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Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 4 • Número 186

R$ 2,00

São Paulo • De 21 a 27 de setembro de 2006

www.brasildefato.com.br

Em entrevista exclusiva, o presidente da Bolívia diz que está em curso um processo de refundação de seu país

“O

companheiro Hugo Chávez, da Venezuela, gritou: ´Pátria ou Morte!´ Eu digo: Planeta ou Morte!” O presidente boliviano, Evo Morales, conclama os governos de países pobres a se unir contra a política coercitiva e unilateral dos Estados Unidos. Ele participou da 14ª Cúpula do Movimento dos

Países Não-Alinhados, realizada em Cuba, entre os dias 11 e 16. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Evo afirmou que, com o apoio dos movimentos indígenas, pretende refundar a Bolívia. O primeiro passo, diz, é escrever uma nova Constituição, priorizando a defesa dos pobres. Pág. 7

Alain Bachellier/flickr/creative commons

Evo, mais um aliado contra o Império

ONGs promovem violência contra caiçaras no Paraná Entidades, com recursos de transnacionais dos EUA, privatizam áreas em Antonina e Guaraqueçaba, no Norte do Paraná. Buscam o lucro fácil do seqüestro de carbono – tipo de cupom am-

biental que empresas compram para poder poluir. As organizações – SPVS e Fundação Boticário – criminalizam os caiçaras, que vivem na região há décadas. Pág. 4

Com Fidel, de Cuba, e Chávez, da Venezuela, Evo Morales promove alternativas de integração da América Latina Fotos: Pedro Carrano

EDITORIAL

Tudo deve ser apurado

N

O Movimento dos Trabalhadoras Rurais Sem-Terra (MST) ocupou, no dia 15, no Paraná, uma das fazendas do deputado federal José Janene (PP), envolvido no escândalo do mensalão. No galpão da propriedade, foram descobertas quatro urnas eletrônicas (foto ao lado). Três dias depois, a Via Campesina levantou um acampamento, não muito longe da ocupação do MST, em frente da entrada da fazenda do também deputado Abelardo Lupion (PFL). Lupion é, por sua vez, acusado de favorecer e ser favorecido pelas empresas Monsanto e Nortox, que promovem o uso de transgênicos no país.

Plinio Arruda: é preciso organizar o povo Pág. 5

O faz-de-conta da reforma do FMI Reunidos em 18 de setembro em Cingapura, na Ásia, representantes do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovaram a primeira parte da reforma deste último, alterando as cotas de participação de China, Coréia do Sul, México e Turquia. A justificativa é democratizar a instituição. Mas os países ricos, principalmente os Estados Unidos, continuam controlando as decisões. Pág. 6

Lula e Alckmin: falta de projeto nivela programas Os programas de governo dos principais candidatos à Presidência, Lula (PT) e Alckmin (PSDB), se omitem na discussão dos rumos da economia e anunciam apenas propostas tópicas. “Não tocam em assuntos

polêmicos”, aponta dom Tomás Balduíno, para quem a campanha caiu no imediatismo e no oportunismo. O programa de Heloísa Helena (Psol) não está pronto. Pág. 3

ão há qualquer possibilidade de os setores endinheirados da sociedade serem derrotados em determinada situação, mesmo eleitoral, sem apelar a expedientes escusos – inclusive os que favoreçam um cenário de golpe. Essa é a manobra a que estamos assistindo, quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declara possível a impugnação da candidatura de Lula, solicitada pela cúpula do PSDB. Diante da insípida campanha de Geraldo Alckmin e do crescimento da intenção de votos em Lula, a única alternativa que resta à direita é a de atropelar as regras eleitorais e partir para soluções golpistas. A história do Brasil está repleta de golpismos contra o voto popular. Em 1950, tentaram impedir a posse de Getúlio Vargas. Posteriormente, a partir das medidas tomadas por Getúlio contra interesses do grande capital internacional e para o fortalecimento do mercado interno e dos direitos trabalhistas, uma onda de desestabilização política foi criada, com fatos armados – como o atentado da Rua Toneleiros – que levaram ao suicídio do presidente. A impressionante reação das massas, fechando os jornais da direita e também o partido comunista, que faziam oposição a Vargas, pertence à história e pode já ser comparada à reação popular que na Venezuela, em 2002, reconduziu o presidente Hugo Chávez ao poder. É o próprio Chávez que lembra o episódio de Vargas e também o golpe que derrubou o presidente João Goulart, com o apoio total da grande mídia e com o apoio documentado dos Estados Unidos. Evidentemente, há uma fragilidade no Partido dos Trabalhadores, que se reflete na condução do governo Lula. Ao fazer a opção por não ser mais um partido das transformações sociais, mas um partido eleitoral, a vida orgânica do PT, sua disciplina e ética também sofreram abalos, agravados com o afastamento da agremiação dos movimentos populares, com sua submissão às regras

eleitoreiras. É o que explica, por exemplo, que um dos acusados por essa operação para montar um dossiê contra Serra-Alckmin, o empresário Valdebram Padilha, seja recém-filiado ao PT e conhecido por trabalhar para a liberação de emendas orçamentárias. Ou seja, um lobista. A direita começa a lançar as teses para primeiramente cassar a legitimidade de uma nova vitória eleitoral de Lula. O escalado foi o senador Cristóvam Buarque, que afirmou que, se Lula vencer no primeiro turno, “cairá na tentação autoritária de querer governar sem o Congresso”. Ora, o Congresso tem uma história de serviços prestados às orientações da direita e foi seu grande baluarte para organizar o golpe de 1964 contra Jango, quando forjou a famosa tese da “vacância do poder” – que também se tentou contra Chávez, com a propaganda de que o presidente havia renunciado, quando estava seqüestrado. Esse mesmo Congresso – que tornou sagrado e constitucional o pagamento dos serviços da dívida, que não vota itens banais como o fundo para a educação básica, que é sensível à lei dos transgênicos imposta pela Monsanto e que cancelou a histórica lei 2004, que criou o monopólio do petróleo – será agora mobilizado para questionar a legitimidade da vitória eleitoral de Lula. Esses expedientes de dossiês ocorrem no terreno da política burguesa, e em nenhum momento os partidos populares podem admiti-los. Tudo deve ser rigorosamente apurado. Que se apure se o esquema sanguessuga já existia quando Serra era o ministro da Saúde. Também deve ser apurado se houve venda de dossiê para a imprensa, destacando que o episódio serve para questionar, uma vez mais, o modelo de comunicação concentrada e manipuladora que existe hoje no Brasil. Tudo deve ser apurado. O que não pode sofrer questionamento é o direito do povo de eleger seus representantes pelo voto direto, ainda que em um sistema eleitoral que precisa ser radicalmente democratizado.


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DEBATE

CRÔNICA

Palavras na boca de Ahmadinejad O show não pode parar

Arte Brasil de Fato

A citação mais infame – “Israel deve ser varrido do mapa” – é a mais ostensivamente falsa. No discurso proferido em outubro de 2005, Ahmadinejad nunca usou a palavra “mapa”, nem o termo “varrer”

Virginia Tilley erante a terrível confusão no Oriente Médio, convém esclarecer uma coisa: o Irã não ameaça destruir Israel. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, não anunciou qualquer ação contra Israel. Ouvimos repetidas vezes que o Irã está fortemente “empenhado em aniquilar Israel”, porque seu governo – “louco”, “inconsciente” ou “ortodoxo” – ameaçou repetidamente destruir Israel. Mas cada alegada citação, cada suposta afirmação, está errada. A citação mais infame – “Israel deve ser varrido do mapa” – é a mais ostensivamente falsa. No discurso proferido em outubro de 2005, Ahmadinejad nunca usou a palavra “mapa”, nem o termo “varrer”. Segundo especialistas da língua farsi, como Juan Cole, o que ele disse foi que “esse regime que ocupa Jerusalém deve desaparecer dos anais do tempo”. O que significa isso? No discurso, proferido em uma conferência anual anti-sionista, Ahmadinejad tentou ser profético, mas não intimidador. Ele citava o Imã Khomeini, que fez essa afirmação nos anos de 1980 (um período em que Israel, efetivamente, vendia armas ao Irã, o que, àquela altura, não era encarado com tanto desagrado). Ele acabara de relembrar ao público o regime do Xá, a União Soviética e Sadam Hussein, que pareciam imensamente poderosos e imutáveis... no entanto, os dois primeiros praticamente desapareceram sem deixar rastro e o terceiro agoniza na prisão. Da mesma forma, também o “regime ocupante” em Jerusalém haveria de desaparecer um dia. A sua mensagem era, no fundo, a de que “também isso passará”.

P

FALSAS AMEAÇAS A ISRAEL

Mas, então, e as outras “ameaças” a Israel? O mundo dos mexericos tirou proveito do alegado comentário feito posteriormente, durante esse mesmo discurso: “A nova onda de agressões na Palestina vai apagar o estigma da face do mundo islâmico”. “Estigma” foi interpretado como sendo Israel e “onda de agressões” tinha um tom assustador. Na realidade, o que ele disse foi: “Não duvido

que o novo movimento em nossa querida Palestina seja uma onda de moralidade, que se alastra por todo o mundo islâmico e que, em breve, irá limpar essa nódoa de vergonha do mundo islâmico”. “Onda de moralidade” não é a mesma coisa que “onda de agressões”. A afirmação anterior esclarecia que a “nódoa de vergonha” era o fracasso do mundo islâmico em eliminar o “regime ocupante”. Durante meses, acadêmicos como Cole e jornalistas como Jonathan Steele, do jornal londrino The Guardian, têm denunciado os erros de tradução, enquanto muitos mais vão aparecendo – como, por exemplo, os comentários de Ahmadinejad em um encontro da Organização dos Países Islâmicos, em 23 de agosto. Segundo a rádio Free Europe (Europa Livre), ele afirmou que “a cura principal para a crise no Médio Oriente é a eliminação de Israel”. “Eliminação de Israel” implica destruição física: bombas, ataques aéreos, terrorismo ou atirar judeus ao mar. Tony Blair classificou a declaração traduzida como chocante. Porém, Ahmadinejad nunca disse tal coisa. Segundo a versão da al-Jazeera, o que ele realmente afirmou foi que “a cura verdadeira para o conflito é a eliminação do regime sionista, mas primeiro deve haver um cessar-fogo imediato”. A noção de regime diz respeito ao governo israelense e a seu sistema legislativo, que mantêm milhões de cidadãos palestinos sob ocupação militar. Muitos ativistas de direitos humanos acreditam que o regime israelense deve ser efetivamente alterado, embora discordem da forma como deve ser feito.

