Ano 4 • Número 191
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 26 de outubro a 1º de novembro de 2006
www.brasildefato.com.br
Em campanha pela reeleição de Lula, movimentos sociais debatem nas ruas um projeto de mandato realmente voltado para os mais pobres
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os dez últimos dias que antecedem o segundo turno das eleições, marcado para 29 de outubro, a militância social promove em 17 capitais muito mais que panfletagens a favor da reeleição de Lula. Os ativistas foram às ruas para discutir com a população um projeto popular para o Brasil. Os movimentos servem de contraposição à cobertura da grande imprensa que, segundo pesquisas, apóia descarada-
Ricardo Stuckert
Rumos para um governo popular mente o tucano Alckmin. Em paralelo, os movimentos sociais se reuniram, em 19 de outubro, em Brasília, com o ministro Patrus Ananias para entregar um documento com 13 propostas e cobrar uma audiência com o presidente tão logo termine a eleição. A luta será longa. Para economistas ouvidos pelo Brasil de Fato, ambas as campanhas não rompem com o modelo econômico neoliberal. Págs. 3, 4 e 5
EDITORIAL
Reeleger Lula. Mas é preciso organizar o povo
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stamos chegando ao final de mais uma etapa do calendário eleitoral. Pelo que tudo indica, Lula deverá ser reeleito, com ampla margem de votos e com suficiente apoio popular, apesar do susto que a direita nos deu, no primeiro turno. Em alguns Estados, a direita conseguiu se articular e centralizar de tal maneira suas ações políticas, que provavelmente irá manter o controle de diversos governos estaduais, alguns já eleitos no primeiro turno. Por outro lado, continuou vergonhosa e despudoradamente a prática da maior parte dos veículos de comunicação social, em especial, jornais, revistas e rádios, atuando de forma acintosa a favor da candidatura Alckmin. Pelo menos nos ajudaram a entender, e provar, o que muitos ainda se iludiam: não há imprensa da classe dominante neutra ou democrática. Ela sempre vai defender os interesses da classe dos seus proprietários nas batalhas derradeiras, contra os interesses populares. Felizmente, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, as parcelas mais conscientes da nossa sociedade, das mais diferentes formas de organização social, sejam pastorais, membros de diferentes denominações religiosas, movimentos populares locais e praticamente todos os movimentos sociais do país juntaram forças para derrotar a direita. Essa energia positiva foi percebida nas conversas entre as pessoas, nas discussões políticas e nas redes criadas pela internet. Refletiu-se no tom dos debates entre os candidatos. Na postura dos dirigentes partidários, que antes queriam manter a campanha em tom cordato, mas a direita não perdoou. Assim, o próprio presidente Lula reconheceu que a forma como se chegou ao segundo turno e as reações que provocou na campanha eleitoral, acabaram sendo positivas para o processo de conscientização política das classes populares. Embora esteve muito aquém de ser, de fato, uma campanha de amplas mobilizações de massa e de entusiasmo popular. Mas ficou claro a diferenciação simbólica entre os dois candidatos. Alckmin representa as classes
dominantes, o aprofundamento do modelo neoliberal, a subordinação de nossa política externa aos interesses do império do Norte. Representa o uso do Estado repressor contra as classes subalternas. Enquanto Lula, apesar de não ter feito mudanças estruturais no seu governo, representa simbolicamente os interesses das classes populares e a possibilidade de se manter espaços para que o povo acorde e participe. Maior autonomia na política externa e a possibilidade de se construir processos de integração latino-americana. Sua candidatura representa o respeito aos movimentos sociais. Evidentemente que essa necessária vitória de Lula não significa esquecer os erros e vacilações do governo no primeiro mandato. E não significa que agora tudo vai mudar. A simples vitória eleitoral não é inclusive suficiente para alterar a correlação de forças necessárias para as mudanças. Mas uma derrota significaria um duro revés para toda classe trabalhadora. E manteria o descenso do movimento de massas por um período ainda maior. Encerrada as eleições, todas as forças populares e políticas devem fazer um profundo balanço de todo esse processo, extraindo dele as lições necessárias para melhorar nossa prática política. E, acima de tudo, é necessário recuperar a experiência histórica da classe trabalhadora, seus partidos e suas lideranças, em todo mundo, se quisermos, de fato, avançar para mudanças estruturais que eliminem os problemas do povo brasileiro. Todos os mestres e líderes políticos históricos defenderam que a atividade política principal de quem quiser lutar contra as injustiças sociais e construir regimes mais justos é trabalhar permanentemente para elevar o nível de consciência política e cultural do povo e organizá-lo para que lute por mudanças. Sem povo consciente e organizado, lutando, não haverá nenhuma mudança social, em qualquer sociedade do mundo. Modestamente, o Brasil de Fato, pretende continuar contribuindo para isso.
No dia 21 de outubro, em Curitiba (PR), manifestantes em campanha pela reeleição de Lula
Na Costa Rica, protestos contra acordo com os EUA Cento e cinqüenta mil pessoas participaram de protesto, nas principais cidades da Costa Rica, em 23 de outubro, contra o Acordo de Livre-Comércio da América Central (Cafta), de-
fendido pelo presidente Oscar Arias. O tratado, para os manifestantes, põe o país à mercê de corporações e dos Estados Unidos. Pág. 7
Na França, estrangeiros querem votar
Coca-Cola pode ser expropriada na Venezuela
Pág. 6
Pág. 7
No Congo, pleito não garante transformações A República Democrática do Congo também vai às urnas em 29 de outubro para eleger um novo presidente, em sua primeira eleição em mais de 40 anos. Porém, a instabilidade causada pela disputa pelos bens minerais – encabeçada pelas transnacionais – impede mudanças sociais profundas. Pág. 6
Livro aborda privatização das artes Em Privatização da cultura - a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80, Chin-tao Wu analisa a entrada das corporações no mundo das artes, no contexto neoliberal. Embora seu estudo se delimite a EUA e Inglaterra, a situação descrita no livro ajuda a entender a realidade brasileira. Pág. 8
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De 26 de outubro a 1º de novembro de 2006
DEBATE
CRÔNICA
A polarização inevitável
A ONU e o Brasil
Raúl Zibechi
Marcelo Barros
