Ano 4 • Número 184
Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo • De 7 a 13 de setembro de 2006
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Por que Lula ganha força? Ricardo Stuckert/PR
Carisma, políticas sociais, falta de alternativas e despolitização são as razões apontadas por quatro analistas
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ido praticamente como “carta fora do baralho” pela oposição e pela mídia corporativa no auge da crise de 2005, o presidente Lula ressurgiu neste ano. Apoiado sobretudo pelos mais pobres, o petista lidera com folga a corrida eleitoral. Qualquer resultado, em outubro, que não seja a sua vitória já no primeiro turno será uma surpresa. Os sociólogos Chico de Oliveira e Emir Sader, o teólogo Frei Betto e o cientista político Paulo d´Avila Filho apontam aspectos distintos para explicar esse fenômeno eleitoral, que vão desde as políticas sociais do governo e a ausência de propostas do PSDB, até a imagem construída de Lula e a despolitização geral da sociedade brasileira. Pág. 3
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva supera a barra dos 50% de intenção de voto e passa os 70% no Nordeste
O novo império estadunidense
EDITORIAL
Fracassa a doutrina do terror
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á cinco anos, a destruição das torres gêmeas de Nova York ofereceu a George Bush o pretexto para iniciar a “guerra ao terror”, nome dado à estratégia neocolonialista da Casa Branca. O horizonte dessa estratégia pode ser rapidamente explicitado por uma simples palavra: petróleo. Júnior assumiu a Casa Branca, em janeiro de 2001, com a clara missão de resolver o problema da vulnerabilidade do império no setor energético. Cálculos feitos pelos próprios neoconservadores indicam que as reservas estratégicas de petróleo dos Estados Unidos dão, no máximo, para três anos de consumo. Em 2015, os Estados Unidos terão que importar algo como 81% de suas necessidades de petróleo. É isso que os mandarins do império não aceitam. O atentado de 11 de setembro de 2001 apenas deu a Bush o pretexto para colocar em marcha a máquina de guerra destinada a assegurar o controle das reservas de petróleo do mundo. Com esse objetivo, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão (em outubro de 2001) e o Iraque (em março de 2003). Ambos os países, por mera coincidência, estão estrategicamente situados na região mais rica em petróleo do planeta. Embora o Afeganistão não seja grande produtor, seu território é rota obrigatória para qualquer oleoduto destinado a abastecer a Europa. A invasão do Iraque seria apenas o passo inaugural na marcha batida de derrubada dos regimes iraniano e sírio, com a imposição de protetorados diretos ou informais estadunidenses. Mas Bush não contava com um pequeno detalhe: a heróica resistência do povo iraquiano. Após três anos de ocupação, suas tropas não podem perma-
necer no país, pois todos os dias morrem soldados estadunidenses (já são cerca de três mil baixas), o que ressuscita o fantasma do Vietnã. A situação tende a piorar, graças à desastrosa aventura israelense no Líbano, que aproximou xiitas e sunitas em torno do apoio ao Hezbollah. Mas Bush não pode sair do Iraque, pois isso implicaria, na prática, entregar o controle do petróleo aos xiitas, que teriam o Irã como aliado natural. Seria o pior dos pesadelos. Em 2001, as perspectivas eram outras. Quando Bush proclamou a “guerra ao terror” e deflagrou a operação no Afeganistão, contou com o apoio quase unânime de governos e de uma opinião pública chocada com as imagens das torres. Mas a unidade trincou logo depois, com o discurso do “Eixo do Mal”, no início de 2002, e com a arrogante proclamação da “guerra preventiva”, meses mais tarde. O desmascaramento das mentiras que prepararam a invasão do Iraque desmoralizou a cúpula da Casa Branca. Finalmente, a heróica resistência iraquiana cria, diariamente, um pesadelo para Júnior. Os desastres se acumulam. Hoje, o mundo conhece os horrores de Abu Graib e a realidade da rede internacional de centros de tortura operada pelos serviços secretos estadunidenses no Afeganistão, em Guantánamo e em países europeus. Não está em curso nenhuma “reforma do Oriente Médio” patrocinada pela Casa Branca. E a estratégia geral de Bush jamais contemplou uma paz negociada entre Israel e os palestinos, mas apostou no enfraquecimento do lado palestino e na imposição de uma paz com anexações, nos termos de Israel. O império naufraga em sua própria lama. Mas ameaça arrastar milhões de seres humanos em sua agonia.
O mundo após os ataques ao World Trade Center possui outra geopolítica mundial. Os Estados Unidos valeram-se da doutrina de George W. Bush, baseada na política da guerra preventiva, para deflagrar invasões ao
Iraque e ao Afeganistão. Para o sociólogo James Petras, tais ações fazem parte do novo imperialismo estadunidense, que privilegia o militarismo como estratégia de expansão, substituindo a estratégia anterior, ba-
seada na dominação econômica e cultural. O Brasil de Fato ouviu ainda mais três analistas que avaliam os impactos do 11 de setembro, que mataram cerca de três mil pessoas. Pág. 8
Governo acena com mudança no FGTS O ministro Luiz Marinho (Trabalho) aprovou no Conselho Curador do Fundo de Garantia uma proposta para alterar as regras do fundo. O Planalto quer utilizar os recursos do “patrimônio líquido” do FGTS para investir em infra-estrutura (rodovias e hidrelétricas). Juristas apontam mudança na finalidade original do fundo, pois os recursos deveriam ser utilizados para financiar moradias populares e saneamento, duas carências brasileiras ignoradas. Pág. 4
México: novo presidente, mas crise permanece O Tropicalismo de mãos dadas com a ordem
PSDB não utiliza verba da reforma agrária
Após 40 anos, Gilberto Gil e Caetano Veloso, principais ícones do vanguardista Tropicalismo, atingiram o topo da burocracia estatal e da Indústria Cultural. A contestação dos costumes da vida burguesa desapareceu. Resta apenas a feroz crítica ao “patrulhamento” da esquerda cultural e a apologia à indústria da cultura como uma realidade inexorável. Leia artigo de Francisco Alambert. Pág. 6
Geraldo Alckmin resolver debochar da inteligência do eleitor brasileiro. Aliado dos ruralistas, o tucano garantiu no primeiro debate dos presidenciáveis que fará a reforma agrária. Seu desprezo pelos camponeses pode ser comprovado pelos dados. Sob seu comando, o governo de São Paulo devolveu quase R$ 50 milhões que a União lhe tinha repassado para fazer assentamentos. Pág. 5
A Justiça mexicana decidiu que as eleições de 2 de julho foram válidas, apesar de considerar que houve fraudes. O conservador Felipe Calderón, aliado do presidente Vicente Fox, foi anunciado como o vencedor do sufrágio por uma mínima diferença, de 0,57% dos votos. O progressista López Obrador, prejudicado pelas irregularidades, não reconheceu a decisão e convoca simpatizantes a pressionarem por uma Assembléia Constituinte. Pág. 7
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DEBATE
CRÔNICA
Salva-vidas de chumbo Eduardo Galeano elo que diz a voz de comando, nossos países devem acreditar na liberdade do comércio (embora ela não exista), honrar os compromissos (embora eles sejam desonrosos), atrair investimentos (embora eles sejam indignos) e ingressar no cenário internacional (embora pela porta dos fundos). Ingressar no cenário internacional: o cenário internacional é o mercado. O mercado mundial, onde se compram países. Nada de novo. A América Latina nasceu para obedecê-lo, quando o mercado mundial nem era chamado assim, e de um jeito ou de outro continuamos atados ao dever de obediência. Essa triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e continuou com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que esses esplendores nos deixaram? Nos deixaram sem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas apodrecidas, longas caravanas de infelizes condenados à morte antecipada, palácios vazios onde perambulam fantasmas... Agora, chegou a vez da soja transgênica e da celulose. E outra vez repete-se a história das glórias fugazes, que ao som de seus clarins nos anunciam longas tristezas. Será que o passado ficou mudo? Argentina, Brasil e outros países latino-americanos estão vivendo a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentos multiplicados. A Argentina é, e já faz tempo, o segundo maior produtor mundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que pouco favor fazem à democracia, e disse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante toda a campanha eleitoral. Os advogados dos transgênicos afirmam que não está provado que prejudiquem a saúde humana. Em todo caso, também não está provado que não a prejudiquem. E já que são assim tão inofensivos, por que os fabricantes de soja transgênica se negam a esclarecer, nas embalagens, que vendem o que vendem? Acontece que existem evidências de que essas invenções do Doutor Frankenstein fazem mal à saúde do solo e reduzem a soberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? Estamos ou não estamos presos nas gaiolas da Monsanto e de outras grandes empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos a depender? Terras que produziam de tudo para o mercado local agora se consagram a um único produto para a demanda estrangeira. Nós nos desenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro. O monocultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, é muito mais. A diversidade, por sua vez, liberta. A independência se reduz ao hino e à bandeira, se a soberania alimentar não é assentada. A autodeterminação começa pela boca. Só a diversidade produtiva pode nos defender das súbi-
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tas despencadas de preços que são costume, mortífero costume, do mercado mundial. As imensas extensões destinadas à soja transgênica estão arrasando os bosques nativos e expulsando os camponeses pobres. Poucos braços ocupam essas explorações altamente mecanizadas que, ao mesmo tempo, exterminam as plantações pequenas e as hortas familiares com os venenos que fumigam. Multiplica-se o êxodo rural às grandes cidades, onde se supõe que os expulsos vão consumir, se tiverem sorte, o que antes produziam. É a agrária reforma: a reforma agrária pelo avesso. A celulose também está na moda, em vários países. Agora, o Uruguai está querendo se transformar num centro mundial de produção de celulose para abastecer de matéria prima barata as longínquas fábricas de papel. Trata-se de monocultivos para a exportação, na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser bosques e se convertem em celulose num processo industrial que arroja detritos químicos nos rios e torna o ar irrespirável. No Uruguai, começaram por duas fábricas enormes, uma das quais já está a meio construir. Depois surgiu outro projeto, e já se fala de outro, e outro mais, enquanto mais e mais hectares estão sendo destinados à fabricação de eucaliptos em série. As grandes empresas internacionais nos descobriram no mapa do mundo, e caíram de súbito amor por este Uruguai onde não há tecnologia capaz de controlá-las, o Estado outorga subsídios e evita impostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam num piscar de olhos. Tudo indica que nosso país, pequenino, não irá agüentar o asfixiante abraço desses grandalhões. Como costuma acontecer, as bênçãos da natureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescem dez vezes mais depressa que os da Finlândia, e isso se traduz assim: as plantações industriais serão dez vezes mais devastadoras. Trágico paradoxo: este país foi o único lugar do mundo em que a propriedade da água foi submetida a plebiscito popular. Por esmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria propriedade pública. Não haverá maneira de evitar o seqüestro dessa vontade popular? Celebra-se a desgraça como se fosse boa notícia. Mais vale morrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditam que não existe outro remédio além de escolher entre duas calamidades, e os mercadores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares de empregos. Acontece que uma coisa é a publicidade, e outra é a realidade. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou dados eloqüentes, e que não valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego a cada 185 hectares; e a agricultura familiar cria cinco empregos a cada dez hectares.
