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Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 4 • Número 190

R$ 2,00

São Paulo • De 19 a 25 de outubro de 2006

www.brasildefato.com.br

Divulgação/Alianza Pais

Punição à Coréia do Norte é hipocrisia Potências condenam teste nuclear do país, porque contraria seus interesses na Ásia

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or que um pequeno país como a Coréia do Norte, que não dispõe de tecnologia militar, é condenado e punido pela comunidade internacional por realizar um teste nuclear enquanto outros, com uma extensa ficha corrida de ataques a outras nações – como EUA e Israel – podem possuir quantas ogivas desejarem? O ativista Stephen Gowans e o jornalista Gregory Elich dão a resposta: os países ricos não são contra a proliferação de armas nucleares em si, mas apenas quando nações que se recusam a ser subjugadas estão envolvidas. Para eles, a ONU, que também condenou o teste, pretende desarmar e enfraquecer o país asiático. Pág. 7

Adolescentes são vítimas de policiais

Rafael Correa, candidato à presidência do Equador, caso eleito, pretende se aproximar do venezuelano Hugo Chávez e do boliviano Evo Morales

Onda antineoliberal na América Latina

C

om a passagem do candidato nacionalista de esquerda, Rafael Correa, para o segundo turno nas eleições presidenciais do Equador no dia 15, confirma-se uma onda progressista que se alastra pela América Latina. É a expressão de esgotamento das políticas neoliberais. Os povos, por meio do voto em candidatos antineoliberais, estão sinalizando que querem mudanças. Isso aconteceu com a eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, de Evo Morales, no Equador, de Néstor Kirchner, na Argentina, de Tabaré Vásquez, no Uruguai, e também de Lula, muito embora nem todos os eleitos tenham demonstrado, no governo, capacidade de expressar plena sintonia com o desejo transformador contido no voto. Na conjuntura equatoriana, a eventual vitória de Correa tem uma importância especial, porque, nos últimos 12 anos, gigantescas ações de massa derrubaram sucessivos governos. Nenhum conseguiu estabilizar-se, tornando-se alvo de ações das próprias massas que os elegeram. No caso de Lula, mesmo que não tenha conseguido implementar um programa progressista em sua totalidade, mantendo núcleos centrais das políticas neoliberais, os eleitores não podem desconsiderar as condições concretas da conjuntura política. Trata-se de manter a onda antineoliberal. Assim, não podem permitir, seja com o voto nulo ou com a abstenção, espaços de manobra para as forças de direita. É também o que ocorre no Equador, no segundo turno. Nos dois países, projetos antagônicos se enfrentam. Lá, Rafael Correa, defendendo a retirada das bases militares estadunidenses, a

nacionalização do petróleo e a integração latino-americana como linha-mestra de ação, contra o outro candidato, Álvaro Noboa, um dos homens mais ricos do Equador, que defende, radicalmente, a submissão do país às políticas dos EUA, a retomada da Alca e a completa vigência dos princípios neoliberais, sem qualquer meio termo. No Brasil, também dois projetos se enfrentam e, ainda que o confronto não tenha a mesma nitidez programática que o equatoriano, Lula representa a manutenção de políticas sociais, a valorização do Estado como agente econômico e uma política externa que favorece a integração latino-americana e a autonomia frente aos EUA, enquanto Alckmin, que conduziu o projeto de privatização desenfreada no Estado de São Paulo e uma política de repressão aos movimentos sociais, quer um retorno do Brasil à “Era FHC”. Nesse sentido, a união das forças progressistas, tanto no Equador quanto no Brasil, ainda que mantenham suas rigorosas e conseqüentes críticas à limitação programática das candidaturas do campo popular, não podem permitir que os representantes do império encontrem condições de atuar, pois são agentes de políticas de rapina dos recursos naturais e de expropriação de direitos das massas trabalhadoras. Tanto o voto em Lula quanto o voto em Correa devem ser sustentados pelos movimentos sociais, sindicais, progressistas, como a expressão de um enfrentamento entre povos e políticas neoliberais. São votos para construir melhores condições para ações político-programáticas mais conseqüentes e mais audaciosas.

Segundo turno no Equador tem disputa de projetos O segundo turno da eleição presidencial do Equador, marcado para 26 de novembro, apresenta dois projetos em disputa. Enquanto o magnata Álvaro Noboa identifica-se com o grande

Murilo Soares Rodrigues, 12 anos, assassinado pela polícia de Goiânia (GO), onde morava. Sua mãe, Maria das Graças Soares, exige que os policiais criminosos sejam punidos, mas estes não reconhecem o crime. Histórias de violência policial como essa se repetem em todas as grandes cidades brasileiras, denunciam entidades de direitos humanos. A maioria das vítimas é jovem, negra e pobre. Pág. 3

capital e a submissão aos Estados Unidos, o candidato da esquerda, Rafael Correa, defende a soberania nacional e rejeita a privatização dos recursos naturais. Pág. 6

Protestos de mulheres contra transnacionais

Centro de Mídia Independente

EDITORIAL

Mulheres de todo o mundo marcharam, no dia 17, para protestar contra a atuação de empresas transnacionais. Desde a década de 1970, estas se tornaram cada vez mais fortes. O faturamento de algumas dessas corporações ultrapassa o Produto Interno Bruto (PIB) de centenas de nações. Sua estratégia de expansão se baseia na redução de direitos dos trabalhadores. Pág. 8

Intelectuais e religiosos apóiam Lula Pág. 4

Em curso, a privatização da TV Cultura FARSA DO VERDE – Em Vitória, (ES), cerca de 300 manifestantes caracterizados com chapéus em forma de eucalipto interromperam a abertura da “Feira do Verde” – chamada por eles de “Farsa do Verde” – para exigir a demarcação de terras indígenas no Estado e o fim do racismo praticado pela Aracruz Celulose, que diz nunca ter havido índios naquela região. Apesar do protesto, o prefeito, João Coser (PT), não deixou de elogiar e agradecer as maiores poluidoras do Espírito Santo por estarem apoiando o evento: a própria Aracruz, a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica de Tubarão e a Petrobras. A feira foi encerrada no dia 15.

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DEBATE

CRÔNICA

Wikimedia commons

Não-alinhados reorganizam o Sul

Países-membros Países-observadores

O Movimento Não Alinhado é um movimento que reúne 116 países, em geral nações em desenvolvimento, com o objetivo de criar um caminho independente no campo das relações internacionais que permita aos membros não se envolver no confronto entre as grandes potências. É uma associação de países formada com o

Emir Sader Na passagem do mundo bipolar para o unipolar, desapareceu o “terceiro mundo” –, não apenas porque o segundo o havia feito. Mas porque a globalização reinstaurou uma nova ordem mundial. E que comanda um processo, detendo o poder, atribui a cada peça seu lugar na totalidade do sistema, assim como dá nome às coisas. Da mesma forma, desapareceram os “não alinhados”, porque alinhar-se passou a ser estar alinhado com o mercado, isto é, com a modernidade, o progresso, o dinamismo – em suma, o futuro. A globalização neoliberal impôs um novo léxico, que corresponde ao novo fluxo do capital e da dominação em escala mundial. Países avançados e atrasados, globalizados e enfeixados (ainda) nos marcos nacionais, desregulamentados e “protegidos”, aderidos ao livre comércio ou marginalizados do comércio internacional. Como se queria chamar, são novas denominações para a dualidade “civilização ou barbárie”, que preside o capitalismo ao longo de toda sua existência. O grito de Chiapas (México) em 1994, a explosão de Seattle (EUA) em 1998, a existência dos Foros Sociais Mundiais desde

aparecimento dos dois grandes blocos opostos durante a Guerra Fria liderados pelas superpotências de então – os EUA e a URSS. Seu objetivo era manter uma posição neutra e não associada a nenhum dos grandes blocos. Os seus membros representam 55% da população do planeta e quase dois-terços dos países-membros da ONU.

2001, entre outros, começaram a delimitar espaços distintos na nova geopolítica do poder. Davos (Suíça) e Porto Alegre, globalizadores e globalizados, Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e Mercosul. O grupo dos 20, formado na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún (México), representou a reaparição da organização dos países do Sul do mundo. A reunião dos não-alinhados em Havana (Cuba) é outro passo nessa direção. Qual o sentido de reunirem-se países como a Índia, a China, o Brasil, o Irã, a Venezuela, a África do Sul, entre tantos outros, em um total de centenas de governos? Estado todos situados no Sul do mundo, são objeto da globalização neoliberal, não a comandam, a sofrem. Seu pólo oposto são a OMC, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o autoproclamado grupo dos “grandes” – todos colonizadores e imperialistas em sua trajetória e no seu presente. O eixo dessa reorganização dos países do Sul têm sido a América do Sul – com um papel protagônico, em diferentes níveis, do Brasil, da Venezuela e de Cuba – e com participação efetiva da Índia, da África do Sul e do Irã.

Votar em quem? Dom Pedro Casaldáliga O segundo turno nos coloca diante de uma alternativa clara: 1. Votar em Lula é votar a favor de uma possibilidade real de política popular e na crescente construção de uma democracia, que seja econômica, social e étnico-cultural. É votar pela liberdade de ação dos movimentos populares e pela possibilidade de cobrar compromissos do governo. É votar pela segurança de termos, pelo menos, alguns ministros autenticamente bons. É votar por uma política externa que siga promovendo a verdadeira integração latino-americana e caribenha, possibilitando a presença e a palavra dos povos do Terceiro Mundo e contestando o neo-imperialismo. É votar contra toda corrupção e contra toda impunidade. 2. Votar em Alckmin é votar abertamente a favor do capitalismo neoliberal, com tudo o que isso significa contra os direitos da maioria da população. É votar a favor da minimi-

zação do Estado, tornando-o impotente. É votar a favor da flexibilização do trabalho, abafando a dignidade e as reivindicações legítimas do povo trabalhador. É votar a favor da dilapidação do patrimônio público em privatizações entreguistas. É deixar de lado oficialmente toda a luta contra a depredação da Amazônia, contra os transgênicos e contra o agronegócio. É satanizar o movimento popular, sobretudo nas reivindicações dos povos indígenas e nas lutas pela reforma agrária e por moradia. É sepultar o sonho e o compromisso de uma Nossa América fraternalmente integrada. É votar pelo velho-novo imperialismo, pelo velho-novo capitalismo das elites privilegiadas. É votar pela exclusão da maioria da população. A caminhada continua, no diaa-dia e com muita esperança.