prisioneiros devem ser trocados”. Também apelou ao boicote: “Nós propomos que as nações islâmicas cortem de imediato todas as relações políticas e econômicas, explícitas ou não, com o regime sionista”. Uma grande parte dos principais grupos judeus de defesa da paz, entidades religiosas estadunidenses e organizações de defesa dos direitos humanos já afirmou o mesmo. Faz-se necessária uma palavra final sobre a “negação do Holocausto” de Ahmadinejad. A negação do Holocausto é um assunto muito sensível no Ocidente, à medida que notoriamente serve ao anti-semitismo. No entanto, em qualquer outro lugar do mundo, as incertezas sobre o Holocausto devem-se à simples desinformação. É um erro pensar que existe muita informação sobre o tema em nível mundial (sejamos um pouco perversos: os estadunidenses revelam a mesma espantosa estreiteza de horizontes relativamente ao conhecimento geral quando, por exemplo, atingem a meiaidade sem entender que as forças militares mataram, pelo menos, 2 milhões de vietnamitas e acreditam que, quem afirma isso, é anti-estadunidense. A maioria dos franceses ainda não admitiu que o seu exército dizimou um milhão de árabes na Argélia) O ceticismo acerca da história do Holocausto começou a espalharse pelo Oriente Médio, não porque as pessoas odeiem os judeus, mas porque a história é utilizada para justificar ataques de Israel. As populações do Oriente Médio estão tão habituadas a falsidades do Ocidente legitimando as ocupações colonialistas ou imperialistas, que muitos se interrogam se o argumento dos 6 milhões de mortos não será mais um mito ou uma história exagerada. É desanimador que Ahmadinejad pareça pertencer a esse grupo menos culto, mas ele nunca foi conhecido pelo seu elevado nível de qualificação. Virginia Tilley é professora de ciências políticas, cidadã estadunidense que trabalha na África do Sul e autora de The Onestate Solution: A Breakthrough For Peace In The Israeli-palestinian Deadlock (A solução do Estado único: um passo para a paz no impasse israelo-palestiniano)

Luiz Ricardo Leitão A democracia burguesa em Pindorama e a sua “festa das eleições” são um espetáculo deprimente. O embuste é tão flagrante e grotesco, que nem os marqueteiros de plantão logram disfarçar a escassez de idéias e alternativas para a crise que a colônia atravessa. A maquiagem eletrônica já não surte o mesmo efeito dos pleitos anteriores. Afinal de contas, nem todos se esqueceram da fraude que a mídia nos impingiu em 1989, com o galante “caçador de marajás” das Alagoas, muito menos da caricatura de intelectual globalizado que a intelligentsia paulista e os novos (?) coronéis neoliberais nos venderam em 1994 e 1998. De Fernando em Fernando, o Brasil ia se afundando, até que triunfou Dom Luiz Inácio – que não foi rima, nem solução. E agora, apesar do governo pífio e desafinado, o Lulinha paz & amor segue à frente das famigeradas “pesquisas” rumo à cobiçada reeleição. A exemplo do mandatáriomor, 17 aspirantes aos tronos das 27 províncias de Bruzundanga também aparecem como virtuais eleitos em primeiro turno, segundo os oráculos dos sacrossantos institutos de “opinião pública”. Pelo visto, entre o certo e o duvidoso, o eleitorado não arriscará, nem petiscará: em time que está perdendo de pouco, é melhor não mexer... Os analistas burgueses aventam mil hipóteses para explicar o fenômeno, visto que a pasmaceira toma conta da grande “festa democrática”. Aliás, nem sequer o pirotécnico programa eleitoral parece influir no processo: são mínimas as variações das tendências de voto desde que se iniciou na tv o bizarro desfile de rostos e discursos – alguns até convincentes, outros apenas cínicos e a maioria afobada ou quase tatibitate, a ler como criança do primário os batidos textos do teleprompter (o “ponto mecânico” do estúdio).

Entre sanguessugas, mensaleiros e, sobretudo, grandes empresários, banqueiros e latifundiários desta pátriamãe gentil e distraída, logo, logo compreenderemos por que a democracia eletrônica da Terra Brasilis é um rotundo fiasco. Nem sequer os debates ao vivo, coqueluche de outras eleições, alteram o panorama. Em alguns casos, como em São Paulo, devemos até lastimar que o brilhante desempenho do bravo Plinio Arruda Sampaio diante do velho morcegão tucano José Serra não lhe tenha rendido o justo dividendo de votos. O povo, de fato, não dá bola para a tal “festa da democracia”. Mas será que os netos de Macunaíma e Jeca Tatu são meros “analfabetos políticos”, alienados por completo dos destinos de nossa pátria? Olhando as criaturas letárgicas que se espalham pelas esquinas das capitais, empunhando sob um sol escaldante as faixas de seus patrões-candidatos, a troco de uma refeição e um punhado de reais por semana, talvez concordemos com a tese. A resposta, contudo, não está na massa desqualificada e (des)iludida que sobrevive a duras penas em Pindorama. Seria melhor buscá-la nas mansões luxuosas das metrópoles, nos gabinetes refrigerados dos centros financeiros ou nos salões suntuosos dos palácios que acolhem os poderes da República. Entre sanguessugas, mensaleiros e, sobretudo, grandes empresários, banqueiros e latifundiários desta pátria-mãe gentil e distraída, logo, logo compreenderemos por que a democracia eletrônica da Terra Brasilis é um rotundo fiasco. Eles sabem disso, mas sua desfaçatez é maior – e ao apresentador, só resta anunciar: o show tem de continuar... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)

DIREITO INTERNACIONAL

Ahmadinejad fez outras declarações na Organização dos Países Islâmicos, que atestam claramente a sua opinião de que o caso de Israel deve ser abordado no enquadramento do direito internacional. Por exemplo, ele reconheceu a realidade das atuais fronteiras, quando afirmou que “qualquer agressor deve retornar à fronteira internacional libanesa”. Reconheceu a autoridade de Israel e o papel da diplomacia quando observou que “devem ser preparadas as condições para o regresso dos refugiados e deslocados e os

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NACIONAL

ELEIÇÕES

Fotos Domingos Tadeu/PR

Programas de governo que se confundem Alckmin e Lula não falam de economia, mas asseguram manutenção de programas sociais Luís Brasilino da Redação

H

á menos de duas semanas da eleição presidencial, no dia 1º de outubro, apenas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou seu programa de governo. Geraldo Alckmin adota a estranha estratégia de divulgá-lo aos poucos (o anúncio completo está agendado para o dia 20, após o fechamento desta edição). Em pior situação, encontra-se Heloísa Helena. Suas propostas viraram alvo de divergência entre os partidos da sua coligação, especificamente o Psol e o PSTU. Assim, o programa de governo não foi divulgado. O baixo interesse em torno das propostas pode ser reflexo das muitas semelhanças – e poucas diferenças – existentes entre as opções. Resta ao eleitor, portanto, optar entre os postulantes ao cargo, não em projetos. Fica

difícil identificar para quem os presidenciáveis pretendem governar: se para os latifundiários ou para os sem-terra e pequenos agricultores, se para as transnacionais ou para os operários, se para os bancos ou para as indústrias, se para a exploração ou para a preservação ambiental, se para os Estados Unidos ou para Cuba etc. Heloísa se diferencia ao afirmar que “só os corruptos e os especuladores (banqueiros) vão perder no nosso governo”. Com discursos semelhantes, desde o início da campanha, os candidatos têm pregado peças no eleitor. A maior delas aconteceu no debate organizado pela TV Bandeirantes. Tanto ruralistas quanto militantes de movimentos camponeses devem ter se surpreendido quando Alckmin afirmou que irá fazer a reforma agrária. Isso porque o tucano, apoiado pelo agronegócio e pela direita tradicional, assentou apenas

Agricultura

POLÍTICA ECONÔMICA Indefinida mesmo está a economia. “It´s the economy, stupid” (“É a economia, estúpido”, em inglês), é uma célebre frase de James Carville, marqueteiro do ex-presidente estadunidense Bill Clinton, sobre a preponderância do desempenho econômico para definir uma eleição. No pleito atual, os presidenciáveis brasileiros tentam completar a sentença: se o mau comportamento da economia pode derrubar uma candidatura, falar dela é ainda pior. Por quê? Porque não dá para definir política econômica sem especificar favorecidos e prejudicados. Rodrigo Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida, acredita que o principal exemplo disso é a questão da dívida pública,

Educação

Tanto para PT quanto para PSDB, a reforma agrária é uma política compensatória. Não há definição de metas de assentamento. Mas afirmam que não basta dar terra, é preciso crédito, assistência técnica, educação, saúde etc. Enquanto o programa de Lula não diferencia agricultura familiar de agronegócio, o de Alckmin defende que o primeiro seja um apêndice do segundo.

Fonseca acredita que não houve tempo para a esquerda repensar e redefinir seu significado. “O fato objetivo é que não há um projeto, e talvez isso leve tempo. Isso se expressa claramente no Brasil, que, por ser um país periférico do capitalismo, sofre os efeitos de forma muito mais aguda”, observa. Para dom Tomás, isso se traduz na postura dos candidatos. Seus esforços são direcionados na tentativa de adivinhar o pensamento da média dos eleitores para não desagradar. O bispo lembra que, no tempo do final da ditadura militar (1964-1985), a pregação dos partidos ia no sentido de aprofundar e enriquecer o diálogo com o povo. “Hoje só restou o marketing. O pessoal tem nojo daquele horário político, porque é só autopropaganda”, conclui o bispo. (LB)

“exatamente o cerne da política econômica”. Para ele, esse é um debate proibido pelos candidatos. “Todos têm falado que irão reduzir os juros para combater a dívida. Só que para resolver o problema – que consome quatro vezes mais recursos que a saúde, nove vezes o que se destina à educação ou 35 vezes os gastos com reforma agrária –, faz-se necessária uma auditoria”, analisa Ávila.

CONTINUIDADE PETISTA A economia não está completamente fora da pauta dos candidatos. No programa de governo petista, está expressa a intenção de elevar o salário mínimo acima da inflação, gerar empregos formais, perseguir taxa de investimento acima dos 25% do Produto Interno Bruto (PIB), expandir o crédito, reduzir a taxa básica de juros, reduzir impostos e a relação dívida/PIB. Com isso, a

Energia

O seguinte jargão destacado no programa de Alckmin resume bem o de Lula: melhorar a qualidade do ensino básico, universalizar o médio, expandir o superior com fiscalização da qualidade e estimular a educação profissionalizante. As fontes de recursos para implementar as políticas necessárias permanecem um mistério. O Programa Universidade para Todos (ProUni) será mantido pelos dois.

