Ano 4 • Número 187
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 28 de setembro a 4 de outubro de 2006
www.brasildefato.com.br
Douglas Mansur
Desvios de petistas fortalecem a direita Elites se aproveitam de deslizes de militantes do PT, envolvidos no escândalo da compra de um dossiê
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EDUCAÇÃO NO CAMPO – Cerca de 500 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se reuniram em Luziânia (GO), entre os dias 18 e 22 de setembro, no 1º Seminário Nacional sobre Educação Básica de Nível Médio nas Áreas de Reforma Agrária. Durante cinco dias, educadores e educadoras das escolas públicas das áreas de Reforma Agrária, integrantes dos coletivos de educação e juventude do MST e convidados das organizações da Via Campesina-Brasil e outras entidades debateram como ter acesso às escolas e também qual é o conceito de escolarização aplicado nas áreas rurais.
Pacote habitacional ignora pobres
EDITORIAL
Imenso desafio para as forças de esquerda esquerda a repensar caminhos e lógicas políticas que, até pouco tempo, eram inquestionáveis. E, como toda crise, abre espaço para o surgimento do novo. É verdade que existem diferenças substanciais entre as propostas políticas que disputam o pleito eleitoral, mas a perspectiva transformadora se afasta cada vez mais do resultado das urnas. Nesta eleição, estaremos votando nos administradores de uma parcela do Estado que cada vez menos pode decidir sobre o que importa realmente para o povo, mas que tem o papel de administrar uma crescente máquina policial e repressiva. Fica evidente que a construção de uma alternativa popular em nosso país exigirá um novo sistema político. Esse é um debate que ganha força entre os movimentos populares. Um debate que qualificará a luta dos que acreditam num Projeto Popular. Acostumada a marchar unida em torno de uma mesma opção eleitoral a esquerda brasileira enfrenta um novo momento histórico. Um momento que exigirá paciência, criatividade, mas também muita generosidade. Um imenso desafio se coloca para as forças de esquerda. Como reconstruir lutas unitárias? Como retomar espaços de discussão e preparação dessas lutas? Nesse sentido, o desafio é resgatar a possibilidade de ação política fora desta lógica da disputa eleitoral de governos, Parlamentos e aparatos administrativos. Respeitar as diferenças mas unindo em torno de lutas e ações comuns rumo à transformação do país. Nos últimos anos, o pensamento que predominou na lógica política da esquerda foi entender a política como a arte do possível. O desafio que se coloca para a nova geração de lutadores populares é construir a política como a arte de tornar possível aquilo que hoje se aparenta impossível.
O pacote habitacional, lançado em setembro pelo governo, não atende a população de baixa renda e não altera o deficit habitacional, estimado em 8
milhões de residências. Para analistas, a medida favorece bancos e construtoras. Afirmam que, para incentivar moradias populares, é preciso abaixar a
taxa de juros e acabar com os bloqueios burocráticos que enfrentam as famílias pobres na esperança de ter uma moradia. Pág. 6
Anderson Barbosa
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grande marca destas eleições, nas quais serão escolhidos os deputados estaduais e federais, governadores, senadores e o presidente da República, é a apatia. Frustração, decepção, desilusão, indignação são alguns dos sentimentos presentes hoje no dia-a-dia da população frente a tantos escândalos de corrupção envolvendo quase todos os políticos do país e frente a tantas promessas de campanhas não cumpridas. E isso se reflete na crescente percepção intuitiva do povo de que nenhuma grande transformação estará em jogo neste processo eleitoral. É verdade que é possível piorar, mas poucos alimentam a ilusão de que acordaremos num Brasil diferente com a posse dos eleitos. A imposição da agenda neoliberal desmascarou os limites da “alternância de poder”. Eleito no desgaste do governo anterior, cada sucessor se vê aprisionado pelos limites legais, impulsionando a mesma agenda econômica e desgastando, em pouco tempo, sua legitimidade. Cada vez mais, as classes dominantes são obrigadas a aperfeiçoar sua engenharia política que possibilite viabilizar seus candidatos. A percepção geral é que será apenas o momento de escolher quem vai fazer mais do mesmo. E esse cenário também se reflete no campo da esquerda. Pela primeira vez, nos últimos vinte anos, não há uma clara unidade da esquerda em torno de uma candidatura ou partido que expresse a perspectiva de transformação. Nestas eleições, a militância que não perdeu o horizonte das mudanças estruturais dividiu-se entre a candidatura de Lula, Heloísa Helena e a opção pelo voto nulo. A esperança em uma vitória eleitoral que inaugure um novo momento histórico, que foi determinante no imaginário da esquerda brasileira dos últimos anos, entra em crise. Uma crise que obriga a
brasileiro vai às urnas, dia 1º de outubro, imerso em uma confusão, promovida pela imprensa conservadora e pela “burrice” de pessoas ligadas ao PT. O adjetivo foi utilizado por Lula ao classificar uma ação do setor de inteligência petista para comprar um dossiê envolvendo José Serra (PSDB) com a máfia dos sanguessugas. A oposição se aproveita do escândalo para desestabilizar o governo, na esperança de levar o pleito presidencial para o segundo turno. Militantes históricos do PT consideram que a crise é o resultado das opções, eleitoreiras, da direção do partido. Pág. 3
Sem perspectivas de auxílio para moradia por parte do governo, João Cosme de Oliveira e Romilda Nunes da Silva vivem na ocupação Prestes Maia, no centro de São Paulo (SP), há mais de quatro anos
Mordomias e lucros na privatização de estradas Garantia de lucro milionário, empréstimos a perder de vista, descontos e outras vantagens. Essas são algumas das facilidades das Parcerias Público- Privadas (PPPs) para quem “comprar”
uma estrada. Era assim nos tempos de FHC, quando o programa de privatizações multiplicou fortunas. E tem sido assim, no governo atual. Pág. 5
Africanos se lançam ao mar por vida digna Pág. 7
Bush facilitou os atentados, diz analista Para o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira, o governo dos Estados Unidos facilitou os atentados de 11 de setembro de 2001. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele explica que George W. Bush precisava de um pretexto “para atender aos interesses do complexo industrial e militar e assegurar-se das fontes e rotas de petróleo”. Pág. 8
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DEBATE
CRÔNICA
Respeito à opinião pública
O mau exemplo do papa Leonardo Boff
Artur Henrique uas notícias veiculadas pela internet, dia 26 de agosto, são extremamente importantes tanto pelo conteúdo quanto pela forma. A primeira é fundamental por revelar de que forma integrantes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) podem exceder suas funções. Segundo reportagem de Bob Fernandes, para o Terra Magazine, não havia grampos telefônicos no Tribunal, como alardeado domingo, dia 24, em denúncia acompanhada de insinuações que botavam mais lenha na fogueira do embate político dos últimos dias. Outra notícia trazida à luz aponta vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno, segundo pesquisa CNT/ Sensus, com 51,1% dos votos. Ou seja, após quase uma semana de fogo cerrado contra a candidatura à reeleição e um ano depois de todo tipo de ataque, Lula mantém-se estável. Ambas as notícias, apesar do impacto que representam, não freqüentaram as manchetes principais da imprensa. A que informava a ausência de grampos telefônicos no TSE só poderia ser encontrada por leitores minuciosos e atentos. A que confirmava a fenomenal robustez da candidatura Lula até foi estampada nas primeiras páginas dos jornais, mas com títulos pequenos e fugazes. Não faltam exemplos de que o comportamento da grande imprensa é guiado por interesses partidários. Isso não nos espanta. Afinal, sempre tivemos consciência de que jornalismo tem lado e de que a imparcialidade é um mito. Porém, diante da indignação que a mídia simula toda vez que alguém emite esse conceito, é preciso reafirmá-lo para que a cortina de fumaça produzida pelo chamado grande jornalismo não nos confunda. Para que a justa contrariedade do povo com irregularidades e problemas que atrapalham o Brasil não seja manipulada de forma a apresentar a realidade como algo unidimensional. Algumas ações das duas últimas semanas, especialmente depois da eclosão do chamado dossiê das sanguessugas, bastam para uma análise. As acusações contra ex-integrantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT) há anos desligados da Central, serviram para que os jornais tentassem desmoralizar o movimento sindical. Os jornais só não investiram mais tempo nisso por acreditar que o alvo
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preferencial, o governo Lula, já havia sido mortalmente atingido. Em reportagem recente, a Folha de S. Paulo procura descrever a CUT como um núcleo de desenvolvimento de estratégias criminosas. Caprichando no termo “república de sindicalistas”, com ênfase pejorativa e habilidade um tanto covarde – por não ser explícito na acusação – o texto informa que a CUT, ao longo do tempo, adquiriu experiência no acompanhamento de recursos públicos e em formas de interferir na aplicação dos mesmos.