A reunião recém concluída em Havana (de 11 a 16 de setembro) foi um enorme sucesso de participação, com mais de 50 primeiros mandatários de países do Sul do mundo. Cuba apresentou uma proposta de que o tipo de comércio que desenvolvem com a Venezuela seja estendido ao restante dos países do Sul, isto é, um tipo de “comércio justo” – como o denomina o Fórum Social Mundial, em que cada país troca aquilo de que dispõe por aquilo de que necessita, independente do preço no mercado internacional. Somente o fato de colocar em discussão essa forma alternativa aos critérios da OMC já mudou a pauta da reunião, que fugiu das simples discussões sobre livre comércio, protecionismo etc. Desenha um campo governamental de ação e de questionamento que define um novo campo de ação e um novo temário de luta para a construção de um outro mundo possível. A declaração final corresponde ao alinhamento claro de resistência à hegemonia imperial estadunidense e sua política de “guerra infinita”, assim como pela solidariedade com os governos mais diretamente atingidos por ofensivas políticas, militares e midiáticas, como o Irã e a Bolívia. A presidência de Cuba garante que essa orientação primará na reconstrução do Movimento de Países Não Alinhados, reafirmando o não alinhamento com os EUA e suas políticas de livre comércio e de militarização dos conflitos em escala mundial. Emir Sader é sociólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Como não perder o rumo certo do Brasil Leonardo Boff Estamos chegando ao final do segundo turno para a eleição de presidente do Brasil. Os debates mostraram que as elites, apeadas do poder a partir de um contra-poder popular cristalizado no PT, não aceitam essa derrota histórica. Fazem qualquer coisa para voltar ao ninho antigo e continuar a hegemonia que impede qualquer mudança substancial em favor das maiorias, pondo em xeque seus privilégios. Por isso, a questão central foi e continua sendo: afinal, que Brasil queremos? Como garantir o rumo que consideramos certo? Essa questão mais que político-partidária é eminentemente ética no sentido clássico da palavra. Sabemos que para Platão e Aristóteles o ponto mais alto da filosofia não era nem a metafísica nem a teologia, mas a política. Toda a árdua construção teórica que elaboraram, culmina na reflexão sobre o bem viver juntos. É no interior desse espaço que se situam todos os saberes que devem servir à felicidade pessoal, comunitária e social. Isso vale até os dias de hoje.

A justiça e o cuidado são os bens mais escassos em nossa história política. O que se construiu aqui foi uma sociedade profundamente injusta, fundada em privilégios, no trabalho escravo e no desprezo a tudo o que significa “povo” Discutir que Brasil queremos implica discutir o conjunto de valores e o tipo de instituições que vão dar corpo à convivência social e construir o bem-estar coletivo. O primeiro valor político é o cuidado. Função do Estado é cuidar da vida e dos meios de vida dos cidadãos que implica ir além da economia. O segundo é a justiça. Por ela se atende a vontade de participação e as necessidades dos cidadãos nas diferentes instâncias em que se realiza a vida pessoal, comunitária e social. Não se pode construir nenhuma sociedade minimanente humana assentada sobre a falta de cuidado, de justiça e de igualdade. Esse é o caso do Brasil. A justiça e o cuidado são os bens mais escassos em nossa história política. O que se construiu aqui foi uma sociedade profundamente injusta, fundada em privilégios, no trabalho escravo e no desprezo a tudo o que significa “povo”. A desigualdade é o substrato da violência sistêmica que impera nas grandes cidades. É auto-engano aumentar o aparato policial e os mecanismos de controle se esta questão do cuidado e da justiça não for atacada em sua raiz. Uma sociedade não cuidada e injusta será sempre violenta: faz violência e sofre violência. Mas os mestres gregos eram suficientemente sábios para alertarem que uma sociedade não vive apenas de justiça. Platão chega a afirmar que tal sociedade fundaria o horror e o terror. Uma sociedade precisa da generosidade, da cooperação e do diálogo, da comunicação livre, numa palavra, daqueles valores que constroem a felicidade social. Neste campo, nós do Brasil estamos também em grande falta. O que impera é modo de produção capitalista e sua expressão política, o neoliberalismo. Estes não favorecem tais valores, pois acentuam mais a competição que a cooperação, mais o bem individual que o bem comum, mais o Estado mínimo que o Estado de bem-estar social. Mas há uma esperança: nos movimentos sociais se tenta viver o social solidário e cooperativo. É lá que sempre se põe a pergunta: que Brasil, afinal, queremos construir? Eles conseguiram eleger o presidente Lula, que assumiu a bandeira das mudanças e da ética pública, não obstante os desvios que setores do PT cometeram. Ele pessoalmente encarna essa vontade de tansformação, motivo suficiente para que seja reeleito e complete a obra ainda em construção. O que não podemos é regredir. Importa agora firmar o rumo certo. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

Dom Pedro Casaldáliga é bispo-emérito da prelazia de São Félix do Aaraguaia (MT)

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VIOLÊNCIA POLICIAL

Quando a dor se transforma em resistência

Wilson Loureiro/ Revista Hoje

NACIONAL

Adolescentes, que moram em centros urbanos, são vítimas de maus tratos, quando são abordados por policiais

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orcedor do Vila Nova, Murilo Soares Rodrigues adorava futebol. Aplicado no campo como atacante, colecionava medalhas conquistadas nos campeonatos infantis de Goiânia (GO). Cursava a 7ª série e não faltava sequer a uma aula. Murilo tinha 12 anos. Seu sonho era ser jogador de futebol. Em 24 de abril de 2005, a tragédia. “Só pelo fato de estar em companhia de um suspeito, Paulo Sérgio Pereira Rodrigues, Murilo foi seqüestrado e executado por oito policiais”, conta a mãe, Maria das Graças Soares, 36 anos. Ele, oficialmente, é considerado “desaparecido”. Maria das Graças exige que a polícia reconheça que matou seu filho. A casa, no bairro de Aparecida de Goiânia, não é mais a mesma: o quarto onde dormiam Murilo e o irmão, Orton, 16 anos, está intocado. As camas vazias. Transtornado, o irmão mais velho não consegue dormir ali desde o assassinato. “Sinto-me só e deprimido. Só consigo dormir quando tomo comprimidos”, diz Maria das Graças. Separada do marido, não consegue trabalhar e vive de pensão. Murilo agora está só nas boas lembranças do álbum de retratos. Lá está ele, em fotos posadas em piqueniques, churrascos, em acampamentos e nos treinos do time do coração. Em São Paulo (SP), a 926 quilômetros de Goiânia, a violência policial faz parte do dia-a-dia dos jovens de bairros de periferia. É o que narra o adolescente Jonas Ribeiro Moraes, morador do Grajaú, zona Sul de São Paulo. Ele já foi abordado inúmeras vezes pela polícia: “Aqui, eles enquadram muitos jovens e você leva muito tapão”. Segundo Jonas, os “tiras” andam com identificação, mas não deixam os meninos olharem para a cara deles. Mandam ficar de costas para o policial e com a cabeça abaixada. “Mas comigo aconteceu o pior. Envolvi-me em um roubo de carro com três colegas”, conta. Jonas percebeu que a ronda escolar estava perto deles circulando com as luzes da viatura apagadas. Os três saíram correndo e ele escondeu o revólver que estava segurando embaixo do banco do carro. Dois policiais apontaram revólveres em sua direção. Abriram a porta do carro e puxaram-no pelo braço, forçando-o a deitar-se no chão. Enquanto um policial torcia seu braço, outro deu um chute em seu rosto. Eles

queriam saber onde estava a arma utilizada na tentativa de roubo e para onde haviam corrido os outros três adolescentes.

TORTURA Os policiais pediram reforço. “Levaram-me para uma barraca de madeira e me bateram muito. Não gosto de lembrar”, desabafa Jonas. Oito policiais participaram da sessão de torturas. Ele lembra que enquanto o surravam, os policiais perguntavam se ele tinha dinheiro, se sua família tinha dinheiro ou se ele devia algum dinheiro para a polícia. Quarenta minutos depois, os policiais tiraram sua roupa, deixando-o apenas de cueca, e o jogaram dentro de uma represa, nas proximidades de onde fora espancado. Com fios conectados à bateria de uma das viaturas, permaneceram uns quinze minutos dando choques no jovem. “Pensei que fosse morrer e que nunca mais fosse ver meu pai e minha mãe”, recorda. Depois, os policiais o levaram para dentro da barraca. Começaram a espetar agulhas embaixo de suas unhas. Um policial segurava seu braço, outro os seus dedos, e um terceiro enfiava a agulha entre a carne do dedo e a unha. Um quarto, finalmente, batia na agulha com um martelo, a fim de empurrar a agulha para dentro. Foram quatro horas seguidas de torturas, das 22h às 2:00, quando levaram o garoto para o exame de corpo de delito. Chegando ao distrito policial, o jovem contou ao delegado o que os policiais ha-

Parentes criam entidade para acabar com agressões A goiana Maria das Graças Soares pretende transformar a perda de seu filho, assassinado por policiais, em luta por justiça. Com outros parentes de vítimas, criou o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial. Fundado em 26 de abril, o grupo reúne 16 famílias e conta com o apoio da Casa de Juventude Padre João Bosco Burnier (Caju). São pessoas que tiveram seus filhos torturados, espancados, executados por policiais e vivem, dia e noite, acreditando no lema “Quando a dor vira resistência”. Dentre seus objetivos está fortalecer o movimento social que busca mudanças dentro da própria polícia, além de denunciar e cobrar justiça para casos de vítimas consideradas “desaparecidas”. Propõem: o monitoramento dos 32 veículos de operações

viam feito. Mas nada foi feito. Da delegacia, Jonas foi encaminhado para uma Unidade de Atendimento Inicial da Fundação Estadual do BemEstar do Menor (Febem). Ele passou quase quatro meses, alternando períodos na Febem e de liberdade assistida.