Campanha eleitoreira A eleição presidencial está pautada pelo imediatismo, pelo oportunismo e pelo jogo de cena, tendo em vista a obtenção do voto. A opinião é de dom Tomás Balduíno, presidente de honra da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para quem o país assiste a uma “campanha eleitoreira, não política”. Francisco Fonseca, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), encontra a explicação para essa situação na ordem internacional. “O fim do socialismo real, além de criar a hegemonia de um capitalismo ultraliberal, colocou na defensiva os movimentos alternativos e a esquerda como um todo”, analisa. Dentro da perspectiva histórica, faz pouco tempo desde o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991.

685 famílias em pouco mais de três anos de mandato como governador de São Paulo (2003-2006).

Inexistem, nos programas petista e peessedebista, propostas para reduzir o consumo das grandes indústrias. Em relação aos consumidores, não falam sobre redução das tarifas, que explodiram após a privatização do setor elétrico. Concordam sobre a necessidade de construir hidrelétricas e explorar o potencial dos biocombustíveis, seguindo o modelo do agronegócio.

promessa é fazer a economia crescer, “preservando o equilíbrio macroeconômico”. A ressalva sugere que Lula não irá reduzir o superavit primário e continuará pagando os juros da dívida pública, que, atualmente, destinam 17% do PIB brasileiro – R$ 1,4 trilhão em 2005 – para o sistema financeiro. O dinheiro que sobrar no orçamento vai para os programas sociais, assim como ocorreu no primeiro mandato. Já o ponto do programa de Lula mais criticado pela direita não é nenhuma proposta ou política. Trata-se apenas de uma não-citação. “Não traz claramente o desejo de cortes adicionais de gastos”, protestou Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao jornal O Globo, em 31 de agosto.

PROPOSTAS ROUBADAS A “crítica” não lhe foi direcionada mas valeria tam-

Saúde De acordo com os programas do PT e do PSDB, a prioridade é fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS). Medidas paralelas importantes são a distribuição de remédios, farmácias populares e as iniciativas de saúde da famílias (medicina preventiva). Não há menção à quebra de patentes de medicamentos. Os programas discordam no que tange à estrutura administrativa da saúde: Alckmin defende descentralização, e Lula hierarquização.

bém para Alckmin. A palavra “corte” não aparece em suas propostas. Também pudera, qual candidato falaria em redução de políticas sociais em seu programa de governo? O ex-governador de São Paulo até garante manter o Programa Bolsa Família, carro-chefe da campanha de Lula. No entanto, esse não é o único aspecto em que as propostas tucanas se colam às petistas. Na medida em que Lula adota uma política econômica similar à do PSDB, o programa de Alckmin se vê obrigado a repetir as mesmas promessas, agora petistas, de reduzir impostos, aumentar o crédito, diminuir a taxa de juros etc. Para se diferenciar de Lula, o peessedebista tenta se vender como um produto de supermercado utilizando o slogan “choque de gestão”, o qual faz tanto sentido quanto aquele da lanchonete McDonald´s: “Amo muito tudo isso”. Ou seja, nenhum.

Transportes Prioridade para petistas e tucanos é o transporte de cargas, especialmente aquelas para exportação. As pessoas teriam como benefícios os reflexos das melhorias em infra-estrutura destinadas ao comércio. Muitas propostas coincidem, tais como: construção da BR158, no Mato Grosso, e da BR364, no Acre; a duplicação da BR-153, em Goiás e Minas Gerais, e a da BR-040, em Minas; e a continuidade das ferrovias Norte-Sul e Transnordestina, dentre outras.

Apedeutas

Psol: promessas arrojadas

Recentemente, intelectuais conservadores introduziram na mídia uma nova palavra: apedeuta. Regozijam-se ao classificar assim o presidente Lula. Segundo o dicionário Houaiss, o vocábulo significa “que ou o que não tem instrução; ignorante”. Assim, atingem dois objetivos. Desmoralizam Lula e reforçam a sua condição de aristocracia. Surge então uma curiosidade, como os eruditos classificam os seguintes pontos do programa de governo de Geraldo Alckmin?

Para uma campanha que se propõe programática, à Heloísa Helena falta o principal: um programa de governo. O fato é que o candidato a vice em sua chapa, o economista César Benjamin, elaborou um que não foi aceito pelo PSTU, da chapa da candidata. Entretanto, de acordo com o esboço original, Para governar e mudar o Brasil, obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato, as propostas do Psol são de longe as mais corajosas. Logo na introdução, Cesinha – como é conhecido – proclama: “socialismo ou barbárie”, propondo um projeto de desenvolvimento alternativo ao modelo neoliberal. O programa defende o controle dos fluxos internacionais de capital, dando prioridade para o produtivo e onerando o especulativo. Dessa forma, o Banco Central reestabeleceria o comando da

“O saneamento básico precário está diretamente ligado à pobreza, miséria, falta de renda (...)”. Ficou faltando a carência, a falta de dinheiro...

“(O agronegócio no Brasil) é responsável por 37% dos empregos”. E em outro tópico, “micro e pequenas empresas (...) respondem por cerca de 60% do total de postos de trabalho do setor produtivo do País”. E Alckmin ainda fala em cortar gastos públicos? Ora, segundo seu programa de governo, ao funcionalismo público cabem no máximo 3% dos empregos. E os servidores ainda precisam dividir isso com os trabalhadores das grandes indústrias.

economia, permitindo a redução do superavit primário e blindando o orçamento público da sangria provocada pelo pagamento de juros da dívida. Só assim, o economista acredita ser possível reduzir a taxa básica de juros, como pregam todos os candidatos à Presidência, inclusive Heloísa, sem dizer como. A tarefa seguinte seria ampliar os gastos públicos para estimular a demanda interna, promovendo o pleno emprego. A taxa de investimento teria que ir para cerca de 26% do Produto Interno Bruto (PIB), em um ponto em que converge com o programa de Lula, que sugere 25%. Benjamin confia que esse crescimento possibilitaria uma redução da carga tributária em relação ao PIB. Ele também propõe a realização de uma auditoria da dívida pública. (LB)


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NACIONAL PARANÁ

Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza

ONGs criminalizam caiçaras Comunidades de Antonina e Guaraqueçaba são expulsas por pressão de entidades Fotos: Solange Engelmann

Futuro agora A reeleição de Lula assegura a continuidade do modelo econômico atual por mais quatro anos, se o Brasil não for palco de explosão social. Pior ainda será a herança política em 2010, já que o lulismo é incapaz de gerar sucessores no campo da esquerda. Se não for criada desde já uma alternativa popular revolucionária, a disputa ficará entre a direita do PT e o PSDB de Serra e Aécio Neves. Democratização social Os movimentos sociais e sindicais têm agregado, aos poucos, às demandas específicas (terra, moradia, empregos, salários, seguridade etc.) as lutas mais gerais da sociedade, na defesa do meio ambiente, direitos humanos, ética na política e democratização da educação e das comunicações. A radicalização da democracia pode favorecer as lutas dos trabalhadores em suas próprias organizações. Prejuízo certo Mais uma vez centenas de agricultores apostaram em lucro fácil com sementes transgênicas e ilegais, geralmente contrabandeadas com a conivência de empresas estrangeiras, como a Monsanto. Agora foi no plantio do algodão, da mesma forma como ocorreu com a soja e o milho, só que a Comissão Nacional de Biossegurança insiste na destruição das plantações. Como vai ficar? Agiotagem legal O grupo espanhol Santander, que comprou primeiro o Banco Noroeste e, depois, o Banespa, foi condenado a indenizar antigos acionistas minoritários do Noroeste em R$ 400 milhões, diferença do retorno de aplicações financeiras feitas no exterior. A Justiça entendeu que o rendimento seria maior se o dinheiro tivesse sido investido aqui no Brasil – o paraíso da especulação. Procriação não O maior problema da presença das oligarquias e do caciquismo na política brasileira, é que os vícios, visões e práticas são passados de pai para filho desde o século 19. Basta ver nas listas de candidatos – nos vários Estados – a grande quantidade de filhos, netos, sobrinhos, genros e noras dos piores políticos do país. Falta incluir na lei a cláusula de barreira contra o nepotismo eleitoral. Educação sim Relatório do Banco Mundial destaca a inferioridade do Brasil na área da educação. Afirma que apenas 57% dos jovens brasileiros com até 19 anos de idade completaram 9 anos de estudo, enquanto na Argentina essa escolaridade atinge 78% dos jovens e, no Chile, 79%. Ao mesmo tempo, 20% das empresas consideram a baixa escolaridade como obstáculo ao seu crescimento. Fascismo estadunidense O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, admitiu que o seu governo mantém prisões clandestinas em vários países e transporta prisioneiros de um lado para outro sem informar ninguém. Bush entregou ao Congresso de seu país um projeto de lei para “endurecer o interrogatório” dos prisioneiros. Além de seqüestrar pelo mundo afora, quer legalizar a tortura. Até quando? Pura ostentação Empresários brasileiros ricos, famosos e conservadores resolveram “debater” a América Latina em seminário caríssimo realizado na sofisticada estação de inverno de Bariloche, na Argentina. Foram todos para lá com suas famílias. O encerramento do encontro, em clima de festa, ficou por conta do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que agora vive da animação de platéias de alto luxo. Influência maldita Pode ser apenas coincidência, mas vale registro. No domingo (17/9), os dois principais jornais paulistas noticiaram que o presidente Lula defende o “fechamento do Congresso Nacional”. O jornal O Estado de S. Paulo na reportagem sobre o jantar de Lula com importantes empresários; e a Folha de S. Paulo na entrevista do empresário Eugênio Staub sobre sua relação com Lula. Será tentação?

