. (JAP)
A história das causas do massacre ainda precisa ser escrita”, revela. Emblemático dessa manipulação foi o julgamento do Jean Kambanda, primeiro-ministro ruandês durante o genocídio. Em 1998, ele foi condenado à prisão perpétua. Cruvellier considera o resultado justo, pois Kambanda coordenou a onda de violência. Mas, para ele, o processo foi errado: “O TPIR forçou uma confissão e a divulgou. Ele nunca assumiu a responsabilidade pelo que ocorreu. A condenação é justa, mas o modo como foi feita é um fracasso. A Justiça não foi feita”.
ENTREVISTA
“O Hezbollah é o partido dos pobres” Marcelo Netto Rodrigues da Redação
de acesso à educação formal para muçulmanos xiitas.
O presidente do Observatório Social, Kjeld Jakobsen, foi o único brasileiro a integrar a Missão de Paz da Sociedade Civil Internacional, que visitou o Líbano entre os dias 12 e 15. Além dele – que representava a CUT e a Aliança Social Continental –, compunham a delegação mais 11 observadores, provenientes da Índia, Filipinas, Noruega, França e Espanha. Um dos objetivos do grupo foi expressar solidariedade de seus respectivos povos ao povo libanês, condenando publicamente as agressões israelenses. O outro foi testemunhar a destruição do país. A delegação chegou à capital Beirute quando os subúrbios ao sul ainda estavam sob bombardeios da Força Aérea Israelense – o frágil cessar-fogo só entraria em vigor dois dias após a chegada da comitiva. Contrariando o senso-comum, Jakobsen diz que “o Hezbollah não é um partido religioso”. É muito mais amplo que isso: mantém alianças até mesmo com o Partido Comunista Libanês e nem todos os seus integrantes são necessariamente muçulmanos xiitas. De acordo com ele, o Hezbollah surgiu, entre outras coisas, para suprir as deficiências do Estado, sendo uma delas a falta
Brasil de Fato – Com o que vocês se depararam ao chegar ao Líbano, em meio aos bombardeios? Kjeld Jakobsen – Nós chegamos no sábado, e o cessar-fogo só aconteceu na segunda. Vimos que a infraestrutura do país está toda destruída – estradas, pontes, subestações de energia elétrica, serviços de água, aeroporto. Chegamos por terra, pois era a única maneira. Mesmo assim, não era em qualquer lugar que dava para passar.
BF – Antes da guerra, todos os xiitas da região apoiavam o Hezbollah?
Arquivo Pessoal
BF – O que é o Hezbollah, visto de dentro do Líbano? Jakobsen – É um partido político composto majoritariamente por pessoas de-
origem xiita, mas também por militantes vindos de outros grupos, de origem, por exemplo, na Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP). O Hezbollah mantém até mesmo uma aliança com o Partido Comunista Libanês. Existem membros não necessariamente muçulmanos xiitas. É um partido mais amplo. Não é um partido religioso. É um agrupamento que surgiu durante a ocupação israelense anterior, durante a guerra civil, entre 1982 e 2000. O partido foi sendo construído, e como a população do sul do Líbano é majoritariamente xiita, ali se formou sua base social.
Kjeld Jakobsen, durante a Missão de Paz no Líbano
Jakobsen – Não. Na verdade, os xiitas da região se dividem em dois grupos. De um lado, os mais endinheirados e os de classe média; do outro, os pobres. O Hezbollah é muito mais ligado ao setor xiita pobre. Temos de ter em mente que no Oriente há uma ligação muito estreita entre religião e Estado – o que não é uma característica apenas do islamismo. No caso do Hezbollah, os instrumentos de capacitação e formação foram as escolas religiosas, exatamente por sua base ser de origem pobre. Haja vista que somente agora começam a surgir professores universitários de origem xiita, pois eles não tinham acesso aos meios de educação formal. BF – Em virtude de os xiitas nunca terem chegado ao poder? Jakobsen – O sistema político no Líbano é muito especial. Há uma distribuição de poderes. Pela Constituição do país, o presidente é sempre um cristão maronita (cristãos que defendem os antigos cruzados); o primeiro-ministro é sempre um muçulmano sunita; e o presidente do Parlamento é sempre um xiita (que no momento não pertence ao Hezbollah, mas a um partido chamado Hamal). O Hezbollah tem dois minis-
