Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 4 • Número 188
R$ 2,00
São Paulo • De 5 a 11 de outubro de 2006
www.brasildefato.com.br Ricardo Stuckert
Lula durante comício em Sorocaba (SP), em 24 de setembro
Movimentos declaram apoio a Lula Depois de não se posicionarem oficialmente no primeiro turno, agora organizações se unem contra Geraldo Alckmin s principais movimentos sociais concordam: é preciso impedir a eleição de Geraldo Alckmin para presidente. No segundo turno, declaram apoio a favor de Lula. MST, CPT, Marcha das Mulheres, UNE e CUT consideram a campanha para a reeleição de Lula uma oportunidade para fortalecer a luta de classes. Por outro lado, a realização do segundo turno, quando a vitória do PT era tida como certa, é reflexo de erros do governo e do partido. A composição do novo Congresso vai ser um obstáculo para o próximo presidente. No caso de reeleição de Lula, dizem os movimentos, a governabilidade só vai ser garantida com participação popular. Págs. 3 e 4
No México, esquerda cria governo rebelde
EDITORIAL
Derrotado oficialmente nas eleições presidenciais mexicanas de 2 de julho, Andrés Manuel López Obrador se prepara para tomar posse, em 20 de novembro, de um governo rebelde. Diversos setores de base da esquerda reuniram-se em convenção e declararam Obrador vencedor, devido às fraudes ocorridas no pleito em favor de Felipe Calderón, de direita. Até lá, os participantes do encontro pretendem realizar inúmeros protestos pacíficos. Pág. 7
Vale do Rio Doce nas mãos de estrangeiros
A verdadeira guerra haitiana é a dívida
Brasil vive um momento muito delicado em sua conjuntura política, com uma grave crise de projeto. Por um lado, o governo Lula não acumulou forças suficientes para derrotar o neoliberalismo e a subordinação de nossa economia ao capital financeiro e às transnacionais – houve apenas pequenos avanços em diversas áreas sociais. Por outro, as organizações populares e o movimento de massa continuaram em refluxo. Issou gerou uma grave crise da esquerda partidária. Muitos setores abandonaram as propostas de mudanças estrutural, e passaram a adotar os mesmos métodos da direita. Ou seja, usar os partidos apenas para proveito pessoal ou de grupos na disputa por cargos públicos. Com isso, entramos em uma grave crise ideológica, de falta de debate sobre a natureza da luta de classes e o projeto da classe trabalhadora. Tudo isso produziu um cenário de correlação de forças adversa para a classe trabalhadora, e para os interesses do povo brasileiro. A campanha eleitoral deste ano foi um desastre. As candidaturas não debateram projetos para o país, e muito menos defenderam claramente os interesses da classe trabalhadora. Também não denunciaram a dominação das elites, que causa tantos problemas ao povo, como a falta de emprego, de moradia, de escola e de terra. Nos Estados, muitas alianças esdrúxulas foram feitas. E muita gente pensou que as eleições não mais faziam parte da luta de classes. Alguns chegaram a dizer que os
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É preciso derrotar a direita
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termos “esquerda” e “direita” não faziam mais sentido. Ledo engano. A burguesia brasileira não nos faltou! Na “hora H”, ela mostrou sua cara. Quando tudo parecia decidido, numa pasmaceira geral e sem nenhuma participação da militância, eis que, por obra e graça de alguns dirigentes petistas desastrados, que alimentaram a sanha da direita, ela despertou e viu que poderia retomar as rédeas do governo. E veio com tudo na campanha do Alckmin. Em uma semana a direita centralizou suas forças: dinheiro, partidos conservadores e mídia. Veio com tudo para levar a disputa para o segundo turno. Buscava com isso, no mínimo, como defendeu seu porta-voz, o jornal Folha de S.Paulo, em editorial, “manter o Lula acuado e arrancar mais compromissos”. E na melhor das hipóteses para eles, como defendeu FHC “impor o impeachment, mesmo depois de uma vitória de Lula”. A direita está viva, articulada, e pronta para tomar o governo! É chegada a hora de a militância social, de todas as forças políticas e populares que estiveram apáticas e desanimadas no primeiro turno, se mobilizar e impor uma derrotar à direita. É preciso garantir a vitória do Lula. A vitória de Alckmin não seria apenas a derrota do Lula, como castigo para os muitos erros que o PT e o governo cometeram, seria a vitória da burguesia sobre os interesses populares. Seria a legitimação do projeto neoliberal, que recoloniza o Brasil, a serviço do grande capital transnacional e dos bancos. Seria aceitar mais re-
pressão aos movimentos sociais. Seria uma grande derrota dos pobres, dos trabalhadores. Por isso, para quem não acreditava mais, temos um segundo turno, que é a verdadeira luta de classes. E a militância social não pode ter dúvidas, nem vacilações. Essa é a hora, de nos mexermos, de nos mobilizarmos, de arregaçarmos as mangas e fazermos campanha política. É a hora de transformarmos a campanha eleitoral em uma verdadeira luta política, a favor da classe trabalhadora. Não se trata de pedir voto para o Lula, trata-se de derrotar, política e eleitoralmente, o projeto neoliberal. E, a partir da derrota da direita, exigir do segundo mandato as mudanças necessárias, tantas vezes prometidas, e sempre adiadas pela pressão das antigas alianças. Precisamos ganhar o segundo turno, com uma disputa de idéias, de política, de projetos, e denunciar tudo o que significa o neoliberalismo de Alckmin e dos tucanos em termos de aumento da exploração dos pobres, de menos serviços públicos, de mais privatizações, de menos soberania nacional e de mais corrupção. Política é a ação de conflito de interesses, a disputa de interesses de classe. Basta de apatia, vamos para as ruas derrotar Alckmin, a burguesia brasileira e os interesses do capital internacional!
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DEBATE
CRÔNICA
Por outra reforma política
Marcelo Barros
Ana Claudia Teixeira e Michelle Prazeres reforma política, em que pese os distintos momentos de sobes e desces do debate no Congresso, Governo Federal e mídia, tem um marco comum: a ênfase – quando não a redução exclusiva do debate – numa reforma da legislação eleitoral e dos partidos. A construção de uma sociedade democrática, no entanto, está inserida em um contexto mais amplo, que diz respeito a mudanças no próprio sistema político, na cultura política e no próprio Estado. As constatações de que os objetivos da Carta Constitucional não têm sido alcançados plenamente e de que seus avanços caminham a passos curtos se convertem em incentivos à mobilização a fim de aprimorar as regras do sistema político. É para reivindicar esta “outra reforma” que movimentos sociais, redes, fóruns e ONGs – à frente delas o Fórum Nacional de Participação Popular – vêm construindo, desde 2005, uma proposta de reforma política para o Brasil. Esse documento, denominado por nós de plataforma, exige uma reforma ampla que expanda a democracia em cinco diferentes eixos: I) Fortalecimento da democracia direta; II) Fortalecimento da democracia participativa; III) Aprimoramento da democracia representativa: sistema eleitoral e partidos políticos; IV) Democratização da informação e da comunicação; e V) Transparência no Poder Judiciário. Em relação à democracia direta, é imprescindível a definição de uma nova regulamentação das formas de manifestação da soberania popular expressas na Constituição Federal (plebiscito, referendo e iniciativa popular). A atual não só restringe a participação, como a dificulta. A ampliação das regras sobre plebiscito e referendo é necessária para que a participação popular nas decisões políticas seja efetiva e não meramente simbólica.
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A democratização da comunicação representa condição fundamental para o efetivo exercício da soberania popular Os inúmeros espaços de participação, em especial os conselhos de políticas e as conferências, não dialogam entre si e muito menos tencionam o atual sistema político representativo. A participação popular nesses espaços é majoritariamente uma participação consultiva, setorializada, reproduzindo a fragmentação existente nas políticas públicas e o distanciamento das decisões econômicas referente à alocação de recursos públicos. Para o aperfeiçoamento da democracia participativa, acreditamos ser necessário construir um sistema integrado de participação popular. Apesar de defendermos que a reforma política diz respeito não somente aos processos eleitorais ou aos partidos, mas também a todos os processos decisórios,
Águas da humanidade
portanto, de poder, entendemos como necessário o aperfeiçoamento da democracia representativa, que implica mudanças no sistema eleitoral e partidário.