Anúncio ironiza suposta preocupação de ONG’s à preservação do papagaio da cara roxa enquanto caiçaras que sempre preservaram a Mata Atlântica estão sendo expulsos de suas terras. Entre as ONG’s aparecem a Fundação Boticário – que comprou uma área de 2 mil ha –, a General Motors e a Texaco

Solange Engelmann e Rodrigo Ponce de Curitiba (PR)

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omunidades locais sufocadas, vivendo sob constante medo. Caiçaras obrigados a migrar para grandes centros urbanos. É esse o cenário dos moradores de Antonina e Guaraqueçaba, em área da Mata Atlântica, no litoral norte do Paraná. Os moradores das comunidades locais reclamam que estão sendo impedidos de plantar e produzir a subsistência das famílias. A repressão é promovida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e pela Polícia Federal, pressionados por organizações não governamentais (ONGs) Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) e Fundação Boticário. “Dizem que o papagaio da cara roxa está em extinção, mas o que está em extinção aqui é o ser humano. As instituições ambientais colocaram na cabeça que destruímos o meio ambiente, mas a sobrevivência das comunidades locais depende da terra, da mata e do mar”, explica Antonio Gonçalves da Silva, professor e morador da comunidade Rio Verde, em Guaraqueçaba. A comunidade onde ele vive foi criada há mais de cem anos, e tem 60 famílias. Silva mora no local há 51 anos, e afirma que os caiçaras sempre preservaram a Mata Atlântica. De acordo com ele, tinham uma alimentação adequada, cuja base era arroz, feijão e porco. “O povo tinha muita fartura, fazendo mutirões para plantar e colher suas lavouras. Sabíamos onde era conveniente trabalhar, tanto que nossas matas estão preservadas. De uns 20 anos pra cá vieram as perseguições. Hoje quem fizer uma roça para plantar um pouquinho de arroz é multado ou preso”, reclama.

IMPACTOS SOCIAIS A ação das ONGs na região e as restrições dos institutos ambientais têm impedido a população local de ter acesso a água e a terras para plantar. O resultado é miséria, afirma Jonas de Souza, morador de Antonina. Em Guaraqueçaba, atuam 80 ONGs ligadas à questão ambiental, e poucas preocupadas com a questão social. O número destoa em relação aos 8.000 habitantes do município, dos quais 25% vivem na área urbana. “Os pescadores estão sendo ameaçados e agredidos. Botam fogo, atiram e espancam os caiçaras que buscam a sobrevivência”, declara José Felipe da Silva Neto, presidente da Colônia de Pescadores e vereador de Guaraqueçaba (PSB). Famílias caiçaras estão abandonando suas comunidades e migrando para cidades maiores,

como Paranaguá ou Curitiba, diz o construtor de barco e pescador João Gonçalves Filho, da comunidade de Costão, em Guaraqueçaba. Ele contou que seu irmão foi obrigado a abandonar o município, pois não tinha meios para sobreviver. Na cidade de Gonçalves, assim como em outras do litoral, o ofício de pescador passava de geração em geração, mas essa realidade está mudando. O pai do construtor de barco, João Gonçalves, vê com pessimismo o futuro da comunidade: “A situação é bem precária, as pessoas não têm dinheiro, nem para comprar um pão. Este é um lugar isolado”.

NO FIM DO MUNDO Em entrevista à Agência Carta Maior, Sueli Ota, Área de Proteção diretora-técnica Ambiental (APA) – território, proteda SPVS, afirma gido pelo governo, que, na área da para garantir a conservação da Área de Proteção biodiversidade. Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, quase não há populações e que, coincidentemente, a concentração maior se dá ao redor dos locais de preservação. “Tem um ou outro morador, que normalmente é empregado das fazendas de búfalo, mas não dá para dizer que é comunidade. As pessoas vivem muito dispersas na região. Vivem no fim do mundo”, diz. Também procurada pela Agência Carta Maior, Maria Rita Reis, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, explica que há na região comunidades com até 200 pessoas, muitas das quais resistem ao processo de criminalização. “Muitos estão acampados ou desenvolveram assentamentos”, conta. A expulsão dos caiçaras gera grandes prejuízos para o município, avalia o vice-prefeito de Guaraqueçaba e presidente do Sindicado dos Trabalhadores Rurais, Gercê Cunha. “O município já tem 30% de desempregados. Para cada agricultor que se muda, há prejuízo para ele e para a comunidade. A maioria não está preparada para viver na cidade”, afirma.

RECURSO INSUFICIENTE Em virtude da preservação da Mata Atlântica, Guaraqueçaba recebe R$ 300.000 de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) Ecológico. Para o vice-prefeito, o recurso é insuficiente, e não chega às comunidades que preservam a mata. O dinheiro se destina quase integralmente ao pagamento de funcionários da Prefeitura, que é a grande empregadora da população local. A presença das ONGs, e sua atuação, se transformou em um problema para a região, diz o policial militar aposentado Antonio Rodrigues. Ele acusa a SPVS de promover concentração fundiária e impedir o acesso do nativo à natureza. (Colaborou Camila Jorge)

Búfalos no lugar dos homens Enquanto os moradores das comunidades locais de Guaraqueçaba e Antonina (PR) são criminalizados, como sendo devastadores da natureza, e proibidos de produzir seus alimentos, búfalos são criados, em grandes extensões de terras, devastadas, sem que seus proprietários sejam perseguidos. Para o vice-prefeito de Guaraqueçaba, Gercê Cunha, isso gera uma enorme contradição: “Hoje, no município, nenhuma pessoa pode fazer uma nova plantação, mas se pode criar búfalo, Isso acontece porque se trata de um grande proprietário”. Antes da década de 1960, a população local vivia exclusivamente da exploração sustentável de recursos naturais, praticando a agricultura de subsistência e pesca. Comercializava os excedentes, principalmente bananas e farinha de mandioca. A partir desse período, o governo deu incentivos a projetos de criação de búfalos, com o objetivo de ocupar e desenvolver a região. A iniciativa atraiu grandes empresas, hoje proprietárias de grandes fazendas. (SE e RP)

Entidades privatizam áreas de preservação ambiental A organização não governamental (ONG) Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) promove a expulsão de caiçaras dos municípios paranaenses Antonina e Guaraqueçaba para se apropriar de terras. Privatizou, de acordo com dados oficiais, 19 mil hectares na região, alegando ser uma Área de Proteção Ambiental (APA). Lideranças caiçaras suspeitam que o território sob controle da SPVS possa chegar a 34 mil hectares. A ONG Fundação Boticário, que também atua nos municípios, comprou uma área de 2.000 hectares, em Salto Morato, Guaraqueçaba, onde há uma queda-d´água de 130 metros. A Fundação cobra R$ 5 para visitar o local. A SPVS recebe recursos da ONG estadunidense The Nature Conservancy (A Conservação da Natureza, em inglês), além das empresas General Motors, Chevron Texaco e American Electric Power. A SPVS compra terras nos municípios paranaenses há 18 anos, mas intensificou sua atuação em 1996. A primeira área que adquiriu foi a Reserva Natural do Morro da Mina, onde se localiza a rede de captação de água de Antonina. A ONG justifica a compra, afirmando que pretende recuperar a terra, que serviu de pasto para búfalos.

SEQÜESTRO DE CARBONO A SPVS afirma que compra as propriedades para transformá-las em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), Reserva Particular mas, denuncia do Patrimônio Jonas de SouNatural (RPPN) – área privada, com za, morador de o objetivo de conAntonina, tem servar a natureza. A outros projedecisão de transfortos, como o semar a propriedade nessa área de proqüestro de carteção é voluntária do proprietário, que bono e a expulnão perde a posse são das comusobre a terra. nidades locais.

Segundo ele, a ONG contrata guardas para monitorar as atividades dos caiçaras. O seqüestro de carbono é uma ação natural das plantas, que retiram o elemento da atmosfera, contribuindo para a melhoria da qualidade do ar. Uma das diretrizes do Protocolo de Quioto é permitir que paíProtocolo de Quioto – ratificado ses onde exispor 160 países, tem grandes o tratado internacional estabelece florestas posmetas e diretrizes para reduzir a emis- sam vender o são de gases que potencial de seprovocam o efeito qüestro de carestufa, causa do aquecimento global. bono a empreOficialmente, entrou sas poluidoras, em vigor em 2005, após a assinatura que passam a da Rússia. Os Escomprar os crétados Unidos se ditos de carnegam a participar do acordo. bono para ter o direito de continuar poluindo. Para Souza, a SPVS está adquirindo grandes extensões de terra para intermediar o comércio de seqüestro de carbono.

DOMINAR A NATUREZA Do quadro de funcionários da SPVS, que a organização estima em mais de cem, 67 são integrantes das comunidades locais, de acordo com uma educadora ambiental da ONG, que se identificou apenas como Liz. Ela afirmou que a organização desenvolve trabalhos de educação ambiental e capacitação em ecoturismo para jovens das comunidades locais. O vice-prefeito de Guaraqueçaba, Gercê Cunha, declarou que não conhece projetos de ONGS que beneficiem a população local. Também disse que estas não apresentam suas propostas para a prefeitura. “Só querem dominar os recursos vegetais e hídricos da região”, denuncia. Os problemas gerados pelas ONGs não ficam restritos a Antonina e Guaraqueçaba. As comunidades caiçaras de Matinhos e Ilha do Mel, além dos povos indígenas do litoral, estão ameaçadas de expulsão. (SE e RP)


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NACIONAL ENTREVISTA

Libertação, só pelo movimento de massas Nilton Viana da Redação

João Zinclar

Candidato ao governo de São Paulo pelo Psol, Plinio quer apresentar uma proposta alternativa ao debate eleitoral

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os 76 anos, Plinio Arruda Sampaio, militante histórico da esquerda brasileira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), ainda encontra disposição para tentar mudar o país. Candidato ao governo do Estado de São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), partido recém-criado por dissidentes do PT, Plinio acredita que a campanha eleitoral deve ser um espaço para debater os problemas do povo. Mas adverte: “Não acho que a transformação será feita pela via eleitoral. Acho que uma transformação real, a libertação efetiva do país do domínio do imperialismo e a libertação efetiva do povo da tutela das classes dominantes somente será feita por um grande movimento de massas organizadas, realmente politizadas. Brasil de Fato – O que motivou sua saída do PT e o que o levou a se candidatar a governador de São Paulo pelo Psol? Plinio Arruda Sampaio – Basicamente, a necessidade de colocar uma proposta alternativa no debate eleitoral. Com a aproximação do programa do PT ao programa do Fernando Henrique Cardoso (FHC), o debate está se resumindo à discussão do mesmo. Quer dizer, de como cada um deles vai realizar suas promessas, sem alterar os elementos fundamentais da economia. A alternativa que estou propondo parte de outros pressupostos, outros objetivos. O objetivo, tanto do governo Luiz Inácio Lula da Silva quanto do governo de FHC, é integrar o Brasil na ordem internacional de forma a atender às exigências dos centros do capitalismo mundial. Nós estamos propondo que o Brasil faça o seu itinerário de desenvolvimento, que se integre no mercado internacional de forma autônoma e soberana. BF – A esquerda brasileira tem, nos últimos 20 anos, priorizado a chamada luta institucional, catalizada pelo PT. Com a decepção com o atual governo, setores da esquerda têm colocado que o ciclo de luta institucional está esgotado. O senhor acredita que esse ainda é o caminho para mudar esse país? Plinio – O PT tinha, desde o começo, uma estratégia de duas pernas: a estratégia eleitoral e a estratégia de luta. Combinava tática eleitoral com tática de luta. Eu acho que o Brasil ainda tem o caminho institucional. Mas não acho que a transformação será feita pela via eleitoral. Uma transformação real, a libertação efetiva do país do domínio do imperialismo e a libertação efetiva do povo da tutela das classes dominantes somente será feita por um grande movimento de massas, organizadas e realmente politizadas. Portanto, são dois trabalhos: um eleitoral e outro institucional, de presença nos órgãos de Estado, no pro-

Quem é

Plinio Arruda Sampaio é ex-deputado federal constituinte, promotor público, consultor da Organização das Nações Unidas para

grama de trabalho e, por outro lado, uma presença forte na rua, na pressão de massa, no campo. E é isso que o PT abandonou. É por isso que o PT perdeu o rumo.