o Brasil ao México e da Venezuela à Bolivia, o cenário latino-americano atravessa uma crescente polarização que se manifesta tanto nos processos eleitorais quanto na vida política cotidiana. Um dos efeitos da atual ofensiva conservadora, comandada pela administração Bush contra os governos progressistas e os movimentos sociais, é ter transferido à arena política a polarização social e cultural aprofundada pelo neoliberalismo. Pouco importa que se trate de governos moderados como os de Lula (Brasil) e Tabaré Vázquez (Uruguai), ou de governos mais audazes e transformadores como os de Evo Morales (Bolívia) e Hugo Chávez (Venezuela). A polarização cresce a passos gigantescos e, em grande medida, tem sido promovida pelas direitas, elites e a política de George W. Bush. Sem dúvida, é um fenômeno complexo, não reduzido somente à atitude de uma das partes temerosa em perder seus privilégios – que nem sempre estão em jogo – ou ao desejo do império de recuperar o terreno perdido. Além desses evidentes fatores, parece estar sendo jogado de modo relevante o papel mais ativo que estão tomando os grupos sociais que até agora pareciam condenados a suportar a dominação de forma passiva. Por que as elites brasileiras querem impedir o triunfo de Lula, quando se beneficiaram de sua política econômica? É tão temível Andrés Manuel López Obrador, que se considera amigo do multimilionário mexicano Carlos Slim Heliu? Em linhas gerais, não há uma resposta simples, mas a situação tem chegado a um ponto em que os poderosos sentem que o solo em que vivem está tremendo. E sentem a ansiedade de que o tremor se converta em terremoto. Há pelo menos quatro razões para esta crescente polarização: o império necessita conquistar mais e mais recursos naturais e, portanto, necessita de governos fiéis; as elites locais se sentem inseguras e buscam amarrar governos amigos; as mínimas mudanças não estruturais que introduzem alguns governos progressistas podem dar força aos mais pobres; e finalmente, os movimentos dos de baixo seguem avançando e crescendo. Tudo isso gera uma conjuntura, sob a ótica dos de cima, de crescente “instabilidade” para seus interesses. Para os de cima, o grave não é somente o que está acontecendo, mas sim o que pode vir. Certamente, o império necessita seguir avançando sobre os recursos naturais (petróleo e gás, água e minério) como forma de neutralizar tanto sua progressiva debilidade como a iminência do esgotamento dos hidrocarbonetos em prazo mais ou menos fixo. O fracasso da ocupação do Iraque e as dificuldades para estabilizar toda a região do Oriente Médio impõem uma volta dos olhares ao que – supostamente – era o espaço seguro, retaguarda e garantia última do controle planetário: América Latina. Mas não é esse o único problema do império. A questão de fundo é que a onda de governos progressistas e de esquerda coincide com o ascenso da mobilização social, que está fora de controle tanto do império quanto das elites. É essa confluência real que impede Washington e as elites de
Goiânia faz aniversário na mesma data da Organização das Nações Unidas (ONU). Isso é indício da vocação universal da nossa querida cidade, chamada a ser cada vez mais inclusiva e cosmopolita. A ONU, mais nova do que Goiânia, precisa urgentemente de uma renovação, para continuar exercendo sua missão de paz neste mundo dividido e conflituoso. Há menos de um mês, (29 de setembro), a ONU encerrou a sua Assembléia Geral, desta vez, dominada pelos conflitos que ferem o Oriente Médio e o Sudão (África), como também pela homenagem ao seu secretário-geral, que se despede do cargo. No seu discurso de abertura, lembrou os três maiores desafios indicados na Assembléia de 10 anos atrás: uma economia mundial injusta, as desordens e o desprezo aos Direitos Humanos. Constatou que esses problemas persistem e se agravaram. Concluiu: “Essas divisões ameaçam a noção mesma de comunidade internacional, sobre a qual esta instituição está fundamentada”. Reconheceu que as relações internacionais não apenas dos Estados e governos, mas também dos povos e da sociedade civil. Afirmou que “todos devem assumir seu papel numa verdadeira ordem mundial multilateral, com uma ONU dinâmica e renovada no seu centro”.
Marcio Baraldi
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A escolha de um ou de outro presidente pode representar um apoio à integração latino-americana ou nos tornar súdito dócil do governo Bush operar do modo tradicional. De que serve um golpe de Estado se o povo sai massivamente às ruas e consegue neutralizá-lo?
A novidade é que agora a fratura social está se convertendo em fratura política. A polarização social e cultural estão se politizando Mas tem mais. As elites latinoamericanas já não se sentem seguras nem sequer em seus recintos com muros altos, lanças, vigiados e alijados dos pobres. Temem se ver obrigadas a seguir o caminho de Gonzalo Sánchez de Lozada, o ex-presidente boliviano forçado a fugir aos Estados Unidos por uma insurreição popular. Sentem pânico dos jovens pobres – negros, índios e mestiços –, ou seja, a imensa maioria da população. Pior ainda, não têm sequer líderes para negociar, subornar ou assassinar. E são centenas de milhões aglomerados nas periferias das grandes cidades. Por isso detestam Lula, ainda sabendo que Lula não vai lhes expropiar nem vai pôr em questão seus privilégios.
e o império não sabem como pará-los. As sociedades começam a se dividir, até países inteiros parecem estar divididos. A novidade é que agora a fratura social está se convertendo em fratura política. A polarização social e cultural estão se politizando. Os territórios dos ricos votam na direita, e os territórios dos pobres, na esquerda. Por isso, os meios conservadores estão enlouquecidos, porque a luta social tem tirado a máscara da dupla cidadania Quando os meios dos poderosos se empenham em fabricar “golpes de Estado midiáticos”, é sinal de desespero, não de fortaleza. Quando o véu da dominação tem sido arrancado pelos feitos – sejam feitos eleitorais ou insurreicionais –, é a própria dominação que está em jogo. James Scott nos recorda em “Los dominados y el arte de la resistencia”, um texto cada vez mais atual, que quando os oprimidos se atrevem a dizer suas verdades com a cara descoberta, em público, é porque sentem que os dias da dominação estão contados. Essa é, precisamente, a percepção que têm as elites, desde Washington a São Paulo. Raúl Zibechi é jornalista uruguaio e editor do semanário Brecha, uma das mais tradicionais publicações de esquerda da América Latina
E qualificou o conflito no Oriente Médio como o maior desafio à segurança e à paz mundiais. Alertou para a necessidade de respeito às resoluções do Conselho de Segurança, cuja imparcialidade não pode ser posta em questão. Lembrou que a guerra no Sudão é, atualmente, o conflito mais sangrento. Desde fevereiro de 2003, já fez mais de 200 mil mortos e 2 milhões de deslocados. E a imprensa sequer noticia essa guerra, nem a ONU consegue impedir a continuidade do massacre. Finalmente, pediu a criação de uma organização da ONU para o meio ambiente, para combater “o lento suicídio coletivo da humanidade”. É impossível não concordar com essas palavras ou não torcer para que o novo secretário-geral já eleito, o sul-coreano Ban Ki Moon, continue esse trabalho. Entretanto, é sabido que a ONU não tem força legal para fazer com que suas decisões sejam cumpridas. Por isso, dificilmente esses discursos se concretizarão em mudanças efetivas. O atual governo brasileiro tem lutado para que o Brasil tenha um lugar no Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, isso não transforma em si a realidade nem brasileira nem mundial. A orientação de solidariedade e de independência de sua política externa, sim, é mais coerente e deve continuar. Além do tipo de orientação política do Estado brasileiro, neste segundo turno das eleições presidenciais estão em jogo dois projetos de Brasil e de mundo. A escolha de um ou de outro presidente pode representar um apoio à integração latino-americana ou acarretar o isolamento do nosso país como súdito dócil do governo Bush. Continuar a atual política externa do Brasil é favorecer a vida e o destino de milhões de pessoas em todo o continente, meta da chamada “revolução ”. Mesmo com muitas contradições – comuns em todo movimento de massa – e com as fragilidades próprias de um processo novo e emergente, há uma revolução social em curso que respeita totalmente os elementos da cultura e as instituições democráticas de Estado. Opta sempre pela ação não violenta e, através de meios democráticos, ensaia em nosso continente uma nova ordem internacional mais justa e solidária. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006