Precisamos construir mecanismos de participação e controle social sobre o Judiciário, para que cumpra o papel regulador das relações sociais, econômicas e políticas É preciso afirmar também que sociedade e comunicação democráticas são indissociáveis. Pertencem ao mesmo universo e sua relação não pode ser dissolvida. Se a comunicação exerce um papel fundamental para a realização plena da cidadania e da democracia brasileira, a democratização da comunicação representa condição fundamental para o efetivo exercício da soberania popular. O Poder Judiciário é o Poder que a população tem mais dificuldades em acessar. Os profissionais do Judiciário são concursados ou exercem cargos de confiança. Não estão sujeitos a nenhum tipo de controle social ou participação da população. Por isso, precisamos construir mecanismos de participação e controle social sobre o Judiciário, para que cumpra o papel regulador das relações sociais, econômicas e políticas. Também é foco dessa plataforma o respeito às diversidades, garantindo voz e poder político a grandes parcelas da sociedade brasileira que sempre foram excluídas pela desigualdade econômica e social, pela violência e pela mídia conservadora e reprodutora do sistema opressor de excludente, a exemplo de negros(as), mulheres e povos indígenas. Enfim, sem negar a necessidade de um Estado eficiente na defesa do interesse público e com ampla participação popular, essa plataforma se opõe necessariamente ao paradigma do Estado mínimo. Opõe-se também a uma forma tradicional de fazer política, baseada no patriarcado, patrimonialismo, personalismo, nepotismo e clientelismo, na medida em que propõe uma reforma política que radicalize a democracia, que enfrente as
desigualdades e a exclusão, que promova a diversidade e a participação cidadã. Uma reforma que amplie as possibilidades de setores excluídos do poder, como as mulheres, os/as afrodescendentes, os/as homossexuais, os/ as indígenas, os/as jovens, as pessoas com deficiência, os/as idosos; enfim, de todos/as os/as despossuídos/as de direitos. A plataforma para uma reforma política para o Brasil, com os cinco eixos de ação, está circulando o país em seminários e encontros regionais para ampla consulta e debate nacional em redes, fóruns, movimentos sociais, populares e sindicais. Sua versão completa se encontra na página www.participacaopopular.org.br . A intenção é de que os resultados desse ciclo de debates sejam consolidados em um importante instrumento de pressão sobre o novo Congresso Nacional e o Poder Executivo Federal para que os itens dessa plataforma sejam considerados num processo de reforma política que responda de fato ao interesse público. Ana Claudia Chaves Teixeira é coordenadora de participação cidadã do Instituto Pólis e membro da coordenação do Fórum Nacional de Participação Popular (FNPP). Michelle Prazeres é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e do FNPP
Desde a última 6ª feira de setembro, as comunidades afro-brasileiras de tradição Ioruba acordam de madrugada para começar a festa das Águas de Oxalá que abre verdadeiramente a primavera, nesta parte do mundo em que o que caracteriza essa estação é a vinda das chuvas benfazejas. A festa das Águas de Oxalá revive um belo mito africano. Oxalá sente saudade do seu filho Xangô, rei de Oiô e vai visitá-lo. Para obedecer à previsão do destino (Orumilá), vai de branco e em silêncio absoluto. No meio do caminho, Exu lhe pede que o ajude a levantar do chão um pesado saco de carvão e depois um barril de azeite de dendê. Oxalá o faz. O saco estava furado e o barril também se derrama sobre Oxalá que suja toda sua roupa branca. Chegando ao reino do filho, Oxalá, todo sujo, é confundido com um bandido e é jogado na prisão por sete anos. Nesse tempo, o reino de Xangô enfrenta muitos problemas e um babalaô lhe diz que o reino passa por tantas adversidades porque o rei compactua com injustiças. Xangô descobre entre os presos o próprio pai. Triste, coloca o velho pai em suas costas e o conduz ao palácio onde ele mesmo se encarrega de banhá-lo e vesti-lo com as roupas mais brancas que existem, realizando a seguir uma grande festa em sua homenagem. A festa das Águas de Oxalá, com uma procissão representando a viagem de Oxalá, rememora esse episódio. Como todo mito, este também é simbólico e aberto. De um modo ou de outro, todas as religiões contam histórias para mostrar o que diz o salmo 85: “a justiça e a paz, a verdade e o amor têm de se encontrar e se abraçar”. A visita de Oxalá a Xangô significa que a justiça divina (Xangô) liberta a bondade providencial do Criador (Oxalá) que vem sobre o mundo como águas benfazejas da primavera.
A falta de saneamento ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a contaminação dos mananciais Mais do que nunca a humanidade precisa de uma grande festa das águas. Todos os anos, especialistas de 140 países se reúnem na Suécia para a Semana Mundial da Água. A cada ano, esses estudiosos constatam ser mais grave a carência de água no planeta Terra. Neste ano, esse encontro ocorreu de 20 a 26 de agosto e reiterou que um terço da população mundial já sofre com a escassez de água potável. Isso é ainda mais grave porque esse quadro era previsto somente para 2025 e já está acontecendo em 2006. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada ano, cerca de 2,2 milhões de pessoas, muitas delas crianças, morrem em razão da falta d´água e de suas conseqüências. Essa crise de água, explicável pela má distribuição dos rios e lagos na superfície terrestre, é agravada pelo aquecimento global e pela devastação de áreas úmidas, mas principalmente pelo desperdício e pela má gestão dos recursos hídricos, termo impróprio, já que água não é mercadoria para ser recurso. Água é um bem da natureza que está no planeta há bilhões de anos. A questão é que o uso da água hoje é muito mais intenso que em algumas décadas atrás. Esse uso intenso da água, principalmente na agricultura e na indústria, ocorre num ritmo mais acelerado que a reposição feita pelo ciclo natural das águas. Dessa forma, muitos mananciais estão sendo eliminados pelo sobreuso que deles se faz. Pior, ao devolver a água para seu ciclo natural, ela vem contaminada pelos agrotóxicos da agricultura e pela química da indústria. A falta de saneamento ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a contaminação dos mananciais. A festa das Águas de Oxalá é uma profecia espiritual que indica ao mundo que a solução para a crise da água não pode ser a mercantilização nem a privatização. Que toda a humanidade se coloque como as filhas e filhos de santo na procissão de Oxalá, carregando cada pessoa o seu recipiente de água para colocar em comum com todos. Água é direito humano universal e só quando é posta em comum pode ser fonte de vida e de bênçãos para todo ser vivo. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais está lançando Dom Helder, profeta para o nosso tempo, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL
ELEIÇÕES
Reeleger Lula e fazer luta de classes O
s principais movimentos sociais do país sinalizam o apoio a Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno. É um voto de classe – em defesa dos pobres. Diferentemente do que ocorreu no primeiro turno, quando as organizações decidiram não apoiar abertamente nenhum dos candidatos, contra Geraldo Alckmin, que disputa a Presidência com o petista, a atitude vai ser outra. Dos seis movimentos ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) é o único que não afirmou votar em Lula. De acordo com a assessoria de dom Odilo Pedro Scherer, bispo emérito de Piracicaba (SP) e secretário-geral da entidade, ainda não há um posicionamento oficial – até o fechamento desta edição, dia 3. No primeiro turno, admite Nalu Faria, da secretaria nacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil (MMM), a entidade não apresentou apoio a nenhum candidato. “Agora é outra situação”, diz. Na avaliação do movimento, composto por integrantes de vários partidos, o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva promoveu a recuperação do papel do Estado como provedor de políticas públicas. Ela acredita que os principais movimentos sociais do país sinalizam o apoio à Lula no segundo turno, pois, afirma, os petistas possuem um programa de
Presidente Lula durante encontro com representantes de Movimentos Sociais no Palácio do Planalto no ano passado; no segundo turno, o apoio a Lula será explícito e engajado
governo mais preocupado com os pobres.
VOTO ANTINEOLIBERAL Gustavo Petta, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), revela que, em abril, no Conselho Nacional de Entidades de Base da organização, foi decidido apresentar aos candidatos de esquerda uma plataforma baseada no Projeto Brasil, da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), conjunto de propostas para desenvolver o país, que indicava a necessidade de mudar a política econômica, entre outros pontos. A entidade decidiu não apoiar nenhum candidato, no primeiro turno. Contra Alckmin, salienta Petta, o movimento vai apoiar Lula, “para não per-
mitir o retorno da direita ao poder”. Ele diz que o tucano defende a cobrança de mensalidades em universidades públicas, o que é inaceitável para os estudantes. “O governo Lula tem o caráter de defender o ensino gratuito como algo estratégico para o desenvolvimento do país. Essa é uma diferença importante entre os dois projetos”, arremata o representante estudantil.
UNIÃO CONTRA TUCANO “Com o advento do segundo turno, está-se evidenciando a luta de classes no Brasil”, destaca Marina dos Santos, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ela considera que a eleição de Alckmin
representaria, para os camponeses, mais repressão e o avanço do agronegócio, e conclama outros movimentos a se unir contra o tucano. Para Marina, é preciso apoiar Lula, visando o reacenso dos movimentos de massa no Brasil. “É importante reforçar o debate com a sociedade contra o projeto que Alckmin defende, que é mais atrasado, que tem muito racismo”, explica. A dirigente conta que o Movimento está fazendo consultas nos Estados e aguardando opiniões das coordenações estaduais para saber como será o engajamento na campanha de Lula. “Não se deve considerar o segundo turno como um processo eleitoral, mas como um momento decisivo
Erros do PT. A direita agradece Igor Ojeda da Redação O desempenho de Geraldo Alckmin nas eleições presidenciais deve ter surpreendido até o próprio PSDB e seus aliados do PFL. Com 41,64% dos votos válidos, o candidato tucano obteve quase 40 milhões de votos, número expressivo que levou ao segundo turno uma disputa que parecia fadada a acabar no dia 1º. Em março de 2006, quando a cúpula do PSDB decidiu pela candidatura de Alckmin, alguns analistas políticos creditaram a decisão a uma certeza de vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que àquela altura já voltara a crescer nas pesquisas, após os escândalos de 2005 e despontava quase como imbatível. Vale lembrar que José Serra, então prefeito de São Paulo e governador eleito do Estado, aparecia, nas sondagens eleitorais, com condições melhores que as de Alckmin para derrotar Lula. Na última pesquisa do Instituto Datafolha antes da decisão tucana, no fim de fevereiro, o atual presidente estava à frente nas intenções de votos no primeiro turno com 39% a 31% quando o adversário era o primeiro, e 43% a 17% contra o segundo. Numa eventual disputa no segundo turno, Lula liderava com 48% a 43% contra Serra, e 53% a 35% contra Alckmin. A opção pelo então governador de São Paulo era bastante arriscada para a direita. Por isso mesmo, a estratégia do PSDB parecia ser a de resignar-se com a derrota e jogar todas as fichas em 2010, com um nome forte como Serra ou Aécio Neves (governador reeleito de Mi-
nas Gerais), e sem a presença de um candidato de peso do PT como adversário.