PESQUISA Seu caso, e o de tantos outros jovens e adolescentes da zona Sul, levaram o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Interlagos a inovar em sua atuação contra a violência. A entidade promoveu uma pesquisa para investigar a trajetória do adolescente julgado autor de ato infracional, desde a abordagem na rua até a inserção no sistema de justiça. A pesquisa, intitulada “Segurança Pública para qual público?”, tem 45 páginas, com depoimentos de vítimas e os resultados da pesquisa feita com 116 adolescentes, de ambos os sexos, com idades entre 12 e 20 anos. O estudo traz ainda análises sobre a violência policial e dicas sobre como se defender dos atos arbitrários dos policiais, cuidados fundamentais na hora da abordagem e em que casos procurar os órgãos públicos. Para Cláudio Hortêncio, coordenador do Núcleo de Defesa do Cedeca, o que mais chocou a equipe “foi o dado correspondente ao número de vezes que os adolescentes foram abordados pela polícia”. Pela pesquisa, a grande maioria dos adolescentes (96%) já foi abordada por

especiais da Polícia Militar, a instalação de câmeras nas viaturas e o melhor preparo dos policiais. Em entrevista à revista local, Hoje, o coordenador do Centro de Apoio Operacional de Controle Externo da Atividade Policial, Carlos Alberto Fonseca, diz que 16 desses veículos já foram equipados com câmeras e, a partir de setembro, haverá cursos de reciclagem para preparar melhor os policiais. As famílias redigiram um relatório sobre a violência policial na cidade. As denúncias vão fazer parte de um dossiê sobre violação aos direitos humanos, a ser entregue à Organização das Nações Unidas (ONU).

A goiana Maria das Graças teve seu filho de 12 anos executado por oito policiais

A pesquisa, que também estuda o modo de agir dos policiais, revela que 86% destes não estavam identificados no momento da abordagem, “o que traz a cono-

tação de que possivelmente haverá ou houve ação em desacordo com o regulamento na abordagem ao adolescente e que, dessa forma, podemos compreender que essa prática policial tem sido um componente de práticas arbitrárias, ressalvando as operações especiais, que é defendida pela corporação como proteção”, diz o estudo. Na pesquisa, 51% dos adolescentes responderam que já sofreram algum tipo de agressão física; e 51% sofreram agressão psicológica. Ambas somadas resultam em 94%. E mais: a Polícia Militar é responsável por 70% dos casos de violência – 48% dos entrevistados foram vítimas de violência física e 51% de violência psicológica nas delegacias. (Revista Viração – www.revistaviracao.com.br)

Segundo o cientista social, há um abismo separando policiais e as comunidades de baixa renda. “Mas o problema pode ser transposto com as políticas adequadas”, acredita. Uma

delas é o policiamento permanente nas favelas, “não para uma invasão policial, mas para uma polícia que fica lá dentro, que estabelece uma relação pessoal com a comunidade”.

policiais, sendo que 78% foram abordados 4 vezes ou mais. Fundado em 1999, o Cedeca Interlagos acompanha adolescentes que cometeram atos infracionais e que estão inseridos em medidas sócio-educativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. Em virtude de sua atuação, seus funcionários recebem ameaças, seja por parte de policiais, seja por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo de criminosos da cidade.

ABORDAGEM

Divulgação

Gardene Leão de Castro, Susana Piñol Sarmiento, Giorgio D’Onofrio, Paloma Klisys e Paulo Pereira Lima de Goiânia (GO) e de São Paulo (SP)

TEMA BRASILEIRO Para Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a violência policial é um tema muito propriamente brasileiro. “Anos atrás, poderíamos dizer que o problema era mais grave no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje, infelizmente, está se alastrando para outros Estados”, afirma.

Maior parte de vítimas é jovem, negra e pobre As vítimas de violência policial são geralmente do sexo masculino, negros, que moram nas periferias das cidades. De acordo com estudos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a taxa de homicídios de jovens negros é 74% maior do que a de brancos. O Programa de Proteção à Criança e aos Adolescentes Ameaçados de Morte do Rio de Janeiro (PPCAAM-RJ) registrou um aumento de dez pontos percentuais, desde o ano passado, do número de crianças ameaçadas de morte por policiais. Em 2005, dos 99 casos de crianças ameaçadas apenas 3% eram vítimas da polícia. Já nos primeiros sete meses deste ano, das 88 crianças que estão sob ameaça de morte, 13% estão sendo intimidadas por policiais. Informações da entidade Observatório das Violências Policiais (www.ovp-sp.org) mostram que, em São Paulo, 81 adolescentes e jovens foram executados pela Polícia do Estado entre 2001 e 2006. De acordo com o Observatório das Violências Policiais, as comunidades atingidas são geralmente pobres. Pesquisa realizada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente na Bahia (Cedeca-BA), intitulada Crime sem castigo, revelou que, em um universo de 944 crimes contra crianças, adolescentes e jovens em Salvador e Região Metropolitana, cometidos entre 1997 e 2003, apenas 23 casos foram a júri popular. Nesse mesmo período, apenas 108 inquéritos foram finalizados e remetidos ao Ministério Público. Tais números denunciam a morosidade das instituições baianas na apuração e julgamento dos culpados.


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NACIONAL ELEIÇÕES

Hamilton Octavio de Souza Intervenção ianque O imperialismo dos Estados Unidos está jogando pesado para impedir a eleição de Daniel Ortega, do movimento sandinista, para a presidência da Nicarágua. Também no Equador, a embaixada estadunidense andou opinando contra o candidato esquerdista, Rafael Correa. Não se tem notícia de que o governo de George W. Bush tenha feito alguma interferência no processo eleitoral brasileiro. Direitismo crescente Em época de eleições, o aspecto emocional costuma se sobrepor aos fatos e à racionalidade. O resultado do 1º turno para os governos estaduais e para o Congresso Nacional e as dificuldades do 2º turno comprovam que a direita – conservadora e neoliberal – está mais forte agora do que nas eleições de 2002. Importante é saber como e por que a direita se fortaleceu nos últimos quatro anos. Manifesto anti-Alckmin Centenas de professores universitários assinaram, na última semana, um manifesto contra a candidatura presidencial de Geraldo Alckmin. O manifesto não declara apoio para Lula, mesmo porque muitos dos signatários defendem o voto nulo. Apenas lembra que o candidato do PSDB foi um governador que nada fez pelo ensino superior público no Estado de São Paulo. Reconhecimento tardio Levados ao 2º turno, os petistas abriram suas baterias contra os principais veículos de comunicação (jornais, revistas e emissoras de rádio e TV), atribuindo a eles grande responsabilidade pelo desgaste de Lula no 1º turno. Agora, muitos concordam com o partidarismo da chamada grande imprensa, embora o governo Lula tenha defendido e apoiado esses veículos com muita verba publicitária. Parcialidade explícita De acordo com o Observatório Brasileiro de Mídia, entidade vinculada ao PT, nas semanas que antecederam o 1º turno os principais jornais diários – Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense – publicaram em média três vezes mais matérias negativas ao candidato Lula do que ao candidato Alckmin. A pesquisa completa está na página www.observatoriodemidia.org.br. Contradição comunista Não apenas os petistas estão sendo obrigados a engolir alianças esdrúxulas em alguns Estados e a aumentar suas contradições políticas. A direção do PCdoB, principal aliado do PT, decidiu apoiar a campanha de Roseana Sarney, do PFL, para o governo do Maranhão. Roseana pertence ao clã que controla o Maranhão há mais de 40 anos e o mantém como um dos Estados mais desiguais do Brasil. Dívida eterna Desde que foi criado, em 2004, o empréstimo consignado já foi utilizado por 6,4 milhões dos 19 milhões de segurados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A maioria (65%) informa que recorreu a esse tipo de empréstimo (descontado diretamente na folha) para o pagamento de dívidas. Ou seja, o empréstimo consignado não resolve o baixo valor das aposentadorias, mas garante a redução da inadimplência para os bancos. Paraíso político O jornal Valor Econômico, principal veículo do mundo empresarial e financeiro, expressa com fidelidade o estado de espírito de seus leitores em relação ao 2º turno. Na edição do dia 17, por exemplo, não deu uma única chamada de capa sobre a disputa eleitoral, mas cravou a seguinte manchete: “Remuneração de executivos aumenta 127% em três anos”. Maior tranqüilidade é impossível.

Manifestos de apoio a Lula Movimentos populares, grupos de intelectuais e de religiosos, do Brasil e de outros países, se mobilizam para garantir a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Em coro com o apoio dado ao pestista por organizações que participam da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), divulgado pelo

Cristãos declaram voto em petista O segundo turno das eleições presidenciais mostra um Brasil dividido em dois caminhos. Um representa a continuidade de uma mudança, apenas esboçada, mas necessária, na direção da inclusão das massas empobrecidas e de uma integração latino-americana que pode representar a retomada de um verdadeiro processo de independência política e social de nosso continente, frente à espoliação e dominação a que foi submetido nos últimos cinco séculos. O outro caminho, representado pelo PFL-PSDB e por uma eventual eleição de Geraldo Alckmin, significaria a retomada do projeto neoliberal que vigorou nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Seria a recolonização de nosso país, agora sob a égide do governo estadunidense e do capital internacional. No aspecto específico da relação entre Estado e igrejas, sabemos que sua vitória seria uma derrota do caráter laico e pluralista do Estado brasileiro. Precisamos votar em um presidente que respeite profundamente a laicidade do Estado, a pluralidade das religiões e autonomia em relação ao Estado, e não facilite em nada uma volta à neocristandade que tantos problemas já provocou no mundo. Como sociedade secreta e de metodologia militar, a Opus Dei não é uma sociedade de arquivos abertos e transparentes. Se alguém nega ser membro desta confraria pode estar sendo sincero ou simplesmente estar repetindo o estilo das sociedades iniciáticas secretas. Ninguém pode provar que Geraldo Alkmin seja membro

oficial da Opus Dei. O que qualquer um constata é que seus círculos de amizade e parentesco, suas relações, assim como o seu pensamento, delineado em grandes certezas e alicerçado em doutrinas positivas, se adapta exatamente à estrutura ideológica e dogmática da Opus Dei. Os candidatos podem ter a pertença religiosa que quiserem, desde que isso não signifique uma visão de cristianismo guerreiro e conquistador, sempre ligado ao poder do capital ocidental e absolutamente insensível a qualquer integração latino-americana e a liberdade dos povos do Sul. O fato de a direita se arvorar como mestre da moral e da honestidade não convence. Toda pessoa medianamente informada sabe que a tradição das classes dominantes brasileiras sempre foi apropriar-se dos governos, em todos os níveis, para se locupletarem e enriquecerem com recursos públicos. Fazem-no há quinhentos anos! Por tudo isso, precisamos derrotar o projeto neoliberal e a volta da direita ao governo, votar em Lula, e seguir organizando o povo, para que lute e se mobilize pelas necessárias mudanças estruturais e socais.