Em reportagem recente, a Folha de S. Paulo procura descrever a CUT como um núcleo de desenvolvimento de estratégias criminosas Se estivesse interessado em prestar um serviço ao país, como afirma em seu slogan, e não a partidos e à classe dominante, como nós afirmamos, o jornal deveria, no mínimo, informar que a tentativa de interferir nas políticas públicas e a possibilidade de intervir no orçamento público também é uma prática constante de entidades patronais. E que o desempenho desse papel não é ilegal. Deveria ainda lembrar ao leitor que Fiesp, Febraban, CNI – só para citar algumas – também são sindicatos. E que, como tais, também recebem repasses dos sucessivos governos para execução de programas. Ocultar essas informações fundamentais é uma tentativa tosca de confundir a população, ou pelo menos a parcela que lê jornal. É tentar nos impingir a farsa de que só trabalhadores precisam se organizar por serem os únicos a levar em consideração a idéia de interesses de classe. E de que apenas nós acreditamos na importância da intervenção do Estado. Cito apenas essa reportagem por considerá-la suficiente para desmentir os mitos do rigor e neutralidade apregoados por toda a grande mídia. Por outro lado, reitero a convicção de que atos criminosos têm de ser punidos. Isso inclui a investigação isenta e o conseqüente castigo a integrantes de outros partidos, além do PT. Até o momento, a atenção dada pela imprensa ao fato de que a máfia das sanguessugas atuava na gestão do ex-prefeito José Serra, por exemplo, é risível. Ainda esta semana, mais um exemplo escandaloso. Para
ressuscitar outro escândalo, às vésperas da eleição, o Ministério Público denunciou o ex-ministro Humberto Costa, sob a acusação de envolvimento na máfia dos vampiros. Em frases inflamadas, analistas de rádio e TV e articulistas de jornal esqueceram-se de um detalhe fundamental: esses mesmos veículos de comunicação noticiaram, no segundo semestre de 2004, que a máfia foi descoberta e desbaratada pelo atual governo durante a gestão de Humberto Costa. À época, o nome do antigo secretário adjunto de Serra no Ministério, Platão Fischer-Pühler, agora apontado como “revelação”, já freqüentara as páginas policiais. Como dizia o Platão original, “quem sofreu sob teu jugo te conhece”. Entre a hipótese de que os jornalistas não lêem os próprios jornais em que trabalham e têm preguiça de consultar seus arquivos, ou de que está em curso um golpe midiático que pretende imbecilizar a opinião pública, fico com a segunda. Os militantes do movimento sindical cutista e dos movimentos sociais devem manter a cabeça erguida e o orgulho de fazer parte de um conjunto de ações que não só ajudou a redemocratizar o país, mas que continua remando contra as ondas produzidas por aqueles que, quando chamados de elite, protestam, envergonhados. Artur Henrique é presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
A atitude do papa Bento XVI está provocando justificadas iras entre as comunidades islâmicas por causa da infeliz citação de um imperador bizantino do século XIV segundo o qual “Maomé defendia coisas más e desumanas, como sua ordem de difundir a fé pela espada”. Mas também causou escândalo e vergonha para os cristãos. A citação é totalmente inoportuna. Sabe muito bem o papa do enfrentamento ora existente entre o Islã e o Ocidente que faz guerra ao Afeganistão e ao Iraque e que abertamente apóia a causa israelense contra os palestinos, de maioria islâmica. Nesse contexto a citação alinha o papa às estratégias bélicas do Ocidente. Como não se irritar contra essa atitude? Para nós, cristãos, a atitude do papa nos deixa perplexos porque é da essência da fé cristã perdoar e rezar como o pobrezinho de Assis: “onde há ofensa que eu leve o perdão”. Não querendo perdoar, o papa legitima todos aqueles que não querem pedir perdão nem na vida cotidiana, nem aos negros que escravizamos por séculos, nem aos sobreviventes dos indígenas que dizimamos. Se o papa não faz oficialmente um ato de desculpa, nos dá um mau exemplo. Não cumpre o mandato do Senhor de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”. Mas este seu gesto não é isolado. Como Cardeal, se opôs à entrada da Turquia na Comunidade Européia pelo simples fato de ela ser majoritariamente muçulmana. Há pouco tempo suprimiu no Vaticano a instância que promovia o diálogo Cristianismo-Islamismo. No documento “Dominus Jesus” de sua autoria, de 15 de setembro de 2000, um dos textos mais fundamentalistas dos últimos séculos, afirma que “a única religião verdadeira é a Igreja Romana Católica’ e que “os seguidores de outras religiões objetivamente se encontram, com referência à salvação, numa situação gravemente deficitária”. Não faz sentido encontros com outras religiões porque “é contrário à fé católica considerar a Igreja como uma via de salvação ao lado de outras”. Nesse transfundo, não causa estranheza seu discurso na Universidade de Ratisbona. Mesmo assim, não seria mais digno ao papa pedir claramente perdão pelas incompreensões que provocou mesmo involuntariamente? Por que não o faz?
Um papa pode autonomamente decidir tudo; um bilhão de católicos juntos não pode decidir nada Para entendê-lo, precisa-se compreender a ideologia infalibilista que vigora no Vaticano e em geral na Igreja. Segundo ela, o papa não pode errar, embora o dogma da infalibilidade seja muito restrito. Afirma que o papa é somente infalível em situações bem delimitadas, gozando então, pessoalmente, daquela infalibidade que é de toda a Igreja. Mas a ideologia infalibilista atribui de forma ilegítima infalibilidade a todas as palavras do papa. Se ele pedir perdão, confessa que errou, o que não é permitido pelo infalibilismo. Funciona na cabeça do papa Bento XVI o despotismo papal formulado ainda em 1302 por Bonifácio VIII que rezava: “para cada criatura humana é absolutamente necessário para sua salvação estar submetida ao papa em Roma”. Isso não foi abolido sequer pelo Concílio Vaticano II em 1964. Foi introduzida nos textos uma “Nota explicativa prévia”, onde se reafirma que o papa pode sempre agir “segundo seu parecer pessoal” como nomear bispos, estabelecer normas e políticas eclesiásticas. Em outras palavras: um papa pode autonomamente decidir tudo; um bilhão de católicos juntos não pode decidir nada. Esse absolutismo nos faz entender as razões do papa em não pedir perdão. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL
ELEIÇÕES
“Burrice” de petistas favorece a direita Luís Brasilino da Redação
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oucos dias antes da eleição, marcada para 1º de outubro, surge mais um escândalo envolvendo integrantes do PT e do governo federal. O PSDB e o PFL, da coligação do candidato da oposição Geraldo Alckmin, vislumbraram nas denúncias a oportunidade para impedir a reeleição em primeiro turno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dada como certa por todos os institutos de pesquisa. Com o apoio de grande parte da mídia conservadora, tucanos e pefelistas comandam uma ofensiva para desmoralizar a campanha e o governo petistas. O sensacionalismo gera indignação e, principalmente, confusão. Em 25 de setembro, Lula, resumiu as perguntas que pairam no ar: “Quero saber quem é o engenheiro que arquitetou uma loucura destas. Porque se um bando de aloprados resolveu comprar um dossiê, é porque alguém vendeu para eles. E este dossiê deve ter coisas do arco da velha. Ou seja, não quero apenas saber do dossiê, quero saber do conteúdo que levou essas pessoas a cometer a barbárie. Quero saber o conjunto da obra.” Tantas interrogações, dão margem a outras tantas interpretações. A imprensa conservadora, interessada na derrota de Lula, ignora outros possíveis enfoques e centra esforços apenas em descobrir de onde saíram os R$ 1,7 milhão destinados a comprar o dossiê. Se os recursos vieram de fora do país para o PT, isso pode justificar o fechamento do partido. Se forem públicos, estaria comprovada a corrupção. Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT, porém, é taxativo: “posso garantir que o dinheiro não saiu do partido, nem da campanha de Lula, nem da campanha do Mercadante (ao governo de São Paulo), nem de cofres públicos”. De todo modo, o fato é que a crise pode alterar o resultado de uma eleição na qual Lula era o favorito disparado para vencer no primeiro turno. Mesmo assim, até o fechamento desta edição, em 26 de setembro, as pesquisas não mostravam alterações no favoritismo do presidente.
GOLPISMO Para se defender dos ataques, lideranças e intelectuais do PT acusam a direita de golpista. “O episódio não permite sustentar a tese da cassação de registro, do impedimento da posse ou do impeachment. O que há de golpista nesta campanha é a difusão da tese segundo a qual Lula pode ser eleito, mas não conseguirá tomar posse ou não conseguirá governar”, explica Pomar. Ele revela que há indícios de que o grupo de inteligência de Serra monitorou a operação de compra do dossiê. Claudio Weber Abramo, diretor executivo da organização não-governamental Transparência Brasil, discorda. “Se você tem gente próxima ao presidente da República e seu coordenador de campanha se metendo nu-
Ricardo Stuckert/PR
Em coro, oposição e mídia conservadora tentam desestabilizar o governo, manipulando o caso da compra do dossiê
A crise da falta de inteligência
Lula e o coordenador de sua campanha Ricardo Berzoini, responsável pela contratação dos envolvidos na compra do dossiê
ma embrulhada dessas, vão querer o quê? Que ninguém fale no assunto? À oposição interessa explorar o assunto, e estão fazendo o que devem fazer mesmo. Isso é normal”, contesta. Segundo o cientista político Paulo D’Avila Filho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o que existe é a percepção da oposição de que foram inúteis seus esforços, desde um ano e meio atrás, para desgastar o governo. O dossiê seria um último recurso dessa tática. “Só que ficam na ameaça pois o sistema financeiro ainda não foi convencido de que é preciso tirar o Lula.
Enquanto não fizerem isso, não há alternativa”, descreve D’Avila Filho. Para o sociólogo Emir Sader, o quadro eleitoral está polarizado entre direita e esquerda. “Quaisquer que sejam as críticas que tenhamos ao governo federal, ele ocupa o campo da esquerda. Esta pode se equivocar, mas a direita sabe claramente seu inimigo: o governo Lula. Se ela ganhar, toda a esquerda será vitima”, diz.
SEGUNDO MANDATO O sociólogo acredita que o objetivo da direita é derrotar Lula nesta eleição ou em 2010; até lá a tática é criar um clima de desestabilzação
e de ingovernabilidade. Segundo Pomar, pouco importa o que o segundo mandato vai fazer, ele será confrontado pela direita diariamente. “Pior, quanto mais concessão fizer ao grande capital, mais fraco será o governo”, prevê. Os pilares de Lula para manter a governabilidade, de acordo com D’Avila Filho, são o mercado financeiro e o eleitor que se sentiu beneficiado por políticas públicas em seu governo. A situação não é boa. Abramo não acredita que o escândalo possa comprometer a governabilidade de Lula. “O que vai comprometer o segundo mandato é uma coisa completamente
diferente. Ao se confirmar a redução da bancada do PT no Congresso, o presidente será mais fortemente induzido a fazer alianças com o PMDB, em primeiro lugar, e com os cerca de 100 indivíduos que serão eleitos para a Câmara mas cujos partidos não terão representação no Parlamento graças à cláusula de desempenho eleitoral”, indica Abramo. O diretor da Transparência Brasil analisa que um governo de coalizão com esses gruFisiologismo – ação de políticos pos vai se que, no lugar de ver numa buscar o bem comum, usam o poder crise atrás e recursos públicos da outra e em seu interesse próprio. “o fisiologismo irá aumentar”.