CASO DOSSIÊ Na opinião do senador reeleito Eduardo Suplicy (PT-SP), dois fatores principais podem explicar a votação atingida por Alckmin: o escândalo da tentativa de compra de um dossiê contra Serra por petistas ligados à cúpula do partido e a ausência de Lula no debate da TV Globo em 28 de setembro, onde foi o principal alvo de ataques de seus adversários. “A questão do dossiê prejudicou muito o Lula e o Mercadante (Aloizio, candidato derrotado ao governo de São Paulo). Ainda hoje (dia 3 de outubro), recomendei na reunião da bancada que se esclareça tudo no mais breve espaço de tempo possível”, conta. Dessa forma, a esperança de Suplicy é que os assuntos dos próximos debates tenham conteúdo programático. Em relação ao debate da Globo, às vésperas das eleições, o senador paulista conta que havia recomendado a Lula que comparecesse: “Ele poderia ter consolidado sua vitória. Fico contente que ele tenha resolvido participar dos debates do segundo turno”. O escândalo do dossiê estourou em 15 de setembro. A primeira pesquisa Datafolha após o caso, realizada entre os dias 18 e 19, mostrou Lula (50%) sem alterações nas intenções de votos, enquanto Alckmin (29%) oscilou positivamente em um ponto percentual. No entanto, nos levantamentos seguintes, o petista foi caindo e o tucano crescendo. Na sondagem de 22 de setembro, o placar já estava em 49% a 31%, enquanto, no levantamento divulgado
na véspera do pleito, 46% a 35%. O resultado final divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral, considerando o total de votos, mostrou Lula com 44,5% e Alckmin com 38,1% (48,6% a 41,6% se considerados apenas os votos válidos).
para o Brasil”, analisa o padre Dirceu Luiz Fumagalli, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que disse apoiar Lula contra Alckmin. Ele avalia que a campanha contra o tucano vai ser uma oportunidade para colocar o povo nas ruas, articulando os movimentos sociais. “No primeiro turno, não foram à rua. Se Lula quiser vencer, precisa se aproximar de sua base. A costura por cima já foi feita, agora deve ser feito o trabalho de base”, conclui.
PARA OS TRABALHADORES O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) afirma que o apoio ao petista já havia sido decidido no congresso nacional da organização, em junho. “Mais de 80% dos delegados pre-
sentes votaram em uma resolução que apontava para a reeleição do Lula, vinculando-a à apresentação de uma plataforma dos trabalhadores a ser implementada no segundo mandato”, relata. O presidente da CUT afirma que o objetivo da resolução é impedir o retrocesso representado pelo PSDB e pelo PFL, aliado dos tucanos, que privilegia a privatização, o Estado mínimo e a flexibilização dos direitos trabalhistas. Para Artur Henrique, a luta de classes está colocada desde o início do processo eleitoral, porque, no candidato de direita, há uma atitude preconceituosa em relação aos movimento sociais. Diz: “Tentam impor a idéia de que um operário não pode governar um país”.
Orlando Brito/Divulgação
Eduardo Sales de Lima da Redação
Ricardo Stuckert/PR
As principais organizações do país declaram voto no petista, afirmando que Alckmin representa o retrocesso
DESGASTE DO GOVERNO Mas, para o sociólogo Mauro Iasi, candidato a vice-governador de São Paulo pelo Psol na chapa de Plinio Arruda Sampaio, o caso dossiê não é a única explicação para o crescimento de Alckmin na reta final. “O que eu avalio como central é que nem o núcleo do governo, nem os especialistas perceberam – e as pesquisas não revelaram – que havia um desgaste maior do que se esperava em relação ao governo Lula. Existia uma grande parcela da população que não tinha decidido o voto e, entre estes, uma parcela maior do que todos imaginavam que estavam descontentes com o governo, e que no momento da eleição decidiram votar no Alckmin”, analisa. Outro fator que Iasi aponta para a expressiva votação atingida pelo tucano é a transferência de votos de pessoas que, também insatisfeitas com Lula, votariam em Heloísa Helena, do Psol e que, no dia da eleição, optaram pelo voto útil contra o petista. Além disso, considera que, embora o caso dossiê não tenha sido o único fator favorável a Alckmin, é inegável que teve influência, “menos pelo caso em si e mais porque ele trouxe à tona todos os outros casos anteriores que ficaram mal esclarecidos”. Segundo o sociólogo, o escândalo quebrou a tese de que o grupo majoritário do PT havia feito uma mudança de quadros, afastando os corruptos.
Desvios ideológicos de petistas propiciaram a Geraldo Alckmin, representante das elites, levar o resultado das eleições para o segundo turno
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NACIONAL ELEIÇÕES
Segundo turno O resultado das eleições mostrou que o lulismo mantém sua força no Brasil mais atrasado, no Norte-Nordeste, onde fez alianças com as oligarquias que controlam os meios de comunicação de massa e o eleitorado. A questão agora é saber se os caciques da direita e do conservadorismo não vão bandear para o lado da candidatura tucana – com a qual têm afinidade no projeto de dominação. Dúvida cruel Agora, socialistas e lutadores do povo enfrentam alguns dilemas. O que causa mais dano à organização e à luta da classe trabalhadora: a existência de um patrão opressor ou a liderança de um pelego? O que enfraquece mais o movimento popular e revolucionário: a luta contra inimigos definidos por projetos de classe ou a convivência com falsos amigos que te impedem de lutar? Terror ianque Relatório do serviço de segurança dos Estados Unidos registra que o número de ataques terroristas aumentou bastante depois que o presidente George W. Bush decidiu atacar e ocupar com tropas militares o Iraque, em 2003. Ou seja, a insegurança do mundo aumentou com a selvageria dos Estados Unidos, responsáveis por mais de 50 mil mortos no Iraque, nos últimos três anos. Escalada fascista A nova lei dos Estados Unidos para suspeitos de terrorismo não admite o direito de habeas corpus, desrespeita a Convenção de Genebra sobre o tratamento humanitário a prisioneiros de guerra, aceita a existência de tribunais de exceção e deixa a critério do presidente George W. Bush a escolha dos métodos de interrogatório. As lideranças mundiais estão caladas diante de tamanha regressão. Lição globalizada Há poucos anos, nove em cada dez empresários brasileiros defendiam a abertura de comércio com a China. Imaginavam ganhar fortunas vendendo seus produtos para milhões de chineses. Agora, a entrada de produtos chineses no Brasil, a preços inferiores aos nacionais, está destruindo vários setores produtivos. E nove em cada dez empresários pedem barreiras contra a importação da China. Aliança perfeita Na reta final da campanha eleitoral no Amapá, o presidente Lula deu uma boa ajuda para a reeleição do senador José Sarney, do PMDB. Isso aconteceu porque o velho cacique da oligarquia maranhense estava correndo o risco de perder a eleição para a candidata do PSB, Cristina Almeida, uma humilde trabalhadora ligada aos movimentos sociais populares do Amapá. Lula ficou com Sarney. Disputa continental Considerada a bíblia do capitalismo mundial, a revista inglesa The Economist publicou matéria de capa sobre a disputa pela liderança da América Latina, entre os presidentes Lula e Hugo Chávez, da Venezuela. É claro que o objetivo é envenenar as vaidades e as relações entre os dois países, especialmente depois que Chávez demonstrou maior capacidade de articulação internacional. Atuação unilateral Durante o governo de FHC, os Estados Unidos impuseram uma lei antinacional e um tratado de patentes desfavorável ao Brasil. Agora nomearam um adido antipirataria para a embaixada em Brasília. O governo estadunidense fiscaliza tudo para defender os interesses comerciais de seu país, mas o mesmo não acontece com o governo brasileiro. Dois pesos, duas medidas. Recorde paraense O Pará foi o Estado brasileiro que registrou o maior número de municípios ocupados por forças federais para garantir a realização das eleições sem conflitos armados. É também o Estado com maior número de casos de trabalho escravo e de assassinatos de trabalhadores rurais. As oligarquias paraenses e o governo estadual não estão nem aí com a destruição da floresta amazônica. Até quando?
Próximo presidente terá dificuldade em obter maioria suficiente para alterar a Constituição Luís Brasilino da Redação
O
clima de votações passadas, onde o destino do país parecia estar em jogo, finalmente apareceu. Mas as eleições do dia 1º também definiram a composição para mais uma legislatura da Câmara dos Deputados e de um terço do Senado. A análise do Congresso renovado permite concluir que a temperatura elevada não vai resistir muito tempo depois da escolha do novo presidente, marcada para o dia 29. A disputa acirrada no segundo turno vai gerar mais resistência da oposição qualquer que seja o candidato vitorioso. Além disso, os dois principais blocos partidários conseguiram eleger praticamente o mesmo número de deputados federais. PT, PCdoB, PSB e PRB, do grupo que luta pela reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, terão 124. Já a dupla PSDB-PFL, que apóia Geraldo Alckmin, ficou com 130 cadeiras na Câmara. Segundo Antônio Augusto de Queiroz, diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), reeleito Lula encontraria, na Câmara, uma situação “razoavelmente tranqüila”. No Senado, entretanto, a oposição cresceu (o PFL terá dois senadores a mais e o PMDB sofreu abalos em seu setor governista) e o governo encontraria dificuldades.