Marcelos Barros, monge beneditino (GO); dom Luiz Eccel, bispo de Caçador (SC); dom Tomás Balduíno, presidente honorário da Comissão Pastoral da Terra (CPT); Ricardo Rezende, padre diocesano (RJ); Luiz Bassegio, coordenador do Grito dos Excluídos Continental; e frei Sérgio Görgen, frade franciscano (RS), entre outros

Movimentos da América Latina contra Alckmin Nós, abaixo-assinados, representamos organizações sociais, movimentos, ativistas e intelectuais identificados com a esquerda e com as lutas populares contra o neoliberalismo e por um outro mundo possível, tanto da América Latina como de outras partes do mundo. Dirigimonos aos eleitores brasileiros, porque entendemos que, nas atuais eleições brasileiras, estão em jogo assuntos fundamentais para o Brasil, bem como para o futuro das lutas populares em todo o planeta. Temos visões e avaliações diversas acerca do primeiro mandato de Lula. Alguns de nós têm sérias discordâncias em relação aos aspectos centrais das políticas deste governo, tais como a lentidão da reforma agrária e a prioridade dada ao agronegócio. As críticas não fazem com que seja irrelevante a vitória no segundo turno. Muito pelo contrário, as conseqüências de uma vitória do candidato da direita seriam muito graves. Não queremos referir-nos aqui fundamentalmente às conseqüências para o povo brasileiro. São conhecidos, no debate político brasileiro, os efeitos que uma vitória da direita acarretaria para assuntos-chave como a privatização da Petrobras e demais empresas públicas; a reorientação das políticas sociais e do nível do salário mínimo; a privatização da educação; o incremento da desigualdade e da exclusão social; assim como a criminalização das organizacões e manifestações populares. O que desejamos destacar são as sérias conseqüências internacionais que seriam causadas por uma vitória da direita no Brasil. Um governo da direita retomaria as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), fundamental para a política imperial do governo dos Estados Unidos. A derrocada da Alca é a vitória mais importante que os movimentos contra a globalização neoliberal conquistaram nas últimas décadas,

e estaria mortalmente ameaçada em um governo de direita no Brasil, encabeçado por um dirigente que não tem compromisso algum com os movimentos populares, nem do Brasil nem da América Latina. Um governo de direita daria prioridade às relações com os mercados e capitais internacionais em detrimento da integração econômica e geopolítica latino-americana. Reforçaria, desta maneira, o domínio imperial dos Estados Unidos sobre todo o continente. Um governo de direita não teria dado ao governo venezuelano o apoio político que o Brasil deu, ajudando-o a derrotar as diversas tentativas golpistas de setores da oposição venezuelana e do governo Bush. As ameaças imperiais contra o processo político venezuelano continuam em vigor. Um governo de direita poderia contribuir com as intenções da direita boliviana e do governo Bush de barrar o processo popular encabeçado por Evo Morales. Na Bolívia, está em jogo, em muitos sentidos, o futuro da América Latina. Concluindo, uma vitória da direita nas eleições brasileiras teria por conseqüência um fortalecimento da estratégia imperial estadunidense e um debilitamento dos movimentos populares e dos projetos políticos de governos de esquerda e centro-esquerda, que, com diferenças, representam hoje a busca por alternativas à ordem neoliberal e imperial na América Latina. Não é pouca coisa. Fazemo-lhe um chamado para que, com seu voto, contribua para a derrota de Alckmin.

Edgardo Lander (Venezuela), Atilio Borón (Argentina), Elmar Alvater (Alemanha), Marta Harnecker (Chile), José Maria Vigil (Panamá), Pablo Sólon (Bolívia), Joel Suárez (Cuba), Oswaldo León (Equador), Juan Carlos Monedero (Espanha), Gustavo Pavel Egüez (Equador) e Claudia Koral (Argentina), entre outros

Brasil de Fato na edição 188, movimentos de cristãos e evangélicos, além de ativistas latino-americanos e europeus, apontam para os riscos – econômicos, políticos e sociais – que a eleição de Geraldo Alckmin representa. Divulgaram manifestos, entre os dias 10 e 17, reproduzidos abaixo. Anderson Barbosa

Fatos em foco

Para evangélicos, uma escolha para o futuro Nós, evangélicos, escolhemos a resistência e o futuro como motivos e compromissos para votar em Lula no segundo turno das eleições. Somos mulheres e homens que tivemos que viver um tempo da História do nosso país com tão pouco chão debaixo dos pés: o chão não divido do latifúndio, o chão não dividido da ditadura militar, o chão não dividido do racismo e do sexismo, o chão não dividido das riquezas e oportunidades dessa terra. E soubemos o que fazer! Fizemos escolhas de luta e resistência! Criamos respostas e mecanismos políticos que custaram a vida, a criatividade e o esforço de muita gente, militantes e comunidades. Fazer a escolha pela defesa da vida e mantê-la nem sempre significou viver em segurança. E nós soubemos enfrentar os desafios, mantendo-nos fiéis aos processos de base, a organização do povo e a articulação de um projeto popular para o Brasil. Todas essas escolhas foram vividas no conflito permanente com os interesses das elites do latifúndio, do capital, dos meios de comunicação, da cultura, da política e da repressão, que se expressam no projeto político do PSDB. A organização com base em um partido que representasse as lutas populares sofreu e sofre com a arrogância, oportunismo e violência dos setores sociais que não admitem a socialização do chão debaixo dos pés, do poder e do futuro. Contra a arrogância, muitas vezes não soubemos criar reais alternativas, outras vezes fomos cooptados e derrotados, e tantas outras vezes construímos vitórias significativas que foram celebradas no chão da vida do nosso povo. Ainda é pouco. Chegamos nas eleições de 2006 com “todos os conceitos éticos em confusão estonteante”, como diria Dietrich Bonhoeffer. Muitos de nós estamos “decepcionados com a insensatez do mundo e nos sentimos condenados à frustração e nos retiramos, resignados, ou ainda caímos, indefesos, nas garras do mais forte”,

ainda nas palavras do teólogo. Nossas decepções e frustrações são pontos de pauta de nossas organizações. Prioridade teórica, metodológica e prática para os próximos anos. A insensatez se coloca como desafio para a autocrítica, a retomada radical do trabalho de base e do compromisso com os pobres. Não vamos nos resignar, nem cair indefesos nas garras do mais forte!! A luta continua! Não daremos um passo para trás! Escolhemos a resistência e o futuro. Sabemos o que fazer. Nossos motivos não se concretizam na limitação do voto e na fé na representação política liberal. Vamos votar contra o PSDB, as elites e os interesses do capital estrangeiro. Não a Alckmin e a tudo o que ele representa!! Vamos votar contra a burocracia partidária e estatal. Vamos votar em Lula: escolha crítica e consciente, que afirma que existe vida inteligente e organizada na defesa de um projeto popular. Nosso voto não é útil porque um segundo mandato de um governo Lula vai nos encontrar mais fortes junto aos movimentos sociais, na defesa dos direitos conquistados e por conquistar! Não estamos inventando a vida e a luta: já existem como um chão onde nós todos avançamos. Venceremos!

Ariovaldo Ramos (Visão Mundial Brasil), Alexandre Caroni da Silva (Igreja Batista Nova Esperança), Carlos Jeremias Klein (Movimento Ecumênico de Londrina), Dorival Ristoff (IECLB), Eliana Rolemberg (Cese), Flávio Conrado (Iser), Inácio Lemke (IECLB), Jaider Batista da Silva (Centro Universitário Metodista do Rio de Janeiro), Lucia Dal Pont Sirtoli (Igreja Episcopal Anglicana do Brasil), Marco Aurélio A. Vicente (Assembléia de Deus), Nancy Cardoso Pereira (CPT) e Paulo Nailson de Almeida Lima (Igreja O Brasil Para Cristo), entre outros


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NACIONAL MÍDIA

Tucanos privatizam TV Cultura na surdina Descaso do Estado com funcionários da Fundação Padre Anchieta encobre estratégia para favorecer investidores privados Eduardo Sales de Lima da Redação

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população de São Paulo (SP) deve ter estranhado cartazes, espalhados pela cidade em outubro, com frases como “Salário também é Cultura, o governo de São Paulo e a Direção das Rádios e TV Cultura não respeitam os direitos trabalhistas”. A entrada da iniciativa privada, por meio da abertura à publicidade, reforça os erros de uma gestão de um bem público, a Fundação Padre Anchieta (FPA), que administra a televisão e as rádios Cultura, que atrasa os salários de seus funcionários e não renova seus equipamentos, custeados pelo dinheiro do contribuinte. Em virtude disso, jornalistas e radialistas da FPA fizeram um dia de protesto, em 13 de setembro, e pretendem realizar uma greve, se a direção da Fundação não pagar o que deve aos funcionários. Para Eureni Pereira, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a direção da FPA e o governo do Estado justificam a situação da FPA, alegando que, em 2003, os gastos e as despesas atingiram o limite de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. “Entramos na Justiça do Trabalho, exigindo o cumprimento da convenção coletiva de trabalho que manda pagar os reajustes retroativos, no caso dos radialistas, de 12% relativo a 1º de maio de 2003. Para os jornalistas, são 10% retroativo a 1º de dezembro de 2003”, explica. No dia 10, houve uma assembléia de funcionários das duas categorias, em que se decidiu formar uma Comissão reunindo diretores do sindicato e da FPA para negociar com o governo do Estado uma solução para o problema dos salários atrasados. “Eles não querem pagar, vão esperar a decisão da Justiça, vão apresentar os recursos deles. No caso dos jornalistas, já vamos para a terceira instância da Justiça do Trabalho”, diz Eureni. Segundo Sérgio Ipoldo Guimarães, diretor da Sindicato dos Radialistas do Estado de São Paulo, técnico em meteorologia da FPA desde 1987, a direção da Fundação se aproveita do fato de esta ser pública, mesmo que de direito privado, utilizando o artifício de se apresentar como empresa pública ou privada para a Justiça, quando lhe convém. Jornalistas e radialistas da Fundação estavam em estado de greve até o dia 10, quando a empresa aceitou montar uma comissão com representantes dos dois sindicatos e se comprometeu a ir até o Palácio do Governo e negociar com a Casa Civil do Estado.