Relatório da CIA: a idiotização do poder Leonardo Boff Há poucas semanas me ocupei com três livros apavorantes. O primeiro do astrônomo inglês Martin Rees, Hora final, o desastre ambiental ameaça o futuro da Humanidade; o segundo, do astrofísico e médico James Lovelock, formulador da teoria da Terra como superorganismo vivo, Gaia, A vingança de Gaia; e o terceiro, O relatório da CIA: como será o mundo em 2020. Os dois primeiros assustam porque nos chamam atenção para a sistemática violência que nossa cultura hoje mundializada, com seu nível e produção e consumo, perpreta contra a Terra, os ecossistemas, enfim, contra a vida. Podemos discordar de seu pessimismo de base, como se estivéssemos na “ultima hora” (Rees) ou “em estado de coma” (Lovelock). Mas os dados que aduzem são objetivos e merecem ser tomados a sério para não chegarmos tarde demais na busca de saídas. Em ambos se nota amor à vida, preocupação com a Terra e cuidado para com o ser humano.
Aqui nos defrontamos com a completa idiotização do poder. Só sabem de poder. Eles não sabem nada de Terra
As empresas prometem o melhor. Trabalho a rodo, investimentos milionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E eu me pergunto: já que é assim, por que não instalam essas maravilhas em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nosso balneário principal? Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina e Memórias do Fogo. Este artigo foi publicado originalmente em Envolverde/IPS
Totalmente diferente é o terceiro livro, O relatório da CIA, fruto das análises dos considerados “25 maiores especialistas de uma variada gama de disciplinas” e dos três maiores “futuristas”, além de outras fontes de informação. Neles se vê o que é a cegueira do pensamento único, o que implica a crença de que não há alternativa para o sistema imperante e o materialismo mais crasso da decadente cultura ocidentalóide-estadunidense. Aqui nos defrontamos com a completa idiotização do poder. Como diriam os alemães, esses tais especialistas são rotundos “Fachidioten”, idiotas especializados. Só sabem de poder. Eles não sabem nada de Terra, de ecologia, de ecossistemas, de limites de sustentabilidade da natureza. Essas palavras nem ocorrem em todo o livro. Eles parecem verdadeiros ETs: nem dá para imaginar em que planeta vivem, pois não se fala de nada daquilo que é importante e indispensável para viver: ter um pouco de comida garantida para todos, um pouco de água potável, um ar sofrivelmente respirável e uma solidariedade mínima para salvar nosso senso de humanidade. Tudo isso não existe no livro. E se, por acaso, entra é apenas na sua relevância econômica. Especialmente inexistem as populações humanas, os bilhões de famintos e sedentos, os sindicatos, os movimentos sociais, os grupos de resistência mundial, os altermundialistas e os que lutam por um outra humanidade. O que existe então? Vontade de poder, de mais poder e somente de poder, econômico, militar, político e tecnológico. Trata-se fundamentalmente de elencar os riscos e desafios que a potência imperial, os EUA, deverá enfrentar até os anos 2020 e que cenários possíveis são discerníveis. Os temas quase obssessivos que retornam a todo o momento é a emergência da China e da Índia como potências mundiais que conferirão um rosto asiático à globalização, o terrorismo islâmico, as armas nucleares, biológicas e químicas acessíveis a pequenos grupos, as pandemias como a AIDS e o envelhecimento crescente dos países centrais e a queda de sua população. Finalmente, apesar de todas as ameaças, permanecerá a hegemonia estadunidense. Esses futurólogos infundem medo e precisamos estar atentos às estratégias que traçam, pois podem nos levar, irresistivelmente, ao pior dos cenários para o planeta Terra. Lembrei-me do salmo 2 das Escrituras: “os senhores da Terra conspiram, unidos. Mas ri-se Aquele que habita os céus” pois Ele sabe quão frágil é seu poder de plasmar e conduzir a história. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL
ELEIÇÕES
Ricardo Stuckert/PR
Intelectuais analisam o sucesso do candidato do PT nas pesquisas que lhe dão vitória já no primeiro turno
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante visita, no dia 17 de agosto, ao município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Na ocasião, Lula assinou contrato que prevê a instalação de uma estrutura de construção e reparo de plataformas de petróleo
A força de Lula em debate João Alexandre Peschanski da Redação
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ula está morto. A frase sintetiza a avaliação da maioria dos analistas políticos, ouvidos pela mídia burguesa sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no final de 2005. Nesse período,
integrantes de seu governo e do PT foram investigados por corrupção e abuso de poder. O presidente parecia abatido. Menos de um ano depois, o candidato do PT é o favorito nas eleições presidenciais e pode ser reeleito ainda no primeiro turno, de acordo com cinco pesquisas de in-
tenção de voto, publicadas no final de agosto e início de setembro. Uma delas, feita pela Vox Populi, indica que Lula recebe o apoio de 50% do eleitorado, enquanto Geraldo Alckmin, do PSDB, e Heloísa Helena, do Psol, 25% e 9%, respectivamente. O presidente, em discurso, chegou a dizer que renascera. Para
analisar o sucesso eleitoral de Lula, o Brasil de Fato ouviu quatro intelectuais – os sociólogos Chico de Oliveira e Emir Sader, o teólogo Frei Betto e o cientista político Paulo d´Avila Filho. As entrevistas apresentaram elementos diferentes, centrando sua avaliação sobre as políticas sociais do governo, a
O carisma
Um voto social O voto no Lula é um voto social, não é político. É um voto objeto direto da conseqüência das políticas sociais do governo. Emir Sader, sociólogo, secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)
Brasil de Fato – O que explica o crescimento de Lula, apesar de toda a crise que seu governo enfrentou? Emir Sader – O panode-fundo que tem que ser ressaltado é que o Brasil é o país mais desigual do mundo e que, pela primeira vez na história, o ponteiro da desigualdade mexeu um pouco para o outro lado. O Brasil não havia conseguido alterar isso em democracias, ditaduras, momentos de expansão, exceção, e agora mexeu.
BF – Qual a influência ou parte de responsabilidade do PT nesse voto social endereçado ao Lula? Emir – Lula reflete a sensibilidade histórica e social do PT. Não se pode dizer que o lulismo foi construído pelo Duda Mendonça. A política social de Lula não é a política pela universalização dos direitos sociais do PT, mas quem está lá é uma equipe forjada dentro do PT. BF – Lula ainda carrega em si a possibilidade de transformação? Emir – Não é uma possibilidade, é um vetor de transformação das condições imediatas da população mais pobre. Subir o Bolsa
Família muda a vida das pessoas. BF – O lulismo tem um impacto em outras esferas da eleição: para governador e para o Legislativo? Emir – Não é transferível, pois Lula personifica isso, pelo que representa na trajetória histórica do PT, por sua trajetória política e suas origens sociais. É um caso único. O voto é diretamente dirigido a Lula, sem mediações de partido ou de ideologia que justificassem a adesão a outros candidatos. BF – Lula não apresenta propostas de longo prazo no programa político. Emir – Lula se convenceu de que, com essa política econômica, há margem para fazer distribuição de renda. Não se pode dizer, no entanto, que os dois principais candidatos, Lula e Alckmin, tenham a mesma posição.