O cientista político Leonardo Avritzer, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que o grupo que estará com Lula ficaria próximo de uma maioria simples (suficiente para projetos de lei mas não para alterações constitucionais, cujo quórum mínimo é de três quintos das Casas). “O segundo mandato não deverá ter uma agenda de reformas constitucionais. Até acho isso bom, pois uma agenda grande acaba pautando demais o governo e obrigando-o a fazer alianças mais amplas”, imagina.
A VOLTA DOS TUCANOS Queiroz prevê que Alckmin teria um quadro mais favorável em termos quantitativos. “Tem quatro partidos que serão governo seja qual for o presidente: PMDB, PP, PL e PTB. Assim, o governo do PSDB teria folgada maioria no Senado (seriam 55 cadeiras ou dois terços da Casa), como teve o (ex-presidente) Fernando Henrique Cardoso, e na
Câmara uma base muito significativa”, projeta. Porém, o diretor do Diap destaca que, do ponto de vista da agenda, um governo de Alckmin desagradaria mais interesses que um de Lula. “Uma reforma (constitucional) trabalhista ou previdenciária encontraria uma resistência muito grande da oposição. O PDT provavelmente se uniria a PT, PCdoB e PSB totalizando 147 deputados entre 513, quase poder de veto em emenda à Constituição”, analisa. Avritzer também avalia que Alckmin teria dificuldades para implementar uma agenda neoliberal conservadora. Para ele, o tucano teria que discutir sua pauta com os dois principais líderes de seu partido no momento: José Serra, governador eleito de São Paulo, e Aécio Neves, reeleito em Minas Gerais. O cientista político crê que ambos não estão muito próximos de Alckmin. “Tenho a impressão de que eles se posicionariam claramente contra uma retomada do processo de privatizações, por exemplo”, afirma.
O novo Senado* Partido
124 deputados e 18 senadores
+ PCdoB + PRB
O bloco conservador
130 deputados e 33 senadores
+ Os aliados de qualquer governo +
PFL
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PMDB
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PSDB
16
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PT
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PTB
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A base de Lula PSB
Bancada a partir de 2007
Poucas mudanças na Câmara dos Deputados
Prováveis alinhamentos +
Bancada atual
* O segundo turno das eleições para governador em quatro Estados (Paraíba, Paraná, Maranhão e Rio Grande do Norte) envolve senadores. Como os suplentes não são do mesmo partido, a vitória de algum deles pode alterar a nova composição do Senado.
João Zinclar
Hamilton Octavio de Souza
Congresso avesso a mudanças
176 deputados e 23 senadores
+ PTB + PL
A oposição a qualquer situação
27 deputados e 5 senadores
+ Psol Pequenos e nanicos Partidos que não ultrapassaram cláusula de barreira (exceto PCdoB, PRB, PTB e Psol)
56 deputados e 2 senadores
Composição Composição atual eleita
PMDB
78
89
PT
81
83
PSDB
59
65
PFL
64
65
PP
50
42
PSB
27
27
PDT
20
24
PL
36
23
PTB
43
22
PPS
15
21
PV
7
13
PCdoB
12
13
PSC
7
9
PTC
1
4
Psol
7
3
PMN
0
3
PHS
0
2
Prona
2
2
PAN
0
1
PRB
0
1
PTdoB
0
1
Sem partido
4
-
Partidos que atingiram a cláusula de barreira Partidos que não atingiram a cláusula de barreira
* Os sete partidos que aparecem com seus logotipos foram os únicos entre os 29 partidos brasileiros a atingir a cláusula de barreira
IMPUNIDADE
Jair Antônio da Costa, presente Nanda Duarte e Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) Em 30 de setembro, Sapiranga e Igrejinha (RS) homenagearam o sapateiro e sindicalista Jair Antônio da Costa, um ano após ser assassinado por policiais militares. Amigos e colegas de Jair marcharam nos municípios, onde foi morto e onde está enterrado, e protestaram contra a impunidade no caso. Os policiais envolvidos respondem a processo em liberdade e, embora tenham sido afastados do policiamento ostensivo, continuam trabalhando em setores administrativos da Brigada Militar. “O processo está se arrastando e continuam criminalizando os movimentos sociais”, afirma o presidente da Federação Democrática dos Trabalhadores da Indústria do Calçado do Rio Grande do Sul, João Batista Xavier da Silva. No exato local do assassinato, os manifestantes colocaram uma coroa de flores e uma faixa exigindo a punição dos policiais. Lembraram que a violência é a marca da atuação da Brigada Militar, que reprime violentamente manifestações populares. Apesar das agressões, até mesmo em crianças, os policiais nunca são punidos.
Sindicato dos Sapateiros de Sapiranga/Divulgação
Fatos em foco
Morto por policiais, há um ano
Amigos prestam homenagem a sindicalista que tombou na luta em 2005
CONTRA O DESEMPREGO Jair foi assassinado enquanto participava de um protesto por uma política econômica que gerasse empregos. Sua luta foi lembrada pelos manifestantes que o homenagearam, e reivindicaram políticas do governo para conter o desemprego. “As fábricas e empresas de calçados pararam com a quebradeira e as demissões em massa, mas também não devolveram os empregos que existiam na região antes da crise. E nem novos postos de trabalho foram criados”,
analisa o presidente do Sindicato dos Sapateiros de Sapiranga, Antônio Machado. As empresas calçadistas acusavam a desvalorização do dólar, dificultando as exportações, os impostos altos e a concorrência dos produtos chineses, mais baratos, como vilões da época. Mas Neiva Barbosa, do Sindicato dos Sapateiros de Novo Hamburgo (RS), disse que os governos federal e estadual deram incentivos fiscais às empresas – ou seja, demissões não eram justificadas.
Em 30 de setembro de 2005, a rodovia RS-239 recebia duas mil pessoas entre trabalhadores, sindicalistas e integrantes de movimentos sociais. A multidão protestava contra a política econômica estadual e federal que levara ao desemprego cerca de 20 mil trabalhadores do setor coureiro-calçadista – de grande tradição e importância econômica na região do Vale do Rio dos Sinos. A manifestação foi realizada com tranqüilidade. No momento da dispersão, houve uma confusão, ainda não explicada. Onze policiais militares agrediram o sindicalista Jair Antônio da Costa, que participava do protesto. Imobilizaram-no e impediram outros manifestantes de se aproximar. “Pedi para não algemarem, que ele estava inconsciente. Pedi para que nós pudéssemos levá-lo ao hospital. Disseram que eles mesmos o levariam no camburão”, contou, à época, a também sindicalista Neiva Alves Barbosa. Pouco mais de uma hora depois, a notícia da morte de Jair era divulgada pelo Hospital de Sapiranga. O laudo: “asfixia mecânica provocada por contusão hemorrágica de laringe e traumatismo cervical”. (ND e RC)
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De 5 a 11 de outubro de 2006
NACIONAL
Vale, empresa sem rosto e sem país
Fotos Divulgação/Vale do Rio Doce
ANULAÇÃO DO LEILÃO
Patrimônio nacional, a CVRD foi privatizada por Fernando Henrique Cardoso e está sob controle de acionistas estrangeiros Pedro Carrano de Curitiba (PR)
A
venda da maioria das ações da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) do Estado para o mercado acionário, em 1997, se tornou um episódio mal explicado da história recente brasileira. Em grande parte, pelas irregularidades reconhecidas no edital do leilão. Mas também porque a participação do banco Bradesco no controle acionário da companhia, assim como a participação do capital estrangeiro nas decisões empresariais, não estão claras. O capital estrangeiro detém 41% das ações totais da empresa. O governo, 33,2%, por meio de investimentos em fundos de pensão. Porém, as ações totais não explicam a estrutura de controle da companhia, subdividida em duas frentes. Primeiro, as ações ordinárias, que dão direito a voto nas definições de políticas da empresa (reinvestimentos, por exemplo), e em princípio as mais importantes do ponto de vista do controle sobre a empresa. A outra frente, as ações preferenciais (maioria) não dão direito a voto, mas detêm a preferência nas distribuições de lucros na forma de dividendos (veja o quadro). Identificar o mandachuva visível no controle e nas decisões da Vale é fácil. Trata-se da Valepar, compradora da empresa, que detém 52,3% das ações ordinárias com direito a voto. Conglomerado criado para ser o principal acionista da CVRD, a Valepar é composta pela Bradespar, empresa criada com fundos do Bradesco para figurar no quadro de controladores – manobra questionada legalmente, pois o banco não poderia ser acionista por ter participado do consórcio de avaliação da companhia. A Bradespar tem 17,4% do conglomerado.