térios e 14 deputados, entre os pouco mais de cem existentes no país. Isso porque o voto no Líbano é distrital. Então, apesar de o Hezbollah ter quase 30% dos votos nacionais, as pessoas que acabam ganhando são as que atingem a maioria em seus distritos eleitorais. BF – Órgãos de imprensa do Oriente Médio estão alçando o líder do Hezbollah, Nassan Nasrallah, ao status uma vez reservado ao líder egípcio Gamal Abdel Nasser – que liderou um movimento pan-arabista, após ter derrubado, em 1952, a monarquia próbritânica no Egito. Qual sua opinião sobre isso? Jakobsen – Nasrallah conseguiu conquistar uma popularidade muito alta no próprio Líbano. Uma confiança muito grande, uma vez que é a primeira derrota séria dos israelenses em muitos anos. Isso é visto pelos habitantes dos demais países como admirável, assim como no passado Nasser era admirado por ter enfrentado israelenses, ingleses e franceses, na crise do Canal de Suez. Nasrallah, além de ter impedido os israelenses de atingir seus objetivos, atuou politicamente de maneira muito correta. Ou seja, uma das coisas que Israel e os Estados Unidos
queriam era voltar a dividir o Líbano, gerar uma guerra civil, forçar uma situação para retomar a confusão que perdurou por quase 20 anos. Cristãos contra muçulmanos, drusos contra cristãos e por aí vai. BF – O cessar-fogo é só um intervalo para uma guerra ainda maior? Jakobsen – Os israelenses não vão se conformar facilmente com o resultado. Nem os estadunidenses. E para os países árabes moderados, como Egito, Jordânia, Árabia Saudita, o fato de o Hezbollah ter saído vitorioso é muito ruim politicamente. Os oficiais do Exército egípcio, por exemplo, vão começar a se perguntar: “Nós fomos derrotados várias vezes. Por que um país grande como o Egito não consegue fazer o que um muito menor conseguiu?”. Não é do interesse desses países que o Hezbollah saia com uma boa imagem. Eles vão interferir, apoiando Israel e tentando neutralizar a Síria e o Irã. Fora isso, os israelenses vão começar agora ataques selecionados. Tentativas de assassinatos de lideranças, incursões de comandos. Se isso acabar provocando alguma reação, via foguetes ou mísseis, estará retomado o conflito.
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CULTURA
De 24 a 30 de agosto de 2006
TEATRO
Divulgação
A emoção feminina na realidade iraquiana Nove mulheres falam de amor e de guerra, em monólogo interpretado pela atriz Clarisse Abujamra Dafne Melo da Redação
U
ma carpideira, uma médica, uma mãe, uma garotinha, uma intelectual, uma artista plástica, uma beduína, uma vendedora ambulante e uma habitante dos Estados Unidos. Nove mulheres, todas iraquianas, todas presentes na peça As Nove Partes do Desejo, encenada pela atriz Clarisse Abujamra, que também traduziu e adaptou o texto. A montagem original foi feita pela atriz iraquiana-estadunidense Heather Raffo, em 2003. Raffo pesquisou durante 11 anos para escrever o texto, que retrata mulheres iraquianas reais com quem conviveu nesse tempo. Em entrevista ao Brasil de Fato, Clarisse fala sobre a descoberta do texto, seu conteúdo e também sobre as dificuldades de montar uma peça com uma temática densa, tanto emocional como politicamente. Brasil de Fato – Como você teve conhecimento da peça? Clarisse Abujamra – Foi em 2004, em Nova York. Assisti o espetáculo e saí com uma imensa vontade de fazer uma montagem, não só pelo tema, mas por ser um tipo de espetáculo que nunca tinha feito. Apesar de já ter feito monólogos, esse espetáculo é muito diferente. Tentei contato com a Heather, passei aquele ano todo esperando um retorno, mas não consegui nada. Em 2005, voltei a Nova York e falei: daqui eu não saio com as mãos abanando. Fui esperá-la na entrada do teatro. Cheguei bem cedo e conversamos. Eu brinco que quando saí de lá éramos irmãs, foi um encontro belíssimo, ela é uma mulher muito sensível. BF – Como ela criou essa peça? Clarisse – As nove mulheres não são personagens fictícias. Heather as conheceu, esteve com elas. Li uma entrevista em que o repórter perguntou se ela tinha entrevistado essas mulheres e ela respondeu: não entrevistei, fui viver com elas, dividir com elas. A peça traz esse peso, no sentido da responsabilidade em mostrar a verdade de cada uma das iraquianas.