O Partido dos Trabalhadores (PT) possuía um serviço de inteligência. Um tipo de serviço secreto. Tal grupo negociou a compra de um dossiê, com o chefe da máfia dos sanguessugas, Luiz Antonio Vedoin, dono da Planam, que comandava o negócio da venda de ambulâncias superfaturadas. Os documentos, fitas e vídeos comprovam a ligação de José Serra (PSDB), favorito nas eleições para o governo de São Paulo, com o esquema. Em 15 de setembro, a Polícia Federal prendeu Valdebran Padilha, filiado ao PT do Mato Grosso, e Gedimar Pereira Passo, que trabalhava para o partido, com R$ 1,7 milhão. A PF seguiu uma pista dada pelo primo de Vedoin, Paulo Roberto Dalcol Trevisan, preso horas antes em posse do tal dossiê. Até o momento, o principal efeito da crise foi a saída de Ricardo Berzoini, presidente do PT, da coordenação da campanha de Lula. Ele foi o responsável pela contratação de Padilha e Passos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou a ação dos integrantes do partido envolvidos no caso de “burrice”. O conteúdo do dossiê é ignorado por grande parte da imprensa, apesar de atestar que o esquema Vedoin começou a funcionar na gestão de Serra no Ministério da Saúde, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. (LB)
Escândalos, o resultado das opções do PT Bruno Fiuza e Pedro Carrano de São Paulo (SP) O Partido dos Trabalhadores (PT) está de volta ao divã. Depois dos escândalos de corrupção envolvendo integrantes do partido e do governo no suposto caso do “mensalão”, em 2005, o PT volta à berlinda a duas semanas do primeiro turno das eleições presidenciais por negociar a compra de um dossiê que supostamente envolveria José Serra com za “máfia dos sanguessugas”. Apesar das vozes que denunciam uma tentativa da oposição de desestabilizar a candidatura e um eventual segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, militantes históricos do partido reconhecem que as mudanças internas
pelas quais a agremiação vem passando são o caldo de cultura para a proliferação de ações moralmente duvidosas. Tudo vale para chegar ao poder. O administrador de empresas Fabiano Estêvão foi um dos fundadores do diretório regional do PT na Capela do Socorro, no começo dos anos de 1980, e mais tarde presidente do diretório de M´Boi Mirim, ambos na zona Sul de São Paulo (SP). Segundo ele, os escândalos só ocorrem porque a direção se distanciou da base. Emblema disso é a campanha massiva de novas filiações promovida pelo partido a partir de 2004. Ele conta que, até 1996, época em que era presidente dos diretório regional de M´Boi Mirim, cada novo filiado passava por um período de dois ou três meses de estudo do
programa e do estatuto, antes de ser aceito no partido.
CAMPANHA DE FILIAÇÕES Estêvão relata que, a partir da eleição de Lula em 2002, o PT se engajou em uma campanha de filiações em que bastava a pessoa preencher uma ficha de inscrição para filiar-se, apostando na quantidade e não mais na qualidade dos novos militantes. O fenômeno levou gente com pouca identificação política ou ideológica ao partido, diz. Um dos novos filiados que chegaram ao PT neste período – em 18 de setembro de 2004 – foi o empresário Valdebran Padilha, filiado ao diretório estadual do Mato Grosso, e que negociou o dossiê contra Serra com a família Vedoin. De acordo com a página na internet da agremiação, uma vez pre-
enchida uma declaração de concordância com os ideais e princípios do PT a filiação deve ser aprovada e, em seguida, o novo filiado recebe uma carteirinha pelo correio. Gustavo Erwin, assessor da Secretaria de Relações Sociais e Sindicais do Sindicato dos Bancários de Curitiba (PR) e filiado ao PT do Estado, concorda com a visão de Fabiano. Erwin acredita que o descolamento é resultado de uma opção do partido em deixar de lado a formação política de sua militância para apostar todas as fichas no processo eleitoral. Integrante da Coordenação de Movimentos Sociais (CMS), Erwin lembra com bom humor que, na primeira eleição em que militou pelo PT, em 1982, os militantes tinham uma certa vergonha de pedir votos, já que sempre
lutaram pela mudança fora da democracia burguesa. “Mas daí lembrávamos do que dizia o Plinio Arruda Sampaio, que era preciso botar a gravata e fazer o debate no Parlamento, com um pé dentro e um pé fora”, lembra. O que mudou, segundo ele, é que hoje o PT tem os dois pés dentro do Parlamento. “A derrota de 1989 levou a isso, uma derrota dura pra todos nós. Na eleição seguinte, já fomos fazendo concessões, domesticando a postura, para cair na linha de não assustar a sociedade. Houve um descolamento das bases, uma aposta no processo eleitoral. Houve inchaço no partido, descaso com os princípios”, diz Erwin. Para ele, candidatos chegam a defender bandeiras, como o agronegócio, que são opostas aos princípios do partido.
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NACIONAL
Fatos em foco
Reprodução
MUNDO DO TRABALHO
Hamilton Octavio de Souza Refém permanente Tudo indica que Lula vai ser reeleito para um novo mandato de quatro anos, mas vai ter um PT extremamente enfraquecido política e eticamente; tudo indica que o presidente vai ter de negociar mais espaços para as oligarquias regionais e os setores conservadores no próximo governo, e que vai ficar refém da ameaça de impeachment que deve pesar sobre a sua cabeça. A direita vai deitar e rolar.
Vitória operária Após 24 horas de greve, os 5.500 trabalhadores da fábrica da General Motors, em São José dos Campos (SP), conseguiram um acordo com a empresa que prevê reajuste salarial de 5,47%, abono de R$700 a ser pago em 2 de outubro, adicional noturno 30% superior ao estabelecido pela lei e estabilidade no emprego até 31 de março de 2007. O caminho da luta mostra que é possível ganhar. Escravidão rural Relatório da Organização Internacional do Trabalho afirma que o problema do trabalho escravo no Brasil ainda é muito grave: perto de 10 mil trabalhadores foram libertados nos últimos anos e estima-se que ainda existam mais de 25 mil pessoas nas mesmas condições, especialmente nas fazendas do Norte e Nordeste. É preciso denunciar o trabalho escravo. Ação solidária A polícia de Nova York cortou a energia elétrica do bairro do Harlem, na semana passada, para impedir a transmissão ao vivo do discurso do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, quando anunciou – em visita ao bairro – a expansão do programa existente no Bronx de distribuição de combustível para calefação. Chávez se tornou um benfeitor da população pobre dos Estados Unidos. Articulação golpista A imprensa empresarial do Brasil, que há meses fustiga e tenta desqualificar o governo de Evo Morales, na Bolívia, tem dado grande espaço aos empresários e fazendeiros da região de Santa Cruz, onde a população branca, elitista e conservadora faz oposição cerrada a Morales e defende a separação do Estado boliviano. Mais uma vez a imprensa embala a ambição golpista na América Latina. Corrupção global Não bastassem todos os escândalos nacionais, deve estourar outra bomba na Itália referente aos esquemas brasileiros de corrupção. Trata-se da investigação do Ministério Público italiano sobre o pagamento de propinas da Telecom Itália para policiais federais e outros servidores públicos no Brasil. Tudo para que a empresa italiana pudesse assegurar o controle acionário da Brasil Telecom. Nova refundação Toda vez que o PT se envolve em escândalos éticos, especialmente após a eleição de Lula para presidente, correntes minoritárias do partido falam na refundação do PT, como se fosse possível dar outro rumo, outro programa e outra prática política ao partido. Na última semana, o ex-prefeito de Porto Alegre (RS) Raul Pont defendeu a “refundação” em entrevista à Agência Carta Maior. Doce ilusão! Agiotagem legal O juiz João Ferreira Filho, da 20ª Vara Cível de Cuiabá (MT), condenou a administradora de cartões do Bradesco a revisar um contrato firmado com cliente, já que as taxas de juros extorsivas – mais de 10% ao mês – inviabilizaram o pagamento da dívida acumulada ao longo de cinco anos. O banco recorreu, mas, se a decisão judicial prevalecer, boa parte do Brasil pode tentar reaver o que foi roubado.
Apesar de aparecer na listagem da Exame, Grupo Arcelor, que no Brasil é dono da Companhia Siderúrgica de Tubarão e da Belgo Mineira, desrespeita direitos trabalhistas
Falsas boas empresas Funcionários desmentem levantamento sobre bons locais para trabalhar Eduardo Sales de Lima da Redação
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revista Exame divulgou, em agosto, uma listagem das melhores empresas para se trabalhar no Brasil, aquelas que apresentam os maiores “índices de felicidade” do trabalhador. A publicação enfatizou o fator identidade, ou seja, o grau de adesão dos funcionários aos valores corporativos, aos produtos e à visão estratégica da empresa. Foram inscritas 502 empresas – 268 foram avaliadas pessoalmente por jornalistas. De acordo com a revista, concordar com os objetivos da empresa, sentir-se participante das decisões e ter orgulho de trabalhar na organização podem pesar mais na satisfação do trabalhador do que um bom salário ou um chefe inspirador. Os critérios para a escolha das empresas reúnem as notas que os funcionários dão às categorias como satisfação, motivação, remuneração e benefícios, carreira, educação, saúde e integridade do trabalhador, além de responsabilidade social e ambiental da empresa. Eles formam a pontuação geral de cada empresa, que vai de 0 a 100, também chamada de “índice de felicidade no trabalho”. No entanto, a pesquisa omite que entre as dez melhores colocadas, algumas desrespeitam o trabalhador e as leis. A BV Financeira, empresa pertencente ao grupo Votorantim, figura como a segunda do levantamento. Segundo Érica de Andrade, do Sindicato dos Bancários do Estado de São Paulo, a empresa não pagou a Participação nos Lucros ou Resultados (PLR) de 2004 aos funcionários. O pagamento consta nos direitos dos trabalhadores brasileiros desde 1946. A empresa e funcionários entraram num acordo. Nas demonstrações financeiras de dezembro de 2005, a BV Financeira era parte em 13.422 ações cíveis – pleitos de indenização por dano moral e patrimonial –, incluindo reclamações perante a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), das quais 80% eram consumidores questionando os valores cobrados pela BV Financeira. Até 31 de dezembro de 2005, a BV Financeira era parte em 62 reclamações trabalhistas – ações ajuizadas por ex-empregados, visando obter indenizações, em especial o pagamento de horas extras –, para as quais constituiu provisões no valor total de R$ 3.900.