PUBLICIDADE VERSUS INTERESSE PÚBLICO No final dos anos de 1980, sob o comando do então presidente Roberto Muylaert, jornalista e empresário, trouxe à tona o conceito de Televisão Pública vindo do exterior. Inspirado nesses modelos, buscou não só o financiamento do governo de São Paulo, mas também da parceria com a iniciativa privada.

Em 2004, a FPA alcançou as aspirações de Muylaert e lançou-se mais “agressivamente” no mercado (nos termos da página eletrônica da própria TV Cultura), com o objetivo de gerar e ampliar receitas, por meio da venda de patrocínios e de produtos. “É o Estado se desobrigando com a cultura transmitida por meio da televisão. A televisão pública, e, no caso, a brasileira, é uma obrigação do Estado”, aponta o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho. Para Laurindo, há duas conseqüências básicas da abertura à iniciativa privada: a primeira é que a propaganda determina o tipo de programação – o departamento de marketing

acaba se sobrepondo ao departamento de programação –; e a segunda é que a televisão comercial se torna referência, fazendo com que a televisão pública perca o caráter de experimentação e de programação mais reflexiva. “Há também uma implicação na linguagem, na medida em que os anúncios inserem na emissora uma linguagem marcada pela emoção. O telespectador não pode pensar muito, tem que comprar. Isso contamina a programação e induz o telespectador a assistir a programas do mesmo molde, com apresentadores pops, como Sabrina Parlatore, Cuca Lazzarotto e Sílvia Popovic”, explica Laurindo.

Para o diretor do Sindicato dos Radialistas de São Paulo, mesmo com o aumento do orçamento por meio da inserção publicitária, de empresas como Quartzolit, Fiat, Brinquedos Estrela, Nivea e CVC Turismo, não houve melhora para os trabalhadores. “Na verdade, o orçamento tem diminuído. Na medida em que a FPA busca recursos da iniciativa privada, o governo diminui o repasse. Há uma linha clara: quanto mais a empresa caminhar com suas próprias pernas, menos recursos o governo manda”, explica.

CRISE MAQUIADA Segundo Sérgio Ipoldo Guimarães, a crise de 2003 foi maquiada apesar da

Democratização da comunicação em debate da Redação Mantendo a tradição, movimentos sociais que lutam pelo direito humano à comunicação fazem, de 18 a 25 de outubro, a IV Semana pela Democratização da Comunicação. Haverá atividades em diversas cidades do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, São Luiz, Recife e Brasília. Estão previstas mostras, debates, oficinas e marchas. Todas as atividades da Semana pelo país podem ser conferidas em http://www.ciranda.net/sedeco. Mantida pela Ciranda Internacional de Comunicação Independente, a página também irá publicar a cobertura das atividades, feita pelos próprios participantes da Semana.

Comunicação comunitária, TV digital, criminalização dos movimentos sociais pela mídia, software livre e ética na comunicação serão alguns dos temas presentes nos debates. O evento acontece sempre em outubro por ocasião do Dia Internacional pela Democratização da Comunicação, comemorado mundialmente no dia 17 deste mês. Participam da organização a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), o Centro de Mídia Independente (CMI) e a Marcha Mundial de Mulheres (MMM), dentre outros.

demissão de mais de 200 funcionários de uma só vez, pois houve a contratação de funcionários na forma de pessoas jurídicas. A tática foi adotada durante a administração de Marcos Mendonça, diretor-presidente da FPA (e secretário de Comunicação da Petrobras durante o governo de Fernando Henrique Cardoso). Mendonça é acusado de favorecer aliados políticos: Analy Alvarez (departamento de dramaturgia) e e José Roberto Walker (diretor da Rádio Cultura) trabalhavam na Secretaria de Cultura do Estado. O comentarista político Alexandre Machado foi ex-secretário de Comunicação de Mário Covas. Ele também colocou seu primo, Roberto Mendonça, no Conselho Curador da Fundação. Não há, no Brasil, uma legislação acerca de televisão pública. A página eletrônica do Ministério das Comunicações conceitua o que mais se aproxima de TV Pública, a TV Educativa: estação de televisão que realiza transmissão sem fins comerciais, sendo vedada inserção de publicidade. “Existe um artigo da Constituição Federal muito claro que diz que o modelo de radiodifusão no Brasil deve obedecer a complementariedade entre os sistemas privado, público e estatal. Mas não temos uma definição mais precisa sobre o modelo público. O que nós temos são modelos internacionais de televisão pública que servem como referência”, avalia Laurindo. Para ele, o Brasil não apresenta nenhum modelo que se aproxime de TV Pública, que é “administrada pelo público, pela sociedade, sem ingerência do Estado e da iniciativa privada”. A que mais se aproximava era a FPA, revela, porque, institucionalmente, é uma fundação de direito privado, portanto não poderia ter a intervenção do Estado, e é gerida por um conselho curador autônomo, que deveria garantir essa independência em relação ao Estado. “Também não veiculava propaganda. Teoricamente era o modelo mais aproximado de TV Pública, mas, na prática, sabemos que ela não obedece a esses critérios”, afirma.

ANÁLISE

A pauta neoliberal do jornalismo Mário Augusto Jakobskind Em tempo de eleição, a mídia conservadora, em nome da democracia, promove debates entre os dois candidatos à Presidência da República que disputam o segundo turno. No primeiro debate realizado na TV Bandeirantes, Lula e Alckmin foram pautados de uma forma a evitar o aprofundamento das questões. Prefere montar um show midiático. Se a Bandeirantes, que ainda permite um debate um pouco mais solto, foi assim, pode-se imaginar o que a TV Globo está aprontando em matéria de debate despolitizado! É isso mesmo, a pauta da mídia conservadora passa claramente pela despolitização, ou seja, nada de aprofundamentos e hora da verdade. Mas, voltando à questão temática, no primeiro debate entre Lula e Alckmin praticamente só a política externa ajudou a mostrar as diferenças de posturas. O “opusdeísta” Alckmin atacou o que ele e seus pares direitistas consideram a “política frouxa” do governo Lula em relação à Bolívia. O petista respondeu, dizendo que não faria uma intervenção militar no país vizinho. Atitude que os setores da direita cobravam. Alckmin representa o conservadorismo mais atrasado do país. Mas nega. Ele disse que não integra os quadros da Opus Dei, um grupo da Igreja Católica de extrema direita. Tá bom! Então, como ele explica o fato de que, quando era prefeito de Pindamonhangaba, no longínquo ano de 1978, ter, segundo artigo publicado pela revista Fórum, dado o nome do fundador do grupo – Josemaría Escrivá de Balaguer – a uma rua daquele município do interior paulista. O tucano argumenta que apenas um tio, nomeado pelo ditador de plantão Garrasatazu Médici para o STF, foi integrante da Opus Dei. Tem mais: Alckmin é muito ligado a um senhor chamado Carlos Alberto di Franco, uma figura pomposa que freqüenta as colunas de opinião de jornais conservadores do Rio e São Paulo. Di Franco, professor doutor, diretor de um Master de Jornalismo para editores (um de seus alunos foi Ali Kamel, de O Globo) e outros babados, é militante da Opus Dei, sendo também amigão e consultor para qualquer parada de Alckmin. Por estas e muitas outras, Alckmin e seus desmentidos não podem ser levados muito a sério. Mário Augusto Jakobskind é jornalista e membro do conselho editorial do Brasil de Fato


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AMÉRICA LATINA EQUADOR

Eleição polarizada no segundo turno pode colocar o país na órbita dos EUA ou aproximá-lo dos vizinhos latinoamericanos

Fotos: Divulgação/Alianza Pais

Dois projetos em disputa

Eduardo Tamayo de Quito (Equador)

O

multimilionário Álvaro Noboa, segundo os resultados divulgados até terça-feira (17), ganhou as eleições presidenciais, seguido pelo economista de tendência nacionalista Rafael Correa. Os dois disputarão a Presidência da República num segundo turno que deve ser realizado em 26 de novembro. Os candidatos de esquerda como o líder da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Luis Macas, e o ex-deputado do Movimento Popular Democrático Luis Villacís obtiveram uma votação reduzida. A pequena votação obtida por Macas (que alcançou 2,12%) reflete a fragmentação da esquerda, que para estas eleições se apresentou dividida, com cinco candidatos. O indígena não conseguiu alianças e adesões, além do próprio espectro do movimento Pachakutik (braço político da Conaie). Muitas pessoas dos âmbitos democráticos e progressistas optaram pelo voto útil, diante da presença de uma candidatura com possibilidades de triunfo como a de Correa. Também deve ser dito que a Conaie ainda sofre as seqüelas de sua participação no governo de Lucio Gutiérrez, que a deixou debilitada. Os movimentos sociais em geral, como o indígena, se prestam a fazer balanços e adotar definições buscando cenários favoráveis para seguir brigando pela igualdade e a justiça social. O segundo turno se apresenta como um confronto duro e aberto entre dois projetos definidos, que em alguma forma reproduz outras situações recentemente vividas no Peru e no México. De um lado, o magnata da banana, Álvaro Noboa, encarna o projeto do grande capital, da agroexportação e do alinhamento absoluto com o governo dos Estados Unidos, já que é a expressão de um anticomunismo visceral e retrógrado. Por outro lado, Correa pretende aglutinar as forças de esquerda, cidadãs e nacionalistas que defendem a construção de uma reforma política por meio de uma Assembléia Constituinte, questionam as políticas neoliberais e propõem um projeto de integração latino-americana e de recuperação da soberania nacional.