A ausência de alternativa
Paulo D´Avila Filho, cientista político, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Brasil de Fato – Por que Lula é favorito para vencer as eleições? Paulo d´Avila Filho – O principal elemento é que, na crise, não se apresentou alternativa. Geraldo Alckmin não representa uma opção. Até pouco tempo atrás, dizia-se que o eleitor de baixa renda, idiota, optava por Lula porque era desqualificado. A idéia era a de que o sucesso de Lula era garantido por sua política assistencialista e seu populismo. Essa se tornou a principal explicação nos
meios de comunicação. Não concordo, pois o que se dá é uma percepção fina do eleitorado que, embora reconheça a crise, não vê alternativa diante de si. Quando não vê opção, o eleitor se volta ao que lhe trouxe alguma segurança. A Heloísa Helena não se apresenta como alternativa consistente pois, independentemente de seus méritos, formula um discurso que o eleitorado já conhece. BF – Mas o candidato da direita é o Alckmin, que se apresenta como uma alternativa. D´Avila – O PSDB não fez uma aposta competitiva, pois visa as eleições de 2010. Alckmin não consegue fazer um discurso alternativo. Apesar de uma desilusão do eleitorado em relação ao PT, o PSDB não aproveitou e não criou uma alternativa moral. Demorou
ausência de propostas do PSDB, a credibilidade pessoal do candidato do PT e o contexto geral da política brasileira. No resumo, apontam para a inegável força de Lula. Leia a íntegra das quatro entrevistas, além de um especial sobre as eleições, na Agência Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br).
para apresentar seu candidato, fez um processo decisório elitizado, com os caciques decidindo os rumos do partido em um jantar. BF – No cálculo do eleitor, o que são feitos positivos do governo? D´Avila – O eleitorado considera a estabilidade econômica uma conquista. Lula é o único capaz de mantê-la? Não, o Alckmin talvez também conseguiria. Mas Lula está nessa posição. O Alckmin tem que apresentar algo além, e não tem nada para propor. As políticas compensatórias são outro dado. Lula, ao sobreviver a essa crise, representa ainda a credibilidade na política, por sua trajetória histórica. Lula se beneficia de apoio de grandes empresários, que financiam sua campanha e não vêem nele um risco.
Brasil de Fato – Por que Lula não foi atingido pelo escândalo de seu partido? Frei Betto – O lulismo transcende o petismo. Isso é uma característica da tradição política brasileira e latinoamericana. Os eleitores aderem a um candidato independentemente de seu partido e de suas propostas. É como time de futebol. Que ganha ou perca, não deixa de ser corinthiano ou são-paulino. BF – Lula segue crescendo, ou seja, não se trata só de voto cativo. Frei Betto – Lula segue crescendo pelo êxito que teve nas políticas sociais, especialmente o Bolsa Família. Você garantir a 11 milhões de famílias um salário mensal, de R$ 70 a R$ 95, é significativo. Além disso, o salário mínimo foi reajustado acima da inflação. Em 2003, lutávamos para que
o salário mínimo chegasse a 100 dólares – estava em 82 dólares. Hoje, está em 160 dólares. BF – Mas não estaria faltando um programa de governo? Frei Betto – O programa está ausente, pois o governo Lula fez a opção de priorizar o capital financeiro. Pagou 530 bilhões de dólares em juros e amortização da dívida pública de 2003 a meados deste ano, enquanto deu apenas R$ 30 bilhões para políticas sociais. Mas é preciso notar que, nos governos anteriores, nem isso era aplicado na área social. BF – O lulismo vai ter impacto em longo prazo? Frei Betto – Tenho para mim que Lula vai ser candidato em 2014. Vai ser o primeiro a ter três mandatos. Não se cria uma liderança da noite para o dia. São anos de tra-
Frei Betto, teólogo, assessor especial de Lula entre 2003 e 2004
balho de Lula, do partido, para criar essa referência paradigmática. BF – Como fica o PT? Frei Betto – O que se tem, no primeiro mandato, e vai ter, em um eventual segundo, é uma aliança entre inimigos históricos, causa da crise ética do PT. O partido está acenando para um pacto social que incluiria o próprio PSDB. Parece-me algo inviável, em um país como o Brasil, onde a desigualdade social é demasiadamente abissal para que se faça um acordo de cavalheiros.
A despolitização Brasil de Fato – Lula pode ser reeleito ainda no primeiro turno. O que explica seu sucesso? Chico de Oliveira – Estar no governo é 50% do caminho. Temos uma tradição muito personalista e presidencialista. Lula não perdeu pontos com a população mais pobre, apesar dos escândalos. Sua consolidação no Nordeste é absoluta. BF – Por que ele consegue tantos votos no Nordeste (70% do eleitorado)? Chico – Tem um componente regional, que existe no Brasil. Quando se sabe tocar no nervo, ele vem à tona, mesmo que Lula só seja nordestino no nascimento. Geraldo Alckmin tem uma imagem de paulista, que não é uma imagem fácil. Além disso, o candidato do PSDB é muito fraco.
BF – Não é um voto programático? Chico – Não tem programa. Só quer o continuísmo. Vai fazer o que para o mundo financeiro está dando certo. Vai fazer isso e continuar batendo na tecla do Bolsa Família. Não tem nada novo a anunciar. Se ele anunciar o que está preparando, perde votos, principalmente entre a classe média politizada. O que vem por aí é nova reforma da Previdência, autonomia do Banco Central. Ele cala isso. Como o outro não tem nada novo a oferecer, Lula não precisa se esforçar para marcar fortemente sua política. BF – Um candidato sem programa, que vai vencer as eleições. O que isso representa para a democracia brasileira? Chico – O impacto é extremamente negativo, é conservador. Ele se afastou
Chico de Oliveira, sociólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP)
do PT, que tem de correr atrás do prejuízo. A democracia fica algo banal, que não quer dizer nada para as pessoas. É como nos Estados Unidos, em que o eleitor não se interessa, não vê diferença, não repercute em seu cotidiano. BF – É um processo de despolitização. Chico – Total. As imagens, metáforas e apelos que Lula faz, e que o Alckmin faz, são apolíticos. E até antipolíticos. É como se política fosse algo sujo, do qual é preciso se afastar.
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NACIONAL TRABALHO
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Quem manda Apesar de ter recuado nas demissões, temporariamente, a própria Volkswagen do Brasil divulgou nota para informar que a matriz da empresa, na Alemanha, deu prazo até novembro para que a filial faça o corte de 3.600 funcionários. O fato apenas confirma que o capital estrangeiro investido no Brasil não tem o menor compromisso com o povo brasileiro. Soberania nacional é a indústria fazer o que é melhor para o Brasil. Comunicação furada O programa de governo anunciado pelo candidato Lula, do PT, não passa de um amontoado de intenções genéricas, cuidadosamente preparado para evitar conflitos e cobranças. Apesar de falar em democratização da comunicação, o programa não avança nas propostas concretas para acabar com os oligopólios no rádio e na TV. O medo da mídia burguesa é maior que a demagogia. Concentração midiática Nada tem impedido a contínua concentração – ilegal e inconstitucional – dos meios de comunicação no Brasil: as cinco maiores redes de TV controlam 438 emissoras regionais. São 116 da Globo, 105 do SBT, 100 da Record, 77 da Band e 40 da Rede TV!. Os canais comunitários, educativos e universitários, que deveriam oferecer uma programação mais democrática, estão abandonados pelo poder público. Bebedeira eleitoral Igualados nos programas e nas práticas políticas, partidos e candidatos fornecem uma curiosa ciranda na atual campanha eleitoral: em São Paulo, Quércia (PMDB) e Maluf (PP), que sempre foram adversários, agora estão coligados; ambos, que sempre foram combatidos pelo PT, agora apóiam Lula presidente. Igualmente em Minas, Newton Cardoso; em Pernambuco, Inocêncio Oliveira; em Alagoas, Collor de Mello e assim por diante... Carta marcada Setores da burguesia que querem manter Lula refém no próximo quatriênio guardam na gaveta a proposta de impeachment baseada em um empréstimo – ou doação – da Telemar para a empresa do filho do presidente da República. Nem que o milagre produza o renascimento do compromisso do PT com a transformação social – o que parece inviável –, vai mudar a natureza conservadora do futuro governo. Visão futura Numa eleição sem disputa de projetos, praticamente decidida e com o nivelamento dos discursos e práticas políticas, todas as alternativas independentes, rebeldes e radicais são mais conseqüentes para a construção de outro Brasil do que a mesmice de sempre, o medo da ousadia e o voto pragmático no menos pior. Quem estará mais receptivo e propenso para construir o novo do que eleitor da ruptura-já? Maré baixa Exímio puxa-saco e chantagista de todos os governos brasileiros desde a década de 1950, o político baiano Antonio Carlos Magalhães, vulgo Toninho Malvadeza, cacique do PFL, anda em fase de descontrole autoritário. Acostumado a ser bajulado pela mídia, ACM perdeu espaço para Lula na TV Globo e agora tem enviado cartas grosseiras a articulistas de jornais que o criticam. O “coronelismo” também sofre! Jagunço ataca A CNBB manifestou total solidariedade ao bispo de Ji-Paraná, no Estado de Rondônia, Dom Antonio Possamai, que está sendo ameaçado de morte pelo próprio governador Ivo Cassol. Tudo porque uma comissão ecumênica distribuiu um cartaz com nomes e fotos de 23 políticos acusados pelo Superior Tribunal de Justiça de crimes de corrupção, inclusive o governador. A ameaça mostra que o Brasil arcaico continua vivo!
Governo quer mudar o FGTS Arquivo Brasil de Fato
CUT defende proposta; juristas apontam mudança na finalidade original do fundo Pedro Carrano de Curitiba (PR)
O
Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) deu o sinal verde, em 29 de agosto, para a elaboração de um projeto de lei que desvia 80% dos “recursos livres” do FGTS para o financiamento da construção de estradas, ferrovias, portos e energia elétrica, ou seja, para a área de infra-estrutura. Os “recursos livres”, conhecidos também como o patrimônio líquido do fundo, correspondem ao que sobraria no fundo se fossem pagos todos os compromissos com os trabalhadores. A proposta – feita pelo ministro do Trabalho e presidente do Conselho, Luiz Marinho – altera uma lei sobre o uso dos recursos do FGTS. Hoje, apenas 60% do “patrimônio líquido” do fundo pode ser investido em habitação, moradia popular e saneamento. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), um dos oito membros da sociedade civil no Conselho Gestor do FGTS, foi favorável à iniciativa de Marinho – bem como outras três entidades representantes dos trabalhadores (Força Sindical, Social Democracia Sindical, Central Geral dos Trabalhadores). O presidente da CUT-Paraná, Roni Anderson Barbosa, comenta que, na opinião da entidade, a proposta do Fundo para financiar projetos na área de infra-estrutura é interessante, “desde que haja a garantia de que os recursos voltem, pois é um recurso oriundo dos trabalhadores, e que o investimento fique bem explícito, para que não haja calote”, diz.