RECLAMAÇÕES O grupo Arcelor, dono da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), Vega do Sul e Belgo Mineira, também possui mais reclamações relacionadas a direitos trabalhistas que o esperado, considerando que o grupo está em sexto lugar na listagem da Exame.
“O sindicato tem completa discordância com essa posição da revista em relação às empresas, fizemos um dossiê, encaminhamos ao grupo Abril e pedimos a eles que publicassem e não deram resposta”, relata José Quirino dos Santos, do Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade e coordenador da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Segundo ele, a empresa mapeia os funcionários mais comprometidos com sua política, seleciona-os e os orienta quanto ao modo de responder às perguntas. “Manipula toda a informação”, explica o sindicalista. Ele afirma que a empresa tenta pulverizar os sindicatos. “A Belgo não respeita a liberdade e a autonomia na escolha de ser sindicalizado ou não. Quando o trabalhador recebe uma promoção para um cargo superior, ela o obriga a se desligar do sindicato”, denuncia. Além disso, segundo Quirino, a Belgo Mineira orienta as empresas terceirizadas a se intitular, em sua atividade
preponderante, como empresas de construção civil, mesmo quando realizando obras de metalúrgicos, para poder “puxar para baixo” os acordos coletivos dos sindicatos dos metalúrgicos.
OCULTAÇÃO DE ACIDENTES Quirino conta que, para diminuir as estatísticas de acidentes por afastamento, a empresa leva o trabalhador para o interior do usina e desloca-o para o departamento pessoal. Nas empreiteiras, os trabalhadores são levados para um pronto atendimento, sem a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT). Para Jair Santana, secretário de finanças da Federação dos Metalúrgicos de Santa Catarina e do Paraná, os maiores problemas da Vega do Sul – Santa Catarina, também pertencente a Arcelor, são a terceirização e a emissão de carta de auxílio no lugar de comunicação de acidentes, com a qual não precisa pagar benefícios aos trabalhadores afastados. Já a CST acumula “duas
gavetas” de ações trabalhistas, segundo o Sindicato dos Metalúrgicos do Espírito Santo. Em oitava posição, a Fras-le, de Caxias do Sul (RS), empresa que produz materiais de fricção, também apresenta problemas trabalhistas. Assis Carvalho, do departamento jurídico do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul, revela que os maiores problemas envolvendo funcionários são relacionados a problemas com amianto e perda de audição. “Agora eles revistam seus funcionários quando saem de expediente e quando entram para a labuta”, completa o advogado. O balanço financeiro de 2005 da Fras-le demonstra que a empresa possui 1.877 ações movidas por ex-funcionários em função dos distratos, 749 reclamações trabalhistas, vinculadas a sua maioria a vários pleitos indenizatórios, e 1.321 autuações no área previdenciária, do INSS, que estão em julgamento no TRF.
Corrupção e irregularidades A Promon, empresa de gerenciamento e engenharia de grandes obras, quarta colocada, é suspeita de corrupção. Foi alvo de uma ação popular, considerando que um contrato de 2003 desobedecia o artigo 37 da Lei de Licitações, que impede que empresas em situação irregular transacionem com municípios. Segundo o deputado Emiliano José (PT-BA), a Promon estaria irregular com a União, o Estado e a própria prefeitura municipal. Além disso, apresenta dois registros de CNPJ na receita federal. “Imoral” é a situação da Albras, décima posição no conceito Exame, segundo o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto. Ele afirma que a empresa não paga o ICMS para a cidade de Barcarena (PA) e ainda tem crédito. “Assim, a cidade não se desenvolve tanto quanto poderia. A receita fiscal do município fica muito pequena”, completa o jornalista. Ele diz que isso é conseqüência da corrupção na construção da hidrelétrica de Tucuruí, e as pessoas que fizeram os contratos da Albras (maior empresa de alumínio do Brasil) sabiam que estavam cometendo um crime contra o país. Dados do jornalista revelam que o Produto Interno Bruto (PIB) da Companhia Vale do Rio Doce, grupo que controla a Albras, já é quatro vezes maior que o do Pará. Um terço dos paraenses não tem energia elétrica, de acordo com Lúcio. Ele diz que a energia que é fornecida à Albras, de Tucuruí, é
três vezes mais barata que o normal. O subsídio que proporciona essa tarifa, somado nos últimos 20 anos, equivale ao investimento da fábrica de 1,6 bilhão de dólares. E, quando o lingote de alumínio chega ao Japão, o maior comprador, o valor acrescentado ao produto na transformação industrial o eleva em quatro vezes. “Fui estudar o balanço da Albras de 1987 e concluí que houve a maior aplicação de capital de risco estrangeiro na história do Brasil e representava três vezes
o orçamento do Estado do Pará, perdemos três vezes o orçamento do Estado”, revela Lúcio. Ele afirma que, há vinte anos, o Pará garante 15% das necessidades de alumínio primário do Japão a um custo inferior ao que os japoneses teriam se continuassem fabricando o material em seu próprio território. “Graças ao brutal subsídio concedido à Albras durante as últimas décadas, não foram pagos quase dois bilhões de dólares para o Estado do Pará”, explica o jornalista.
Douglas Mansur
Crime internacional O governo de George W. Bush está transferindo os prisioneiros da Base de Guantánamo, na maioria árabes e afegãos, para prisões clandestinas no Paquistão e no Iêmen, onde as condições de tratamento são ainda piores. A denúncia é da Comissão de Direitos Humanos da ONU. O governo dos Estados Unidos precisa responder perante a humanidade pelos crimes de seqüestro e tortura.
No dia 26, cerca de 120 mil bancários dos sindicatos filiados à ContrafCUT pararam as atividades em todo o país. Aconteceram protestos especialmente em São Paulo, Osasco, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba
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NACIONAL PRIVATIZAÇÕES
Compre uma estrada. E lucre milhões
Um dia depois do outro Guardião da saúde financeira global, o Fundo Monetário Internacional (FMI) sempre jogou duro contra países que tentavam políticas contrárias aos cânones pregados pela instituição. Deficit público? Um pecado mortal, decretou o Fundo há décadas. Ironia das ironias, o FMI não terá receitas suficientes para pagar todas as suas despesas nos próximos três anos. Nesse período, as receitas do Fundo despencarão de cerca de 1,1 trilhão de dólares para 757 bilhões de dólares, enquanto as despesas saltarão de 955 bilhões de dólares para 1 trilhão de dólares, deixando um rombo de 279 bilhões de dólares. Quem vai “punir” o Fundo?
João Paglione/creative commons
Empréstimos a perder de vista, descontos e outras vantagens nas PPPs e concessões de rodovias e ferrovias Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
N
unca foi tão fácil “comprar” uma estrada ou construir uma ferrovia. Qualquer pessoa poderia fechar uma “parceria especial” com o governo, assumir os direitos para explorar rodovias ou ferrovias, com garantia de lucro milionário ao longo de 20, 30 anos. Foi assim nos tempos de FHC, quando o programa de privatização multiplicou fortunas da noite para o dia. E tem sido assim, no governo atual. Ainda na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) cobrou explicações da Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias, empresa estatal subordinada ao Ministério dos Transportes, que detém os direitos de construção e exploração da Ferrovia Norte-Sul (FNS). Os fiscais do tribunal querem saber por que o preço determinado para a subconcessão do trecho de 719 quilômetros da FNS, entre Açailândia, no Maranhão, na interligação com a Estrada de Ferro Carajás (EFC), e Palmas, capital de Tocantins, ficou R$ 1 bilhão abaixo do valor estimado. O TCU argumenta que a Valec deixou de considerar preços de mercado para os fretes que serão cobrados pelo eventual novo “dono” daquele pedaço da ferrovia e utilizou uma cotação superestimada para o dólar ao calcular as despesas para operação do trecho, entre outros pontos considerados duvidosos pelo tribunal. A Valec disse que vai responder ao TCU em um prazo inferior aos 15 dias exigidos e que conseguirá realizar o leilão para subconcessão do trecho Palmas/Açailândia dia 4 de outubro, como anunciou depois de dois adiamentos. Transnordestina – Ainda na área de ferrovias, todos os arranjos foram feitos para que a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), empresa que detém a concessão da ferrovia Nova Transnordestina, controlada pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e pelo grupo Vicunha, inicie as obras do que vem sendo chamado de Nova Transnordestina. O projeto, que deverá consumir R$ 4,5 bilhões,
Rombo lá, rombo aqui
Governo Lula mantém caminho aberto por FHC para que empresas explorem rodovias e ferrovias ao longo de 30 anos
prevê a ligação de Eliseu Martins (PI) aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE), um total de 1.796 quilômetros, criando uma opção para escoar as cargas originadas desde o Sudeste do Piauí, Sul do Maranhão e Oeste da Bahia – novas fronteiras da soja. O dinheiro será investido, em parte, na reconstrução de 550 quilômetros de linhas em Pernambuco, entre Suape e Salqueiro, e na reforma de mais 600 quilômetros de Pecém a Missão Velha, em território cearense. O restante será destinado à construção de 100 quilômetros de trilhos entre Missão Velha e Salqueiro e de lá a Eliseu Martins, com mais 546 quilômetros de novas linhas. Estimase que o volume de cargas a ser transportado pela Nova Transnordestina, modernizada e ampliada, poderá saltar de 12 milhões de toneladas em 2010 para 30 milhões de toneladas em 2020.