O PROJETO DA DIREITA Esta é a terceira ocasião que Noboa vai ao segundo turno eleitoral. Em 1998 e 2002, ficou em segundo lugar, perdendo para Jamil Mahuad e Lucio Gutiérrez, respectivamente. Um fator determinante para disputar pela terceira vez a Presidência do país é sua ilimitada fortuna junto à sua estratégia eleitoral pródiga em promessas, distribuição de utensílios e dinheiro vivo. Herdeiro de uma enorme herança deixada pelo seu pai e atualmente proprietário de cerca de 120 empresas, Noboa vem realizando uma campanha milionária há praticamente oito anos. Somente nos últimos 90 dias, gastou quase 2,5 milhões de dólares em publicidade, segundo a organização não governamental Participação Cidadã, que fez um monitoramento em 34 de 100 meios de comunicação. Se for levado em conta o que gastou em outros 66 meios, basicamente locais, essa ONG presume que foi ultrapassado o limite do gasto eleitoral fixado pela lei em 2,75 milhões de dólares.

O economista Rafael Correa, se eleito, pretende alinhar o Equador com os governos progressistas da região, como o de Chávez, Evo, Lula e Tabaré Vásquez

O dinheiro não somente tem permitido obter pautas privilegiadas na mídia, contratar empresas de marketing e de pesquisa e mover a máquina de seu partido – o Partido Renovador Institucional de Ação Nacional (Prian), no qual manda como se fosse uma de suas empresas – como também empreender uma campanha em que o assistencialismo têm sido suas principais ferramentas. O milionário apareceu repetidas vezes na TV distribuindo somas de 100 e mil dólares junto à gente pobre, além de cadeiras de rodas, farinha, camisetas, remédio etc. Sua estratégia consistiu em abordar pragmaticamente os problemas mais urgentes como o emprego, a moradia, a saúde e a educação, fazendo promessas demagógicas, absurdas e impossíveis de cumprir como a de construir 300 mil moradias por ano. As promessas de Noboa conseguiram seduzir os setores mais pobres, especialmente da cidade de Guayaquil, onde obteve a maior votação, convencidos da “genero-

sidade” do supermilionário e pela idéia de que “como é rico não precisa roubar”. A fim de atrair os investimentos estrangeiros, tem prometido baixar o imposto sobre a renda (do qual ele mesmo seria o mais beneficiado), limitar ao máximo a interferência do Estado, uma maior flexibilização trabalhista, privatizar o Seguro Social etc. Se ganhar, promete ainda continuar as negociações do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos, manter a presença militar estadunidense na base de Manta, romper relações com Venezuela e Cuba, entre outros pontos.

Apuração sob a sombra da desconfiança

fraudulentas e incompletas. O economista defendeu a impugnação do processo e a abertura de todas as urnas do país para se revisar os votos e os resultados finais. Acosta denunciou a existência de um acordo entre as máfias políticas dos partidos Social Cristão e Renovador Institucional de Ação Nacional (Prian), em prol do multimilionário Álvaro Noboa, adversário do nacionalista Rafael Correa. Em um protesto realizado no dia 16, dezenas de pessoas solicitaram o seu voto porque não havia sido divulgado até o momento nenhum resultado das votações. Apenas depois da manifestação, começaram a se difundir os primeiros dados preliminares e a Organização dos Estados Americanos (OEA) pediu para o TSE acelerar a contagem. (Prensa Latina – www.prensa-latina.com)

As denúncias de uma possível fralde nas eleições equatorianas, o fracasso da contagem rápida dos votos e as irregularidades durante o processo eleitoral estão provocando incertezas entre os equatorianos. O economista Alberto Acosta, do movimento Aliança País, denunciou que o povo não aceita como reais os dados divulgados pela empresa brasileira E-VOTE, que só contabilizou, até o dia 17, 70,5% de todos os votos. Acosta afirmou que E-VOTE, contratada pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), ofereceu cifras

A PROPOSTA DE CORREA O economista Rafael Correa não conseguiu, como havia anunciado nos últimos dias de campanha, alcançar 40% dos votos, o que lhe permitiria ganhar a eleição já no primeiro turno. Esse objetivo, certamente, é difícil de se conseguir num país historicamente fragmentando regional e politicamente, entre serra e costa. Além disso, a campanha su-

Militares vigiam o TSE diante da ameaça de manifestantes

ja empreendida por seus adversários, que o associaram ao terrorismo, ao caos, à violência e à desestabilização econômica, pode ter influído nos eleitores indecisos que se inclinaram para outras opções. De outro lado, Correa tem denunciado que neste processo eleitoral estão tentando realizar uma fraude e que cometeram sérias irregularidades, já que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é controlado pelos partidos tradicionais como o SocialCristão e o Prian. Com 43 anos, o economista nacionalista foi Ministro das Finanças do governo de Alfredo Palacio, cargo que permaneceu por apenas três meses, mas no qual manteve uma política de questionamento ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e de priorização do gasto social. O movimento político de Correa optou por não apresentar candidatos a deputados, apontando para uma reforma política que implica na convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, que deverá

redigir uma nova Constituição e assumir todos os poderes. O feito de não contar com parlamentares e de que seu projeto contempla a dissolução do Congresso lhe abrirá uma dura batalha com os deputados eleitos, que tomarão posse em janeiro próximo. Correa tem um perfil nacionalista e latino-americanista, que faz com que suas posturas não sejam bem vistas pelo governo dos Estados Unidos. Seu programa se propõe a defender a soberania nacional em matéria de recursos naturais. Tem anunciado que renegociará os contratos petroleiros com as empresas transnacionais, pois existe uma relação injusta: de cada 10 barris, 8 são levados pelas empresas estrangeiras e 2 ficam para o Estado. Além disso, propõe fortalecer espaços de integração e trabalhar por uma América Latina unida “para fazer frente à globalização cruel” e fortalecer as relações com os governos progressistas da região, como o de Chávez, Evo Morales, Lula, Tabaré Vásquez e outros. (Alainet – www.alainet.org)

Em debate no primeiro turno, Álvaro Noboa aparece ao lado de Rafael Correa

Segundo turno terá referendo O presidente do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), Xavier Cazar, convocou no dia 17 os cidadãos a participar da consulta popular, proposta pelo governo para o 26 de novembro próximo. Cazar ressaltou que esse referendo se realizará no dia da realização do segundo turno eleitoral nesse país andino. Essa consulta, que terá um custo superior a 1 milhão de dólares, contém três perguntas sobre saúde, educação e petróleo. A primeira pergunta solicita aos cidadãos que se manifestem se concordam que as oito linhas do Plano Decenal de Educação 2006-2015 sejam consideradas como políticas de Estado prioritárias para o investimento do setor público.

Outra pede o consenso para que, em um prazo de cinco meses, o Congresso debata e aprove leis destinadas a aportar recursos que garantam a preservação e a atenção médica de patologias, elevando à política de Estado o Asseguramento de Saúde. Nessa pergunta os eleitores respondem se são favoráveis ao aumento de 0,5% anual no investimento em saúde em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) até o ano de 2012, ou até alcançar 4% do PIB. A terceira pergunta é se os eleitores aceitam que o Parlamento, dentro de um prazo de cinco meses, aprove as leis que garantem que os recursos extra do petróleo sejam destinados ao investimento social e à reativação produtiva. Desde abril de 2005, o presidente Alfredo Palacio realizou várias sugestões de referendo, que sempre foram negadas pelo Congresso e o TSE que, segundo analistas, trabalharam para fazer fracassar suas pretensões de reformar o país.


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INTERNACIONAL CORÉIA DO NORTE

O real perigo, de onde vem? Igor Ojeda da Redação

O

anúncio da Coréia do Norte, no dia 9 de outubro, de que realizara um teste nuclear, foi seguido de hipocrisia por parte dos países ricos. Condenaram o “perigo nuclear” veementemente, e o Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU) apressou-se em emitir uma resolução com sanções ao país. Mas pelo menos dois aspectos saltam aos olhos quando os acontecimentos são analisados com um pouco mais atenção. Em primeiro lugar, os EUA, e suas constantes ameaças ao país asiático, podem ser considerados os principais responsáveis pela intenção deste de criar um arsenal de guerra. Em segundo lugar, as reações contra a Coréia do Norte são claramente desproporcionais, se comparadas com as (não) dispensadas a outras nações “nucleares”, como Israel, Índia e Paquistão – para não falar dos próprios países ricos. Para Stephen Gowans, escritor e ativista canadense, entrevistado pelo Brasil de Fato, tanto razões antigas quanto mais recentes levaram a Coréia do Norte a realizar o teste, “mas todas estão relacionadas à necessidade do país de desanimar os EUA de pôr em prática suas ameaças de guerra”. Segundo ele, o país comunista vem tentando por mais de 50 anos estabelecer algum tipo de coexistência pacífica com os EUA, mas suas propostas de paz “vêm sendo repetidamente desprezadas”. “Por exemplo”, segue o ativista, “há não muito tempo atrás (dezembro de 2002), o então secretário de Estado dos EUA, Colin Powell rejeitou uma oferta da Coréia do Norte, dizendo que ‘não fazemos tratados de paz, pactos de não-agressão, coisas do tipo’. E é verdade. Os EUA não fazem isso. Eles tentam conseguir o que querem por intimidação”. Em janeiro de 2002, George W. Bush incluiu a Coréia do Norte no “eixo do mal”, junto com Iraque e Irã, pois esses países estariam desenvolvendo armas de destruição em massa. Em março de 2003, os EUA invadiram o Iraque, e nenhuma arma foi encontrada.