DESVIO DE FINALIDADE A controversa proposta gerou críticas de juristas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato. Advogados trabalhistas alertam para os riscos embutidos na própria – já que um dinheiro do trabalhador, garantido pelo governo, passará a ficar sujeito às oscilações do mercado. Além disso, apontam que a medida desvia uma função social que esses recursos deveriam cumprir, já que 60% do “patrimônio líquido” do fundo poderia ser investido em habitação, moradia popular e saneamento. O Brasil apresenta um deficit estimado de 6 milhões de moradias populares e 10 milhões de famílias carecem de saneamento básico. Segundo um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), seriam necessários R$ 72 bilhões para suprir apenas o deficit habitacional. Ou seja, mais do que o triplo do patrimônio líquido do FGTS, que é de R$ 20 bilhões. Para eles, de fato, a aplicação do patrimônio líquido do fundo em moradia e saneamento básico tem vantagens para o conjunto da sociedade. “Existe uma baixa rentabilidade, porém é preciso levar em conta a proposta social dela”, explicam. Giani e Amorim enxergam a medida em relação direta com a política econômica praticada ao longo do governo Lula, que somou R$ 520 bilhões destinados ao pagamento de juros da dívida pública (interna e externa). Ou seja, em uma ponta o governo corta investimentos e destina mais recursos de seu orçamento para pagar os juros da dívida. Enquanto isso, como contrapartida, tenta retirar verba de obrigações sociais para conseguir receita para investimen-
Caso aprovado projeto de lei, o FGTS poderá ser usado para construção de estradas, ferrovias e portos
tos em infra-estrutura (rodovias, hidrelétricas etc). “O governo arrecada R$ 10 bilhões por ano com a CID (imposto sobre os combustíveis), mais R$ 25 bilhões com a CPMF (transações financeiras) e esses recursos não são destinados para o que deveriam: áreas de educação, saúde e para o crescimento do país. Isso cria um vazio, que necessita ser preenchido com outro aporte, e esse aporte agora seria o FGTS, destinado para uma finalidade que já existe. A grande questão que move isso é o desvio do papel inicial do fundo, tanto a questão do desvirtuamento dos valores aportados, quanto do orçamento do pa-
ís destinado para o pagamento da dívida”, afirmam os dois juristas.
RISCOS Mesmo com o apoio da entidade à medida atual, o sindicalista ressalta os riscos inerentes ao investimento no mercado e sublinha que a entidade não foi favorável à transferência de renda do trabalhador para uma empresa em vias de apresentar o controle acionário privado, ocorrida durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (como aconteceu com a Vale do Rio Doce, em 2002). Diz ele: “O trabalhador não pode ir para o mercado como um investidor, não tem as mesmas condições, pois seu
dinheiro é para suprir suas necessidades. Em certos momentos, os trabalhadores teriam que vender suas ações e o grande investidor lucraria com os preços baixos”, defende. Questionado pelo Brasil de Fato, o secretário executivo do Conselho Curador, Paulo Eduardo Cabral Furtado, defende que não há o risco de calote caso o empreendimento não tenha sucesso. “Só vamos investir em coisas novas, queremos a expansão da infra-estrutura e investiremos com 30% do valor dos empreendimentos. Existe uma avaliação de risco rigorosa. O lado do investimento tem riscos, mas se você tem instrumentos de avaliação, você pode ter riscos baixíssimos”, comenta.
Fundo compensou perda de estabilidade O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) foi criado em 1966 para compensar a extinção da garantia de estabilidade do trabalhador na empresa privada após dez anos de serviço. Mensalmente, os empregadores passaram a fazer um depósito em uma conta, que fica sob a responsabilidade do governo. Os recursos são liberados como benefícios
apenas em algumas circunstâncias específicas de demissão do empregado ou, então, de financiamento habitacional. A partir da década de 1990, iniciou-se um movimento para direcionar o FGTS ao mercado acionário, como ocorreu na gestão de Fernando Henrique Cardoso, quando se criaram fundos de investimentos em ações da Petrobrás
(2000) e da Companhia Vale do Rio Doce (2002). Agora, o projeto aprovado pelo Conselho Curador do FGTS – que em breve será encaminhado ao Congresso – prevê que o trabalhador aplique nos empreendimentos em infra-estrutura, comprando cotas de projetos de rodovias ou hidrelétricas, por exemplo, por meio da sua conta vinculada do FGTS. (PC)
ECONOMIA SOLIDÁRIA
O pão anticorporativo de Curitiba A maioria são mulheres. Já passaram dos 40 anos e não conseguiam inserção no “mercado de trabalho” – no máximo, um subemprego ou outro, instável. Agora, são elas que administram e batem o pão de 22 padarias comunitárias, em bairros periféricos e na região metropolitana de Curitiba. Elas juntam a capacitação que recebem sobre a economia solidária com a experiência de anos preparando a comida para sua família ou paróquia. Para cobrir os primeiros gastos, comprar o trigo e as demais matérias-primas, foi preciso recorrer a festas, “rifas” e doações na comunidade. O espaço normalmente é cedido por algumas das entidades de apoio, que oferecem capacitação técnica e formação política, entre elas o Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Casa do Trabalhador e casas paroquiais. Os fundos vêm do programa Fome Zero, do Governo Federal e da Secretaria de Trabalho Estadual, que custeia os fornos. No caso de Rosalba Wisnievski e de suas outras quatro companheiras da comunidade Vila São Pedro, a história foi essa mesma: “Não tínhamos trigo, nem nada pra começar, então o mercadinho ao lado nos vendeu fiado”, conta. Faz sentido. A intenção das padarias é interagir com suas comunidades, fornecendo pão a preços baixos para o bairro e buscando seus produtos no mercado local. E evitando comprar produtos transgênicos. “Buscamos o produto nosso, brasileiro, não trabalhamos com o
trigo da Bunge (transnacional de alimentos estadunidense), por exemplo”, explica Rosalba.
CONCEPÇÃO ALTERNATIVA As trabalhadoras partem para uma gestão autônoma, trazendo uma experiência iniciada nos clubes de troca de produtos, e agora aprendem a dividir os custos e os lucros entre elas. Um conselho gestor conecta as padarias de diversos bairros da periferia de Curitiba. Neles se decide o que acontece entre as padarias, embora cada estabelecimento decida a quantidade produzida e o preço, de acordo com as encomendas, sem preocupação com o tempo ou o volume fabricado. Segundo o educador popular do Cefuria, Antonio Carlos Bez, a intenção do conselho é que as panificadoras trabalhem como parceiras, e não como concorrentes, revezando-se na capacitação das comunidades que estão montando a sua padaria. O aprendizado se dá tanto no plano técnico quanto no político, por meio de um curso sobre a História Social do trabalho, de acordo com a metodologia do educador Paulo Freire. Bez defende que as padarias comunitárias, por meio da economia solidária, são uma alternativa concreta à lógica capitalista. “A lógica do mercado é o lucro, e na economia solidária, a base é a pessoa, não se inicia primeiro tendo lucro e depois funcionando. Ela leva em conta a alimentação do ser humano, a questão material, mas também a questão imaterial, de afeto, de solidariedade”, afirma. (PC – Leia a íntegra da reportagem na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br)
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NACIONAL
SÃO PAULO
Alckmin: mentiras sobre a reforma agrária Sem cumprir as metas de assentamentos, governo paulista devolveu verbas destinadas a sem-terra para a União
Fonte: Simulação feita pelo Brasil de Fato a partir de dados do Itesp
Das 101 famílias que o Itesp garante ter assentado em São Paulo em 2005, 77 delas, de acordo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ainda não tiveram nem os seus lotes divididos
Dafne Melo da Redação
O
candidato tucano à Presidência da República, Geraldo Alckmin, declarou durante o primeiro debate televisivo, em 14 de agosto, que, se for eleito, fará a reforma agrária no país, assim como fez no Estado de São Paulo. A julgar pela avaliação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelos próprios dados do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), caso o tucano vença as 200 mil famílias sem-terra acampadas passarão ainda muito tempo embaixo das barracas de lona. Atualmente, no Estado de São Paulo, há cerca de 10.500 famílias acampadas, de diversos movimentos sociais, segundo a superintendência paulista do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A região mais problemática e de responsabilidade direta do governo estadual, o Pontal do Paranapanema (extremo-Oeste do Estado) concentra, aproximadamente, 2.500 famílias. Segunda região mais pobre de São Paulo, a área é conhecida pelo intenso conflito fundiário, impulsionado pela ação de grileiros. José Batista, da direção nacional do MST, afirma que há aproximadamente 1 milhão de hectares de terras devolutas no Pontal. Como são pertencentes ao Estado de São Paulo, o processo de arrecadação e regularização das terras é de competência do Itesp.