Polêmico desde o início, o projeto incorpora uma imaginativa engenharia financeira, em que a empresa “dona” da ferrovia quase não vai usar seu dinheiro para construir o que terá direito de explorar durante 30 anos. Do valor total previsto (aqueles R$ 4,5 bilhões, em grandes números), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai entrar com R$ 900 milhões – R$ 400 milhões emprestados à própria CFN e mais R$ 500 milhões à CSN, que usará o dinheiro do empréstimo para capitalizar a CFN. O financiamento terá prazo de carência de seis anos e as empresas terão 15 anos para pagar a conta, a juros facilitados. Na sua conta – Para cobrir o custo total previsto para o projeto, o Fundo de Investimento do Nordeste (Finor) e o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FNDE) vão emprestar, respectivamente, R$ 823 milhões e R$ 2,2 bilhões, num total de R$ 3
bilhões – nada menos do que 68% do investimento total. A CSN vai participar com R$ 300 milhões em recursos próprios, enquanto a CFN assumiu o compromisso de buscar R$ 250 milhões no mercado, preferencialmente junto a novos acionistas – o que deverá ser providenciado depois de iniciadas as obras. Feitas as contas, o contribuinte vai bancar 87,8% da empreitada, por meio do BNDES e dos fundos regionais criados para desconcentrar o crescimento em favor do Nordeste. A CSN, a família Steinbruch (que controla a siderúrgica e o grupo Vicunha) e futuros sócios entram com 12,2%. Meros R$ 550 milhões, que não precisarão ser desembolsados imediatamente, uma vez que os aportes poderão obedecer o ritmo das obras. Muito pouco para um grupo que controla uma das maiores siderúrgicas do país, que sozinha tem um faturamento líquido de pouco mais de R$ 10 bilhões por ano.
sentaria R$ 400 milhões em despesas para o Tesouro Nacional. Isso significa dizer que 95% do investimento esperado, num total de R$ 1,1 bilhão, não sairão do bolso do investidor privado, mas do BNDES e do Tesouro. A empresa que eventualmente vencer o leilão de concessão terá que desembolsar R$ 57 milhões ao longo de 15 anos, perto de R$ 3,8 milhões por ano ou R$ 316,7 mil por mês. Só o dinheiro que o Tesouro vai desembolsar, para remunerar o investidor privado, supera em mais de sete vezes o valor que este terá que destinar ao projeto – em tese, nem mesmo esse modesto gasto precisará ser realmente assumido pelo dono privado. Dois detalhes arrematam a história com fecho de ouro. Primeiro: o valor dos impostos projetados para os 15 anos da concessão (R$ 373 milhões) ficará R$ 27 milhões abaixo da “ajuda” prometida pela União. Segundo: o projeto prevê a instalação imediata de pedágios, mas as obras de melhoria, modernização, duplicação e/ou construção de terceiras pistas poderão ser iniciadas entre o primeiro e o quinto ano.
Arquivo Brasil de Fato
A concessão vai sair quase de graça Mais ainda no Nordeste, a primeira Parceria Público-Privada (PPP) parece pronta para sair do papel – sob a perspectiva de novo assalto ao bolso do contribuinte. O governo decidiu autorizar o BNDES a financiar até 60% da transferência para empresas privadas dos direitos de exploração das rodovias BR-116, no trecho entre a divisa de Minas Gerais e Feira de Santana (BA), e BR-324, entre aquela cidade e Salvador. O projeto prevê um investimento de R$ 1,140 bilhão nos 15 anos da concessão, dos quais o BNDES seria responsável pelo aporte de até R$ 684 milhões, correspondentes aos 60% autorizados. Os juros deverão girar ao redor de 10,7% ao ano – taxa modesta diante do cobrado por bancos privados. Como o governo fixou o valor do pedágio em R$ 3,50 por veículo, a cada 100 quilômetros, ficou definido, ainda, que a União repassará à empresa concessionária, todos os anos, R$ 55 milhões. Em valores de hoje, considerado o prazo de 15 anos estabelecido para a concessão, a generosa complementação repre-
Notas
Enquanto os juros continuam bombardeando as contas do setor público no Brasil, gerando um deficit de 3,6% do Produto Interno Bruto (PIB), o aumento da receita nos Estados Unidos conseguiu reverter a tendência explosiva do rombo. No final de 2004, o governo estadunidense previu um deficit de 521,5 bilhões de dólares para o ano fiscal seguinte (outubro de 2004 a setembro de 2005). Com a contabilidade encerrada, no ano passado, o rombo atingiu 319 bilhões de dólares. A previsão para 2006, feita em fevereiro, indicava um deficit de 423 bilhões de dólares. O rombo deverá acumular, no ano fiscal que se encerra em 30 de setembro, algo como 296 bilhões de dólares ou 30% mais baixo. A diferença entre despesas e receitas deixou a marca dos 4,5% do PIB para estacionar em 2,3%, este ano. Menos mal para a economia de todo o mundo. Importações e chantagem – 1 A Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), controlada pela alemã Thyssen Krupp, seleciona empresas que fornecerão equipamentos para a usina Santa Cruz, que a empresa pretende instalar no Rio de Janeiro. Um “pacote” de 2,4 bilhões de dólares. No ano passado, a CSA acertou com a Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos que 75% do maquinário seria fornecido por fabricantes nacionais. A alta do aço e a mudança no câmbio encareceram o projeto em 33%, segundo a CSA. Resultado: a empresa alemã bateu às portas do Palácio do Planalto para avisar que poderá mudar a planta para Índia ou México, caso não receba “vantagens”. Entre outras, pretende importar máquinas e equipamentos, mesmo que estes já sejam produzidos aqui, ou reduzir o percentual de máquinas nacionais no projeto. Importações e chantagem – 2 Se estivesse na Alemanha, seu país de origem, ou na China, a CSA não se arriscaria a chantagear o governo tão abertamente. Entre os chineses, teria que se submeter a regras explícitas, que condicionam a abertura do mercado local não só à utilização de produtos fabricados localmente mas a exigências de reciprocidade. Transnacionais, por lá, tiveram que assumir (e cumprir) o compromisso de destinar parcela da produção ao mercado internacional, o que ajuda a explicar o forte crescimento das exportações chinesas nos últimos anos. Para arrematar: esse tipo de política não afugentou investimentos.
Governo ainda vai repassar o dinheiro do pedágio à empresa concessionária
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NACIONAL PROGRAMAS SOCIAIS
Pobres, sem direito à moradia Propostas...
Fotos Anderson Barbosa
Apesar de alardeado como solução para a falta de habitações populares, pacote lançado pelo governo em setembro não atende pessoas de baixa renda
... que não alteram o deficit habitacional * Crédito consignado: O governo estimula o empréstimo com desconto em folha de pagamento. A medida não atende as famílias mais necessitadas, pois a renda destas é geralmente informal. Vai trazer, entretanto, segurança aos bancos credores e à classe média, que será beneficiada com um redução na taxa de juros, que continua alta. * Redução do IPI: O governo pretende reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para algum material da construção civil, cuja alíquota pode cair de 10% para 5%. As habitações populares dificilmente usam os produtos cujo valor foi reduzido, ficando o benefício concentrado nos fabricantes e revendedores de material.
Gisele Barbieri de Brasília (DF)
“O
direito à moradia é fundamental e intransferível.” Palavras contidas no artigo 182 da Constituição Federal. Apesar de estar na lei maior do país, o direito não é garantido para muitas famílias. O deficit habitacional – soma de moradias inadequadas, impróprias e sem infra-estrutura – atinge 8 milhões de domicílios – 110 mil a mais do que em 2004. Em 12 de setembro, o governo anunciou um novo pacote habitacional para reverter a situação. Criticado como eleitoreira, já que divulgada três semanas antes do pleito presidencial, o conjunto de propostas não beneficia famílias cuja renda mensal seja inferior a cinco salários mínimos, o equivalente a R$ 1.700. De acordo com um estudo da Fundação Getúlio Vargas, baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2004, 92% das famílias que vivem em moradias inadequadas recebem menos do que cinco salários mínimos. Pessoas que não atingem o patamar não têm acesso a financiamentos para moradias, e não vão ser contempladas pelo pacote governamental. “Em São Paulo, por exemplo, uma moradia digna não sai por menos de R$ 40 mil. Pessoas que recebem até cinco salários mínimos não têm como pagar as prestações de um financiamento desse valor. O cidadão precisa ter algum subsídio ou não vai ter moradia digna”, afirma o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (Sinduscon), João Cláudio Robusti. Para o pacote habitacional, o governo pretende liberar R$ 8,7 bilhões em 2006 para financiamentos, recursos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo que não vão estar acessíveis às famílias mais pobres. A nova política também prevê repasse de verbas a construtoras.