BRADESCO OCULTO Existem indícios de que o Bradesco atua nessa história, embora não como protagonista e sem aparecer nos créditos no final. A maioria das ações da Valepar, ao menos, o banco não tem. Porém, na página da CVRD na internet, a presença da Bradespar é comentada de modo que deixa claro o dedo desse grupo nos rumos da companhia, (confira em w w w. b r a d e s p a r. c o m . b r / html/composicao_acio_ cvrd.htm). Vinícius Buranelli, da Secretaria Operativa da Rede Popular de Estudantes de Direito, autor de monografia sobre as ações da Vale, explica que um grupo que tem mais de 15% das ações ordinárias tem voz ativa nas decisões da S. A. O outro integrante do conglomerado é Litel/Litela, os fundos de pensão Previ,
detentores de 58,1% do capital da Valepar. Completa o time a empresa Mitsui, com sede nos Estados Unidos (com 15% das ações). Existe o argumento em defesa da atual política da companhia de que o governo não perdeu o controle da empresa, pois a maioria do capital da Valepar se dá por meio dos fundos de pensão. De acordo com Buranelli, tal controle dos trabalhadores é questionável: “A Previ é dona da maioria das ações da Valepar, mas daí a dizer que os funcionários do Banco do Brasil teriam o controle, é diferente, porque ter um voto é uma coisa, mas ter o controle da administração da empresa é outra. Quem toma as deci-
Lula e Roger Agnelli, ex-presidente do Bradesco e hoje presidente da Vale do Rio Doce, em viagem inaugural do trem da Companhia
sões sobre os investimentos são os diretores dos fundos de pensão, uma classe dominante ligada ao governo, como comentou o sociólogo Chico de Oliveira”.
AÇÕES PULVERIZADAS Se, por um lado, a Valepar tem o controle nominal da CVRD, com 52,3%, os outros 39,1% das ações ordinárias se dão na forma de ações pulverizadas, ou seja,
ações na Bolsa de Nova York – as chamadas ADRs, também presentes na Bovespa – um investimento sem rosto, sem país e sem língua. Assim como pairam dúvidas sobre o país de origem do capital pertencente à Bradespar, é difícil rastrear quem são os investidores em ADR. A única coisa certa, por enquanto, é que dados da própria CVRD
apontam que 28,6% das ações ordinárias são declaradamente estrangeiras. Buranelli explica: “Um terço do controle acionário com direito a voto pertence ao capital estrangeiro”. O advogado Eloá Cruz, autor de ação popular pedindo a nulidade do leilão de 1997, acrescenta que o edital de venda, à época, não admitia compra das ações da CVRD por parte das grandes
mineradoras concorrentes, para evitar a monopolização e manter o papel estratégico da Vale. Agora, como impedir que o capital estrangeiro de um grupo concorrente compre as ações em Nova York? Para o jurista, isso representa um desvio de finalidade, de acordo com a Lei da Ação Popular, pois a empresa não cumpre o papel a que se destinou no edital do leilão.
Números da negociata 60,8% – Participação de capital estrangeiro nas ações preferenciais, aquelas que não dão direito a voto, mas que têm preferência na distribuição de dividendos.
Vista aérea da mina de minério de ferro de Carajás, no Pará
E o escritório? Fica em Nova York? No ano passado, a Vale foi a empresa que mais distribuiu dividendos no mundo. Foram R$ 3,1 bilhões, extraídos de um lucro líquido de R$ 10,4 bilhões. Os acionistas receberam R$ 2,68 por ação. Só em dividendos, a empresa distribuiu, nos últimos cinco anos, R$ 11,4 bilhões. Ou seja: quase quatro vezes o valor do seu leilão, efetuado em 1997. Também consta das informações da companhia que os investidores estran-
geiros em ações preferenciais – com preferência no recebimento dos dividendos e dos juros sobre o capital próprio –, detêm 60% de controle acionário. Desta vez, não se trata do controle com direito a voto, mas do benefício direto no recebimento dos lucros. “Esses investidores são maioria no usufruto dos rendimentos da empresa”, descreve o jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto. Para o jornalista, atualmente, os investidores não
A fachada Bradespar Na opinião do jurista Eloá Cruz, criar a Bradespar foi uma maneira encontrada pelo Bradesco para desvincular a sua participação do leilão de compra da Vale. Isso porque o banco participou do consórcio de avaliação da empresa, em 1995, e, segundo o artigo 9º da lei de licitação, quem participa da avaliação não pode ser o comprador da empresa. A história começou assim: o Bradesco financiou
a emissão de debêntures no exterior por parte de empresas que participaram da compra da Vale, como a Eletron. Debêntures são empréstimos tomados do mercado que podem ser convertidos em ações. Logo, o Bradesco passaria a ser o dono de tais debêntures, transformados por ele em ações. A entrada do Bradesco na Vale criou uma confusão entre as ações da Vale que o banco já possuía, num
estariam tanto a fim do controle de mando (voto), uma vez que a política da empresa está voltada para a distribuição de dividendos, o que seria uma decisão financeira, “de banco”, compara Lúcio Flávio. Ele aponta que o ex-presidente do Bradesco, Roger Agnelli, fez carreira na instituição financeira e agora é o presidente da exportadora de minério de ferro. “Essa é a sofisticação do esquema, você não precisa ter o controle acionário”, argumenta. Vinícius Buranelli, da Secretaria Operativa da Rede Popular de Estudantes de Direito, contesta o argumento de que a mineradora
emaranhado que também juntava ações da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Houve então uma operação de descruzamento das ações, da qual o Bradesco, como credor, por ter o maior número de ações, recebeu do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o valor de R$ 859 milhões. Dessa transação surgiu a Bradespar. Na opinião de Cruz, tal operação acobertou a participação do Bradesco no consórcio que preparou o edital do leilão da Vale, pois o nome que fi-
oferece ações na bolsa de Nova York para buscar capital e reinvestir na própria infra-estrutura. Na sua análise, quando a prioridade é a valorização e a distribuição dos dividendos, existe a relação entre o aumento de investimentos na bolsa de valores e a diminuição do reinvestimento no seu patrimônio e no país. A questão central, para ele, é o roteiro que a empresa traçou: “O governo já não nomeia mais o conselho de administração da companhia e a Vale deixou de ser um instrumento de política econômica de Estado, no sentido de promover políticas para superar as desigualdades sociais”. (PC)
gurava na composição acionária passou a ser outro. A recente proposta de compra da mineradora canadense Inco, cuja última oferta bateu na casa dos R$ 38 bilhões, segundo Cruz, deve redirecionar as atividades e investimentos da empresa para o exterior. O jurista ainda pergunta como serão devolvidos os dividendos pulverizados distribuídos aos acionistas, caso o Judiciário acate as 69 ações populares pedindo a nulidade do leilão de 1997. A Vale, afinal, atualmente está sob julgamento. (PC)
39,1% – Percentual de ações ordinárias pulverizadas em ADRs, cuja origem não está explícita. 28,3% – Participação de capital estrangeiro no controle acionário da Vale, por meio de ações ordinárias, com direito a voto. 5% – Participação dos cotistas por meio do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), investimento que, na teoria, seria uma forma de o trabalhador investir na companhia. A Valepar tem 52,3% das ações ordinárias, o que lhe concede o controle e a escolha do conselho de administração da CVRD. Porém, tem 32,5% das ações totais da Vale do Rio Doce. Sua composição acionária é: Bradespar – 17,4% de capital votante sobre as ações ordinárias da Valepar. Litel/Litela (fundos do Previ) – 58,1% de capital votante. Mitsui (transnacional sediada nos EUA, que age em diversas frentes, como no ramo de mineração, por exemplo. Seria o capital estrangeiro evidente na composição acionária) – 15% de capital votante. BNDESPAR (pertencente ao BNDES) – 9,5% de capital votante. Opportunity/Eletron – 0,02% de capital votante.