PODER DOS POBRES
Para muitos integrantes das elites, tem chegado o momento de frear o crescente poder dos pobres. Por mais curioso que pareça, as políticas focalizadas para “combater” a pobreza, desenhadas pelo Banco Mundial e colocadas em prática pelos governos da Argentina, Brasil e Uruguai, entre outros, não garantem paz social. Planos como o Bolsa Família não integram os mais pobres como cidadãos ricos. Ao contrário, alguns indícios apontam um “empoderamento” dos mais pobres, que podem estar motivados a pedir mais ou a organizar-se agora que há um governo disposto a escutá-los. Não estou assegurando que algo assim vá acontecer, mas, na visão das elites, é uma possibilidade, uma eventualidade que seria melhor evitar. Daí as críticas aos programas sociais, em todos os países do continente. Por último, os movimentos dos de baixo são incessantes. As elites
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NACIONAL ELEIÇÕES
Em 17 capitais, organizações populares, que definiram apoio a Lula, realizaram mobilizações para discutir um projeto de transformação social
Fotos: Pedro Carrano
Movimentos em campanha por mudanças
Pedro Carrano de Curitiba (PR)
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m campanha para a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva, integrantes dos principais movimentos sociais, articulados na Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), realizam manifestações em 17 das capitais brasileiras, nos dez últimos dias antes do segundo turno da votação, marcado para 29 de outubro. As organizações marcaram presença em ruas, terminais de ônibus, portas de fábricas no entorno das cidades. Naquelas onde a disputa entre Lula e Geraldo Alckmin, do PSDB, está acirrada, a mobilização foi maior. O alvo das ações são os locais onde haja concentração de trabalhadores, explica José Batista, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), organização que participa da CMS, assim como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Marcha Mundial das Mulheres, entre outras. Para ele, o objetivo da campanha é ir além das habituais panfletagens e, diz, criar um debate político sobre o modelo de desenvolvimento do país. “Queremos atingir as pessoas que podem vir a se organizar. Nosso esforço pretende fazer a disputa de idéias, fortalecendo um projeto de mudanças sociais”, explica. Em cada Estado, a CMS articulase de um modo diferente. Antes do início do segundo turno, não houve campanha, apesar de organizações da Coordenação apoiarem o candidato petista. Com o crescimento de Alckmin, que chegou ao segundo turno apesar de ser dada como certa a vitória de Lula na primeira etapa da votação, os movimentos fizeram um consenso para enfrentar o modelo representado pelo tucano. Na avaliação de Batista, a ação dos movimentos não pretende “apenas eleger o Lula, mas fazer uma avaliação crítica do novo governo, em nome de um projeto político maior”. O coordenador conta que, desde 2005, há um esforço da CMS para apresentar propostas de mudança diretamente ao governo, inclusive na área econômica. Estas foram reunidas no documento Projeto Brasil.
Movimento feminista integra ato em prol da reeleição de Lula, no último dia 29, em Curitiba (PR)
conversando, “a partir de questões importantes e não se sentir acanhados, pois, se alguém errou, não foi a militância”.
RELATO DAS RUAS Da fábrica para o calçadão do centro: em Curitiba (PR), é esse o roteiro desenhado pelos movimentos sociais para participar da campanha. As ações começam com visitas a montadoras estrangeiras, na cidade industrial, aproveitando a entrada no trabalho logo de madrugada. Incluem ainda terminais, prédios públicos, trocas de turno em bancos. A pura panfletagem é substituída pela tentativa de um debate com os passantes. Roni Anderson Barbosa, presidente da CUT do Paraná, diz que o objetivo é de discutir as eleições com a classe trabalhadora, prioritariamente. “A campanha está sendo feita da fábrica para o centro, buscando dar firmeza para o eleitor”, diz. Ele comemora as pesquisas que apontam que Lula ultrapassou
Alckmin no Estado, onde o tucano teve a maioria dos votos no primeiro turno. Em 19 de outubro, as entidades organizaram uma caminhada pelo calçadão da Rua 15, na chamada “maré vermelha”, quando todos saíram vestidos com a cor do PT. Ao mesmo tempo, em Brasília (DF), os movimentos entregaram um conjunto de propostas organizadas em 13 pontos ao ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias. De imediato, as lideranças pediram uma audiência com Lula após as eleições. E para a frente o compromisso com um projeto popular. Na “maré vermelha”, na capital paranaense, estavam presentes organizações como a Pastoral Operária, cuja participação foi estimulada por uma carta escrita por frei Betto sobre as razões para votar em Lula, publicada na edição 189 do Brasil de Fato, relata a coordenadora regional da organização, Cármina Azevedo. No texto, intitulado “Carta aberta aos eleitores cristãos”, o
frade dominicano escreve: “Lula ainda nos deve muito do que prometeu ao longo de suas campanhas presidenciais, como a reforma agrária. Porém, o Brasil e a América Latina serão melhores com ele do que sem ele. Se você está convencido disso, trate de convencer também outros eleitores”. Não dá para negar, entretanto, uma apatia visível tanto na militância quanto nos passantes nas ruas. Na avaliação de José Batista, quebrar isso é o principal desafio dos movimentos sociais. Em 21 de outubro, em comício realizado por Lula em Curitiba, três quadras completas foram tomadas de pessoas para ouvi-lo. Apesar dos anseios dos movimentos sociais, não falou sobre projeto de transformação em pontos como a política econômica. Em uma exclamação espontânea, uma das pessoas, presente no comício, resume a posição dos movimentos: “No começo do próximo mandato, se o Lula não se aliar ao povo, está perdido”.
Hilma Lourdes dos Santos, militante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM)
Queremos colocar o Lula, porque ele é nosso, porque a elite quer pôr o Brasil à venda. Com o Lula passamos menos necessidade, abrindo a oportunidade de termos nosso chão para trabalhar.