Deckwalker/creative commons

Teste nuclear do país asiático é condenado por potências, que fazem vista grossa a nações que possuem a bomba

Outdoors nas ruas da Coréia do Norte mostram lado a lado George W. Bush sendo esmagado por seu próprio míssil e a propaganda comunista patrocinada pelo Estado

um banco de Macau a fechar porque os norte-coreanos estariam processando dinheiro falso por meio deste. Até agora nenhuma evidência foi oferecida. Para completar, o governo Bush impôs sanções a oito firmas norte-coreanas de importação e exportação”, explica Elich, em entrevista ao Brasil de Fato. O resultado, segundo Elich, foi o efeito “bola de neve”: muitos bancos, com medo de represálias, resolveram encerrar as contas com o país asiático. Ao cortar o acesso norte-coreano à moeda estrangeira, os EUA debilitaram a capacidade norte-coreana de importar petróleo e outros produtos, ou até simplesmente de entrar no comércio normal. “As repetidas solicitações da Coréia do Norte para discutir as sanções foram ignoradas pelo EUA. O país se sentiu ameaçado – e de fato o foi – pelas ações dos estadunidenses. Também notou que tanto a Iugoslávia quanto o Iraque foram incapazes de se proteger de ataques, ao possuírem apenas armas convencionais antiquadas. Diante da posição claramente hostil da administração Bush, a Coréia do Norte escolheu conduzir um teste nuclear”, avalia o jornalista.

DOIS PESOS Elich chama a atenção para a reação desproporcio-

nal da qual foi alvo a Coréia do Norte: “é interessante contrastar o furor causado por um único e parcialmente falho teste nuclear com a indiferença com arsenais nucleares de outras nações”. Ele lembra que os EUA possuem várias armas nucleares a sua disposição – entre 8.000 e 10 mil ogivas nucleares – e que não há pedidos de sanções contra os Estados “nucleares” estabelecidos, nem contra as novas nações “nucleares”, como Índia, Paquistão e Israel. Para Gowans, os países ricos “não são realmente contra a proliferação, são apenas contra a proliferação envolvendo países que se recusam a ser subjugados. Os EUA estão falando em transferir tecnologia nuclear para a Índia, e a Índia não faz parte do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. A França transferiu tecnologia nuclear para Israel, que a utilizou para criar um arsenal de centenas de armas nucleares”, alerta. Por isso, a resolução do CS do dia 14, que estabeleceu sanções contra a Coréia do Norte, como a proibição de vendas de armas pesadas ao país e a inspeção das cargas que saem e chegam no país, é no mínimo questionável. “As resoluções do Conselho são formuladas para desarmar e enfraquecer o país asiático, para que ele

possa ser facilmente subjugado e pilhado. Na verdade, você pode generalizar para outros países fracos. As resoluções do CS não beneficiam o mundo como um todo, e sim os membros permanentes do CS”, protesta Gowans. Na opinião de Elich, medidas mais duras ainda podem ser implementadas no futuro, e os EUA provavelmente irão pressionar por ações adicionais. No dia 17, o governo norte-coreano afirmou que as sanções são uma declaração de guerra à Coréia do Norte e uma violação a sua soberania.

SEM PODERIO MILITAR

permitir uma miniaturização de uma bomba nuclear, o que faz com que seja muito pesada para um veículo transportá-la”. O jornalista lembra ainda que os norte-coreanos não têm obtido sucesso em testes de mísseis de longo alcance. A Coréia do Norte é militarmente muito fraca. Gowans conta que seu orçamento anual no setor é de cerca de cinco bilhões de dólares – 1% do estadunidense. “Seus pilotos de combate têm apenas duas horas de

As duas Coréias

De qualquer maneira, os dois especialistas não consideram que o pequeno país comunista pretenda atacar alguém. Para eles, o teste nuclear foi uma ação claramente defensiva, pois o lançamento de uma bomba atômica contra um outro país seria um ato suicida. “O único perigo que a Coréia do Norte representa é o de atrapalhar os planos dos EUA de atacar o país. Não é uma ameaça ofensiva”, afirma Gowans. Além disso, segundo Elich, “ainda é muito cedo para determinar a natureza exata do teste norte-coreano, mas os primeiros sinais indicam que ele falhou parcialmente. A tecnologia atual do país não é avançada o suficiente para

ANÁLISE

O massacre dos iraquianos Arquivo Brasil de Fato

Eduardo Maia Costa

AMEAÇA ESTADUNIDENSE Gowans lembra que, no documento Nuclear Posture Review (conjunto de decisões sobre política nuclear, em tradução livre do inglês), também de 2002, Washington se reservou o direito de usar armas nucleares contra a Coréia do Norte. “Uma das regras principais da não-proliferação de armas nucleares é que os países que as possuem não ameacem países que não as tenham. Bem, os EUA quebraram essa regra”, conclui. Em setembro de 2005, os dois países assinaram um acordo de princípios relacionados ao desarmamento nuclear. No entanto, segundo o jornalista Gregory Elich, especialista nas relações entre Coréia do Norte e Estados Unidos, os estadunidenses só o fizeram por pressão da China, e imediatamente o violou. “Em vez disso, os EUA impuseram sanções, forçando

vôo por mês, já que não há combustível suficiente para os aviões. Seus equipamentos são velhos e inferiores se comparados aos da Coréia do Sul e dos EUA que estão situados na península coreana. E, metade de seu exército de um milhão de homens está ocupada com a agricultura e a construção”, explica . “Ainda assim”, completa, “há ambigüidade suficiente sobre a capacidade nuclear da Coréia do Norte para fazer Washington pensar duas vezes antes de um ataque”.

Estudo recentemente divulgado pela revista científica britânica The Lancet sobre a mortalidade no Iraque depois da invasão de 2003 apresenta conclusões brutais: cerca de 655 mil iraquianos mortos, uma média de 500 por dia! Epidemiologistas estadunidenses pesquisaram 47 núcleos residenciais selecionados aleatoriamente, contendo cada núcleo 40 lares. Foram analisados os dados de 1.849 lares, onde viviam 12.801 pessoas. Conclusão, a taxa de mortalidade, que antes da invasão era de 5,5 por mil habitantes, passou para 13,3 por mil nos 40 meses de ataque. Calcula-se que até julho houve um total de 654.965 mortes como conseqüência da guerra, o que corresponde a 2,5% da população, sendo 601.027 devidas à violência, geralmente por arma de fogo. O estudo confirma e atualiza um anterior, também publicado na revista, que estimava que durante o período de março de 2003 a setembro de 2004 teriam ocorrido 100 mil mortes no Iraque por causas relacionadas à

No Iraque, morrem em média 500 pessoas por dia

guerra. Para acessar o estudo, visite www.thelancet.com/ (em inglês). Importa realçar o que esses números mostram: nesses últimos três anos e meio o Iraque é palco de um verdadeiro massacre, que atinge todos os estratos etários e, sobretudo, os jovens, comprometendo o rejuvenescimento da população. Um massacre diretamente provocado, num

primeiro momento, por invasores estrangeiros, por meio do seu arsenal aéreo, e, num segundo momento, pela repressão à insurreição e pela perseguição praticada por “esquadrões da morte”, os quais as “autoridades” não podem, ou não querem, frear. É bom que se diga, a ocupação não é necessária para manter a governabilidade e a retirada dos

ocupantes não traria a guerra civil e o caos completo. O problema é a ocupação. Só o seu fim poderá abrir um caminho de pacificação, um processo político, livremente negociado entre os partidos e as forças representativas do povo iraquiano, que conduza à reorganização do Estado e à legitimidade do poder. Mas esse processo que não pode ser ditado pelos ocupantes. Já se viu que os iraquianos não aceitam tutelas de tipo colonial nem governantes impostos. Quanto tempo até os ocupantes perceberem isso? Quantos mortos entre ocupantes e ocupados para que isso se torne claro aos primeiros? A denúncia do massacre é essencial para pressionar governantes tão teimosos e arrogantes como os da principal potência ocupante. Eduardo Maia Costa é procurador-geral adjunto do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal e coordenador da equipe de acusação da Audiência Portuguesa Tribunal Mundial sobre o Iraque, ocorrido em março de 2005, em Lisboa


8

INTERNACIONAL

De 19 a 25 de outubro de 2006

MOBILIZAÇÃO Anderson Barbosa

Fontes: Banco Mundial e Revista Forbes, 2005

Dentre as 100 maiores potências econômicas, 49 são empresas Posição País ou corporação 1

Estados Unidos

2

Japão

3

Alemanha

4

China

5

Reino Unido

6

França

7

Itália

8

Espanha

9

Canadá

10

Índia

11

México

12

Austrália

13

Brasil

14

Rússia

15

Suíça

16

Bélgica

17

Suécia

18

Turquia

19

ExxonMobil

20

Wal-Mart

21

Shell

22

Áustria

23

Arábia Saudita

24

Indonésia

25

Noruega

26

Polônia

27

Dinamarca

28

BP (petrolífera)

29

África do Sul

30

Grécia

31

Finlândia

32

General Motors

33

Hong Kong

34

Irã

35

Chevron

36

Ford

37

DaimlerChrysler

38

Tailândia

39

Toyota Motor

40

Argentina

41

Portugal

42

Irlanda

43

Phillips

44

General Electric

45

Total

46

ING Group (financeira)

47

Israel

48

Venezuela

49

Malásia

50

Allianz

51

Citigroup

52

Cingapura

53

AXA Group (seguradora)

54

Volkswagen

55

República Tcheca

56

Filipinas

57

Paquistão

58

American Intl Group (seguradora)

59

Nova Zelândia

60

Colômbia

61

Emirados Árabes Unidos

62

Hungria

TRAVAMENTO GLOBAL

63

Nippon Tel & Tel

Para o sociólogo, o travamento da crescente força das corporações só é possível por meio de uma luta socialista de amplitude global. “Isso implica uma dupla combinação: a retomada de um movimento de massa que possa ter essa dimensão, os fóruns sociais mundiais são um embrião disso; e o enfrentamento político dos movimentos por governos com maior inspiração popular, como na Venezuela e na Bolívia”, indica Antunes. De outro lado, o próprio fortalecimento do capital criou uma ferramenta para dificultar essa reação, colocando o sindicalismo em uma situação adversa. Segundo o sociólogo, o mundo vive um ciclo, nos últimos 30 anos, de contra-revolução burguesa. “(Friedrich von) Hayek e (Milton) Friedman diziam, em suas teorias neoliberais, que o fundamental era desmontar a corporação trabalho. Por isso, entenda-se, os sindicatos. Mas existem experimentos de resistência”, destaca. Para o professor, a luta social hoje é um imperativo dos sindicatos, dos partidos e dos movimentos sociais de esquerda. “Não há hierarquia entre essas organizações. Antes, o partido era tido como mais importante, depois o sindicato e, por fim, os movimentos sociais. Agora, as organizações mais importantes são aquelas que fazem a luta mais radical, que tocam mais fundo os interesses da dominação”, analisa.