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De 5 a 11 de outubro de 2006
AMÉRICA LATINA ENTREVISTA
Para o economista Camille Chalmers, não há guerra civil no país caribenho, como alega a ONU; o que há é ingerência internacional
Arquivo Brasil de Fato
A dívida, o real problema haitiano REPÚBLICA DO HAITI
Eduardo Sales de Lima da Redação
Localização: Caribe Capital: Porto Príncipe Idiomas: francês e crioulo (oficiais) Moeda: gourde População: 8 milhões de habitantes, 80% abaixo da linha de pobreza, 95% negros
A
Organização das Nações Unidas (ONU) alega manter tropas no Haiti para estabilizar a situação política e econômica do país. Mas não faz nada para deter o principal obstáculo ao desenvolvimento haitiano: a dívida, que, ano após ano, tira do país 60 a 80 milhões de dólares. A denúncia é do economista Camille Chalmers, entrevistado pelo Brasil de Fato, quando participou de encontros no Brasil em setembro, com o objetivo de aproximar organizações sociais brasileiras e haitianas. Ele considera o início de governo de René Préval ambíguo, pois, apesar de ter base popular, não parece pretender mudar os rumos do país caribenho, o mais pobre do continente. Critica a apatia do presidente em impedir a privatização de setores estratégicos da economia haitiana. Brasil de Fato – Desde maio, o Haiti tem um novo presidente. Como foi sua eleição? Camille Chalmers – As eleições de fevereiro foram importantes para a cultura política do país. Préval era um dos adversários declarados da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah). Mas tem feito pouco em relação a isso. No pleito, havia muitos candidatos de partidos políticos tradicionais, apoiadores diretos do imperialismo, com programas influenciados pelo Consenso de Washington, e Consenso de Washington – ReceiPréval parecia tuário neoliberal opor-se a essa para países emergentes, compilado linha de pensano ano de 1989 pelo mento. Ele tameconomista John Williamson, que bém parecia inclui a desregulaquerer integrar mentação da economia, a liberalização a população na da taxa de juros, a vida política, o redução dos gastos que não estava públicos, a maior abertura do investiocorrendo. Mimento estrangeiro nistros do Bradireto e o fortalecimento do direito de sil, Argentina, propriedade. Chile, Estados Unidos, Canadá e França firmaram uma declaração, sugerindo ao povo que não votasse em Préval. A população não se importou, pois os soldados, presentes no Haiti há mais de dois anos, não têm sido capazes de estabelecer um clima de segurança. Um mês antes vivenciamos um período intenso de seqüestros e tiroteios. As eleições foram a expressão da decisão estratégica da população, que desejava abrir uma nova possibilidade de construção de laços nacionais. No dia da votação, foram impressionantes a disciplina e a massiva participação, com camponeses caminhando seis horas para chegar a um posto eleitoral. A candidatura de Préval motivou as pessoas. Mas ele permaneceu uma incógnita: não houve uma discussão sobre programas e projetos fundamentais. Os debates foram muito superficiais, como, por exemplo, sobre a permanência ou a retirada do exército estrangeiro. Não houve debate sobre a programação de uma política popular. BF – Como são as pressões das instituições internacionais e dos soldados estrangeiros no Haiti? Chalmers – Permanentes e muito fortes. Principalmente para que siga aplicando o plano econômico definido pelo governo provisório. Houve, inclusive, uma reunião em 25 de julho, em Porto Príncipe, onde as instituições financeiras,
Haitiana grita com soldados brasileiros da missão da ONU em Porto Príncipe, durante protesto contra a intervenção
conhecidas como donnantes (credoras, em francês), aprovaram um plano de prolongamento do Quadro de Cooperação Interina (CCI), Quadro de Coope- que é um plano ração Interina imperialista (CCI) – Elaborado imposto pelo em 2004, sob orienBanco Mundial. tação do Banco Mundial, define Somos contráas linhas políticas rios a isso, fido governo do Haiti, geralmente zemos uma maneoliberais. Foi em escrito por técnicos nifestação estrangeiros, sem frente ao local a participação da onde se realisociedade haitiana. zava a reunião. Prega a privatização de empresas e Além disso, foi recursos naturais, aprovado um além de priorizar o crescimento financiamento econômico em vez de 750 milhões das necessidades sociais. Vigora até o de dólares paoutono de 2007 ra o período de 2006 a 2007, com condições muito brutas, como, por exemplo, a modificação da Constituição. Até agora, Préval não está utilizando sua base popular, a força popular, para reverter a situação de ingerência internacional. BF – Préval poderia enfrentar com mais ímpeto as donnantes? Chalmers – Poderia e deveria. Creio que estamos em um momento político interessante. Depois da vitória popular, abriu-se a possibilidade de renegociar muitas coisas, mas Préval não a está aproveitando. Poderia fazer alianças com a América Latina para desenvolver um plano econômico mais favorável para o povo. Creio que estamos perdendo um espaço, mas estamos em um governo jovem, com menos de quatro meses, e creio que este ano é chave para lançar-se um processo de mudança real. Se não, ficaremos titubeando, descontentes, sem poder sair da crise política.
Depois da vitória popular, abriu-se a possibilidade de renegociar muitas coisas, mas Préval não a está aproveitando BF – Préval mantém a política de privatização das companhias estatais? Chalmers – A privatização está avançando. Está em negociação a Companhia de Eletricidade e a Companhia Telefônica, além de outras empresas estatais, como o Banco Nacional de Crédito. Todavia, o governo atual está bastante cauteloso, sabendo que o movimento popular vai protestar. Mas sabemos que na agenda do Banco Mundial é uma prioridade empurrá-las. Estamos nos preparando para conscientizar as pessoas da necessidade de defender os serviços públicos que fazem parte de uma condição indispensável da construção de um Estado.
BF – Há luta armada em Porto Príncipe? Chalmers – Existe luta armada. Existem grupos armados, e a maioria das armas vem do setor popular. Também há a oligarquia, que possui os seus próprios bandos e pratica a manipulação em bairros populares, inclusive, recentemente, sucederam-se enfrentamentos entre grupos armados na zona Sul de Porto Príncipe, com um saldo de 25 mortos. Isso mantém uma situação de tensão e de instabilidade política, que está a serviço do domínio imperialista, cujo objetivo é prolongar a ocupação militar, enfatizando a imagem de caos. Ao mesmo tempo, os grupos que utilizam essa estratégia estão cada vez mais isolados. Há uma relação confusa, nesse aspecto, entre Préval e os grupos que defendem o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que estão fazendo grandes manifestações para proclamar a força do político deposto. Aristide exerce um papel negativo, porque põe obstáculos ao forte momento político haitiano, onde questões centrais estão sendo debatidas, como o plano econômico e as privatizações. BF – Como está a relação entre Haiti e Cuba? Chalmers – Muito boa. Vislumbra-se, nos próximos anos, o reforço da cooperação nas áreas da saúde, educação, habitação e produção pesqueira. São ótimas as relações entre Préval e o presidente cubano, Fidel Castro. O Haiti acabou de entrar no movimento dos não-alinhados, o que é uma decisão correta, interessante, e creio que vamos ter um espaço para intensificar a relação Sul-Sul. BF – Você tem informações sobre a morte do general Urano Bacellar? Chalmers – Não se pode afirmar nada. Mas está bem claro que a estratégia utilizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) de suicídio não é crível. Pensamos que foi assassinato, e não se sabe o autor. Aconteceram discussões muito fortes entre o general brasileiro e representantes dos Estados Unidos. Deve-se destacar também que o estado-maior da Minustah estava controlado por oficiais do “Norte” (Estados Unidos, França, Canadá e Itália). Creio que é dentro desse contexto que se pode entender essa morte. Muitas pessoas seguem investigando elementos que possam permitir uma denúncia mais fundada. BF – Como estão as relações entre os movimentos sociais e os soldados da ONU? Chalmers – Estamos totalmente contra a ocupação militar e, recentemente, houve uma situação de embate. A Minustah decidiu ocupar um colégio para, supostamente, dar segurança a um
bairro popular. A população protestou. Essa estrutura mantida em campo escolar não é adequada, a escola não é quartel. Causou um sentimento de insatisfação, de repúdio, que está crescendo, sobretudo pela ineficácia cada vez mais evidente dos objetivos estratégicos da ONU.
devido a uma dívida que foi contraída pela ditadura (19571986), uma dívida odiosa, e a um plano de financiamento que se deu durante o período de transição depois de 1986, sem justificativa, contraída por militares ditadores que haviam feito o golpe de Estado. É uma coisa totalmente inaceitável.
O Haiti acabou de entrar no movimento dos não-alinhados, o que é uma decisão correta, interessante, e creio que vamos ter um espaço para intensificar a relação Sul-Sul
BF – Qual o impacto dessa dívida na economia do país? Chalmers – Sessenta milhões de dólares representam o dobro de tudo que se investe em saúde pública. Com esse dinheiro, poderia alcançar-se a escolarização universal. São fundos que o país necessita urgentemente para a área social. É algo totalmente criminoso, injusto, inaceitável, é um escândalo os fluxos de valores serem transferidos de uma economia muito empobrecida para os organismos internacionais. Agora, o novo programa para os países pobres muito endividados não resolve. Os bancos internacionais falam de democracia, de justiça, mas tem práticas de destruição dos povos.
BF – Qual a estratégia das tropas? Chalmers – Em Porto Príncipe, a situação é bastante difícil e, no interior do país, não há problema. Em alguns bairros da capital, existem fortes grupos organizados que fazem enfrentamento militar. A presença militar em Porto Príncipe não corresponde realmente aos problemas que existem. Vemos desfiles da Minustah, muita demonstração de força, mas nada que pudesse ajudar a resolver questões urgentes, como auxiliar a polícia a ser mais presente nos bairros e formar patrulhas que pudessem passar um sentimento de maior de segurança. Não faz isso, apesar de haver todos os equipamentos para fazê-lo. Seria muito mais útil para o país investir os 520 milhões de dólares anuais, gastos com os soldados estrangeiros, em projetos de desenvolvimento, de capacitação e de reconstrução das instituições. BF – O que as organizações sociais de outros países podem fazer para auxiliar o Haiti? Chalmers – Primeiramente, é necessário desenvolver intercâmbios entre as organizações populares, de camponeses, e trabalhar para que se compreenda, em nível latino-americano, o que está se passando no Haiti e desmistificar toda essa linguagem destrutiva de um país caótico, que é lento, que é tomado pela criminalidade. Precisamos criar novas maneiras de cooperação “Sul-Sul”, de cooperação solidária, onde também o povo lute determinado, não aceitando a perda de sua soberania. Nesse sentido, é importante a comunicação entre os parceiros dos haitianos, esperamos poder avançar nisso. BF – O Haiti é o país mais pobre da América, mas continua a pagar uma dívida enorme. Chalmers – Pagamos entre 60 e 80 milhões de dólares por ano,
BF – É possível o retorno de JeanBertrand Aristide? Chalmers – A Constituição não permite três mandatos, mas Aristide, por duas vezes, não pôde terminar seu mandato. A Constituição haitiana permite a qualquer cidadão haitiano ingressar no país. Mas, atualmente, as condições políticas para ele estão muito difíceis. A presença física de Aristide no Haiti, apesar de ter o apoio de muitos grupos, não me parece ideal. Porém é inaceitável que pessoas do Departamento de Estado dos Estados Unidos proíbam a entrada de Aristide no país. Do ponto de vista político, é uma personalidade que pode protagonizar um papel importante, não sei de que maneira, mas ainda pode realizar um papel importante.
Quem é
Camille Chalmers é secretário executivo da Plataforma Haitiana para o Direito a um Desenvolvimento Alternativo (Papda), uma organização que objetiva estabelecer resistência ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM). Chalmers é professor de economia da Universidade de Estado do Haiti e membro da Campanha Jubileu Sul. Foi chefe de gabinete de Jean-Bertrand Aristide, entre 1993 e 1994.