NÚMEROS Desde 2003, quando se iniciou a gestão de Alckmin, o órgão afirma ter assentado, em todo o Estado, 685 famílias,
sendo 515 só no Pontal. Cido Maia, da coordenação regional do MST na região, rebate os números, que já são muito baixos se comparados com a meta que, segundo Maia, era, só para 2004, de 1.400 famílias. Apesar de tidos como concluídos pelo Itesp, os projetos de assentamentos em Porto Maria e Santo Expedito, ambos do MST, e com capacidade para 77 famílias, ainda não se efetivaram. Os lotes sequer foram demarcados e as escrituras das terras não foram liberadas. “Dividimos os lotes por iniciativa nossa e como forma de luta, de pressão, mas nada está regularizado”, relata Maia. José Batista conta que, desde 2003, nenhuma linha de crédito estadual foi concedida a um assentamento do MST na região. A seu ver, por trás dessa atitude, também está a tentativa de desmoralizar os
movimentos de luta pela terra. “Não dão suporte aos assentados para dizerem que reforma agrária não dá certo”, protesta. Para Batista, a reforma agrária nunca foi encarada como política pelos governadores paulistas. “Houve políticas de assentamentos, até para amenizar o conflito fundiário, mas reforma agrária de fato não há, e nunca houve”, conclui. De acordo com a Secretaria de Agricultura do Estado, R$20 milhões foram concedidos a pequenos agricultores (até R$210 mil de lucro bruto) em 2006 e mais R$23 milhões devem ser liberados. Ao questionar a quantia que teria ido para assentamentos rurais, a Secretaria afirmou que não faz distinção entre agricultura familiar e agronegócio. Ainda sobre os dados fornecidos pelo Itesp, Cido Maia afirma que, em 2003, foram contabilizados assen-
tamentos realizados anteriormente. José Batista também identifica a velha prática de contar a realocação de trabalhadores rurais em lotes abandonados por famílias que – sem o amparo devido – não conseguiram produzir.
CONTRADIÇÕES Como argumento para mostrar que o governo do Estado não tem interesse político em fazer a reforma agrária, José Batista afirma que a verba repassada pelo Incra ao Itesp para pagar as indenizações (dadas com base nas obras de infra-estrutura que o grileiro possa ter feito na fazenda) têm sido devolvidas. De acordo com a assessoria de imprensa do Incra-SP, em 2003 foram destinados R$ 29,4 milhões, mas apenas R$ 6,2 milhões foram gastos. Em 2004, o repasse foi de R$ 25,4 milhões e o gasto não chegou
à metade do valor. Durante todo anos de 2005 e os dois primeiros meses de 2006, a União repassou pouco mais de R$ 15 milhões. Nada foi gasto, ou seja, nenhuma área foi retomada. Além de retomar as terras devolutas, o Itesp, por meio de seus técnicos, também deveria dar apoio à agricultura familiar, conforme define seu estatuto. Batista conta que o atual governo desvirtuou a natureza da instituição e a utiliza para fomentar o agronegócio em áreas de assentamentos rurais. Batista cita casos em que técnicos incentivaram assentados a produzir cana-de-açúcar para usineiros. “Função social de um assentamento é produzir alimento saudável. O Itesp, ao sugerir essas parcerias de assentados com usineiros, subordina a agricultura familiar ao agronegócio”, explica.
PERNAMBUCO
Violência no campo, resultado da aliança entre fazendeiros e juízes O tiro saiu pela culatra. Latifundiários e políticos conservadores de Pernambuco pretendiam isolar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), prendendo Jaime Amorim, uma de suas lideranças, em 21 de agosto. A justificativa para a prisão era seu mau comportamento em um protesto. O motivo foi considerado “sem fundamentação”, pelo ministro Nilson Naves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ, e Amorim foi solto, uma semana depois. Em entrevista ao Brasil de Fato, o coordenador do MST analisa a violência no campo pernambucano. Narra também as condições precárias do presídio em que ficou. Com outros presos, debateu alternativas políticas para melhorar o sistema carcerário e lutar contra a exclusão social. Brasil de Fato – Como você avalia o crescimento da violência no campo em Pernambuco? Só em agosto, tivemos ameaça de despejo do acampamento Chico Mendes, assassinato de duas lideranças do MST, a sua prisão e a prisão de mais dois militantes. Jaime Amorim – O que ocorre aqui em Pernambuco é o que ocorre em todo o país. De fato, com gravidade um pouco maior. A violência assume diferentes formas, dependendo do período e do território. Temos aqui, em alguns momentos, enfrentamentos diretos com o latifúndio, com as milícias armadas dos latifundiários. Em outros momentos, como ultimamente, enfrentamos a agressão direta do Estado, com
Podem investigar – até já foram decretadas as prisões preventivas dos suspeitos –, mas o objetivo é outro. Além de criminalizar e isolar o MST da sociedade, nesse caso, a idéia era tentar afastar uma liderança, em um momento importante. Eles acreditaram que o movimento ia agir contra a incoerência do Estado e eles justificariam sua reação. Mas o que eles fizeram saiu pior para eles do que para nós. Todo mundo sentiu a incoerência de uma prisão no meio do sepultamento de um companheiro e com outro ainda para sepultar, vítimas da exclusão social.
João Carlos Mazella
Mariana Martins de Recife (PE)
Jaime Amorim, dirigente do MST em Pernambuco, solto após uma semana preso
seu aparato repressivo. Também sofremos com outra parte do Estado, o Poder Judiciário. O poder, digamos, da injustiça social e jurídica do Estado. Sofremos com prisões, reintegrações de posse, prisões preventivas e inquéritos injustificados. Lembrando que todas as reintegrações de posse solicitadas pelos usineiros e fazendeiros, a Justiça tem atendido prontamente. BF – Você declarou que sua prisão tinha relação com o processo eleitoral. Por quê? Amorim – Com minha prisão, o Estado estava provocando o MST para que viesse, com a força do povo, fazer pressão nas portas do Judiciário e do presídio. Assim, eles poderiam justificar a repressão contra o movimento, vinculando o fato a um processo político eleitoral e tentando nos isolar cada vez mais. Conduzimos a questão de forma bastante
madura. Só deixamos as mobilizações populares acontecerem depois de esgotadas todas as possibilidades jurídicas. Tivemos muitos apoios, locais, nacionais e internacionais. Não lembro de uma manifestação que teve o apoio de tantos parlamentares. Muitos podem dizer que esse apoio foi eleitoral, e pode ser. Só que a elite queria fazer justamente o contrário, queria que os candidatos não viessem nos apoiar, achando que iam perder voto. Mas eles vieram. Isso demonstra que as pessoas estão dispostas a defender a reforma agrária. BF – Você acredita que a sua prisão teria como objetivo desviar o foco das investigações das mortes de Josias e Samuel, militantes assassinados um dia antes de sua prisão? Amorim – Não necessariamente, porque, de qualquer forma, eles não vão investigar a fundo.
BF – Você fez declarações na imprensa sobre a necessidade de assumir a luta pela melhoria do sistema penitenciário. Amorim – Não poderia sair de lá sem fazer uma declaração em relação à situação dos presídios – apesar de eu estar em uma cela especial. Passei uma semana detido e, tirando a prisão, não passei nenhuma dificuldade. Fiquei no meio de médicos, advogados, policiais, portanto, da “nata” do presídio. Não tenho nada a reclamar de onde eu estava. Só que, do meu lado, estavam mais de 700 presos amontoados. Aproveitei a semana inteira para fazer muito debate. Debate na cela onde eu estava, debate com médicos, psicólogos, trabalhadores do presídio e com outros presos. Foi daí que obtive uma informação que não tinha: para cada preso, o Estado paga ao sistema penitenciário brasileiro R$ 1.700. Isso é o cúmulo, se você constatar a situação dos presídios desse
país! A maioria dos presidiários está abandonada. São vítimas da exclusão social. BF – Como está a reforma agrária em Pernambuco? Amorim – Há uma tentativa de melhorar o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Pernambuco. Mas, infelizmente, a instituição é muito ruim, a maioria dos servidores ainda é do período da ditadura militar, reacionários na postura, atrasados na questão técnica. Isso impede avanços. Tem também muita oposição dentro do próprio governo federal, em relação ao que fazer com a reforma agrária. Há ainda uma burguesia agrária com um poder político muito forte. A maioria dos juízes está vinculada à burguesia agrária. O atraso e as posturas conservadoras em relação à reforma agrária são resultado do vínculo familiar e econômico com a burguesia agrária. A perspectiva de mudança, em curto prazo, é muito pequena. Vamos dizer assim: depende da nossa capacidade de mobilização. (Leia a íntegra da entrevista na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
Jaime Amorim é dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Pernambuco. Participa da organização desde a fundação desta, em 1984. Nasceu em Santa Catarina, mudou-se para a Bahia, em 1985. Sete anos depois, foi para Pernambuco. É formado em Pedagogia.
Quem é
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CULTURA ANÁLISE
Valter Campanato/ABr
Do Tropicalismo à Indústria Cultural
O ministro da Cultura, Gilberto Gil, conversa com Dona Canô Veloso, mãe de Caetano Veloso, durante lançamento da Casa do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e do CD Samba de Roda (Patrimônio da Humanidade), no Solar de Subaé (antigo Solar Araújo Pinho), na cidade natal de Caetano, Santo Amaro, Bahia. Caetano e Gil, líderes da vanguarda tropicalista dos anos de 1960, estão hoje no topo tanto da Indústria Cultural quanto da burocracia estatal da cultura
Francisco Alambert
O
filósofo alemão Walter Benjamin afirmou que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. De barbárie o nosso mundo está cheio. E também de “cultura” para todos os gostos, sobretudo “cultura” compreendida como “negócio” de alguém. Por isso, outro pensador marxista, o estadunidense Fredric Jameson, afirmou que a lógica do capitalismo tardio (ou pós-moderno) é ela mesma “cultural”. Assim, em qualquer processo de emancipação cultural ou política, a “cultura” deve resistir tanto a si mesma (a seus aspectos conservadores e confirmadores do sistema do poder opressivo) quanto à violência que está na base de sua formação e na forma de sua permanência. Mas em qual tradição histórica a nossa bárbara modernidade cultural, bem como a forma de administrá-la, está incluída? O Tropicalismo, a última das grandes “vanguardas nacionais”, e sua forma de conceber a cultura é uma dessas “tradições” que ainda persistem nas condições atuais da política cultural e em seus impasses contemporâneos. Surgido durante o pior período da ditadura militar, o Tropicalismo se alimentou de idéias vindas do Modernismo de 1922, da vanguarda concreta e neoconcreta dos anos de 1950, dos movimentos de contestação do contexto de 1968 etc. Mesmo perseguidos pela ditadura, os êxitos dos tropicalistas em todos os campos são notáveis. Tanto que mesmo depois do desaparecimento de todas as condições históricas de seu surgimento, podemos dizer que a “Verdade Tropical” se tornou a ideologia cultural dominante no Brasil: um de seus principais pensadores é o atual ministro da Cultura de um governo que era para ser “de esquerda”; e o outro, Caetano Veloso, recentemente chegou ao pódio máximo que um artista do sistema internacional pode chegar, a “cerimônia” do Oscar. Ou seja: os próceres da vanguarda dos anos 60 estão hoje no topo tanto da Indústria Cultural quanto da burocracia estatal da cultura.