Propomos que o Brasil se integre ao mercado internacional de forma autônoma e soberana

mais importante nessa história é o fato de Lula não ter feito as mudanças. Se fizesse a reforma agrária – aquele plano que nós ajudamos a preparar –, se tivesse feito as casas que prometeu, se tivesse criado os dez milhões de emprego... essas outras coisas não seriam assim tão fortes. Os escândalos foram a pá de cal, porque além de não fazer ainda se mete em lambança.

BF – Como o senhor vê a apatia da população frente a um processo em que estão em jogo os rumos do maior país da América Latina? Plinio – É o resultado de uma enorme desilusão. A classe política, nós todos, dissemos ao povo: ajudem a gente a colocar os militares no quartel que isso aqui melhora. O povo saiu para as ruas, pusemos os militares nos quartéis; não aconteceu nada. Aí, o José Sarney disse: me ajudem a fiscalizar os comerciantes que eu seguro a inflação. O povo virou fiscal do Sarney, e nada. Aí, veio o Collor e disse: me ajudem a colocar os marajás na cadeia. O povo saiu às ruas, votou no Collor. Novamente, nada. Aí veio o FHC: me dêem força, porque com os cincos dedos da mão eu faço um programa, sou intelectual, da Sorbonne, era isso que faltava, nunca tinha ido um inteligente para o Planalto... etc. Bom, deu no que deu. Finalmente o povo pôs o Lula lá e achou: agora vai! Porque o PT disse a vida inteira que ia mudar o país. Chega lá, também não faz! Não há modificação real na vida do povo. Houve uma melhora mínima para os setores ultrapobres, que receberam R$ 60 por mês. A educação continua um caos, a saúde outro caco, o emprego não aumenta, as crianças começaram a trabalhar de novo para ajudar na renda da família... isso é um retrocesso brutal.

BF – Qual deve ser o papel dos movimentos e das organizações populares? Plinio – A situação não é fácil para as organizações populares. Estão vivendo um drama, porque na verdade fizeram a vitória do PT. O PT não seria o partido que é, não fora o enorme apoio que recebeu das organizações populares. Essas organizações têm compromisso com sua gente. E a grande tese do PT é que elas eram autônomas, que tinham caminhos próprios, que poderiam até se chocar com os do PT. Eu pus esse artigo no estatuto do PT, quando me pediram para redigir o primeiro rascunho do estatuto. E foi aprovado que se um militante de uma organização popular fosse também militante do PT e houvesse um conflito de interesse entre os dois, ele era livre para optar por um ou por outro. Para a minha surpresa, quando houve um caso desses eu fui olhar o estatuto e esse artigo tinha sido suprimido! Isso deixou as organizações populares numa situação extremamente difícil. De um lado, não querem apoiar a direita; de outro, sentem que, com Lula, não está indo como queriam. Ao mesmo tempo, não vêem alternativa. A razão pela qual eu saí candidato, a razão pela qual eu entrei no Psol, é para ver se a gente constrói uma alternativa para que as organizações populares possam, de novo, ter uma relação madura, independente, mas em torno de um programa político que responda ao que elas querem.

BF – E ainda há escândalos de corrupção... Plinio – E ainda tem os escândalos todos. Mas o

BF – O Psol será essa organização política capaz de aglutinar os movimentos populares, inclusive os

Alimentação e Agricultura (FAO), professor universitário e ex-secretário agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) e diretor do jornal Correio da Cidadania

militantes decepcionados com o PT? Uma das críticas ao Psol é justamente o fato de ele ter nascido de forma autoritária, em busca da via eleitoral, correndo o risco de seguir o mesmo caminho do PT... Plinio – Esse risco o Psol corre. Tudo vai depender do método de ele fazer campanha. O partido foi criado numa circunstância em que o calendário eleitoral exigia um tipo de formulação. Mas o Psol não tem ainda um estatuto definitivo. Ele é um acordo eleitoral de grupos que, na emergência de uma eleição, na necessidade de dizer alguma coisa – porque eleição abre um espaço mesmo que pequeno, como é o nosso caso, de fala – se uniram. Você tem direito a aqueles minutinhos de televisão. No debate da TV Bandeirantes eu consegui deixar claro a diferença entre nós. Então, a idéia foi não perder essa oportunidade. Mas o estatuto ainda não está definido. O Psol na verdade será formado em maio de 2007, com seu primeiro congresso. Aí sim, se ele não se organizar a partir da base, está morto. Precisa se organizar a partir do núcleo de base, aquilo que o PT jogou fora. O PT começou com o núcleo de base, o militante que era militante de uma organização popular também passava a militar num organismo de base do partido. Esse organismo de base se transformou em curral eleitoral dos deputados. Essa degenerescência acabou com o PT.

Não acredito em um partido que empolgue todos. O socialismo agora tem de ser pluralista BF – O Psol poderá ser o grande instrumento... Plinio – Não. Não acho que será o Psol o grande instrumento. Daqui por diante, o grande instrumento vai ser uma série de partidos de esquerda, uns maiores outros menores, numa espécie de federação de partidos de esquerda, junto com os movimentos populares, nu-

ma federação da proposta popular, cada qual conservando a sua autonomia, cada qual realizando o seu espaço de trabalho. Então, Consulta Popular, Assembléias Populares... tudo isso é fundamental para criar esse grande movimento popular. Não acredito num partido que vai fazer tudo, que vai empolgar todos. O socialismo agora tem de ser pluralista. BF – O senhor acredita

Nós precisamos começar a pensar soluções positivas que, mesmo com essa apatia da sociedade, poderemos ter um período de retomada das grandes mobilizações? Plinio – Sim, o que os movimentos populares podiam fazer agora, já, é chamar os candidatos e perguntar qual é a posição deles. Seria formidável se os movimentos populares fizessem um questionário a todos, com uma perguntinha simples: o senhor trataria de retomar a Vale do Rio Doce? O senhor trataria de retomar as hidrelétricas do Estado de São Paulo. Aí vamos ver quem está do lado de quem. BF – O neoliberalismo se coloca hoje de forma fragmentada nos mais variados setores. Isso dificulta ainda a mobilização dos trabalhadores? Plinio – Confesso que fiquei assustado com a pouca sensibilidade da sociedade para a crise por que passaram agora os empregados da Volks. Ninguém se mexeu. O que está acontecendo com a Volks é o que vai acontecer com todas as indústrias de maior peso no Brasil. Esse é um movimento mundial. Então, ou você dá uma resposta nacional e global ou você vai ser morto. O capitalismo está comendo pelas beiradas. Dessa vez, pegou a Volks, depois serão outras. E assim nós vamos virando uma colônia, de novo. E a indústria brasileira vai ser reduzida a produzir aquelas peças que não são mais importantes, que você pode escolher o lugar de salário

mais baixo. Aquelas partes que são complicadas, difíceis de produzir, estão nos países de primeiro mundo. É por isso que estão sucateando a nossa universidade, a ciência e a tecnologia. Os institutos de excelência que nós temos, que são de inteligência, não têm verba. O mundo já aprendeu a fazer rodinha de avião, leme de avião, asa de avião... tudo isso todo mundo pode fazer. Você pode fazer isso em Uganda, na Namibia, onde você quiser. Agora, aquela aparelhagem de alta tecnologia, essa fica lá nos países de primeiro mundo. E isso eles vendem para nós ou permitem que a gente use, mas condicionam a venda do avião ao que eles querem – tanto que não pudemos vender nosso avião para a Venezuela. Isso se chama neocolonialismo. Minha esperança é de que o povo vai perceber que precisa se unir e lutar. BF – O senhor acha que o momento eleitoral permite fazer esse tipo de debate? Plinio – Essa é a razão pela qual eu saí candidato. O que noto nos candidatos é: eu vou fazer isso, vou fazer aquilo, sem nenhum fundamento. Ou: quando fui governador, fiz tanto... sem comparar com o que era preciso. Quer dizer, se eu fiz trezentas mil casas, quantas precisavam? E, sobretudo, por que tem um milhão e quatrocentas mil casas paradas? Precisa ver o que está acontecendo. Isso se chama especulação imobiliária. Ninguém diz uma palavra sobre isso. Estou tentando ver se uso esse pouco tempo para quebrar uma coisa que se criou no brasileiro; todos os problemas terminam num dilema. Dilema é aquele em que a situação A é ruim e a situação B também é ruim. Outro dia, em Moji das Cruzes (SP), uma moça perguntou qual a minha proposta para resolver o problema do rio que corre na cidade. Esse rio está assoreado. Quando chove, alaga as casas e a draga não pode entrar porque tem uma mata ciliar que protege o rio. Ou seja: tira a população ou corta as árvores? Duas coisas péssimas. Aí eu disse para ela: sabe há quantos anos corre esse rio aí? Uns 15 anos? Ela respondeu: muito mais! Pois é, ele correu milhões de anos nesse lugar e nunca assoreou. Por que está assoreando agora? Porque, a montante, tem gente cultivando mal a terra, sem fazer curva de rio, ou tem loteador urbano metendo o trator nos morros para plainar e jogando no rio. Se segurar isso, a água do rio limpa. Mas só pensam em dar trabalho para empreiteiras! Isso aí se resolve com política, com fiscalização, não precisa gastar um dinheirão. Nós precisamos começar a pensar soluções positivas. O que estou tentando fazer é mostrar: o que está ruim para você não é por acaso, nem por um acidente geográfico. É por um problema de luta de classe. É porque tem uma classe explorando.