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De 5 a 11 de outubro de 2006
AMÉRICA LATINA MÉXICO
Dois presidentes se preparam para a posse Em 20 de novembro, López Obrador vai tomar posse de um governo rebelde, que não aceita o resultado da eleição Joana Moncau da Cidade do México (México)
U
m dia que durou meses. No México, o 3 de julho, dia em que seria anunciado o novo presidente da nação, dura há mais de três meses. E ainda vai durar alguns. O candidato da direita, Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional (PAN), venceu o pleito, de acordo com o Tribunal Eleitoral do Poder Judicial da Federação (TEPJF). Seu concorrente, que agrupa apoio de diversos setores da esquerda, Andrés Manuel López Obrador, foi declarado vencedor por um
encontro popular, com mais de um milhão de participantes, a Convenção Nacional Democrática (CND). Ele anunciou que vai tomar posse do cargo presidencial em 20 de novembro. A confusão é resultado das fraudes de 2 julho. Cédulas falsas foram depositadas nas urnas em favor de Calderón. Iniciada a apuração, Obrador, que aparecia como favorito nas pesquisas eleitorais, ficou muito atrás do candidato do PAN. Nas duas semanas seguintes ao pleito, mobilizações massivas, reunindo milhões de pessoas, exigiram a recontagem dos votos Nem todos os votos foram recontados. No entanto,
López Obrador, oficialmente o candidato à presidência derrotado, foi declarado vencedor por um encontro popular, e promete tomar posse
das 11.893 urnas (11% do total) para as quais TEPJF ordenou a recontagem, 65% continham irregularidades. Para os apoiadores de Obrador, as fraudes justificavam a anulação de 7.532 urnas e a recontagem total dos votos. A reivindicação destes não foi atendida. “Houve irregularidades, porém estas não foram significativas a ponto de modificar o resultado das eleições”, foi o parecer do Tribunal Eleitoral. Garantiam, a despeito da pressão popular, a escolha de Calderón para presidente. Era necessário dar outra forma à luta contra a fraude. A indignação e a revolta em relação ao TEPJF cresciam. Criticavam a farsa, a torpe encenação, que havia sido a eleição mexicana.
Subcomandante Marcos, que passou a se chamar Delegado Zero, a partir da Outra Campanha realizada pelos zapatistas
NOVO PÓLO DECISÓRIO
Divulgação
Realizado em 16 de setembro, o CND, que não reconheceu Calderón como presidente legítimo, organiza a posse de Obrador. Para tal, organizou três comissões: política nacional, resistência civil e organização de uma nova Constituição. Os participantes do encontro, chamados delegados, pois seriam representantes de organizações e entidades, decidiram realizar protestos pacíficos e boicotar produtos de empresas que patrocinaram a campanha do candidato do PAN, como Coca-Cola, Sucos del Valle, Wal-Mart, entre outras. O CND prepara um governo rebelde. O Partido da Revolução Democrática (PRD), de Obrador, tem quatros governadores, dos 31 existentes no país. Todos apóiam o CND. Em Oaxaca, Estado do Sudoeste mexicano, a resistência a Calderón se alimenta dos protestos pela deposição do governador Ulises Ruiz, suspeito de desviar dinheiro público para apoiar candidatos de sua preferência. Alguns jornalistas e integrantes de movimentos sociais criticam o CND, alegando que é oportunismo.
Orianomada/creative commons
Para zapatistas, governo rebelde é oportunismo Seja qual for a posição que se tome em relação à CND e a todo o movimento organizado contra a fraude, é inquestionável que seja um movimento de base, popular e “de los de abajo”, como são designadas as camadas populares no México. Por essa consideração, Obrador e seus partidários criticaram o movimento zapatista por não participar do encontro e da campanha contra Calderón. A essas críticas, responde o subcomandante Marcos, do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em um comunicado na página na internet da organização (www.enlacezapatista.ezln. org.mx), explica sua posição: “O que não deixa dúvida, ao menos para nós, é que há pessoas honestas nessa mobilização, pessoas estas que participaram do movimento por convicção e princípios. Estas merecem e têm nosso respeito, porém seu caminho toma um atalho pelo qual não queremos ir. Não compartilhamos, nem do caminho, nem do destino. E nossa forma de respeitá-las é não nos envolvermos com sua mobilização, nem para contestá-la, nem para disputar com Obrador a liderança indiscutível que ele
tem aí, nem para sabotar, nem por oportunismo, nem para ‘desenganar’ as massas (que são alguns dos argumentos e das razões de organizações e grupos que participaram desse movimento, ainda que não estejam de acordo com a condução da mobilização)”. Para Marcos, o governo rebelde não é mais do que uma jogada oportunista de Obrador.
OUTRA CAMPANHA Em meio a todos esses acontecimentos, os zapatistas seguem sua política “abaixo e à esquerda”, como dizem. Mantêm a Outra Campanha, espaço que constroem conjuntamente a outros movimentos como alternativa à democracia representativa. O delegado zero, como é conhecido Marcos, participa de encontros em todo o país. Em outubro, vai estar no Norte. Diferentemente da estratégia zapatista, muitos dos que participam do CND acreditam que será possível transformar a campanha contra a fraude em um movimento independente de qualquer líder e da estrutura de controle de um partido único. O tempo dirá. Enquanto isso, espera-se pelo dia 20 de novembro, quando Obrador vai tomar posse da presidência legitimada pela base popular. Será esse acontecimento conduzido como uma disputa de poder entre dois presidentes, ou entre a população e a elite política corrupta e elitista? De novo, o tempo dirá. (JM)
ESTADOS UNIDOS
Bush: licença para torturar Dafne Melo da Redação O chefe do Executivo dos Estados Unidos, George W. Bush, agora tem amparo legal para definir, como quiser, quem é “combatente inimigo” na chamada guerra contra o terror. Pode prender quem considera “suspeito” por tempo indeterminado sem que este receba uma acusação formal ou possa apelar à Justiça. Não acaba aí: Bush ainda poder lançar mão, se assim o quiser, de procedimentos coercitivos nos interrogatórios, desde que não causem danos físicos “sérios” ou problemas psicológicos “permanentes” nos interrogados. Detalhe: tudo pode ser feito em sigilo, sem que o presidente tenha que dar qualquer explicação ou justificativa. Na prática, é o que a Lei sobre Comissões Militares, aprovada no Congresso estadunidense em 28 de setembro,
permite. Com ela, Bush terá poderes inéditos na história do país. A nova legislação cria tribunais militares de exceção para julgar os presos de acordo com leis que não precisam obedecer à Constituição ou mesmo à Convenção de Genebra, conjunto de tratados que definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em períodos de guerra.
CRÍTICAS Antes mesmo de a lei ser aprovada, a Organização das Nações Unidas (ONU) condenou o governo estadunidense, afirmando que viola os direitos humanos. A instituição declarou que a lei permite uma nova conceituação do que é tortura, “por uma definição flexível e vaga, que pode permitir abusos”. Para as organizações internacionais de direitos humanos, com a medida o Congresso estadunidense le-
gitimou os abusos, por parte dos Estados Unidos, inúmeras vezes já constatados. “Milhares de detidos continuam sob detenção militar por tempo indeterminado sob custódia dos EUA no Iraque, Afeganistão e Guantánamo (Cuba)”, protestou, em nota, a Anistia Internacional (AI). “Na guerra contra o terrorismo, os EUA recorreram a detenções secretas, desaparecimentos forçados, prolongadas detenções sem direito à comunicação, detenções por tempo indeterminado sem acusações, tortura e outros tratamentos desumanos e degradantes”, continua a nota. Agora, os esforços dessas organizações se voltarão à Suprema Corte estadunidense, que pode rejeitar a nova lei. “A AI fará campanha para revogar essa lei e espera que a constitucionalidade dessa legislação seja questionada nos tribunais”, conclui a nota.