MOMENTO OPORTUNO Para Dirceu Fumagalli, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o papel da entidade neste momento é articular-se com pastorais e movimentos, por meio de encontros e fóruns, sobretudo o Fórum de Reforma Agrária. “Para contribuir Fórum de Reforma na análise da Agrária – Consticonjuntura, o tuído em 1995, o que pode ajudar Fórum Nacional peno desenvolvila Reforma Agrária e Justiça no Campo mento de estratem o objetivo de tégias”, diz. contribuir para a articulação das ações O represendesenvolvidas pelas tante da entidade várias organizações que apóiam a reaeclesial considelização da reforma ra que Lula, ao agrária no Brasil. receber o apoio De caráter amplo e pluripartidário, ficou dos movimentos a cargo da CPT passa secretariar o Fórum, sociais, ajudando a mantêa ter uma obrilo vivo e atuante. gação com os movimentos. Algo que certamente não ocorreria se as organizações não estivessem realizando as manifestações de apoio. Para ele, os movimentos estão tendo um papel fundamental no crescimento de Lula nas pesquisas, cuja reeleição, se depender de seus resultados nas pesquisas eleitorais, está garantida. Fumagalli entende que a posição dos movimentos é de estar na rua
Queremos avançar naquilo que começamos. Deste governo, ressalto a criação do Ministério das Cidades, com a política voltada para as famílias de baixa renda, que contempla, por exemplo, mesmo aquele trabalhador que não possui carteira assinada.
Militantes do movimento negro de Curitiba no ato organizado pela CMS em apoio à Lula
Nós, das minorias sociológicas, estamos com Lula, por isso recomendamos o voto nele no segundo turno. Das 250 ONGs locais que trabalham com a questão de gênero, apenas uma delas vai votar no Alckmin. Estamos com o Lula porque ele foi o primeiro a montar grupos de trabalhos nos ministérios para atuar com as minorias. O programa dele para nós é maravilhoso. Toni Reis, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros
Não quero a volta da direita, que tem uma história conservadora e opressora, quero mais distribuição de renda, menos fome e mais igualdade. Tivemos grandes avanços nas políticas sociais neste último governo, e isso é prioritário para a maioria da população brasileira. Nós trabalhadoras e trabalhadores devemos votar em quem é da nossa classe, quem realmente nos representa. Silvana Loch, professora de literatura
José Foz, agricultor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Voto, em primeiro, pela reforma agrária. Sei que com ele é difícil, mas imagine sem ele. O Lula tem muitos projetos, é ligado aos movimentos sociais, mas sabemos que é difícil aprovar medidas progressistas no Congresso. Em segundo, é porque, com o Alckmin, seriam mais quatro anos perdidos e o movimento levando paulada. O Alckmin é ligado aos ruralistas.
Estamos mobilizados, o Lula é o presidente que queremos, temos feito corpo a corpo, argumentando com as pessoas, isso desde o primeiro turno, desde o início da construção. O Lula reconhece o racismo e nomeou uma afrodescendente, a ministra Matilde Ribeiro, como secretária de Política de Igualdade Social.
Marcelo Pontes, educador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Dirléia Aparecida Matias, da Associação Cultural Omo Ayê
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NACIONAL ELEIÇÕES
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza
Mídia impressa contra Lula Pesquisas comprovam a parcialidade dos principais jornais brasileiros
Anestesia geral Já faz mais de dez anos que o desemprego estrutural no Brasil atinge marcas superiores a 15% da população economicamente ativa, índice três vezes maior do que os registrados nas décadas anteriores. Segundo o Dieese, o desemprego entre os jovens de 16 a 24 anos é três vezes superior ao dos trabalhadores acima dos 25 anos. É difícil entender a apatia da população brasileira diante de futuro tão incerto. Amplo demais O dirigente de um movimento social de trabalhadores representou a sua organização num comício pró-Lula, realizado em São Paulo. Verificou que alguns apoiadores do presidente estranhos ao PT ganharam destaque, entre eles o malufista Agnaldo Timóteo e o ex-ministro Delfim Netto, que foi o grande responsável pelo arrocho salarial durante a ditadura militar. Tudo acontece sem qualquer constrangimento. Fascismo imperial Depois de provocar a morte de 50 mil cidadãos iraquianos e de 2.500 soldados estadunidenses e aliados, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, finalmente reconheceu que o bombardeio e a ocupação do Iraque são uma aventura de seu país tão nefasta quanto foi a guerra do Vietnã. Não é que o imperialismo não aprende, é que o capitalismo precisa de guerras para se reciclar. Mistério periférico Se o crescimento da economia brasileira fechar o ano de 2006 em cerca de 3,5%, conforme as últimas previsões, o Brasil ficará em 25º lugar entre os países considerados emergentes e, provavelmente, em penúltimo lugar na América Latina. Em compensação, o lucro do setor bancário no primeiro semestre subiu em média 43%, um desempenho fantástico em termos mundiais. A quem interessa esse modelo? Inconstitucionalidade O artigo 54 da Constituição proíbe que parlamentares mantenham empresas concessionárias de serviços públicos, mas pelo menos 51 deputados federais constam como concessionários de radiodifusão. No entanto, a Procuradoria Geral da União, que deveria zelar pelo estrito cumprimento da Constituição, tem se recusado a adotar providência contra essa ilegalidade. É a política do compadrio. Horizonte socialista Em novembro, os partidos e organizações de esquerda – inclusive correntes minoritárias do PT – devem fazer suas avaliações sobre o processo eleitoral. O Psol, que integrou a Frente de Esquerda com o PSTU e o PCB, tem uma avaliação preliminar positiva, na medida em que avançou na organização do novo partido. O maior desafio de todos é articular um calendário unitário de lutas para 2007. Modelo concentrador A Associação Brasileira dos Citricultores denuncia que a enorme concentração das indústrias processadoras de laranjas está causando grandes prejuízos aos produtores. Segundo a denúncia, há 15 anos existiam mais de 20 empresas de processamento, mas agora apenas quatro empresas processam mais de 70% da produção. Pior, essas empresas formam um cartel para impor um preço baixo aos fornecedores. Privataria contestada Embora as privatizações tenham ocorrido há vários anos – Vale do Rio Doce, em 1997; Sistema Telebrás, em 1998; e Banespa, em 2000 –, ainda estão tramitando nas várias instâncias da Justiça cerca de 230 ações que questionam e anulam os três processos. Ou seja, apesar do silêncio do governo e da imprensa, nos últimos anos, há motivos de sobra para que o assunto seja retomado.