NOS CÍRCULOS DO PODER Desse modo, a herança da vanguarda tropicalista se assenta nos círculos do poder contemporâneo. Por um lado, seu aspecto contestador dos costumes da vida burguesa da periferia do capitalismo desapareceu. Por outro, sua feroz crítica aos pressupostos da esquerda cultural, sempre acusada de “patrulhamento” (crítica que em seus piores momentos pouco se diferenciava da histeria anticomunista da própria ditadura) e sua apologia da Indústria Cultural como uma realidade tanto inescapável quanto atualizadora, permitiram a sobrevida da “forma tropicalista” e garantiram sua escalada vertiginosa ao topo do poder. Assim, o mundo “pós-moderno”,
neoliberal, anti-revolucionário, multicultural (e demais ideologias oficiais) convive com uma versão quarentona do Tropicalismo. Entender como se dá a dialética dessa “tradição” (agora tanto razão de Estado quanto centro da Indústria Cultural) e dessa “modernidade” é central para se compreender a questão cultural no Brasil contemporâneo, sobretudo no que tange à possibilidade de revitalização de uma cultura de “resistência”. No Brasil de hoje, a máquina da produção cultural vive espremida entre a falta de recursos do Estado dinamitado pela experiência neoliberal e a produção orientada pelo mercado mas usando o dinheiro público por meio de leis de incentivo – que em vez de equilibrar os pólos público/privado, os embaralha, dando ao segundo mais vantagens que ao primeiro. Nessa “dialética rarefeita”, a síntese é a Indústria Cultural, que reina soberana e diz o que deve ou não deve ser visto ou produzido. Nesse quadro, o velho tema nacionalista da “Identidade Nacional” perde de vez o sentido, na medida em que o Estado luta para “preservá-lo” como atrativo de espetáculo para empresas financiadoras e a Indústria Cultural faz a mesma coisa (estereotipando o “nacional”, tal como as novelas e minisséries nacionalistas da Rede Globo, em busca de se afinar com o governo “tropicalizado” e vagamente de “esquerda”).
CENTRALIZAÇÃO Como a produção é centralizada na forma dos interesses de mercado, acaba-se criando um padrão do “nacional” que é imposto, estereotipado e circunstancial (pois se vale da “nação” até o momento em que ela faz parte do negócio e jamais como exercício de um projeto de autonomia nacional). E para embaralhar ainda mais as coisas, lembremos que a mesma televisão que dá “acesso” aos temas nacionais
“típicos” entende que o brasileiro “médio”, espectador de seu maior telejornal (justamente o Jornal Nacional), deve ser tratado como um “Homer Simpson”, segundo pensa o próprio editor do telejornal. Ou seja: para ela, o brasileiro típico é o típico estadunidense pateta de desenho animado. O escárnio “global”, curiosamente, lembra a ação tropicalista em seu desejo de assentar uma imagem do Brasil a partir de contradições e choques – eterno vai-e-vem entre tradição e ultramodernidade. Só que agora, instrumentalizado às últimas conseqüências pelo poder formativo da Rede Globo, essa “mistura”, essa “estratégia de choque”, constitui um enorme rebaixamen-
AGENTES VIVOS Nesse contexto, entendo que os meios culturais e tecnológicos só se tornarão transformadores se saírem desse círculo vicioso, se forem apropriados e ocupados pelos agentes culturais
“
Como a produção é centralizada na forma dos interesses de mercado, acaba-se criando um padrão do “nacional” que é imposto, estereotipado e circunstancial (pois se vale da “nação” até o momento em que ela faz parte do negócio e jamais como exercício de um projeto de autonomia nacional) to crítico, bem como uma estratégia de manipulação do espectador. Para escapar desse círculo de interesse e de cinismo, é preciso compreender literalmente a cultura de resistência como acesso à produção. Essa é a questãochave em uma política emancipadora e autêntica – coisa que a política tropicalista, centrada na crença da inexorabilidade da Indústria Cultural, Lei Federal de Incentivo à Cultununca levou a sério. ra ou Lei Rouanet E aqui entram bons – concebida em projetos atuais, como 1991, pretende estimular empresas e os Pontos de Cultura, pessoas a financiar que levam os agentes projetos culturais. Os patrocinadores culturais a tomarem recebem benefícios para si o processo de fiscais, que podem produção livre de inalcançar 100% do valor do Imposto de teresses de mercado, Renda. possibilitando a pro-
Repensar o Estado, repensar a arte da Redação O jornal Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o jornal O Sarrafo, a Revista Sem Terra, o coletivo Intervozes e a Cooperativa Paulista de Teatro promovem em São Paulo (SP), em 13 de setembro, o debate “Políticas Públicas e Cultura”. O evento vai contar com a presença de Paulo Arantes, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Francisco Alambert, professor de História da Arte da USP, Diogo Moysés, jornalista integrante do Intervozes, Luiz Carlos Moreira, diretor do Engenho Teatral, e Leandro Saraiva, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Os debatedores vão discutir o
dução cultural emancipada da simples idéia do espetáculo, que é a idéia que norteia a lógica do financiamento pelas leis de incentivo do tipo Lei Rouanet – que faz com que o Estado financie o marketing das empresas, permitindo que publicitários e marqueteiros decidam o que vai ser produzido ou não, o que devemos ver ou não, o que é mais “brasileiro” ou “moderno” (ou as duas coisas de preferência).
papel do Estado na criação e aplicação de políticas voltadas para a cultura, especialmente no governo Lula. A iniciativa é a primeira de uma série de atividades que serão organizadas com o objetivo de estimular o debate sobre a questão cultural na sociedade brasileira. Debate: Políticas Públicas e Cultura Data: 13/9 – quarta-feira Horário: a partir das 19h Local: Teatro Fábrica Endereço: Rua da Consolação, 1623 – São Paulo/SP ENTRADA FRANCA Mais informações: Teatro Fábrica: (11) 3255-5922 Brasil de Fato: (11) 2131-0800
“vivos”. Cultura é luta política de interesses tanto quanto a economia. Para que ela seja transformadora e revolucionária (inclusive do ponto de vista da “linguagem”) é preciso que o processo de produção esteja na mão dos agentes culturais (e não do “povo” entendido como números de IBOPE, como massa de assistência). Para isso é preciso interferir (sem medo do discurso furado do “patrulhamento”, péssima herança da despolitização tropicalista), com o Estado garantindo não apenas exibição, mas também a produção e circulação livres. Só que isso contraria interesses de mercado, que freia o quanto pode, que sabota projetos. Arte e cultura de resistência têm que estar sempre contra a bárbarie, como diz o movimento mais efetivo que conheço, justamente o “Arte contra a Barbárie”, que não se negou a ajudar a elaborar uma lei de incentivo ao teatro, na cidade de São Paulo, baseada na ocupação de espaços públicos praticamente abandonados. Seus princípios, assim como os princípios dos coletivos de Cultura do MST, não são mais pautados pela aceitação, complexa porém festiva, da “modernidade” contemporânea “convivendo” com a Indústria Cultural, herança da acomodação tropicalista, mas sim pela luta para que os grupos organizados de agentes culturais, ao mesmo tempo produtores e pensadores, surjam por suas necessidades e sem a pressão dos interesses da Indústria Cultural ou de um Estado atrelado (ou freado) pelos interesses de mercado. Sua lição seria esta: precisamos esquecer as fantasias tropicalistas e politizar as ações de grupo. Francisco Alambert é professor de História Social da Arte e História Contemporânea da USP
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AMÉRICA LATINA
MÉXICO
Arquivo Brasil de Fato
CUBA
As contradições da expansão do capital Jorge Pereira Filho da Redação
Movimento encabeçado por López Obrador definirá novas estratégias em 16 de setembro
Justiça valida pleito; crise continua Tribunal Eleitoral declara Calderón como vencedor. López Obrador não reconhece a decisão e inicia campanha por Constituinte da Redação
P
or uma controversa diferença de cerca de 200 mil votos, em um universo de 41 milhões de votantes, o Tribunal Eleitoral do México reconheceu, no dia 5, o advogado Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional (PAN), como o vencedor das eleições presidenciais. A decisão dos magistrados, questionada pelos partidos progressistas, encerra um turbulento período da história política mexicana e inicia outro, tão instável quanto e ainda mais imprevisível. A oposição, encabeçada pelo ex-prefeito da capital Cidade do México Andrés Manuel López Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), apoiado pela “Coalizão pelo Bem de Todos”, não reconheceu o resultado. Antes mesmo do anúncio do Tribunal, Obrador declarou: “Esse movimento já transbordou, vai além da disputa pela Presidência da República. Agora, esse movimento está convocado a transformar o país”. A decisão dos magistrados era esperada. Uma semana antes, o Tribunal arquivou centenas de processos que pediam a recontagem dos 41 milhões de votos. Foram canceladas apenas 9% das urnas em que houve denúncias de fraudes – apesar dos contundentes indícios de manipulação indevida do pleito, como o desaparecimento de urnas nas regiões onde Obrador era favorito.