A decisão foi tomada na mesma semana em que a ONU divulgou um relatório que mostra o Iraque como um dos lugares mais violentos do mundo. Somente nos últimos dois meses, 6.599 iraquianos morreram de forma violenta, 700 mortes a mais que as registradas nos dois meses anteriores. Manfred Nowak, chefe da ONU do setor antitortura, chegou a afirmar que é provável que haja mais tortura no país agora do que na época do regime de Saddam Hussein. Também vazou a informação de que um relatório feito pelos serviços de inteligência estadunidenses conclui que a ofensiva no Iraque “está formando uma nova geração de líderes terroristas”. A Casa Branca se negou a divulgar o documento. Alegou que, além de não estar concluído, suas informações são confidenciais. (Com agências internacionais)
Senado aprova muro contra imigrantes João Alexandre Peschanski da Redação O Senado estadunidense aprovou, em 30 de setembro, a construção de um muro antiimigração na fronteira com o México. Para o projeto ser iniciado, precisa ser assinado pelo presidente George W. Bush. A proposta prevê a construção de uma barreira de 1.125 quilômetros. Com 80 votos a favor e 19 contra, o Senado aprovou o projeto de lei, que já havia passado na Câmara dos Deputados. Organizações de direitos civis dos Estados Unidos denunciam que o muro não será efetivo, além de custar caro ao bolso dos estadunidenses. Os mexicanos consideram o muro uma afronta. O ministro das Relações Exteriores do México, Luiz Ernesto
Derbez, afirmou que o México vai enviar uma nota diplomática, criticando o projeto. “Nós vamos mandar uma nota que dirá respeitosamente à Casa Branca as razões pelas quais o governo mexicano pensa que esta não é a solução acertada e que poderia ser motivo de descontentamento entre os dois países”, disse. Em 2005, o governo dos Estados Unidos estimava em 8,5 milhões o número de imigrantes mexicanos sem papéis no país. No total, considerava a existência de 34 milhões de estrangeiros sem visto morando no território estadunidense. A população total dos Estados Unidos é 299,3 milhões de habitantes. (Com informações de Vermelho - www.vermelho.org.br)
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CULTURA
De 5 a 11 de outubro de 2006
TEATRO
Das ruas para o palco Divulgação
Divulgação
Ex-morador de rua e militante de movimentos por moradia, Sebastião Nicomedes estréia sua primeira peça em São Paulo Dafne Melo da Redação
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Nos dois meses que morou na rua – no Parque D. Pedro II, centro de São Paulo –, Tião conheceu personagens, histórias de vida, de perda de esperanças e de luta. Ainda com o braço machucado, foi procurar ajuda médica em hospitais públicos. “Fui tirar o gesso. Aí, um médico, Dr. Samuel, do Hospital do Pari, uma pessoa muito importante na minha retomada de vontade de lutar, me explicou a gravidade, me aconselhou bem e fez o possível para que eu conseguisse uma vaga para operar, o que acabou acontecendo.” Foi então que Tião resolveu ir para um albergue. Do período em que ficou na rua, Tião se lembra de um senhor que pediu para que ele escrevesse uma carta para a família dele. “Ele disse: você é letrado, podia escrever uma carta para o prefeito, o presidente, para ver se eles fazem alguma coisa pra gente. Aí, vi que tinha a vantagem de poder levar a voz dessas pessoas para fora”, conta. É nessa perspectiva que se insere a peça Diário de um carroceiro, um monólogo que retrata a história do carroceiro Quim. Agora, que o assunto é teatro, Tião aumenta o tom de voz, fala sorrindo, gesticula, os olhos brilham: “Juntei a história de muitos e passei para uma pessoa só, o Quim.
A peça se passa durante o período de Natal e Ano Novo, e mostra os problemas do diaa-dia, suas desilusões. Conta a dificuldade de se virar em São Paulo nessa época do ano, os serviços todos fechados, ele não consegue achar banheiro, passa mal e não consegue ser socorrido. No Ano Novo, na avenida Paulista, ele se dá conta que toda aquela gente não o enxerga”, conta o autor. Tião conta que sua inspiração veio de um carroceiro que conheceu na rua, chamado Joaquim, sempre com um livro a tiracolo. “Achava que era uma Bíblia, que ele era crente. Mas um dia, me aproximei pra conversar e vi que era um diário. Ele não me deixou ler, disse que era coisa dele”, conta.
DRAMATURGIA A primeira peça escrita por Tião foi ainda em 2003,
no albergue, o Arsenal da Esperança, no bairro do Brás. Quando um Festival de Caça-Talentos foi promovido no local, Tião pensou em cantar. “Vi que cantar não ia dar muito certo”, brinca. Determinado a participar mesmo assim, Tião teve a idéia de escrever uma peça, na qual outros moradores que não quisessem cantar pudessem participar também. “Sentei debaixo de uma árvore e comecei a escrever. Tinha um cara lá que tinha muito do personagem que eu montei e acabei estreando o Bonifácil Preguiça. Ao todo, eram doze personagens, todos moradores de rua. O personagem do título, explica Tião, era “um verdadeiro zé mané, muito folgado, muito preguiçoso, um malandrão”. Se em seu primeiro trabalho o tom era de comédia, em Diário de um carroceiro, Tião segue para outro lado.
Trechos da peça “Amanhã cedinho vão me desligar do albergue. Bem feito pra mim, vou morar na rua outra vez. Dessa vez será pra sempre” “É Natal, é Natal e eu tô na rua!” “Natal era bom quando eu era pequeno. Natal era Natal quando a família se reunia em volta da mesa...” “Uma cidadezona grandona como essa num tem a porcaria de um banheiro público!” “Quem inventou o dinheiro? Quem inventou o inventario? Quem inventou esse negócio de ser dono?” “Falam tanto em Constituição. Nome bonito! Mas pra que serve essa coisa?” “Bendito canudo de faculdade! Por causa dele a ‘bóizada’ se sente” “Querem proibir as carroças de trafegar pela cidade, querem nos tirar o sustento” “Enquanto os poderosos cruzam os céus de helicóptero, eu cruzo as avenidas com a minha carroça” “Eu queria sê rico pra invés de gastá com viagem espacial, comprava uma máquina pra transformar plástico em cadeiras, brinquedos, bacias”
“Tem momentos engraçados, mas é uma graça para aliviar o peso da verdade que tem atrás daquilo”, explica. Nesse mesmo ano, começou a freqüentar os espaços do Centro de Artes Alternativas e Cidadania (Caac), ONG sem fins lucrativos, fundada em 2000, e presidida por Max Mu, produtor de Diário de um carroceiro. “Mostrei o texto do Bonifácil, gostaram e disse que tinha a intenção de escrever alguma coisa sobre os carroceiros e catadores. Fui trabalhando a idéia, escrevi a história, e repassei pro Max”. Tião conta que levou apenas cinco dias para escrever a peça. “A idéia estava bem constituída na cabeça.”
MILITÂNCIA Não é somente por meio do teatro que Tião procura fazer a voz da população de rua ser ouvida. Desde 2003, também tem atuado ativamente nos movimentos de luta por moradia da capital. Atual membro do Conselho Municipal de Assistência Social e participante do Fórum da População de Rua, Tião conta que descobriu a militância quando foi a um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Guararema. Lá, conheceu os sem-teto da ocupação Plínio Ramos, do Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC), e se admirou com a luta e a força de vontade dos militantes. “Vi que não tinha muita diferença entre sem-teto e morador de rua. Percebi que se eles não se organizassem para ocupar os prédios, estariam morando na rua. Então, isso pra mim chamou muita atenção. Levar essa forma de organização para o pessoal da rua. Eu sobrevivi e agora posso fazer alguma coisa pra eles”, conclui. Peça: Diário de um carroceiro Data: de 7 de outubro a 17 de dezembro, aos sábados (19h) e domingos (18h) Local: Teatro Fábrica. Rua da Consolação nº 1.623 Informações: (11) 3255-5922
RESENHA
Telemarketing e dominação masculina Leandra Yunis de São Paulo (SP) A relação entre as tarefas da mulher na esfera doméstica e suas funções no mundo assalariado. Em O trabalho duplicado – a divisão sexual no trabalho e na reprodução: um estudo das trabalhadoras do telemarketing, Claudia Mazzei Nogueira analisa a divisão sexual do trabalho, tanto no espaço produtivo quanto no reprodutivo. É uma continuação de seu livro anterior, A feminização no mundo do trabalho (Editora Autores Associados, 2004). No último quartel do século 20, ocorreu uma feminização no mundo do trabalho, ligada às lutas pela emancipação das mulheres. No entanto, se a mulher contemporânea é uma trabalhadora assalariada como os homens, inclusive inserindo-se em novos postos de trabalho (até mesmo aqueles que anteriormente eram reservados para os trabalhadores), repartindo a responsabilidade do sustento familiar ou mesmo sendo a provedora principal da família, as suas atividades domésticas não deveriam também sofrer uma substancial transformação da divisão sexual do trabalho? Para responder à questão, que delineia os mecanismos de dominação masculina, a autora realizou um estudo empírico no setor de telemarketing, por ser esta uma profissão assalariada predominantemente feminina e em franco processo de expansão dentro do capitalismo contemporâneo. Ela revela que a forma divisão sexual das tarefas presente no “trabalho” e na “reprodução” aparece como responsável pela acentuada situação de desigualdade da mulher no decorrer da história.
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HISTÓRIAS
Sebastião Nicomedes (ao fundo, de camisa branca), autor de Diário de um carroceiro, observa ator que interpreta Quim, personagem que junta a história de muitas pessoas
Divulga
emais, né? Contando isso lá trás, nos albergues e na rua por onde passei, falariam: ih, rapaz, pára de sonhar. Mas está acontecendo”. A fala de Sebastião Nicomedes abarca dois pontos extremos por quais passou nos últimos anos. Da perda das perspectivas que o levou a morar por dois meses na rua, Tião – como é conhecido – agora espera, ansioso, alguns poucos dias para que sua primeira peça estréie em circuito comercial, em São Paulo. Ao falar de si mesmo, sua voz, já mansa, fica mais baixa, a timidez aumenta. Nascido em Assis, interior de São Paulo, Tião perdeu os pais ainda criança, “com nove, dez anos”. Foi então, morar em Sabará (MG) com uma irmã, freira – hoje missionária em Moçambique. “Com 18 anos, vim pra São Paulo, fiz muitas coisas até começar a trabalhar como letreiro.” Em 2003, ainda no ramo, Tião decidiu abrir com alguns colegas, um pequeno negócio. Arrumando o novo local de trabalho, Tião sofreu um acidente ao cair de um toldo e fraturou gravemente o braço. “Quando voltei do hospital, já não havia mais nada no lugar, meus colegas tinham sumido. Me vi sem nada. Tentei a princípio uma pensão. Depois, fui para a rua”, relembra.
O trabalho duplicado – a divisão sexual no trabalho e na reprodução: um estudo das trabalhadoras do telemarketing Claudia Mazzei Nogueira – Preço: R$ 13,00 www.expressaopopular.com.br