A
grande imprensa apóia, descaradamente, Geraldo Alckmin, do PSDB. Pesquisas realizadas pelo Observatório Brasileiro de Mídia e pelo Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa), ligado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) comprovam esse fenômeno. Em seu último relatório, o Observatório, que acompanha os meios de comunicação impressa, entre 7 e 13 de outubro, revela que os cinco jornais de maior tiragem do país (Folha de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense) dedicaram 533 abordagens à cobertura dos dois candidatos. Sobre a totalidade de abordagens de cada candidato, Lula teve 27,3% de positivas e 45,1% de negativas. Sobre abordagens dedicadas à candidatura de Alckmin, 27,1% foram positivas; e 42,4%, negativas. Quando o assunto é o governo de Lula, 73,3% das abordagens foram negativas. No mesmo período, do total das 103 abordagens da Folha de S. Paulo, o presidente Lula teve 33,3% de abordagens positivas e 66,7% de negativas. Sobre o total de abordagens a sua candidatura, Alckmin teve 27,5% de positivas; 32,5% de neutras e 40% de negativas. O caso que mais chama atenção é o de O Globo, que dedicou 122 abordagens à cobertura dos dois candidatos. O governo Lula teve 100% de abordagem negativa. Do total de abordagens para cada candidato, Lula teve 45,4% de negativas e Alckmin, 48,8%. Já segundo o Doxa, que fez uma pesquisa de 1º de fevereiro até 1º de outubro, a freqüência de aparições do presidente Lula no noticiário de O Globo apresentou abordagens negativas e neutras
Arte: Brasil de Fato
Montagem Brasil de Fato
Eduardo Sales de Lima da Redação
Entre 7 e 13 de outubro, 66,7% das abordagens relacionadas ao presidente Lula, na Folha de S. Paulo, eram negativas
com freqüência que variava entre 30% e 50%, e a freqüência de abordagens positivas esteve sempre abaixo de 20%. Os pesquisadores do Laboratório apontam que, nas eleições de 2002, o candidato Lula, em O Globo, também era o mais citado, porém suas aparições tinham o aspecto positivo se sobrepondo ao negativo: entre 7 e 27 de outubro daquele ano, Lula teve, em média, 40% de abordagens positivas e 15% de negativas. Para Kjeld Jacobsen, diretor do Observatório, a conjuntura daquele ano era diferente, pois a população estava, em sua ampla maioria, a favor de Lula. “Os jornais têm posicionamento, deixaram claro que não querem apoiar Lula. E é mais evidente no
segundo turno, pois, além de aumentar a exposição, aumentaram suas abordagens negativas”, aponta Jacobsen,. Segundo ele, a atitude dos grandes jornais é meramente política, pois a conjuntura ainda é fortemente favorável à candidatura petista.
CREDIBILIDADE No artigo “O papel da mídia nas decisões de voto”, publicado na página na internet do Observatório em 2 outubro, o sociólogo Venício Artur de Lima, avalia que “nos períodos eleitorais, reitera-se a importância da mídia impressa paulista de referência nacional que, aliás, caminha junto com a relevância do Estado de São Paulo no resultado das eleições nacionais pelo enorme peso de seu eleitorado”, e conclui:
“Com certeza essa influência não foi desprezível”. O Observatório ressalta um detalhe: a pesquisa Datafolha, que normalmente vem sendo publicada às quartas-feiras com muito destaque, em 20 de setembro figurava nas últimas páginas dos jornais. Lula obtinha 57% das intenções de voto e Alckmin, 36% Venício ilustra que a imprensa brasileira vive, hoje, “uma situação caótica de desregulação que certamente não atende ao interesse público”. Para Jacobsen, a mácula é maior, pois afeta aquilo que é mais valioso para o jornalismo, a verdade. “Eles podem ter comprometido fundamentalmente sua credibilidade, e as pessoas não vão querer comprar um jornal em que não acreditam”, diz.
Organizações entregam projeto para governo Uma comissão de 10 representantes de movimentos sociais entregou ao ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, uma plataforma com propostas para o fortalecimento do projeto popular e de esquerda, em Brasília (DF), em 19 de outubro. O documento define as diretrizes para que o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, se reeleito, atenda às necessidades da população. Antes do encontro com o ministro, os movimentos organizaram uma marcha contra o avanço do projeto da direita, com a participação de 1.500 pessoas. Leia abaixo trechos do conjunto de propostas redigido pelos movimentos, chamado “Treze pontos para um projeto popular para o Brasil”. A íntegra está na Agência Brasil de Fato: www.brasildefato.com.br 1. REFORMA AGRÁRIA Realizar uma ampla reforma agrária. Limitar o tamanho das propriedades, como forma de garantir seu uso social e racional. Promover a soberania alimentar. Garantir terra às comunidades tradicionais: indígenas, ribeirinhos, seringueiros e quilombolas. 2. ENERGIA Promover a energia elétrica como direito social e dever do Estado, não como mercadoria. Reestatizar as empresas de distribuição e transmissão de energia elétrica. Ampliar o programa Luz para Todos e isentar de taxa de energia elétrica famílias que consomem até 100 quilowatt por mês. 3. EDUCAÇÃO Promover uma educação compro-
metida com a formação integral das pessoas, destinada à realização de sua atividade crítica e transformadora na sociedade. Ampliar o acesso ao ensino universitário e fortalecer o ensino público, gratuito, amplo e de qualidade, em todos os seus níveis. 4. DESENVOLVIMENTO Estimular a produção de bens e desenvolver políticas para eliminar a pobreza e a desigualdade social. Privilegiar o trabalho e a qualidade de vida do povo brasileiro, com crescimento e distribuição de renda, valorizando uma economia mais justa e solidária. 5. DIVERSIDADE Combater o preconceito e promover a valorização e o respeito à diversidade cultural e étnica, além da de orientação sexual, de gênero, de crença religiosa, de idade e de classe social no povo brasileiro. Criar oportunidades iguais para todos.
controle popular das empresas estratégicas para o desenvolvimento nacional e a soberania tecnológica, em benefício do povo latino-americano. 8. DIREITO AO TRABALHO E LIBERDADE SINDICAL Garantir o direito ao trabalho, como condição de cidadania plena, como direito fundamental de realização humana. Garantir salários dignos para os trabalhadores na ativa e aposentados. E promover a liberdade sindical, realizando reformas que consolidem os direitos sociais. 9. MORADIA Reorganizar o convívio e o planejamento urbano das cidades, buscando criar condições humanas para toda a população. Desenvolver uma política pública de amplitude popular para a construção de moradias, combatendo a grilagem em terras públicas e a máfia da especulação imobiliária.
6. PARTICIPAÇÃO POPULAR Fortalecer a democracia popular participativa. Estimular consultas populares. Garantir que o poder político e social esteja sob o controle permanente do povo e de suas organizações sociais, para que intervenham na realidade local e nacional, visando à qualidade de vida e o bem comum.
10. CULTURA Democratizar e a popularizar a cultura. Fortalecer os espaços de trocas culturais, promovendo o acesso popular aos teatros, cinemas, exposições, sinfonias, amostras, apresentações folclóricas e festas tradicionais que celebrem a vida, a luta, a solidariedade e a diversidade do povo brasileiro.