“Sobrevivi a 23 revoluções. Já vivi demais” Nanna – vendedora ambulante
BF – Você teve dificuldades em conseguir um diretor para a peça. Por quê? Clarisse – Na verdade, a pessoa que está dirigindo, o Márcio Aurélio, foi o primeiro a recusar, pois estava atolado de trabalho. Eu sabia que era um trabalho que exigiria um tempo
As Nove Partes do Desejo Estréia: 1º de setembro, 21h Temporada: até 10 de setembro – às sextas, 21h; aos sábados, 20h; aos domingos, 19h Teatro Sesc Santo André, r. Tamarutaca, 312, tel: (11) 4469-1200
maior de ensaio, muita dedicação. Aí comecei uma verdadeira peregrinação. Fui até o Antônio Abujamra, meu tio, que acredito ser um dos melhores diretores. É uma peça árabe, somos descendentes de árabes, tinha tudo a ver. Quando ele leu o texto, me mandou uma mensagem dizendo que estava em um momento da vida em que mergulhar nessa peça seria um poço sem fundo. “É preciso ter uma alma pura e eu estou longe disso, quero fazer comédia, estou velho”, ele disse. Mas acompanhou tudo, está na maior ansiedade, é louco pela peça. Foram, no final, sete recusas. Mas aí, fechando o ciclo, o Márcio, o primeiro a quem ofereci a peça, topou.
“Tragam de volta as águas onde me criei, tragam de volta os pântanos, os peixes, os juncos, macho e fêmea” Mulaya – carpideira
BF – Recusaram por ser uma peça muito densa? Clarisse – Sim, o Márcio chegou para ensaiar um dia e não conseguia começar o ensaio. Aí eu disse: é teatro, por mais que seja difícil. Foi algo por que eu também passei. Para chegar à encenação final, eu passei por uma busca de uma emoção genuína, foi um processo doloroso. O Márcio diz que é um trabalho em progresso, a cada ensaio descobrimos mais possibilidades. Essas nove mulheres são de uma força... há momentos vibrantes, você vai até sorrir, rir não vai. Na história de todas há uma guerra por trás, não há como escapar. O pano de fundo é o caos humano. E aí não só sobre a mulher iraquiana, é sobre uma decadência do ser humano em geral, não dessas mulheres. A peça é pungente, me comove em todos os ensaios. BF – A peça também não conseguiu patrocínio por isso? Clarisse – Acho que é pelo
tema. Ficaram com pé atrás não conseguimos nenhum recurso. Não estamos ganhando nada para fazer a montagem. Tem lugares que eu entrava e já perguntavam: é comédia? Eu dizia que não, e já não se interessavam. Outra coisa curiosa é que, agora que começamos a divulgar, a imprensa começou a pedir o texto integral. Nunca tinham me pedido isso. Me chamou a atenção. Me fez pensar que é pelo tema. Acredito que cada um tem um método de trabalho, não estou criticando a curiosidade desses jornalistas, mas especificamente essa curiosidade, pois em meus 36 anos de carreira nunca me pediram isso, e olha que já montei peças polêmicas. BF – No teatro, hoje, há pressão para fazer textos mais leves? Clarisse – Não tenho dúvida. Há uma queda vertiginosa da qualidade cênica em busca dessa coisas ridículas. Claro, existem comédias maravilhosas, lindas. Não tenho nada contra comédia, fiquei cinco anos fazendo A Maçã de Eva, uma comédia deslavada, com um texto maravilhoso. Sou contra a comédia vagabunda. Tem todo o direito de fazer, mas eu tenho direito de não gostar. Acho que nossa obrigação é primar pela qualidade. É a maior luta, hoje. Você liga a TV e vê que a qualidade foi ladeira abaixo.
“Não posso ‘escolher’ deixar o Iraque, estou aqui com minha alma com meu coração de tal maneira que morro se for embora” Layal - artista plástica
BF – Como são essas nove mulheres iraquianas? Clarisse – A que abre o espetáculo, Mulaya, é como se fosse a nossa carpideira. O discurso dela é sempre se referindo ao próximo: “Cuidado ao atirar uma pedra no poço,
que pode levantar a lama. Pense no próximo que virá depois de você, para que ele tenha água”. Depois tem a artista plástica, que morreu recentemente, uma intelectual exilada em Londres, uma médica, uma garotinha iraquiana, uma iraquiana radicada nos Estados Unidos, a mãe – que conta o que aconteceu quando caiu uma bomba –, uma beduína e uma médica. São personagens absolutamente distintas. Tem a que quis sair do Iraque, a que quis ficar. De uma forma ou de outra, todas refletem sobre a guerra. A beduína faz uma pergunta deslumbrante: “Você acha que a liberdade é melhor do que a paz?”. Ela não está falando da guerra diretamente, mas de amor. A garotinha fala da perda de tudo, dos irmãos. A vendedora ambulante é a que não tem mais nada, vende as próprias coisas. Também falam de amor. A intelectual não, fala pouco de amor, mas tem um ódio pela postura machista que até baba.