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De 21 a 27 de setembro de 2006

INTERNACIONAL MAIS DO MESMO

Sem legitimidade, FMI vive crise

O Fundo Monetário Internacional (FMI) foi criado em 1994, nos EUA, com o objetivo de estabilizar o sistema financeiro internacional. Em seu lançamento, contava com 45 membros – em 2002, eram 184. O Banco Mundial (BM) é uma instituição irmã do FMI: nasceu com os mesmos membros, no mesmo ano e local. Seu objetivo, inicial, é financiar projetos de desenvolvimento nos países pobres.

World Bank/Simone D. McCourtie

A reforma da organização financeira não modifica o principal: a subserviência aos interesses estadunidenses

Instituições a serviço dos países ricos

Dafne Melo da Redação

* Em 2002, o FMI tinha 288 bilhões de dólares, dos quais 88 bilhões de dólares estavam disponíveis para empréstimos. Os países ricos, preponderantemente os EUA, determinam os países que devem receber recursos.

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ara as entidades da sociedade civil que lutam contra a ingerência das instituições financeiras multilaterais, a tão anunciada reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI) tem um objetivo claro: restabelecer a legitimidade da organização. “Há dez anos, o Fundo estava em alta, arrogante em sua certeza de que sabia exatamente o que era melhor para os países em desenvolvimento. Hoje, sob ataques, se esconde atrás de suas quatro paredes na capital estadunidense Washington, sem capacidade de dar respostas às crescentes críticas”, analisava um documento, endossado por organizações de todo o mundo, em abril deste ano. No mesmo período, o FMI anunciou uma reforma em sua estrutura, sob a alegação de dar mais poder de decisão aos países em desenvolvimento. Em 18 de setembro, em nova reunião, realizada em Cingapura, representantes do FMI e do Banco Mundial (BM), aprovaram a primeira parte da reforma, que aumentou as cotas de participação de quatro países: China, Coréia do Sul, México e Turquia. É por meio da cota que se determina o poder de decisão de cada país no Fundo, bem como a quantidade de dinheiro que cada um pode emprestar. No critério atual, a cota é determinada pelo peso do país na economia mundial, levando em conta fatores como o Produto Interno Bruto (PIB), transações em conta-corrente e as reservas oficiais. Uma nova fórmula para estabelecer as cotas faz parte de uma segunda leva de reformas.

NOVAS COTAS Na prática, entretanto, pouco mudou. Os países be-

Em Cingapura, mulher passa em frente da exposição fotográfica que destaca os desafios que devem ser enfrentados pelos “pobres do mundo”

neficiados tiveram suas cotas aumentadas em menos de um ponto percentual. China, país que mais cresce no mundo, foi para 3,6%, contra os 2,9% anteriores. Dos 184 países que fazem parte do FMI, os que têm maior número de votos são Estados Unidos (17%), Japão (6%), Alemanha (6%), França (5%), e Grã-Bretanha (5%). Como todas as decisões dependem de 85% de aprovação, na prática tanto os EUA quanto a União Européia têm poder de veto. Na opinião de Fabrina Furtado, da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, a estratégia da

reforma é dar uma roupagem nova, criar um paliativo para escamotear a crescente crise das instituições. “O que representa maior poder à China? O que ela propõe de mudança?”, questiona Fabrina.

INGERÊNCIA DESASTROSA O governo brasileiro, juntamente com Argentina, Egito e Índia, protestaram publicamente, pois queriam que o processo de criação dos novos critérios para o estabelecimento das cotas já se iniciasse agora. Para Fabrina, apesar do discurso crítico, a atitude do governo brasileiro revela mais frustração do que

rejeição ao organismo multilateral, pois também esperava obter benefícios. Na leitura das entidades, a crise pela qual passa o FMI tem como principal motivo a perda de sua legitimidade após a crise dos Tigres Asiáticos (1997) e da Argentina (2002) – esta última, uma fiel seguidora, até então, das diretrizes do FMI. Diante desse cenário, países passaram a ver com mais cautela a ingerência do órgão, e procuraram diminuir empréstimos ou quitar parte de suas dívidas. Assim fizeram Brasil, Tailândia, Indonésia e Argentina. Daí decorre também uma crise financeira:

“O pagamentos das dívidas causou danos orçamentários”, explica Fabrina. Fabrina acredita que a insatisfação com o FMI pode alavancar um projeto de um Banco do Sul, idéia discutida entre governos da Venezuela, Brasil e Argentina. “Entretanto, nada adianta seguir o mesmo modelo. Tem que se discutir outro modelo de integração e desenvolvimento. Preocupa-nos que o Brasil acabe reproduzindo o mesmo papel que criticamos hoje. Se na prática for financiar o capital financeiro internacional, não é o que queremos”, conclui a ativista.

ONGs boicotam encontro Cerca de 160 organizações não governamentais (ONGs) que participariam de encontros com representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) decidiram boicotar as reuniões. O motivo: a proibição da entrada de ativistas em Cingapura, incluindo delegados formalmente convidados. Também foram impedidos de entrar integrantes de entidades que participariam de um encontro paralelo em Batam, na Indonésia, que fizeram escala em Cingapura. Foi o que aconteceu com Maria Clara Soares, da ActionAid Brasil. Depois de permanecer 30 horas detida no aeroporto, foi deportada. “Não me diziam porque estava detida, apenas diziam que eram ordens superiores”, conta.

Maria diz que ficou surpresa, pois nem seu nome, nem o nome de sua organização, estavam em uma lista de pessoas e entidades a serem barradas. Ela denuncia que a escolha de Cingapura, como sede do encontro, foi motivada pelo fato de o país não respeitar direitos civis e políticos básicos. A ativista conta que não foram dadas explicações à embaixada brasileira sobre o motivo de sua deportação. Durante o tempo em que ficou detida, conta que sofreu muita intimidação: “Tiraram fotos, tiraram impressões digitais quatro vezes, fui interrogada inúmeras vezes por policiais diferentes”.

PRESA, SOZINHA E VIGIADA Durante a noite, a ativista relata que ficou trancada sozinha em uma

sala da polícia, com um alarme ligado. “Tiraram todos meus pertences, entrei com apenas a roupa do corpo. Uma luz forte ficou o tempo todo ligada. Ir ao banheiro, apenas acompanhada de uma policial”, relembra. Indo embora, Maria soube de outros casos como o seu: “Havia várias pessoas na mesma situação, um queniano foi deportado pouco antes de mim e também um asiático. Estamos tentando fazer um levantamento”. O presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, criticou a atitude do governo de Cingapura, mas para Maria Clara sua declaração foi motivada pelo constrangimento causado pelas denúncias, noticiadas em todo mundo, inclusive pela BBC e pelo jornal estadunidense The Washington Post. (DM)

* Entre 1945 e 2001, o BM emprestou cerca de 360 bilhões de dólares. A maioria dos projetos, no lugar de desenvolver a infra-estrutura dos países pobres, visa integrá-los ao mercado mundial, favorecendo as empresas transnacionais. * O FMI e o BM impõem planos de ajuste estrutural aos países aos quais emprestam recursos. Obrigam os governos que lhes devem a acabar com subsídios à agricultura, desvalorizar a moeda local, reduzir os gastos públicos, manter as taxas de juros altas. Tais medidas favorecem a atração de capitais estrangeiros. * A soma das dívidas externas dos países pobres era avaliada em 2.450 bilhões de dólares em 2001. Os credores de 18% desse total eram instituições financeiras internacionais. Os países em desenvolvimento mais endividados, em 2000, eram Brasil (238 bilhões de dólares), Rússia (160 bilhões de dólares) e México (150 bilhões de dólares). * O valor total de reembolsos efetuados para o serviço da dívida, entre 1980 e 2001, atingiu 4.500 bilhões de dólares. No entanto, muitos países não conseguem pagar seus credores - e os recursos que devem são acrescidos de juros. Para cada dólar devido em 1980, os países pobres reembolsaram 7,50 dólares, e ainda devem 4 dólares. O BM e o FMI pressionam governos de países pobres a contrair mais empréstimos. Fonte: 50 perguntas / 50 respostas sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial, de Damien Millet e Éric Toussaint (Boitempo, 2006)

MEMÓRIA

Duas vidas em defesa dos pobres Diego Pelizari/CIMI

da Redação Menos de um mês após o falecimento do arcebispo de Mariana (MG), dom Luciano Mendes de Almeida, ocorrido em 27 de agosto, o país perdeu outros dois bispos comprometidos com as causas sociais. Dia 14, dom José Mauro Pereira Bastos, vice-presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), morreu em um acidente de automóvel, no município de Carmópolis de Minas (MG). Dom José era bispo de Guaxupé desde junho, e foi eleito vice-presidente da CPT em abril. Três dias depois, dom Franco Masserdotti, bispo de Balsas (MA) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), faleceu, após ser atropelado por um caminhão, enquanto andava de bicicleta. De acordo com Dom Tomás Balduíno, da CPT,

apesar de ter tido uma curta trajetória como bispo – seis anos – dom José “encarnou o sofrimento do povo do semiárido e era muito fiel ao povo pobre da região”. Em nota de pesar, a Comissão reproduziu trechos de um texto de dom José, escrito por ocasião da Romaria das Águas e da Terra, realizada em Minas Gerais, em agosto: “Eu me lembro, no Norte de Minas, dos nossos tantos assentamentos, dos nossos quilombolas. Lembro do nosso sofrimento com a terra. Terra que não é repartida, terra que não é dividida, terra que não gera fraternidade e que não gera justiça entre os irmãos”. Dom José nasceu em 1955, em Cachoeiro do Itapemirim (ES). Freqüentou o curso de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) em Minas Gerais e o de Teologia no Instituto

Acervo pessoal

Dom Masserdotti, com papéis nas mãos, ao lado de dom Tomás Balduíno; na foto à direita, dom José

de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória. O religioso era membro da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionista), e seu lema era “Pela cruz à luz”.

CAUSA INDÍGENA Dom Tomás também lamentou a morte de dom Franco: “Foi uma grande

perda para a causa indígena”. De acordo com o bispo da CPT, o religioso era um missionário comboniano muito engajado, que respeitava a condição de sujeito dos indígenas. Em entrevista publicada na edição 106 do Brasil de Fato, dom Franco criticou a omissão do governo federal em relação aos povos indíge-

nas, ao recusar-se em assinar a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. “A cumplicidade ativa de setores do Poder Judiciário nesse processo revela que o cerco político e jurídico se fecha sobre os direitos dos povos indígenas”, disse, na ocasião. Dom Franco nasceu em Brescia, na Itália, em 1941.