7. MEIO AMBIENTE E SOBERANIA NACIONAL Garantir a plena soberania sobre nosso território, nossas riquezas naturais, nossa biodiversidade e conhecimentos associados à mesma. O Estado deve ter o
11. DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO Acabar com o monopólio da informação. Proibir o lucro e os investimentos estrangeiros nas concessões públicas de meios de comunicação nacionais. Promover
investimento público em veículos de comunicação de caráter popular, comunitário e de interesse social. 12. SAÚDE Garantir e defender a saúde de toda a população. Implementar políticas públicas de soberania, segurança alimentar e de atenção básica como forma preventiva, melhorando programas de saúde familiar. Garantir acesso a medicamentos gratuitos a toda a população necessitada. 13. JUVENTUDE Proteger a juventude e a infância, com políticas que promovam a afetividade, o respeito, seus direitos legais, sua construção social, política e cultural na sociedade. Possibilitar acesso à formação profissional e cultural de qualidade, além de transporte público gratuito. Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Pastoral da Juventude do Brasil (PJB), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), Coalizão Moradia – DF, Movimento dos Catadores de Lixo Reciclável, Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Vida e Juventude, Rede de Educação Cidadã, Liga Brasileira das Lésbicas e Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua (MNMMR).
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NACIONAL ELEIÇÕES
O modelo de gestão do Estado virou o centro do segundo turno, mas a discussão foi marcada por falta de propostas concretas
Ricardo Stuckert
Debate genérico sobre economia
Luís Brasilino da Redação
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o segundo turno das eleições presidenciais, as privatizações e os gastos públicos pautaram a disputa entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB). O tucano nega, mas o petista acusa-o sistematicamente de administrar a máquina pública de modo a vender seu patrimônio. A herança de Alckmin não é das melhores. Pertence ao mesmo partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (19952002) que, em seu mandato, vendeu estatais como a Companhia Vale do Rio Doce e o setor de telefonia. Pior, Alckmin presidiu entre 1996 e 1998 o programa estadual de desestatização (PED) de São Paulo. Mais recentemente, comandou o processo de venda da CTEEP, uma empresa de transmissão de energia. Por sua vez, Lula é criticado pela direita pelo fato de seu programa de governo não prever corte de gastos públicos. Alckmin ataca com o seu slogan do “choque de gestão”. O tucano não admite, mas entende-se que isso significa redução das despesas da União – claro, preservando o pagamento de juros da dívida pública. Esse debate levanta uma questão: entre PT e PSDB, há uma disputa por modelo de Estado? Mas, na opinião do economista Paulo Nogueira Batista Jr., professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), a diferença nesse aspecto é pequena. “O debate econômico, mesmo no segundo turno, tem sido bastante genérico. Posso perceber diferenças mais de ênfase”, afirma. O professor acredita que o discurso do candidato Ajuste fiscal – Esforço do governo do PSDB para gastar menos possui um do que arrecada. tom mais conservador, que defende a centralidade do ajuste fiscal. Já Lula apontaria para uma política fiscal de ajuste mais gradual. “Num segundo mandato, as indicações predominantes são que a política de gestão das contas públicas será mais flexível do que foi no primeiro. A fase Palocci parece ter sido superada. Parece, porque nunca se sabe o que é eleição e o que é realmente governo. Porém, antevejo uma gestão mais flexível das contas públicas, como cenário mais provável”, aposta Paulo Nogueira.
PRIVATIZAÇÕES Em debate na TV Record, em 23 de outubro, Lula brincou, dizendo que o tucano pretende vender “até” o avião presidencial, em referência à promessa de Alckmin feita em debate na TV Bandeirantes, dia 8 do mesmo mês. Para Paulo Nogueira, entretanto, esse debate sobre privatizações é um tanto vazio. “As estatais que não foram privatizadas são
Mesmo com relação a futuras privatizações, a diferença entre os candidatos é pequena. Estatais que restam, como o Banco do Brasil, são todas estratégicas
de caráter estratégico: Banco do Brasil, Caixa Econômica e Petrobras, sobretudo. Nenhum dos dois privatizaria isso. A Petrobras está sendo muito bem sucedida e o governo federal não pode abrir mão de seus bancos mais importantes, pois cumprem um papel que os privados não cumprem”, explica. O professor também destaca que a situação das contas públicas brasileira é melhor hoje que nos anos de 1990. Nos governos anteriores, as privatizações foram utilizadas como política fiscal. “Na prática, venderam grande parte das empresas estatais, e a dívida pública, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), quase dobrou entre 1994 e 2002. No governo Lula, não houve privatizações e a dívida pública diminuiu um pouco. Isso mostra que para administrar a dívida nem sempre é necessário vender ativos públicos”, esclarece. Em relação a uma eventual reforma da Previdência, os dois candidatos coincidem ao evitar o tema, na opinião de Paulo Nogueira. “É um assunto que não dá voto, mas noto uma diferença positiva no posicionamento de Lula em comparação com o início de seu primeiro governo, quando ele condicionou a retomada do crescimento a certas reformas politicamente complicadas, especialmente a previdenciária e a tributária. Ele gastou um capital político enorme. Lembro-me de pessoas importantes do governo falando que, com a aprovação da reforma previdenciária, as taxas de juro poderiam cair. Ficava pasmo, porque não tem nada a ver uma coisa com a outra. Agora, Lula vem dizendo que é possível crescer mais, mesmo sem as reformas”, avalia .
COMÉRCIO EXTERNO Paulo Passarinho, coordenador geral do Sindicato dos Economistas do Estado do Rio de Janeiro (Sindecon), coloca em segundo plano as diferenças que Lula procura demarcar com Alckmin em relação ao enfoque do comércio externo. O presidente declara que seu governo estreitou
as relações do Brasil com os países do Sul, os mais pobres, enquanto o tucano seria mais submisso aos Estados Unidos e à União Européia. “Com relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o Lula tem uma posição diferente. Mas a própria estratégia dos Estados Unidos, sob a administração Bush, foi alterada. Ele é mais sensível às pressões internas de seus agricultores que sofreriam os impactos da abertura de mercado”, relativiza. Para o economista, o maior enfoque de Lula na relação Sul-Sul também é conjuntural. “A grande novidade no comércio internacional é a China. Nesse sentido, não me parece existir muita diferença entre o Alckmin e o Lula, já que ambos reconhecem a importância de ampliar as exportações para esse mercado que hoje é o mais dinâmico do mundo. As diferenças maiores estão no campo diplomático, não no comercial”, completa o sindicalista. LÓGICA ELEITORAL
Os discursos utilizados pelos candidatos nesse segundo turno obedecem muito mais à lógica eleitoral, avalia Paulo Passarinho, coordenador geral do Sindicato dos Economistas do Estado do Rio de Janeiro (Sindecon). “A rigor, tanto Lula quanto Alckmin encarnam o projeto político dos liberais. Isso não significa que sejam iguais, mas ambos estão comprometidos com o tripé macroeconômico que garante as condições de governabilidade dentro do modelo liberal: superavit primário elevado (para garantir os compromissos firmados com o mercado), câmbio flutuante (precondição para a abertura financeira do país) e juros altos (para manter a rentabilidade dos especuladores)”, analisa. Para o economista, não adianta Lula declarar intenções distintas de Alckmin, se não alterar o cerne da política econômica, pois esta tem uma série de implicações que vão da geração de empregos até o incentivo às políticas setoriais, como reforma agrária, educação e saúde.