* Inovação tecnológica: O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai investir em projetos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia para a construção civil. A instituição financiadora, entretanto, não tem uma política de apoio a tecnologias alternativas, voltadas à moradia popular. (GB)
... para estimular construções populares * Redução no custo do financiamento: Para o Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais de São Paulo (Inocoop), é preciso criar um subsídio por meio da redução da taxa de juros de empréstimos para a construção de habitações populares. * Reformulação da análise do candidato: O Inocoop considera muito rigoroso o exame que se faz da condição de pagamento para compradores de casas, que recebem até cinco salários mínimos. É preciso haver um enfoque social. * Desoneração tributária: Mesmo para habitações de interesse social, a carga tributária é muito elevada, denuncia o Inocoop, e chega a 30% do custo de uma casa popular. Impossibilita o acesso à moradia para pessoas pobres. * Eliminação da burocracia: É preciso facilitar a aprovação de projetos, o parcelamento do solo, a análise de cadastro das empresas e a emissão de certidões, afirma o Inocoop. Tais trâmites dificultam a implementação de empreendimentos populares. (GB) No Brasil, 8 milhões de domicílios apresentam condições precárias
PARA A CLASSE MÉDIA O governo vai destinar R$ 1 bilhão neste ano para construtoras. Os recursos vão ser repassados pela Caixa Econômica Federal. Mesmo com a possibilidade de financiamentos, as chances de as empresas financiarem a construção de moradias populares são reduzidas, avalia o diretor superintendente do Inocoop de São Paulo, Richard Moreton Treacher, já que as pessoas de baixa renda possuem muitas vezes
uma renda informal, o que não dá garantia às construtoras. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai disponibilizar uma linha de crédito de R$ 100 milhões para empresas financiarem a construção de casas para seus empregados. Treacher considera que essa medida não altera significativamente as condições adequadas de moradia para a população pobre: “Os complexos industriais não estão nos centros
SEM INCENTIVO Políticas para amenizar a falta de moradias parecem não receber tanto incentivo quanto o dado às construtoras. Foram reduzidos os recursos previstos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social para 2007. Criado por meio de projeto de lei sancionado por Lula em junho do ano passado, o Fundo gerencia
os recursos destinados a políticas habitacionais para famílias de baixa renda, por meio de ações como a urbanização de favelas. Os recursos do sistema nacional de habitação e do fundo são formados com verbas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do Orçamento da União. O Fundo em 2006 recebeu R$ 1 bilhão, já em 2007 terá R$ 400 milhões.
Ocupar para ter onde morar
TAXA DE JUROS EXTORSIVA Quando adquire financiamento, a população de baixa renda enfrenta outro problema: a dificuldade no pagamento das parcelas. Nos financiamentos habitacionais, as taxas de juros são acrescidas pela Taxa Referencial (TR). O pacote do governo torna facultativa a cobrança, mas a taxa de juros continua alta, em torno de 15%. A TR, usada para a correção dos empréstimos do Sistema Financeiro da Habitação, foi criada por Fernando Collor. No governo de Fernando Henrique Cardoso, a taxa atingiu índices mais altos do que o da inflação. Ocorreu um encarecimento do custo do crédito, além de um aumento da inadimplência Para a população de baixa renda ter acesso à moradia, a taxa de juros deveria estar entre 6% e 7%, revela o Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais do Estado de São Paulo (Inocoop). As altas taxas beneficiam os bancos, que tiveram lucros recordes no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Não por acaso as ações do setor bancário cresceram no dia em que o pacote foi lançado – as do Itaú e do Bradesco subiram mais de um por cento. A avaliação dos analistas financeiros é que as medidas criaram um cenário favorável para o crescimento do crédito imobiliário em médio e longo prazo.
urbanos ou nas áreas onde é mais significativo o deficit habitacional”.
Famílias de baixa renda não conseguem casa Eduardo Sales de Lima da Redação Glória Anacias Fagundes, de 56 anos, natural de Guararapes (SP), é orientadora social e moradora do 15º andar do Bloco C de um Conjunto Habitacional no bairro de Belém, São Paulo (SP). Em 1995, período de dificuldade, Glória entrou no Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Não tinha onde morar. Quatro anos depois, ocupou, com outras pessoas, um prédio na Av. Ana Cintra, região central da cidade. “Fomos despejados repentinamente, em 2004. Fomos obrigados a viver na rua durante três meses”, diz. O apartamento, onde Glória e sua filha vivem hoje, faz parte de um projeto da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), e é composto por sala, cozinha, área de serviço, dois quartos e um banheiro. A orientadora social revela que
sempre foi difícil financiar uma residência, mesmo com o “auxílio” do governo. Ela fez um plano da Caixa Econômica Federal, no começo dos anos 1980, mas não foi suficiente para que comprasse uma casa. Glória destaca que, mesmo com sua renda de 4 salários mínimos, o máximo que poderia comprar seria um barraco, distante do centro. “Com a nova política habitacional, é claro que a classe média compra, mas o pobre não tem nem fundo de garantia. Se eu tivesse condições, eu compraria um apartamento melhor. É muita burocracia. Estou aqui porque é um projeto do governo, e a prestação é razoável (R$ 120 de mensalidade + R$ 120 de condomínio), mas eu não considero baixa porque uma pessoa que recebe um ou dois salários mínimos não conseguiria entrar aqui. A maioria da classe trabalhadora não ganha mais de 2 salários mínimos”, conclui.
Em um espaço de 9 m2, onde estão conjugados cozinha, sala e quarto, residem Romilda Nunes da Silva, de 64 anos, e João Cosme de Oliveira, de 53 anos. Vivem há mais de quatro anos na ocupação Prestes Maia, que abriga mais de 1.600 pessoas – dos quais, 96 idosos. Está situada na região central de São Paulo (SP). Romilda está com a perna direita engessada e sOliveira não consegue movimentar parte de seu corpo, conseqüência de um derrame, após sua entrada na ocupação. Oliveira sempre trabalhou como soldador maçariqueiro. Romilda foi encarregada de limpeza e, hoje, recebe uma aposentadoria de dois salários mínimos. Ela diz que está desempregada e doente, assim como seu cônjuge, e que vive somente com esse dinheiro.
Romilda conta que nunca tentou um financiamento para moradia, mas, ao ter conhecimento de uma carta de crédito oferecida por um banco, soube que era voltada a pessoas jovens e com o nome limpo. “Agora, após toda a minha luta, fico ouvindo que a pessoa de terceira idade não pode fazer financiamento. Sou idosa, por isso não tenho o direito de comprar casa. Onde está o estatuto do idoso, que nos dá o direito de moradia digna? Os velhos não têm direito, estamos todos morrendo à míngua”, desabafa. O casal enfatiza o desejo de simplesmente ter uma casa para receber as pessoas dignamente. Romilda diz que há muitas casas abandonadas, lacradas, e que o governo poderia ajudar mais as famílias que não têm onde morar. (ESL)
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SENEGAL – MAURITÂNIA
INTERNACIONAL
Travessia do desespero Lemine Ould M. Salem de Nouadhibou (Mauritânia)
Blaine Davis
Imigrantes senegaleses e mauritanos atravessam o mar para chegar às Ilhas Canárias, pertencentes à Espanha
T
al qual uma frota de guerra que espera uma ordem para atacar, uma interminável armada de pirogas, perfeitamente ordenadas, observa o oceano. Atrás das embarcações, pessoas esperam, no litoral de uma periferia da capital do Senegal, Dacar. Alguns se contentam em dar uma olhada e saem, outros permanecem imóveis. A situação é suspeita, pois, em setembro, não há saídas para pesca em alto-mar. Mas são muitas as embarcações que servem para transportar famílias, de diversos países africanos, até as Ilhas Canárias, arquipélago pertencente à Espanha. De acordo com o governo espanhol, 20 mil imigrantes, vindos em barcos precários, desembarcaram no litoral canário, em 2006. “É um fato. Pirogas saem regularmente daqui”, reconhece o pescador Samba Cissé, que tentou fazer a travessia, sem êxito. “Não tinha escolha. Sou pai de família. Tenho que alimentar meus filhos e minha esposa. Vivia da pesca, mas o setor não funciona mais. Não há mais peixes no mar, pois nosso governo autoriza os barcos europeus a vir pilhar nosso peixe”, denuncia. A primeira etapa da travessia é o agrupamento de candidatos por um atravessador. Após receber 3.000 euros – R$ 8.400 –, ele fornece a embarcação, a gasolina e o GPS, para indicar o caminho. Com mais algum dinheiro, ele pode responsabilizar-se pela comida e pela bebida.
TRAJETOS NOTURNOS As saídas ocorrem durante a noite e o trajeto é sempre o mesmo. A embarcação sai da costa, vai para o litoral do Norte do Senegal e, depois, para a Mauritânia. Se for necessário, uma parada é feita, para que os passageiros descansem e comprem mais comida. Chegados em Nouadhibou, grande porto mauritano, a apenas 500 quilômetros das Ilhas Canárias, a piroga tenta atravessar em linha direta, rumo ao arquipélago espanhol.
A alegria de crianças senegalesas transforma-se em sofrimento: quando jovens, na tentativa de tirarem suas famílias da pobreza, se arriscam ao mar
“No papel, parece fácil, mas não é. Nesse trecho do Oceano Atlântico, a meteorologia é imprevisível. Os ventos podem soprar mais forte e as ondas podem chegar a cinco metros de altura”, comenta Mohamed Ould Ghaiss, chefe da brigada territorial da polícia local. Todos os dias, seus homens, com barcos e equipamentos doados pela Espanha, patrulham o litoral e encontram barcos afundados. “Infelizmente, recolhemos tanto sobreviventes quanto cadáveres”, afirma o policial.
ÚNICO SOBREVIVENTE De uma embarcação com 80 passageiros, o senegalês Makhtar Ndoye, de 27 anos, foi o único sobrevivente. Ele embarcou em Thiaroye em agosto e, alguns dias depois, estava, perdido, no meio do mar. Ficou 20 dias na embarcação, com falta de comida e água, obrigado a matar a sede com a água do mar, até que o barco afundou. Foi resgatado perto de Nouadhibou,
TAILÂNDIA
Não ao governo, não ao golpe Marwaan Macan-Markar e Johanna Son de Bancoc (Tailândia) A Tailândia sofreu, em 19 de setembro, seu 18º golpe de Estado. A junta militar, liderada pelo general Sonthi Boonyaratglin, que governa o país após a deposição do primeiro-ministro, Thaksin Shinawatra, exilado em Londres, Inglaterra, proibiu protestos contra o golpe que reúnam mais de cinco pessoas. A população, descontente, segue à risca as ordens dos golpistas: dia 22, na capital Bancoc, quatro grupos de no máximo cinco manifestantes carregavam faixas, denunciando o golpe. Iniciativas como esta se reproduziram em outras partes do país, de 64,6 milhões de habitantes. Vitorioso nos pleitos de 2001 e 2005, Shinawatra perdera prestígio popular. É acusado de corrupção, nepotismo e abuso de poder. Ele confessou haver mentido sobre o crescimento econômico do país para ser eleito.