Em 1966, foi ordenado sacerdote, em Padova, Itália. Em 1995, foi nomeado bispo e foi ordenado, um ano depois, em Balsas. Em 1999, dom Franco foi eleito presidente do Cimi, cargo para o qual foi reeleito em 2003. O coordenador do Cimi no Mato Grosso do Sul, Egon Heck, lembrou do “batismo na questão indígena” de dom Franco. “Em Coroa Vermelha, por ocasião da Conferência Indígena 2000, quando as elites celebraram 500 anos do início da invasão, ele enfrentou a repressão comandada pelo coronel Muller. Muitos índios ficaram feridos e dom Franco foi preso por algum tempo. Foi um momento forte em que o presidente do Cimi soube estar ao lado dos povos indígenas e dos missionários que ali estavam. Não se ausentou do confronto” contou.


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De 21 a 27 de setembro de 2006

AMÉRICA LATINA

ENTREVISTA

Evo Morales defende refundação da Bolívia

Brasil de Fato – Durante a MNOAL, o senhor se reuniu com o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O que discutiram? Evo Morales – Ele me expressou duas preocupações. A primeira delas era sobre a Assembléia Constituinte, a outra sobre os processos judiciais contra os ex-presidentes da Bolívia. Expliquei-lhe que o movimento indígena e o movimento popular, assim como outros setores, apostam em mudanças profundas, por uma revolução democrática, cultural e pacífica. Pequenos grupos, que antes privatizaram os recursos naturais e os serviços básicos, resistem a esse processo. A maioria do povo boliviano aposta nessas mudanças. Quando lhe expliquei isso, ele entendeu perfeitamente. Desejou-nos muita sorte. Sobre o outro tema, pode ser que alguém tenha dito a Annan que estaríamos manipulando o Poder Judiciário, o que é absolutamente falso. O Poder Judiciário nunca foi nomeado por Evo Morales, nem pelo MAS ou pelos movimentos sociais. O Poder Judiciário é formado por restos dos partidos neoliberais e, portanto, não há como manipular. Nem que pudéssemos, manipulariamos. É obrigação do Poder Judiciário fazer justiça, ainda que tente minar o processo de mudanças em curso. Isso acontece porque representa uma outra cultura, outra ideologia, outro programa. A força do povo obriga o Poder Judiciário a julgar os ex-presidentes, que fizeram tanto mal ao país, com tantos massacres, tantas violações. Alguns fugiram para os Estados Unidos. Não é possível que os EUA continuem sendo a lixeira de terroristas, dos que violam os direitos humanos – temos que mudar isso. Expliquei isso a

Alain Bachellier/flickr/creative commons

R

omper com a política unilateral dos Estados Unidos, e construir uma nova ordem mundial, baseada na multipolaridade. Essa foi a estratégia tirada nas discussões da 14ª Cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados (da sigla em espanhol, MNOAL), realizada em Havana, capital cubana, entre os dias 11 e 16. Em comum, os representantes dos 118 países, que participaram do encontro, carregam o título de integrantes do Terceiro Mundo. Alcunha que lhes é imposta pelas grandes potências e simboliza sua dependência política, econômica e cultural. O presidente boliviano, Evo Morales, apresentou propostas na MNOAL. “Somente a união do povo organizado, consciente, pode garantir profundas transformações”, afirmou. Em entrevista ao Brasil de Fato, em Havana, ele falou da necessidade de refundar a Bolívia, criando um modelo que beneficie a população. Também comentou sobre o decreto de nacionalização das reservas de hidrocarbonetos: “Necessitamos de sócios, necessitamos de investimentos, não de patrões”.

O presidente boliviano conclama as nações latinoamericanas a se unir contra o Império

Evo Morales em visita à região de val-de-Marne, nas proximidades de Paris, no último dia 14 de maio

Presidente boliviano desde janeiro Quem é de 2006, o indígena da etnia aymara Juan Evo Morales Ayma é líder do movimento cocalero e também do partido Movimento ao Socialismo (MAS), pelo

Annan, e acredito que ele ficou satisfeito. BF – A direita boliviana quer desestabilizar seu governo? Evo – Seis dos 9 prefeitos (governadores) bolivianos se reuniram e decidiram que deveriam retirar Evo Morales da Presidência. A justificativa é que deve haver maioria de dois terços na Assembléia Constituinte para que seja aprovada. O plano é desestabilizar a democracia e nosso governo, além de impedir as profundas mudanças em curso. Querem impedir a realização da Constituinte. São pequenos grupos, ainda que a imprensa controlada os coloque como poderosos. Por isso, somente a união do povo organizado, consciente, pode garantir profundas transformações, que pretendemos realizar.

Necessitamos de uma Constituição nova. Até agora, desde a fundação da Bolívia, em 1825-1826, houve 16 Assembléias Constituintes, em que simplesmente se reformou a Constituição BF – Os grupos de direita reivindicam a reforma da Constituição, e rejeitam a criação de uma nova. Evo – Necessitamos de uma Constituição nova. Até agora, desde a fundação da Bolívia, em 1825-1826,

houve 16 Assembléias Constituintes, em que simplesmente se reformou a Constituição. Agora, o povo está apostando em uma refundação, e não em uma reforma. A população indígena não participou da fundação da Bolívia. Em 1825-1826, 92% da população era indígena, mas não participou da criação da Constituição. Agora, trata-se de refundar a democracia, com a participação dos indígenas aymaras, quechuas, mas também com a participação de intelectuais, empresários, profissionais liberais. Estou convencido que é importante combinar a consciência social com a capacidade profissional e intelectual. BF – Qual a tarefa das organizações sociais para garantir a refundação? Evo – Na Bolívia, e que seja assim em toda a América Latina, esperamos que sejam os movimentos sociais que apostem na transformação. Nem precisa tanto ser o partido – que este seja uma legenda, legalmente reconhecida pela Corte Nacional Eleitoral, mas que, atrás dessa sigla, estejam os movimentos sociais, especialmente os indígenas. Esses povos são os donos absolutos da terra. Nossa luta é como fazer para recuperar o território, o que significa recuperar todos os recursos naturais. Há uma enorme tarefa. Depois de 20 anos de neoliberalismo, é preciso acabar com as políticas de exclusão. Estou certo de que, com a solidariedade internacional, com os países não alinhados, vamos garantir os processos de mudanças que têm os movimentos sociais à frente, como condutor.

qual foi eleito. Ganhou força ao comandar a resistência aos esforços desenvolvidos pelos Estados Unidos para a substituição do cultivo de coca na província de Chapare por bananas originárias do Brasil.

BF – Um dos primeiros passos adotados pelo seu governo nesse sentido foi a nacionalização dos recursos naturais. Qual o poder de transformação do decreto de nacionalização? Evo – A partir de 1º de maio, o Estado exerce o direito de propriedade, o que representa uma esperança para os bolivianos. Após o decreto supremo de nacionalização, aumentou a arrecadação de nossa economia. Até agora, foram mais de 100 milhões de dólares adicionais em relação ao que recebíamos antes. Começamos a recuperar nossa dignidade. Como bolivianos, temos o direito de ter o controle sobre nossos recursos naturais. O próximo passo é garantir os novos contratos e a industrialização. Temos esse processo bastante avançado com a Argentina, Venezuela e estamos negociando com o Brasil. Queremos a participação do Brasil. Quero que nossas estatais petrolíferas e de produção de gás sejam a esperança para todos os latino-americanos. BF – O que mudou para as empresas? Evo – Em primeiro lugar, e de maneira bastante responsável, não expulsamos ninguém. Mas também consideramos que não devemos indenizar as empresas. Garantimos que têm o direito de recuperar seus investimentos e o direito de obter lucro. No entanto, o que muda é que não vai ser como antes, em que 18% dos lucros da exploração do gás ficava com a Bolívia e o resto com as empresas. Nos governos anteriores, quando se falava em aumentar um centavo da arrecadação do Estado,

ameaçavam abandonar o país. Depois, quando decidimos modificar as regras, invertemos a lógica. Agora, 82% fica com o povo boliviano e 18% com as empresas. E ninguém abandonou o país, porque continuam ganhando.

O companheiro Hugo Chávez, da Venezuela, gritou: “Pátria ou Morte!” Eu digo: Planeta ou Morte! Temos que salvar a humanidade BF – Ainda é lucrativo para as transnacionais? Evo – Necessitamos de sócios, necessitamos de investimentos, não de patrões. BF – O senhor falou do controle sobre os meios de comunicação. Qual a importância da mídia popular e comunitária em seu governo? Evo – Os meios de comunicação estão concentrados nas mãos de pequenos grupos, os donos de sempre. Decidimos que temos o direito de ter nossos próprios meios de comunicação. Rádios comunitárias, televisões comunitárias, e isso não só porque queremos expressar nossos sentimentos e sofrimentos, mas também porque é uma questão de educação. Por exemplo: há muitos estudantes camponeses que não tiveram o direito de entrar em uma universidade. Tenho certeza de que pelos meios de comunicação, poderíamos impulsionar a profissionalização. Precisamos de

Ismael Francisco/POOL/Prensa Latina

Claudia Jardim especial para o Brasil de Fato de Havana (Cuba)

É preciso fortalecer a Organização das Nações Unidas (ONU), acordaram os representantes dos 116 governos que participaram da 14ª Cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados, realizada em Havana, capital cubana, entre os dias 11 e 16. No discurso final do encontro, Raúl Castro Ruz, presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros de Cuba, afirmou que os países pobres concordaram na necessidade de transformar a lógica dominante nas relações internacionais, “que não só é profundamente injusta, mas também insustentável”. Raúl aparece na foto com o braço levantado.

meios de comunicação que digam a verdade sobre as pessoas abandonadas em nosso país, sobre a situação política que estamos vivendo. BF – Em 1961, quando surgiu a MNOAL, o mundo estava dividido entre duas grandes potências – Estados Unidos e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O que significa ser não-alinhado hoje, no mundo unipolar? Evo – Somos alinhados às lutas dos povos, e não alinhados ao Império. É importante fortalecer e consolidar a relação entre esses países, sua unidade. O companheiro Hugo Chávez, da Venezuela, gritou: “Pátria ou Morte!” Eu digo: Planeta ou Morte! Temos que salvar a humanidade. BF – O Tratado de Comércio dos Povos (TCP) e a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), assinados entre Cuba, Venezuela e Bolívia, são o caminho para a construção da unidade à qual o senhor se refere? Evo – Os acordos entre Cuba e Tratado de CoVenezuemércio dos Povos (TCP) – Proposto la têm por Evo Morales, o tido reacordo determina que o comércio sultados. seja o meio para Surprese alcançar o crescimento econômico endi-me e a redução efetiva com os da pobreza. Contradados põe-se aos países do Norte, que eneconôtendem a liberalizamicos da ção como um fim. Tem apoio de Cuba Comissão e da Venezuela. Econômica para a Alternativa Bolivariana para as América Américas (Alba) Latina – Nascida como contraposição à (Cepal), Área de Livre Code 2005. mércio das Américas (Alca), defenOs países dida pelos Estados antiimpeUnidos, o acordo propõe uma integra- rialistas, ção fundamentada antineoem vantagens coliberais, operativas entre as nações, que permiencabetam compensar as o assimetrias existen- çam tes entre os países índice de latino-americanos. crescimento econômico. Queremos agregar à Alba o TCP, baseado em um comércio de equilíbrio, cooperação e solidariedade. BF – Qual a responsabilidade dos movimentos sociais latino-americanos no sentido de garantir e aprofundar as transformações sociais no continente? Evo – União. Não só na Bolívia, mas em toda a América Latina. Compartilhar as distintas vivências e os processos de luta. Espero que possamos estimular as relações entre movimentos sociais e chefes de Estado, fundamental para a unidade do continente.