Como se não bastasse, os números finais da eleição, realizada em 2 de julho, escancaram a debilidade do respaldo político do candidato conservador (veja seu perfil abaixo). O índice de abstenção foi de 41%. Dos 71 milhões de eleitores mexicanos habilitados a votar, somente 14,9 milhões (21%) escolheram Calderón. E a diferença em relação a Obrador, após a decisão do Tribunal, ficou em apenas 0,57 ponto percentual.
CONSTITUINTE O movimento que apóia Obrador prepara, ainda, uma outra iniciativa que poderá servir para medir como estão o ânimo dos simpatizantes do candidato do PRD, após um longo processo de resistência. Desde julho, milhões de pessoas têm feito protestos em todo o país para questionar as eleições. Montaram, ainda, um acampamento na região central da Cidade do México e bloquearam a principal avenida da capital, o Paseo de la Reforma. Uma data importante no cenário político do México, agora, vai ser 16 de setembro, quando deve ser realizada a Convenção Nacional Democrática. Seu objetivo é “decidir, com representantes de todos os povos do país, o papel que assumiremos na vida pública do México ante as atuais circunstâncias”, registra a convocatória oficial. Na ocasião, a Convenção poderá eleger Obrador como “comissário do povo” e encampar uma discussão
em todo o país para realizar uma Assembléia Constituinte.
PROTESTO CONTRA FOX O movimento oposicionista conta também com o apoio dos parlamentares do PRD, PT e Convergência, que formam a “Coalizão pelo Bem de Todos”. Na sexta-feira – 1º de setembro –, os deputados protagonizaram um fato inédito na história da República mexicana: impediram o presidente Vicente Fox de fazer um pronunciamento ao Congresso. Os parlamentares aliados de Obrador ocuparam o palco, onde o presidente iria ler um discurso, com faixas “Fox, traidor da democracia”. Em virtude do protesto, Fox desistiu de fazer o discurso e fez um pronunciamento à Nação, via televisão. Tentou rebater as declarações de Obrador de que as instituições do Estado ficaram caducas, afirmando que a “governabilidade democrática avança pela via institucional”. O próprio Tribunal Eleitoral do México repreendeu o presidente por suas freqüentes declarações durante a campanha, favorecendo o seu candidato Calderón. Os magistrados entenderam que Fox tumultuou o processo eleitoral. Aliado do estadunidense George W. Bush, o presidente mexicano reconhecera Calderón como seu sucessor, antes mesmo de qualquer decisão da Justiça. (Com informações de La Jornada – www.jornada.unam.mx)
Calderón, um advogado de direita O futuro presidente do México para o período 2006-2012, pelo menos pela decisão da Justiça, Felipe de Jesús Calderón Hinojosa é um advogado de 43 anos classificado pela oposição como um homem de direita e partidário do neoliberalismo. Ele nasceu em Morelia, capital do Estado de Michoacán, em 1962. Depois, mudou-se para a Cidade do México para cursar a faculdade de Direito. No Distrito Federal, começou uma meteóTratado de Livre Comércio da rica carreira denAmérica do Norte tro das fileiras do (Nafta) – acordo comercial que PAN e, com 26 envolve Canadá, anos, foi eleito Estados Unidos e para a AssemMéxico, que entrou em vigor em 1994. bléia Legislativa Entre outras conda capital. Três seqüências, gerou desemprego e anos depois, em êxodo rural no país 1991, ganhou latino-americano. um assento na Câmara dos Deputados. Em sua le-
gislatura, teve papel ativo na discussão do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Das suas posições políticas, é emblemática sua oposição ao uso da tribuna da Câmara baixa do Congresso pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Também esteve comprometido com a reprivatização, principalmente por capitais estrangeiros, do sistema bancário, e com o chamado “resgate bancário”, uma manobra que endividou o país em mais de 100 bilhões de dólares para salvar os bancos privados.
PRESIDENTE DAS CORPORAÇÕES Durante o governo de Vicente Fox, foi titular do Banco Nacional de Obras e Serviços Públicos (Banobras) e, posteriormente, secretário de Energia. Deixou o posto em meados de 2004, quando despontou prematuramente como pré-candidato à Presidência.
Calderón promete ser “o presidente do emprego”, uma das grandes pendências que deixa a administração Fox, e empreender uma série de mudanças com “mão firme e paixão pelo México”.O presidente eleito assegura que “irá além da esquerda” com sua política social. Para o analista mexicano Julio Botvinik, a proposta de Calderón é a continuidade e radicalização do modelo neoliberal. Nada o impedirá de favorecer os grupos econômicos que têm financiado sua campanha, nem de estabelecer um modelo que pode se definido como “neoliberalismo católico e repressivo”, afirma. Calderón, no plano internacional, é desde 1997 membro do Grupo de Líderes Mundiais do Futuro, promovido pelos EUA e, desde 1998, vice-presidente da Internacional Democrata-Cristã. (Prensa Latina, wwww.prensa-latina.com)
A ameaça da Volkswagen de fechar sua unidade de produção em São Bernardo do Campo (SP), neste ano, colocou, no café da manhã de seus 12 mil funcionários, uma das questões mais discutidas no início deste século: os problemas do desenvolvimento e a globalização. A decisão da montadora alemã de rever sua posição no Brasil se insere em uma questão global em que transnacionais, cada vez mais poderosas, se movimentam pelo território mundial como “pássaros voando atrás dos lucros”, define o economista cubano Mario Fernandéz, em entrevista ao Brasil de Fato. O especialista esteve no Brasil para divulgar o 9º Encontro Internacional de Economistas sobre Globalização e Problemas do Desenvolvimento, que vai ocorrer em Havana, entre 5 e 9 de fevereiro de 2007. Brasil de Fato – Como surgiu o encontro? Mario Fernandéz – Oito anos atrás, surgiu a iniciativa de celebrar um encontro para abordar os temas da globalização e o problema do desenvolvimento. Era um período em que o capitalismo se expandia e triunfava. A economia estadunidense crescia, e tudo parecia que continuaria desse jeito. A motivação ideológica e política do encontro foi discutir as realidades do mundo no final do século 20 face à acumulação de questões não resolvidas para a maioria da população do mundo, desde um ponto de vista plural. Não é um encontro apenas para pessoas de esquerda ou de direita. BF – Qual é o acúmulo desses oito encontros? Fernandéz – Os primeiros encontros procuraram entender o que é a globalização, a influência sobre os problemas de desenvolvimento, e vice-versa. Agora, as questões ficaram mais claras. Há um questionamento sobre o que fazer frente a esses processos para procurar resolver os grandes problemas que acumula hoje a maior parte da humanidade. BF – A Volks anunciou que cortará custos no Brasil, mas investirá 1 bilhão de dólares na Índia... Fernandéz – Primeiro, essa questão do deslocamento dos investimentos industriais é um processo antigo, que existe com força há 30 anos. Atualmente, há uma aceleração dos deslocamentos das instalaMaquiladoras – Empresas instações. Isso se ladas no Norte do dá até mesmo México para explono interior na rar a mão-de-obra local. Possuem Europa. As benefícios fiscais próprias mapara importar uma quiladoras, matéria-prima dos EUA e, depois, reinstaladas na enviá-la beneficiado da. São conhecidas fronteira por desrespeitar os México com mínimos direitos os Estados trabalhistas. Unidos, es-
tão fugindo para a Ásia e, em particular, para a China, onde a mão-de-obra é ainda mais barata. É como um pássaro que voa em direção aos maiores lucros, sem compromisso com governos, territórios ou problemas sociais. Não é algo voluntário, são as regras do capitalismo global, com efeitos negativos para a população em geral. BF – Por que esse processo se intensificou? Fernandéz – Existe uma vocação internacional do capital desde o seu nascimento. Lênin caracterizou essa situação com uma frase: “o capitalismo não é o movimento das mercadorias, mas dos investimentos e dos capitais”. Isso ainda no início do século passado. O que ocorreu? O desenvolvimento da ciência e da tecnologia, após a Segunda Guerra Mundial, foi tão acelerado que deu possibilidades inéditas à humanidade: transporte, microeletrônica e telecomunicações. Houve uma mudança das condições tecnológicas da produção, que criaram opções novas para intensificar o processo de movimento de produtos, capitais, pessoas, informação e dinheiro. A globalização é a aceleração dos fluxos.
Há uma contradição enorme no capitalismo atual. Por um lado, há todo um desenvolvimento das tecnologias para fazermos coisas juntas. Por outro, uma filosofia do individualismo BF – Mas essas mudanças têm um verniz ideológico... Fernandéz – Como parte dessas alterações, houve inúmeras interpretações dos processos. Uma delas, do ponto de vista filosófico, foi a neoliberal, que se denomina como a responsável por esse processo. E isso é falso. O pensamento que proclama a total liberdade para o comércio e a economia, de desregulação, de privatização de tudo – da fábrica ao cemitério – tem o individualismo como filosofia de vida. Isso justamente em um mundo que deveria ser cada vez mais humanista, já que estamos mais interdependentes uns dos outros. Há uma contradição enorme no capitalismo atual. Por um lado, há todo um desenvolvimento das tecnologias para fazermos coisas juntas. Por outro, uma filosofia do individualismo. (Leia a íntegra na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br) Arquivo pessoal
Quem é
Mario Fernandéz integra a Associação Nacional de Economistas Cubano (Anec). Tem pós-doutorado na Universidad de La Habana.