PROTESTOS “Não a Thaksin, não ao golpe”, dizia um cartaz exibido na manifestação. Ainda que não numerosos, os dissidentes fazem contraponto à imagem divulgada na grande mídia tailandesa: a de que o golpe militar têm amplo apoio. Sombat Boongnam-among, que participou de protestos, denunciou a junta militar por censurar a opinião do povo. “Não
tenho medo de ser preso, tenho o direito de expressar meu ponto de vista abertamente”, declarou. A junta adota métodos violentos para consolidar o golpe, como a anulação da Constituição de 1997 e a dissolução do Congresso. Foram proibidas atividades políticas e os jornalistas receberam ordens para enviar mostras das edições de jornais, antes que sejam veiculadas para a população. A ironia, aponta Giles Ungpakorn, cientista político da Universidade Chulalongkorn, em Bancoc, é que “uma das críticas contra Thaksin que justificou o golpe foi o controle que ele tinha sobre a mídia. O que temos agora é dez vezes pior”.
NOVO PREMIÊ A junta procura um novo primeiro-ministro. Boonyaratglin declarou que renunciaria em duas semanas, passando o poder a um chefe interino. Entre os possíveis nomes estão Supachai Panitchpakdi, que já presidiu a Organização Mundial do Comércio (OMC) e atualmente chefia o Escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Comércio e Desenvolvimento. O líder golpista, que ameaçou prender o premiê deposto se ele desembarcar na Tailândia, comandou os soldados que ocuparam as principais rotas de acesso a Bancoc. Na capital, tanques tomaram as principais avenidas. A família real tailandesa declarou apoio aos golpistas. (IPS – www.ips.org)
onde está hospitalizado. Tiveram que amputar sua perna esquerda. “Eu sabia que era arriscado, mas não tinha escolha. Era a única forma de ajudar minha família. Sabia que podia morrer, mas a possibilidade de tirar a família da pobreza vale o risco. Mas não recomeçarei”, diz. Se não tivesse tido a perna amputada, certamente tentaria novamente. Ndoye, como muitos em seu país, acredita que a vida é uma questão de destino. “É Deus que
decide”, ouve-se dos que são resgatados pela polícia costeira. As autoridades, tanto em Nouadhibou quanto em Thiaroye, são cúmplices das travessias. Muitos policiais trabalham como atravessadores. No fim de agosto, perseguido quando passava clandestinamente uma barreira militar senegalesa, um policial mauritano causou a morte de um soldado. No veículo que dirigia, havia várias pessoas, candidatas a uma viagem para as Ilhas Canárias. (L´Humanité – www.humanite.fr)
UM ATALHO PARA A EUROPA Mar
ARGÉLIA ILHAS CANÁRIAS
MARROCOS
MAURITÂNIA
MALI
NÍGER
SENEGAL GUINÉ
BURKINA FASSO COSTA DO MARFIM
OCEANO ATLÂNTICO
MÉXICO
Presidente quer aprofundar livre-comércio Roberto González Amador de Cidade do México (México) Três dos principais assessores do presidente mexicano eleito, Felipe Calderón, participaram, entre 12 e 14 de setembro, de um encontro secreto realizado no Canadá, onde representantes de grandes corporações e do setor militar estadunidense discutiram formas de “aprofundar a integração da América do Norte” e criar uma “zona segura” de abastecimento de petróleo para a economia de Washington. Juan Camilo Mouriño, coordenador de transição de Calderón, e os conselheiros de política internacional e assuntos econômicos, Arturo Sarukhán e Ernesto Cordero, constam da lista dos integrantes da reunião, chamada Fórum da América do Norte.
Do fórum, entretanto, participaram apenas pessoas convidadas e suas deliberações não foram divulgadas. A denúncia sobre a negociação entre mexicanos e estadunidenses foi levantada por Maude Barlow, ativista canadense que luta contra a privatização e a poluição dos recursos naturais, especialmente a água. Ela ganhou o Right Livelihood Award, conhecido como o Nobel Alternativo, em 2005. De acordo com documentos que escaparam ao controle dos organizadores, citados por Barlow, “entre os participantes estiveram figuras proeminentes, como o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, o secretário mexicano de Segurança Pública, Eduardo Medina Mora, e o general Rick Hillier, chefe das Forças Canadenses.
Legitimidade de Calderón é contestada
A denúncia foi reforçada por Michel Chossudovsky, economista canadense, diretor do Centro de Estudos sobre a Globalização, que afirmou que generais e executivos de corporações, como Lockheed Martin, Chevron, Pemex e Suncor Energy, discutiram estratégias para aumentar a integração da América do Norte. De acordo com ele, o encontro faz parte de uma série de discussões, realizadas pelo Grupo Independente de Trabalho da América do Norte (Gitan). Em documentos, o Gitan defende a privatização da produtora de petróleo estatal – a Pemex –, alegando que não consegue dar conta da exploração do recurso. A incompetência da estatal afetaria a segurança do continente, e seria um problema para os consumidores estadunidenses. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)
Assessoria desmente negociação
Igor Ojeda da Redação
Rosa Elvira Vargas de Cidade do México (México)
As eleições presidenciais mexicanas, realizadas em 2 de julho, marcaram o início de uma grande crise na política do país. As apurações oficiais apontaram para a vitória do conservador Felipe Calderón, do Partido Ação Nacional (PAN), por uma diferença de apenas 0,58% (cerca de 240 mil votos em um universo de 41 milhões de eleitores) em relação a seu oponente, Andrés Manuel López Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD). Diversas denúncias de fraudes foram feitas, como o desaparecimento de urnas nas regiões onde Obrador era favorito, e seus partidários exigiram a total recontagem dos votos. Em 5 de setembro, a Justiça Eleitoral do México considerou válida a eleição presidencial A oposição não reconheceu o resultado e proclamou Obrador “presidente legítimo” do país. Ele vai tomar “posse” de uma espécie de governo paralelo em 20 de novembro, data em que se comemora o aniversário da Revolução Mexicana de 1910. A oposição afirmou que vai resistir a Calderón, a partir de 1º de dezembro, quando está previsto o início do novo mandato presidencial. (Com agências internacionais)
A assessoria do presidente mexicano eleito Felipe Calderón negou a realização de negociações entre seus conselheiros com executivos e militares estadunidenses, em setembro, em encontro secreto no Canadá. “Foi um espaço de análise e discussão”, disse Arturo Sarukhán, conselheiro do político. Os temas debatidos, disse, foram fluxos migratórios e desenvolvimento regional. Sarukhán informou que Juan Camilo Mouriño, que coordena a equipe de transição de Calderón, não participou do encontro. Estava no México, asseverou. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)
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INTERNACIONAL
De 28 de setembro a 4 de outubro de 2006
11 DE SETEMBRO
O cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira explica como o governo estadunidense facilitou os atentados de 2001 para justificar seu plano imperial Igor Ojeda da Redação
A
utor do livro A formação do Império Americano, o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira afirma categoricamente que os atentados de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos foram facilitados pelo governo de George W. Bush. Em entrevista ao Brasil de Fato por correio eletrônico, Moniz Bandeira explica que os ataques foram o pretexto que o presidente estadunidense “precisava para atender aos interesses do complexo industrial e militar e assegurar-se das fontes e rotas do petróleo no Cáucaso e no Oriente Médio”. Para isso, Bush necessitava de um estado de guerra global e permanente, e criar um novo inimigo: “tornava-se necessário fomentar o pânico, chocar a opinião pública mundial, lançá-la contra os árabes”, diz. O cientista político prevê, ainda, a queda do Império estadunidense em questão de décadas. Brasil de Fato – Sob o ponto de vista do imperialismo estadunidense, o que significou o 11 de setembro? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, em 11 de setembro de 2001, foram facilitados. Configuraram a “razão propagandística” que George W. Bush, como Adolf Hitler, desejava para legitimar-se no poder, deflagrar a guerra permanente e executar os objetivos do Projeto para o Novo Século Americano. Não sem razão George Projeto para o Novo Século Ame- W. Bush ricano – Criado em anotou 1997 por figuras como Dick Cheney, em seu vice-presidente dos diário, EUA, defende que os objetivos do gona noite verno estadunidendo 11: se devem ser, entre “O Pearl outros: modernizar as Forças Armadas, H a r b o r promover a liberdo sédade econômica e aceitar a missão culo 21 de preservar e esocorreu tender uma ordem internacional que hoje”. De beneficie a seguranfato, o ça, a prosperidade e os princípios esta- a t a q u e dunidenses. a Pearl Harbor, conforme os documentos Pearl Harbor – Em 7 de dezembro h o j e de 1941, aviões comprojaponeses bombardearam a base mivam, foi litar estadunidense facilitado localizada na baía de Pearl Harbor, no pelo goHavaí, destruindo verno de diversos navios Franklin de guerra. O presidente dos EUA, D. RooseFranklin Delano velt, que Roosevelt, batizou deixou a o ocorrido como o “Dia da Infâmia” e esquadra declarou guerra ao a m e Japão, dando início à participação na II ricana Guerra Mundial. naquele porto à mercê do Japão. Foi o pretexto de que Roosevelt necessitava para engajar diretamente os Estados Unidos na guerra contra o Eixo, da mesma forma que o 11 de setembro serviu como pretexto para Bush atender aos interesses do complexo industrial e militar e assegurar-se das fontes e rotas do petróleo no Cáucaso e no Oriente Médio. Ele não declarou a
guerra contra o terrorismo por causa dos atentados de 11 de setembro, dos quais ele foi o único beneficiário, pois lhe possibilitaram, inclusive, legitimar-se como presidente. Sua vitória eleitoral ocorreu após um golpe de Estado judicial. Sua intenção de desencadear a guerra contra o terrorismo foi que levou o governo dos Estados Unidos a permitir que os atentados de 11 de setembro se consumassem. Para Bush, era necessário criar um estado de guerra global, uma guerra infinita e indefinida, contra um inimigo abstrato. Tornavase necessário fomentar o pânico, chocar a opinião pública mundial, lançá-la contra os árabes, com o objetivo de apresentar o islamismo como o novo inimigo. BF – Quais os impactos do 11 de setembro nas relações internacionais, passados cinco anos? Moniz Bandeira – A pretexto da guerra contra o terrorismo, os Estados Unidos trataram de buscar a coesão dos países em torno de sua liderança. Mas não estão conseguindo atingir tal objetivo. Suas Forças Armadas já percebem que não têm condições de derrotar os cerca de 20 a 30 mil insurgentes no Iraque. O Talibã se fortalece no Afeganistão. E Israel não venceu a guerra contra o Hizbollah. Os Estados Unidos, com um arsenal de 7.000 ogivas nucleares, podem destruir tudo, mas não podem vencer uma guerra, como a que travam no Afeganistão e no Iraque. Três anos e meio após a invasão do Iraque, as baixas americanas somam mais de 2.900 mortos, mais do que os mortos pelos atentados de 11 de setembro, e há ainda algo como 20.000 feridos. Há, em média, 56 ataques diários de milícias muçulmanas em Bagdá. Não ha sinais de um final da guerra, nem no Iraque, nem no Afeganistão, nem na Palestina.