64

Carrefour

65

Chile

66

Egito

67

IBM

68

Siemens

69

Argélia

70

Generali Group (seguradora)

71

Hewlett-Packard

72

McKesson (saúde)

73

Bank of America

74

Hitachi

75

ENI (petrolífera)

76

Romênia

77

Valero Energy (petrolífera)

78

Home Depot (comércio)

79

Fortis (financeira)

80

Matsushita Electric (fabricantes)

81

Crédit Agricole (banco)

82

Honda

83

Nissan

84

JPMorgan Chase

85

Samsung

86

Deutsche Telekom

87

UBS (financeira)

88

Cardinal Health (saúde)

89

Metro AG (revendedora)

90

HSBC (banco)

91

Berkshire Hathaway (financeira)

92

Nestlé (alimentos)

93

Aviva (seguradora)

94

Verizon Commun (tele)

95

Nigéria

96

Peru

97

Ucrânia

98

Ahold (alimentos)

99

IFIL (financeira)

100

China Pet & Chem (petrolífera)

Ativistas da Marcha Mundial das Mulheres denunciaram as condições de trabalho promovidas por empresas como Wal-Mart, L’Oréal, Novartis, Aracruz e Avon

Mulheres contra as transnacionais Em protesto mundial, no dia 17, movimentos feministas criticaram a ação de grandes empresas, cada vez mais ricas e poderosas Tatiana Merlino da Redação

A

ação das transnacionais e seus efeitos na vida das mulheres foram alvo de manifestações em todo o mundo no Dia de Luta contra a Pobreza, em 17 de outubro. No Brasil e no mundo, ativistas da Marcha Mundial das Mulheres promoveram atos para protestar contra a atuação das empresas que controlam a agricultura e a alimentação, além de denunciar a opressão das transnacionais de comésticos e farmacêuticas que impõem padrões estéticos e de consumo às mulheres.

Corporações, mais ricas que países Luís Brasilino da Redação Em 11 de agosto, a Companhia Vale do Rio Doce anunciou uma oferta de 17,67 bilhões de dólares para adquirir a mineradora canadense Inco Limited. A cifra supera a Renda Nacional Bruta (RNB) de 122 dos 208 Renda Nacional Bruta – soma de países, com base todas as riquezas em informações produzidas na nação (PIB) mais os do Banco Munfluxos líquidos de dial, de 2005. renda dos fatores (como aluguéis, Isso significa lucros e rendas do que, com esse trabalho) do exterior, calculado pelo dinheiro, a Vale Banco Mundial. poderia adquirir todas as riquezas produzidas durante um ano inteiro em países como Uruguai, Paraguai ou Bolívia. Para os brasileiros, mais surpreendente foi a fusão entre as fábricas de bebidas Brahma e Antarctica, em 1999, depois de décadas de concorrência acirrada. Juntas, formaram a Ambev que, cinco anos depois, fez uma fusão com a cervejaria belga Interbrew. A operação movimentou 11 bilhões de dólares em ações, o que é maior do que a RNB de 108 países. Esses fatos ilustram uma tendência de concentração do capital que, segundo o economista Marcio Pochmann,professordaUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), indica a perspectiva de não haver mais de 500 megacorporações dominando todo o setor produtivo e

“As manifestações têm caráter informativo e de denúncia. Esse é um tema pouco discutido pela população, que pode pensar que a instalação de transnacionais em seu país é sinônimo de progresso, sendo que é o oposto”, afirma Nalu Faria, coordenadora da Sempreviva Organização Feminista e representante da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. As empresas transnacionais atuam em mais de um país, e instalam-se em lugares onde há mais garantia de lucro, por meio da exploração do trabalho e de acordos comerciais, que procuram abrir o mercado dos países para sua atuação.

CONDIÇÕES DE TRABALHO O protesto das mulheres brasileiras ocorreu em cidades como Aracaju (SE), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Mossoró (RN), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), e criticou a atuação de empresas como Wal-Mart, L´Oréal, Novartis, Aracruz Celulose e Avon.

financeiro mundiais daqui a duas décadas. “Se olharmos alguns segmentos, isso já é nítido. No setor de linha branca (geladeira, fogão etc.), são somente quatro grupos dominando a produção. No agronegócio, são nove companhias. Na indústria automobilística, temos 15 empresas, mas a tendência é isso ser reprimido para não mais de seis (duas dos Estados Unidos, duas da Europa e duas da Ásia)”, diz.

ESGOTAMENTO O economista explica que o processo é decorrência de um esgotamento do ciclo de expansão dos setores industriais e produtivos oriundos da Segunda Revolução Industrial e Tecnológica, do final do século 19, quando se desenvolveram a energia elétrica, o motor de combustão, a eletro-eletrônica, dentre outros. Como conseqüência, foi necessário constituir grandes empresas em substituição ao padrão de pequenas empresas que existia até então. Só que, desde os anos 1970, há uma saturação dos produtos desse modelo, chamado fordista (grandes empresas, concentração de trabalhadores, produção em larga escala etc.), pois o consumo de certos bens, como automóveis, se ampliou, levando a uma saturação da procura. A partir de então, as empresas passaram a investir em tecnologia como forma de reduzir custos e ter espaço dentro do mercado. Entretanto, a estratégia das empresas não seria possível se houvesse competição acirrada entre elas. Com o salto tecnológico, dentro de um contexto de neoliberalismo, o que vem acontecendo é um mo-

De acordo com Nalu Faria, um dos temas mais importantes a ser debatido com a sociedade é a precariedade das condições de trabalho, impostas às mulheres por essas empresas, “como as que trabalham na rede de supermercados Wal-Mart e nas pequenas oficinas de costura que fazem jeans para grifes de luxo”. A opressão das transnacionais se dá por meio da “indústria de beleza e da magreza”, que impõe um padrão de vida que pretende definir a forma como tem que ser nosso corpo, aponta Nalu. “Basta lembrar que a indústria farmacêutica é a terceira mais rentável do mundo”, lembra. O Brasil é o quarto país que mais vende cosméticos no mundo. Em 2005, esse mercado cresceu 34% e as mulheres foram as principais consumidoras. Em1996, 98% das mulheres gastavam uma parcela significativa de seus salários com cosméticos e serviços de beleza. As que ganham menos chegavam a gastar 20% de seu salário.

vimento de centralização e concentração do capital.

RESULTADO “Isso está significando o crescimento de um poder do setor privado jamais visto na história do capitalismo. Se pegarmos os 100 maiores países do mundo, 50 deles já têm um Produto Interno Bruto (PIB) inferior às 50 maiores empresas mundiais. Há um desequilíbrio, pois não há um Estado com capacidade de intervir na economia e regular a competição. Hoje o descompasso é enorme porque não há Estado global e o fortalecimento das grandes empresas tem permitido a elas operar sem regulamentação e sem uma instituição pública capaz de gerar uma governabilidade que imporia um grau maior de civilidade no capitalismo”, conclui Pochmann. O sociólogo Ricardo Antunes, também professor da Unicamp, avalia que essas transformações têm conseqüências profundas no universo do trabalho. As fusões levam a reestruturações internas das empresas absorvidas e isso, via de regra, resulta em aumento do desemprego. À falta de vagas, soma-se a precarização do trabalho, avalia o sociólogo. Antunes não acredita que a redução da renda dos trabalhadores venha a frear esse processo de concentração do capital. “Sem consumo, não há produção, não havendo o fechamento do ciclo produtivo a tendência é de crise. Mas os capitais têm compensado isso com um mercado mundial crescentemente seletivo. Isso explica um pouco esse quadro de alta concentração de renda. Nas classes proprietárias e nos extratos altos das classes mé-

Em todo o mundo, há exemplos de ações promovidas por mulheres contra as transnacionais. Em março, as mulheres da Via Campesina questionaram o modelo imposto pelas empresas ao se manifestar contra uma das grandes transnacionais com atuação no Brasil, a Aracruz Celulose. Nos Estados Unidos, as mulheres entraram com uma ação coletiva contra a Wal-Mart por discriminação de gênero nos salários e promoções. A transnacional de cosméticos Yves Rocher, da França, se instalou no Burkina Faso, na África, onde submeteu as trabalhadoras a péssimas condições de trabalho, como ambiente escuro e sem ventilação, além de 12 horas de jornada sem descanso. Todas as trabalhadoras que se sindicalizaram foram demitidas. No entanto, coletivos de mulheres da França se organizaram em solidariedade às trabalhadoras e, com mobilização e pressão nos dois países, conseguiram que a empresa pagasse indenizações.

dias, existe um nível de consumo que compensa a retração daquele das classes trabalhadoras. Já nos extratos médios da população a restrição a esse consumo de luxo é cada vez maior”, afirma.


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