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INTERNACIONAL
De 7 a 13 de setembro de 2006
NOVA ORDEM MUNDIAL
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11 de setembro Igor Ojeda da Redação
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dia 11 de setembro de 2001 alterou a geopolítica mundial. Os ataques às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e à sede do Pentágono, em Washington DC, quando morreram cerca de três mil pessoas, deram ao presidente George W. Bush a oportunidade perfeita para ganhar força internamente e impor sua nova doutrina: a guerra preventiva. O Brasil de Fato ouviu quatro analistas com o objetivo de avaliar, cinco anos depois, os efeitos do 11 de setembro no imperialismo estadunidense, no mundo árabe, dentro dos próprios EUA e na América Latina. Segundo o sociólogo James Petras, os atentados
criaram as condições para o surgimento do Novo Imperialismo, que busca sua expansão priorizando o militarismo. Anteriormente, a estratégia consistia no privilégio à dominação econômica. O diretor do Instituto de Cultura Árabe, Mohamed Habib, afirma que os estadunidenses pretendem mudar o mapa do Oriente Médio, por meio da segregação étnica e religiosa. Segundo Anuradha Mittal, do Oakland Institute, o 11 de setembro resultou no “ataque às liberdades civis e direitos humanos básicos dentro do país”. Para Nildo Ouriques, da UFSC, a nova política teve como resposta o crescimento do nacionalismo latino-americano. (Colaborou João Alexandre Peschanski)
e o Novo Império Os destroços do World Trade Center deram a Bush a oportunidade de expandir o domínio dos EUA pela militarização
Nova estratégia de dominação Militarismo, unilateralismo, extraterritorialidade e ações bélicas. Para o sociólogo estadunidense James Petras, professor da Universidade de Binghamton, estas são as características da nova configuração do imperialismo dos Estados Unidos, posta em ação após 11 de setembro de 2001. O Novo Imperialismo, segundo Petras, traz uma inversão no papel que os dois mecanismos que fundamentam a expansão da influência dos EUA – o econômico e o militar – representavam. Se antes dos atentados, o Império enfatizava o primeiro, por meio da utilização de instrumentos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a propaganda cultural, agora é o segundo que está na linha de frente da política externa de Bush. “Após os ataques, os militaristas no governo consolidaram seu poder. O Novo Imperialismo é uma doutrina que prega a ação unilateral: os EUA agem
e exigem que seus aliados apoiem. Também há uma doutrina de guerras preventivas”, diz. Petras explica que os militaristas em questão são civis de ultradireita, grande parte dos quais defende Israel e “ a militarização da política, indo de estratégias de colonização a intervencionismo em várias regiões, com bases militares em toda a Ásia e polícia secreta seqüestrando opositores, alegando que são terroristas”.
RESISTÊNCIAS Para o sociólogo, existem vários focos de resistência ao Novo Imperialismo. “Infelizmente, tais elementos ainda têm pouco impacto na cúpula da política estadunidense. Mas há uma tensão que pode ter um efeito”, afirma. Petras cita a Venezuela, o Iraque e o Afeganistão como os causadores dos maiores danos ao Império pós-11 de setembro, e alerta que, para surgir uma alternativa política capaz de enfrentar os estadunidenses,
o governo dos EUA deve ser desgastado: “os movimentos populares, com programas antiimperialistas, são atores decisivos, pois constrangem Bush e têm eco na opinião pública estadunidense”, conclui. Já para o egípcio Mohamed Habib, diretor do Instituto de Cultura Árabe (Icarabe), o Império já sofre um processo de declínio. “O Império está caindo, está perdendo controle sobre a situação, está perdendo sua credibilidade. O mundo está vendo o perigo que ele representa para toda a humanidade”, diz. Para ele, estão começando a surgir novas forças que impõem um maior equilíbrio. Forças que vêm desde antes mesmo do 11 de setembro, como a formação da União Européia e o crescimento da China. “O desespero do Império para desacelerar essa queda é exatamente exemplificado por esses atos que ele está cometendo no mundo inteiro”, analisa. (IO)
Dividir para dominar O mundo árabe foi o que mais sofreu as conseqüências dos ataques aos EUA. Logo após o 11 de setembro, o país invadiu e bombardeou o Afeganistão. Em março de 2003, alegando a existência de armas de destruição no Iraque – nunca encontradas – derrubou Saddam Hussein. Centenas de milhares de civis foram mortos, e os dois países estão devastados. “Os atentados serviram para aos EUA justificarem agressões, violências e crimes contra a humanidade, atrás da cortina chamada de ‘combate ao terrorismo’”, afirma o egípcio Mohamed Habib, professor do Departamento de Zoologia do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Instituto de Cultura Árabe (Icarabe). Segundo ele, o 11 de setembro e a “guerra contra o terrorismo” são também usados por Israel que, financiado pelos EUA, assassinou cerca de mil
civis durante os ataques ao Líbano, iniciados em 12 de julho, e ocupa os territórios palestinos.
NOVO MAPA Mas o diretor do Icarabe vai mais além. Para ele, o 11 de setembro sustenta o projeto do presidente George W. Bush de impor um novo mapa ao Oriente Médio. “É um projeto elaborado pela Agência Central de Inteligência (CIA) e pelo governo republicano, através do qual alguns países da região serão divididos e novas nações serão criadas, exatamente a partir de uma segregação étnica e religiosa. Em vez dos países pluralistas de hoje, eles querem países segregados. Cada um com sua religião, facção, etnia. Ou seja, fica muito mais fácil colocar um contra o outro e, com isso, o império teria mais condições de dominação”, alerta. Um exemplo disso é o Iraque, onde diariamente morrem, em atentados,
pessoas de todos os setores da sociedade, “obra de forças ocultas criminosas, infiltradas”, segundo Habib, para quem os EUA nutrem a esperança de que, devido ao desespero em que vive, o povo iraquiano vá aceitar ser dividido em três países. “Até hoje não conseguiram. O povo iraquiano continua firme, forte, resistindo a esse plano, mas eu não sei até que ponto ele vai agüentar enquanto o mundo inteiro está assistindo em total silêncio”, diz. Outro efeito do 11 de setembro sobre os árabes, para o diretor do Icarabe, é a criminalização que estes sofreram nos EUA e na Europa, principalmente nos primeiros três anos que se seguiram aos atentados. Para ele, as sociedades européia e estadunidense começam a desconfiar das mentiras do governo Bush, embora “a perseguição, o preconceito e a política racista contra os árabes continuem dentro dos EUA”. (IO)
A guerra preventiva na América Latina A América Latina, apesar de parecer alheia à nova geopolítica que se configurou após o 11 de setembro, também sofre os efeitos do imperialismo estadunidense. A doutrina da guerra preventiva posta em prática pelo presidente estadunidense George W. Bush se manifesta fortemente por aqui. Vide exemplos como o Plano Colômbia, o acordo militar em vigor entre os EUA e o Paraguai e a insistente acusação, por parte de autoridades estadunidenses, de que grupos terroristas árabes atuam na região da Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Segundo Nildo Ouriques, professor do departamento de Economia e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os EUA já se valiam da guerra preventiva na América Latina antes dos atentados, ao apoiar ditaduras e
invadir países alegando a ameaça comunista. Com o fim da Guerra Fria, eles continuam a usar essa doutrina para ocultar o “neocolonialismo” que, para Ouriques, é a “questão central na relação entre EUA e o continente”. A “ameaça” da vez, claro, é o terrorismo. Para o professor da UFSC, o 11 de setembro contribuiu para alimentar o já existente nacionalismo latino-americano surgido após o período de aplicação do modelo neoliberal na América Latina na década de 1990. “Fortaleceu a guerra preventiva que as elites estadunidenses deflagraram, a extraterritorialidade, a aplicação unilateral dos direitos estadunidenses. Isso não existe. Todo mundo teve que se defender”, diz Ouriques, que acredita que a conjuntura é amplamente favorável para os governos fazerem reformas populares. (IO)
O tecido social se rompe nos EUA Se considerar os EUA o país da liberdade e da democracia era altamente questionável, após o 11 de setembro se tornou uma grande piada. O governo de George W. Bush aproveitou a oportunidade e fechou ainda mais o cerco sobre seus cidadãos.
REPRESSÃO O sociólogo estadunidense James Petras exemplifica: “há um aumento de leis repressivas, que muitos especialistas dizem ser inconstitucionais. Há pessoas que estão sendo encarceradas sem que sejam julgadas, nem que tenham direito a habeas corpus. Há controle do Estado sobre telefonemas, fax, correios eletrônicos, sem que se tenha que apresentar decisão judicial. A maioria
dos perseguidos é de origem árabe e islâmica. Quando vão para audiências, são imediatamente libertados, pois os juízes dizem que não há nada que justifique a prisão, que não há provas. Quase 80% dos encarcerados são libertados”. Anuradha Mittal, do Oakland Institute, entidade que realiza estudos sobre a atuação das políticas estadunidenses na área social e econômica, explica que as principais conseqüências internas dos atentados foram a criminalização dos que criticam o governo, além do ataque às liberdades civis e direitos humanos básicos, “rasgando o tecido social na medida em que a população passou a viver com medo de seus vizinhos e das
pessoas nas ruas, tudo com base em sua religião, raça e aparência”. Segundo ela, a mídia corporativa, como a Fox News, serve como porta-voz da administração Bush, alastrando o medo e fazendo uma lavagem cerebral na população, “fazendoa acreditar que os ataques a seus direitos civis e aos das populações de outros países são justificados pelo que Bush chama de ‘ameaça de fascistas islâmicos’”. Mas, por outro lado, em resposta às “medidas draconianas” adotadas pelo governo estadunidense, o movimento antiguerra mundial ganhou muita força através do surgimento de “novas e surpreendentes” alianças entre povos de diversos países, segundo Anuradha. (IO)