O 11 de setembro serviu para que os EUA intensificassem suas pressões sobre os países da América Latina, a pretexto de combater o terrorismo BF – Quais os desafios que os movimentos que lutam contra guerra e a globalização tiveram que enfrentar nesses cinco anos? Moniz Bandeira – A globalização representa mais uma etapa no processo de internacionalização do capitalismo, que foi o único modo de produção com capacidade de expansão mundial. O pro-
Naokomc/creative commons
O pretexto que faltava a Bush
Bush anotou em seu diário, na noite do dia 11 de setembro: “O Pearl Harbor do século 21 ocorreu hoje”; à esquerda, capa de jornal de 1941 traz a manchete ‘Japoneses declaram guerra aos Estados Unidos’; à direita, de 2001, noticia de que os “Estados Unidos foram atacados”
Para Bush, tornava-se necessário fomentar o pânico, chocar a opinião pública mundial, lançá-la contra os árabes, com o objetivo de apresentar o islamismo como o novo inimigo cesso, porém, traz em si muitas contradições, que dificultam, se não inviabilizam, a sua continuidade. O que os Estados Unidos pretendem, com a doutrina de guerra formulada pelo governo de Bush, é superar a contradição fundamental na internacionalização ou globalização do capitalismo – por exemplo, superar a contradição entre a dimensão mundial de sua economia e os estreitos limites geográficos de múltiplos Estados nacionais, com soberania sobre determinados territórios. Em tais circunstâncias, a extrema direita, que se apossou do governo com Bush, pretendeu tornar os Estados Unidos um Estado global, sem fronteiras, exercer uma ditadura planetária, com o objetivo de modelar e dominar um sistema de múltiplos Estados, alguns não confiáveis, denominados rogue states (estados irresponsáveis), e garantir que nenhum deles ousasse desafiar seu poderio, emergindo como potência global ou regional. BF – O que mudou na estratégia dos EUA em relação à América Latina? Moniz Bandeira – A América Latina, obviamente, está inserida na economia mundial e a aplicação das medidas preconizadas pelo Consenso Consenso de Washington – Termo de Wacriado pelo econoshington, mista John Williamson em 1989, refeao longo re-se a uma série dos anos de recomendações de 1990, de medidas econômicas neoliberais a deterioserem tomadas por rou ainpaíses que quisessem reformar sua da mais economia. a situação econômica e social em toda a região, o que fez recrudescer a oposição aos Estados Unidos. O 11 de setembro serviu para que os Estados Unidos intensificassem suas pressões sobre os países da América Latina, a pretexto de combater o terrorismo. BF – Como esta nova conjuntura mundial influenciou a relação entre os países do continente? A maior aproximação entre Bolívia, Venezuela, Cuba, Brasil e Argentina está
relacionada aos efeitos do 11 de setembro? Moniz Bandeira – Não há uma relação direta entre o acontecimento e a aproximação entre Bolívia, Venezuela, Cuba e Brasil. A tendência é ampliar-se a área de resistência aos Estados Unidos. O Brasil tem importante papel a desempenhar, juntamente com a Argentina, na criação de outro pólo de poder mundial, com a Comunidade Sul Americana de Comunidade Sul – Americana de Nações, Nações – Estabeleporque cida em dezembro de 2004 em Cuzco, o mundo no Peru, pelos presidentes do con- caminha tinente, a entidade para a tem como objetivo multipoa conformação de um espaço de intelaridade gração no âmbito com o político, social, econômico, ambiental e a d v e n t o de infra-estrutura. da China como potência mundial, além de Índia, União Européia e Rússia, esta última em recuperação. BF – Os EUA insistem em afirmar que a região da Tríplice Fronteira abriga grupos terroristas árabes, embora nada disso tenha sido comprovado. Qual o real interesse dos EUA com isso? Moniz Bandeira – Nas três cidades vizinhas – Ciudad del Este, Puerto Iguazú e Foz do Iguaçu, respectivamente no Paraguai, Argentina e Brasil – vivem mais de 30 mil imigrantes árabes, oriundos, principalmente, do Líbano e da Síria. Desde os atentados de 11 de setembro, funcionários do governo americano esforçaram-se para vincular aquela região, chamada Tri-border Area (TBA), às atividades terroristas. Entretanto, o relatório anual “Patterns of Global Terrorism – 2002” (Padrões do Terrorismo Global – 2002), liberado em 30 de abril de 2003 pela Secretaria de Contra-terrorismo do Departamento de Estado, informou ao Congresso americano que, embora a Tríplice Fronteira fosse durante longo tempo caracterizada como a regional hub (um centro regional) para levantamento de fundos destinados às organizações Hizbollah e Hamas, assim como para tráfico de
drogas e de armas, além de contrabando, fraudes de documentos, moedas e manufatura de cópias piratas, as numerosas informações da mídia, em 2002, sobre a presença da al-Qaeda naquela região não havia sido corroborada pelos serviços de inteligência e outras agências do governo americano. As informações sobre a existência de organizações terroristas na área de Tríplice Fronteira, repetidas, insistentemente, por altos funcionários do governo americano e reproduzidas pela imprensa, bem como por analistas de algumas instituições, mostraram ser, portanto, parte de uma guerra psicológica, de alguns setores do Pentágono, com objetivos escusos, entre os quais justificar obter mais recursos no orçamento e a instalação na América do Sul de uma força de deslocamento rápido, para intervir em situações de conflito de baixa intensidade, como levantes na Bolívia, ou controlar, como se supôs, uma zona, como a da Tríplice Fronteira, com a maior reserva mundial de água potável, recurso estratégico cuja escassez deve ocorrer no futuro. Trato desse tema em meu livro As Relações Perigosas – Brasil-Estados Unidos (De Collor a Lula). BF – Quais as perspectivas para o futuro do Império? Moniz Bandeira – Várias vezes já previ que a decadência do Império Americano não vai durar séculos, como a do Império Romano, senão décadas. E sua queda será tão dramática, violenta e vertiginosa quanto a sua ascensão. O Império Americano, militarista, necessita de guerras para manter sua economia em funcionamento, reduzir o número de desempregados etc. A alta do preço do petróleo e do ouro, bem como a valorização do euro indicam a profunda crise que ameaça a economia americana. Os Estados Unidos emitem dólares, sem lastro, para pagar a Commodities – Produto primário energia, produzido em larga commoescala e destinado ao mercado externo. d i t i e s
e manufaturas que importam, e os países que lhes vendem, tais como a Arábia Saudita, China e outros, com os mesmos dólares sem lastro compram bônus do Tesouro Americano. São os bancos centrais de outros países que continuam assim a financiar o deficit na conta corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, que em 2005 alcançou o recorde de 805 bilhões de dólares, 25% a mais do que em 2005 e o equivalente a 6,4% do Produto Interno Bruto (PIB). As estatísticas do Departamento do Tesouro indicavam, no fim de 2004, que os estrangeiros detinham 44% do débito federal possuído pelo público. Cerca de 64% dos 44% estavam na posse dos bancos centrais de outros países, a maior parte nos bancos centrais do Japão e da China. Só a China detém cerca de 854 bilhões de dólares, valor mais alto que o deficit da conta-corrente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos. A situação gera certamente enorme potencial de risco para os Estados Unidos, se os bancos pararem de comprar os bônus do Tesouro ou começarem a vendê-los, maciçamente, no mercado. A bolha financeira dos Estados Unidos vai estourar, mais dia, menos dia. George Soros considera que o estouro da bolha é inevitável e previu que ocorreria em 2007.
A decadência do Império Americano não vai durar séculos, como a do Império Romano, senão décadas. E sua queda será tão dramática, violenta e vertiginosa quanto a sua ascensão
Quem é Doutor em Ciência Política e professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB), Luiz Alberto Moniz Bandeira é autor de várias obras sobre a América Latina e Estados Unidos, entre as quais De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina (Civilização Brasileira, 1998) e A formação do Império Americano (Civilização Brasileira, 2005), que lhe valeu ser eleito Intelectual do Ano 2005, como vencedor do Troféu Juca Pato, prêmio concedido pela União Brasileira de Escritores e o jornal Folha de S. Paulo