ENTREVISTA
Entre Lula e Alckmin, não há como hesitar, diz Comblin “A luta contra a força do capital é de longo prazo, deve ser planejada e perseguida com constância e perseverança”, receita o padre José Comblin, para quem a tarefa atual é derrotar a direita cristalizada na candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB). Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que, no caso de um segundo mandato de Lula, este pode se aproximar mais dos movimentos sociais e ajudá-los a se desenvolver. Brasil de Fato – Se reeleger Lula é impor uma derrota à direita e se, ao contrário, a vitória de Alckmin seria uma derrota dos trabalhadores, o segundo turno coloca em movimento a luta de classes? José Comblin – Alckmin representa a elite tradicional, todos os que são contrários ao movimentos populares, aqueles que mantiveram o povo brasileiro na miséria durante séculos e identificam o Brasil com seus próprios interesses. Se ganhar Alckmin, ganhará Fernando Henrique e a política de vender o país a preço de banana. Inclusive, poderiam suprimir as pequenas vantagens que Lula deu para a população pobre. BF – Qual o peso que os movimentos sociais têm nesse segundo turno? Comblin – O resultado está praticamente decidido. A questão é como influir no próximo mandato. No primeiro, Lula não fez muito para promover os movimentos populares e procurou freá-los. Num segundo mandato, já que não pode ter o terceiro, o presidente pode sentir-se mais livre. Seu desafio será desenvolver os movimentos. Estes estão ainda fracos para um país desse tamanho. É tarefa de governo, ajudar, suscitar e multiplicar apoio
para que as organizações populares se desenvolvam e se multipliquem. Assim, em 2010 poderá haver uma força popular muito melhor e mais organizada. BF – O apoio que os movimentos deram para o Lula no segundo turno é positivo ou negativo em um conjuntura de segundo mandato? Comblin – Não se sabe. Lula – parece que por temperamento – evita o confronto. Se continuar com isso e fizer uma aliança firme com o PMDB e fizer jogo de concessão de favores, é claro que vamos perder.
É tarefa de governo, ajudar, suscitar e multiplicar apoio para que as organizações populares se desenvolvam e se multipliquem
BF – O Psol pode cumprir esse papel? Comblin – Tenho a impressão de que é um movimento mais para dividir do que para unir. Tem uma maneira muito agressiva de se apresentar, sobretudo a Heloísa Helena. Tenho a impressão de que vai multiplicar seus inimigos. BF – O que a esquerda organizada pode esperar dos próximos anos? Comblin – A luta contra a força do capital é de longo prazo, deve ser planejada e perseguida com constância e perseverança. Hoje em dia, não se imagina uma revolução que transforme toda a sociedade de uma vez. O capital está disperso no mundo. Mas tem que começar, perdemos os últimos quatro anos porque a prioridade foi a reeleição. Quem sabe agora seja possível assumir uma atitude mais decidida de confronto. O governo precisa desistir de adotar políticas neoliberais, é o Estado que deve tomar iniciativas econômicas. (LB) Paulo Pereira Lima
BF – O que a esquerda deve aprender com a trajetória de Lula e do PT nesses últimos 26 anos? Comblin – Não se pode contar com a Rede Globo. Faz anos e anos que ela luta contra Lula. O episódio das fotos do dinheiro foi outra manobra dela. Não dá para esperar que a Globo possa, um dia, apoiar os interesses populares. Isso é ilusão. Devemos estar sempre contra ela. É bom saber identificar qual é o inimigo. A segunda coisa: o PT não tem direção e orientação firmes. Parecia ter personalidades fortes e qualificadas, mas não tinha. Então, as pessoas que estão à frente fazem o jogo pessoal. Não sei se o PT, agora, tem reserva de pessoas para substituí-las.
Quem é José Comblin, 83 anos, nasceu em Bruxelas (Bélgica). Foi ordenado sacerdote em 1947. Trabalha na América Latina desde 1958 e foi um dos assessores de Dom Hélder Câmara. Teólogo de larga experiência, lecionou no Equador, Chile e Brasil. Reside há duas décadas em Bayeux, na Paraíba.
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INTERNACIONAL CONGO
Transnacionais bloqueiam democracia Igor Ojeda da Redação
Judith Rose
Após 40 anos sem eleições presidenciais, resultado de pleito histórico vai ter pouco impacto na vida de congoleses
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Congoleses fazem fila para votar durante o primeiro turno das eleições presidenciais que ocorreram em 30 de julho; as primeiras plenamente democráticas no país desde a sua independência, em 1960
diferenciam. “Nenhum partido representa propostas da esquerda ou da direita, como repartição dos bens ou colaboração com os ex-colonialistas. Todos são bem nacionalistas, mas na verdade colaboram com qualquer empresa ou qualquer poder estrangeiro que dê vantagem para eles”, analisa. Com relação à administração das riquezas do país, nada deverá ser alterado. Segundo José Gonçalves, professor de História da África da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), ambos os candidatos defendem a “globalização, a
ANSEIO POPULAR No entanto, para o congolês radicado no Brasil Munguele
Kiyungu Jean-Baptiste, presidente da Associação Família Amani, entidade que reúne os imigrantes africanos em São Paulo, o projeto do atual presidente da RDC se aproxima dos interesses da maioria de sua população. “Seu programa de governo, mesmo que não seja bem traçado, se preocupa com aquilo que é o desejo do seu povo, de reconstruir o país depois de 35 anos da ditadura, que reduziu o país a quase nada”, diz. Candidato pelo Partido do Povo para a Reconstrução e a Democracia (PPRD), Kabila é filho de
FRANÇA
Todos cidadãos. Uns mais que os outros Fernanda Campagnucci de Lyon (França)
BAYER, A FINANCIADORA O principal alvo das corporações é o tântalo, metal utilizado como componente de equipamentos eletrônicos, principalmente os telefones celulares. De acordo com Werner, que esteve na RDC por duas vezes, a maior importadora do mundo desse minério é a empresa H.C. Starck, subsidiária da alemã Bayer, conhecida por fabricar o analgésico Aspirina, entre outros medicamentos. “Essa foi a maior financiadora da guerra. Eles compram o tântalo para processá-lo e vendê-lo às empresas de celular”, afirma. Na página da internet da Bayer, esta informa que sua subsidiária é responsável por mais de 50% da produção mundial do pó desse metal. Mas as minas da República Democrática do Congo também comportam a exploração legal dos recursos, através dos generosos contratos com o governo. É por essa razão, explica Werner, que a União Européia (UE) se empenha para assegurar as eleições no país. “Os interesses da UE, principalmente dos franceses e dos alemães, são bem claros. Eles querem, por meio do controle ‘democrático’ do Congo, manter o acesso às minas. É muito óbvio que eles apóiam o Kabila”, diz. Kabila, por sua vez, facilita as privatizações e o acesso às empresas européias não só aos minérios, mas também a projetos financiados pelo Banco Mundial. Enquanto isso, muito pouco é revertido para o desenvolvimento de um país destruído pelas guerras e pelos 32 anos de ditadura de Mobutu Sese Seko (1965-1996). Na opinião do jornalista austríaco, os programas políticos dos dois candidatos quase não se
entrada de capitais. Não propõem nada de novo. Os países da África não estão em condições atualmente de propor esquemas muito nacionalistas. Não têm capital, não têm pessoal”, diz. Devido à falta desse debate de fundo, Gonçalves vê semelhanças entre a campanha eleitoral congolesa e a brasileira: “Disputam para ver quem é mais ético, quem tem o time mais competente”.