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CULTURA

De 21 a 27 de setembro de 2006

PRODUÇÃO TEÓRICA

Uma esquerda que pensa Vítimas e carrascos na exploração da Amazônia da Redação A Amazônia recebeu sucessivas migrações, de pessoas que vão em busca de trabalho ou com o objetivo de expandir seus negócios. De acordo com o livro O capital e a devastação da Amazônia, de Fiorelo Picoli, a colonização da floresta ocorreu em quatro fases: de 1946 a 1964, de 1964 a 1985, de 1985 a 1994 e finalmente de 1995 até os dias atuais. Cada período é determinado pelo contexto histórico e pelas diretrizes políticas em que se inserem. O resultado foi sempre o mesmo: a devastação da maior reserva natural do planeta. Picoli afirma que, de 1946 a 1964, o Estado direcionou recursos e estimulou migrações populacionais para a Amazônia, com o objetivo de valorizar o capital na região. No período ditatorial, a política de integração nacional – conduzida pela Lei de Segurança Nacional – está no centro da lógica expansionista. A partir da democratização, em 1985, até o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, intensifica-se o debate sobre a necessidade de se preservar as florestas. A partir de então, passa-se por uma fase de maior extração dos recursos da Amazônia, principalmente por grupos internacionais. A exploração da floresta não se faz sem vítimas e carrascos. O primeiro grupo é analisado nas segunda e quarta partes do livro: trata-se das vítimas da expansão capitalista, como os povos originários, os posseiros, os garimpeiros e toda a mão-de-obra explorada na região. No segundo grupo, cujo perfil Picoli estuda na terceira parte da obra, estão os empresários madeireiros, que coordenam e fazem a acumulação de capital.

O Brasil de Fato apresenta cinco resenhas de livros que resgatam a memória e desafiam a prática dos militantes

Cem horas com Fidel João Alexandre Peschanski da Redação Fidel Castro: biografia a duas vozes é o resultado de uma série de entrevistas concedidas pelo presidente cubano, Fidel Castro, ao jornalista Ignacio Ramonet, diretor do semanário Le Monde Diplomatique. Foram cem horas de conversa, entre 2003 e 2005, em que o líder revolucionário narra fatos de sua vida, além de analisar circunstâncias recentes das políticas cubana e internacional. Em 1953, seis anos antes da derrubada da ditadura de Fulgencio Batista, Fidel afirmou que “a história me absolverá”. Para quem lê a entrevista, traduzida pelo sociólogo Emir Sader, a sensação é de que a história contemporânea e a biografia do presidente cubano não se dissociam. Fidel relata, em detalhes, a origem do Movimento 26 de Julho, que instaura a experiência socialista na ilha caribenha. A origem não remonta apenas ao assalto, sem êxito, ao quartel de Moncada, em 1953, mas também à experiência dos independentistas cubanos, à filosofia de José Martí, à mística camponesa. O presidente cubano também conta as ambíguas relações que teve com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os ataques incessantes dos governantes estadunidenses e sua amizade com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Além dos grandes fenômenos, Ramonet extrai de Fidel detalhes, detalhes fundamentais, da Revolução Cubana. Por que os combatentes da Sierra Maestra deixaram a barba crescer? Por que Cuba não abole a pena de morte, já que não a pratica há anos? O que o presidente cubano conversou com Jimmy Carter, dos Estados Unidos, e o papa João Paulo 2º? Fidel Castro: biografia a duas vozes Ignacio Ramonet Boitempo Editorial Preço: R$ 66 www.boitempo.com

O capital e a devastação da Amazônia Fiorelo Picoli Editora Expressão Popular Preço: R$ 15 www.expressaopopular.com.br

Um novo tempo no continente Eldorado dos Carajás: resistir ao desumano Maria Mello de Brasília (DF) Em 17 de abril de 1996, na curva do S, um trecho sinuoso da estrada que liga duas cidades no Sul do Pará, um trágico episódio chocou o país: o massacre de sem-terra por policiais comandados por militares mal-intencionadas, a serviço de latifundiários e políticos inescrupulosos. O confronto, desigual e traiçoeiro, ganhou contornos de uma abominável carnificina, conhecida, em todo o mundo, como o “massacre de Eldorado dos Carajás”. Marcha Interrompida é a projeção romanceada desse triste evento da crônica social do país. Um fato da história nacional que não pode cair no esquecimento. Mas esta obra não se limita a simplesmente retratar as etapas da história real. Faz um mergulho no interior das personagens que resistem à exclusão social no campo, radiografa seus anseios e a esperança de uma vida melhor. São figuras humanas resistindo à dominação desumana. E traz à tona as motivações pessoais, a ambição política e os mecanismos de eliminação com que os senhores de terras atuam para garantir seu império improdutivo, construído à bala. Transformando gente simples e desconhecida em heróis, expondo a dedicação abnegada dos que organizam a resistência, tudo através de linguagem simples e direta, Marcha Interrompida cria uma ficção realista de alto teor humanista – um livro de temática forte, escrito para quem ainda se revolta contra a opressão política. Prefaciado pelo jornalista José Arbex Jr., o livro reabre a chaga decorridos dez anos do massacre. O autor, Pedro César Batista, foi colaborador de vários jornais alternativos e, nos anos setenta, publicou vários livros de poemas. Em 1991, publicou Conivência e impunidade, sobre a violência no campo, o assassinato de seu irmão e de líderes camponeses no Pará. Lançou, em 2004, Gilson Meneses, o operário prefeito. Experiências e Desafios, um relato da greve histórica na fábrica da Scania, em São Bernardo do Campo, em 1978, e comentários sobre a primeira administração petista no Brasil, em Diadema (SP). Atualmente, o autor é assessor sindical em Brasília, onde vive há quase quatro anos. Marcha Interrompida Pedro César Batista Thesaurus Editora Preço: R$ 25 www.thesaurus.com.br

Gilberto Maringoni Atenção! O leitor deve ser avisado, em nome de todos os manuais de jornalismo, que a seguir virá um artigo parcial, subjetivo, não isento e interessado. O autor do arrazoado abaixo é um participante do livro cuja resenha comete. Este aviso é feito por um dever de honestidade. É o seguinte: a imprensa não deu muita bola, mas a Latinoamericana (ou Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe) é uma das maiores obras literárias dos últimos 20 anos no Brasil e no continente. Não há volume editado neste período, ao sul do Equador, a reunir nomes do quilate de Chico de Oliveira, Anibal Quijano, Emir Sader, Atilio Borón para ficarmos em alguns dos 123 autores de ensaios e verbetes. Seus números são impressionantes. A enciclopédia possui 980 verbetes, 1.040 fotos, 95 mapas e 136 tabelas, 21 gráficos e fichas com dados gerais sobre cada país da região. Concentra-se nos últimos 50 anos da história do continente e encerra um conjunto de quase 1.400 páginas, escritas por autores mais de 20 países. Social e politicamente, poder-se-ia comparar a Latinoamericana com o ciclo iniciado com a rebelião zapatista no México, em 1994, e que teve no movimento dos Fóruns Sociais Mundiais – nascidos no Brasil sob as bênçãos da administração petista de Porto Alegre – o impulso para a criação de uma atmosfera menos rarefeita ao debate. O lançamento da Latinoamericana marca o período do ressurgimento da Política com inicial maiúscula. Da Política feita a quente, nas ruas, como na Argentina de 2001, na Venezuela de 2002 e na Bolívia de 2005. É o tempo em que os governos mais identificados com o estuário neoliberal colheram aberta derrota nas urnas. A Latinoamericana não é um dicionário da região, pois não há nela uniformidade de estilos, abordagens ou enfoques, embora haja unidade editorial. Cada verbete é um ensaio, desde a dissecação de grandes temas – Trabalho, Literatura, Cinema, Riqueza, Música, Mídia, Energia, Esquerda etc. – e países, até os tópicos mais específicos, como biografias, instituições e acontecimentos. Tampouco é uma “Barsa de esquerda”, como escreveu um jornalista, na tentativa de desqualificar a obra.

Gilberto Maringoni é jornalista da Agência Carta Maior\ Latinoamericana Boitempo Editorial Preço: R$ 190 www.boitempo.com

Repensar a consciência de classe

Sedi Hirano Em As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento, Mauro Luís Iasi retoma o tema da consciência, que foi objeto de análise, em sua dissertação de mestrado. O autor procura deslindar a complexa questão sobre o lugar ocupado pela consciência de classe: se está na particularidade do indivíduo ou na generalidade da classe. Conclui que se localiza no intrincado fluxo de mediações articuladoras das determinações particulares e genéricas, que compõem o movimento alimentado pelas relações de produção entre o capital e o trabalho, constituindo o ser social. Iasi, na segunda parte do livro, intitulada “O PT entre a negação e o consentimento, a trajetória do Partido dos Trabalhadores (1980-2002)”, estuda criticamente a metamorfose da agremiação. Mostra que o Partido dos Trabalhadores, no momento de sua fundação, nasceu negando a ordem do capital. Em seguida, no decorrer do processo histórico de sua consolidação como organização política, construiu uma burocracia estruturalmente idêntica aos outros partidos. O PT seria hoje mais um partido neoliberal da ordem do que um partido da transição socialista, que visa a transformações revolucionárias. O livro é instigante e atual. Permite apreender as aventuras da dialética e seus paradoxos: da negação à conformação à ordem social, tendo como fio condutor a complexa questão da consciência de classe, como categoria teórico-analítica.

Sedi Hirano é professor de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento Mauro Luís Iasi Editora Expressão Popular Preço: R$ 20 www.expressaopopular.com.br


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