“Você acha que a liberdade é melhor que a paz?” Amal - beduína
BF – Como é interpretar nove personagens tão diferentes? Clarisse – É uma maratona. Do ponto de vista físico, é tudo muito contido, mas a minha preocupação, depois de estudar muito, não foi fazer cada uma com uma voz, com um jeitinho. Eu fiquei procurando descobrir o batimento cardíaco de cada uma, a emoção pura de cada uma. Eu mergulho descaradamente nisso. A partir daí eu parei de me preocupar se o cabelo de uma é de um jeito ou de outro. Óbvio que há personagens que têm marcas, usam véus, lenços, mas não é para diferenciálas, mas apenas porque elas usam assim. A minha busca foi nesse sentido, a minha intenção era chegar o mais próximo possível da verdade que elas colocam, porque é tudo muito visceral. O desgaste foi emocional, mas um desgaste bom, fértil, nada trágico,
isso faz parte. Como atriz, nunca tinha mergulhado num texto que exigia tamanha entrega.
“Meu Baba disse que Saddam pode escrever o nome dele em cada tijolo da Babilônia, mas nunca conseguirá escrever o nome dele nas estrelas que cobrem o céu do Iraque” A garotinha iraquiana
BF – O que essa peça trás de contribuição para a questão da guerra? Clarisse – Da nossa parte é uma assinatura da mais veemente repulsa a qualquer tipo de guerra e preconceito. A peça mostra a vulnerabilidade do ser humano perante a guerra. A personagem que vive nos EUA fala: “As pessoas, na academia, fazem esteira assistindo à guerra em três canais simultâneos”. Aí diz que uma menina um dia pergunta, olhando para a televisão: “Que filme é esse?”, e ela responde: “Como, que filme é esse? É a guerra!”. Existe uma banalização da violência, assim como existe no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Tem aquela terrível frase: “O homem é uma experiência que não deu certo”. Às vezes acho que é por aí. Mas no meio de tudo isso, na peça, é como se a lente que transmite aquela imagem na TV se aproximasse e mostrasse a pessoa que está ali sofrendo por causa da guerra, sofrendo pelo seu filho, pelo próximo, pela sua opção de ficar em seu país, por sua opção de fé. Isso é o mais bonito da peça, é mostrar seres humanos que estão lá. BF – O senso comum no Ocidente, além da imagem estereotipada da mulher árabe, reforça que elas são oprimidas. Como a peça trata isso? Clarisse – Mostra a opressão delas, mas também mostra que não são as
únicas oprimidas. A artista plástica, por exemplo..., uma hora a irmã quer que ela vá embora do Iraque, e ela diz que não sai de lá. No final, ela diz algo assim: eu não vou porque em qualquer lugar do mundo uma mulher como eu vai ser chamada de puta, não é aqui. A irmã então pergunta o porquê dela falar isso e ela responde: porque as mulheres ainda não são livres. BF – Como abordar uma realidade tão distinta da nossa? Clarisse – No processo de ensaio, algumas horas falávamos “não dá para fazer”. Você não consegue chegar perto, não consegue entender aquele grau de fé, a vastidão daquele deserto; são milênios de história. Uma hora você pensa: como entender isso? Como vamos chegar numa mulher dessas? Aí entra a pesquisa. É muito, muito diferente. Teve dias que eu olhava pro Márcio e dizia: não conseguimos entender, é uma realidade tão diversa. Há coisas que na nossa cabeça bate de frente. Algumas mulheres, por exemplo, gostam de usar o véu, se sentem respeitadas e protegidas.
“Meu nome está enterrado com o dela. Hoje sou um Gheda. Mãe do amanhã” Gheda – mãe
BF – Você é neta de libaneses. Fazer essa peça mexeu de alguma forma com suas origens? Clarisse – Mexeu. Lembrei muito da minha avó, libanesa de Ramena. Ela batia no braço e dizia: “Filha, sangue não é água”. Vim entender isso que ela dizia agora. Tem uma personagem que diz: “Somos muito ligados com nossos avós, tataravós, todos vivem dentro da gente, então quando a gente chora, choramos vidas e vidas”. Essas coisas me trouxeram muitas lembranças, inclusive das viagens que fiz para lá. A lembrança do deserto me ajudou muito a entender o lugar de onde elas falam.