“E se todo mundo votasse?” Essa questão, aparentemente um fundamento da democracia, se colocou para os franceses, entre 16 e 22 de outubro, durante a terceira edição do referendo popular “Votação Cidadã”, realizada pela Liga dos Direitos Humanos (LDH) e outras 60 organizações. A pergunta pode parecer óbvia em um país democrático. Mas não é na França, onde os residentes estrangeiros de fora da União Européia não têm direito de votar nas eleições locais. Há pessoas que vivem há mais de 30 anos em bairros populares e não podem se expressar sobre questões essenciais como a política de moradia ou a educação de seus bairros. Isso não pode acontecer em um país que se diz republicano. “Não é essa a democracia que queremos”, diz Saïd Bouziri, coordenador nacional da campanha. Setenta e seis mil pessoas votaram neste ano, mais que o dobro da primeira edição, em 2002. O referendo simbólico foi realizado nas subprefeituras, universidades e centros comunitarios de 128 cidades. A novidade, desta vez, foi a participação da Unef, o sindicato nacional dos estudantes, que instalou 93 urnas em mais de 40 universidades. Salomé Merlo, diretora da Unef responsável pela votação, ressalta: “Depois da campanha contra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE), a adesão de estudantes à Unef dobrou. Contamos agora com um engajamento maior dos estudantes nas questões nacionais”.
PELA PARTICIPAÇÃO O resultado, ainda parcial, revela que 91,2% dos votantes são a favor da participação dos estran-
Fotos: Cyrus Ashfar
o mesmo dia em que mais de 125 milhões de brasileiros decidirão quem ocupará a cadeira de presidente da República pelos próximos quatro anos, cerca de 30 milhões de congoleses também irão às urnas no 2º turno das primeiras eleições da República Democrática do Congo (RDC) em mais de 40 anos. O atual presidente, Joseph Kabila, é o grande favorito. No 1º turno, realizado em 30 de julho, conquistou 44,81% dos votos, enquanto seu adversário, Jean-Pierre Bemba, obteve 20,03%. Seja qual for o resultado, no entanto, a instabilidade do país fará com que o vencedor do pleito dificilmente consiga iniciar um processo de transformação social no terceiro maior país da África, onde 70% da população de 60 milhões vive abaixo da linha de pobreza e a expectativa de vida é de 51 anos. Na nação centro-africana encontra-se uma das maiores reservas de recursos minerais do mundo: ouro, diamante, cobre, cobalto, urânio, tântalo. Mas o que deveria ser uma bênção é a principal razão de sua desgraça. A disputa por esses recursos levou o país a uma grande guerra civil entre 1998 e 2003, que envolveu diversas nações vizinhas e causou 5 milhões de mortes. Mas, apesar de uma acordo entre o governo e grupos rebeldes ter posto um ponto final oficial no conflito, diariamente ainda ocorrem confrontos, principalmente no Leste do país, onde tropas da vizinha Ruanda fazem incursões ocasionais. Todos querem ter acesso às riquezas. E, segundo o jornalista austríaco Klaus Werner, co-autor de O livro negro das marcas, em entrevista ao Brasil de Fato, as principais culpadas por esta situação são as transnacionais estrangeiras que, ao comprarem ilegalmente tais materiais, financiam o tráfico de armas usadas nos enfrentamentos.
Laurent Kabila, que governou o país de 1997 a 2001 – quando foi assassinado numa tentativa de golpe – após liderar o movimento que derrubou Mobutu. De acordo com Munguele, o filho, que subiu ao poder após a morte do pai, herdou sua característica, “que o fazia inclusive ser chamado de Moisés pelo povo, como aquele que que veio para liderar a população e reconstruir a nação”. Seu oponente é filho de um rico empresário no Congo. Em meados da década de 1990, criou o Movimento de Libertação Congolês – transformado em partido político nesta eleição –, com o objetivo de fazer oposição à Laurent. Com o acordo firmado entre o governo de Joseph Kabila e os grupos rebeldes em dezembro de 2002, Bemba se tornou um dos quatro vice-presidentes do governo de transição que vigorará até que o novo presidente eleito tome posse. Segundo Munguele, o ex-líder rebelde, apesar de receber suporte de Uganda, sustenta-se na proposta de libertação do país das mãos dos estrangeiros. Contra ele pesa o fato de grande parte dos ex-dirigentes do partido único da ditadura de Mobutu o apoiarem. “Alguns têm o receio que esse ‘mobutismo’ possa voltar”, explica. Após a divulgação do novo presidente eleito, o temor é que ocorra uma onda de violência no país. Tanto Kabila quanto Bemba controlam grupos armados. Após o anúncio do resultado do 1º turno, em 20 de agosto, as duas forças se enfrentaram, causando a morte de 23 pessoas e obrigando a intervenção de tropas da Organização das Nações Unidas e da UE.
Franceses residentes estrangeiros participam de referendo pela conquista do direito decidir sobre questões essênciais
geiros residentes na França há pelo menos três anos, nas eleições locais – municipais, departamentais e regionais. Uma carta com o resultado final vai ser enviada ao presidente Jacques Chirac e aos candidatos das eleições presidenciais de 2007. “É preciso que os partidos políticos levem essa proposta em conta em seus programas para que ela entre em vigor já nas eleiçoes municipais de 2008”, explica Bouziri. Mireille Verchère, professora aposentada, participa pela terceira vez do referendo e não se conforma com a falta de vontade política sobre o problema: “Os estrangeiros que residem na França são cidadãos e pagam impostos como nós. Votar é um direito inalienável, eles não podem ser privados disso. É um
absurdo que não levem esse projeto para frente”. A promessa é mesmo antiga. Quando François Mitterrand foi eleito, em 1981, o direito ao voto aos residentes estrangeiros já constava em seu projeto de governo. Em 1992, ainda no governo Mitterrand, o direito ao voto de estrangeiros foi concedido apenas aos cidadãos da comunidade européia. Em 2000, a Assembléia Nacional aprovou um projeto de lei que amplia esse direito a todos os estrangeiros residentes. O projeto, no entanto, permanece empacado no Senado, que se recusa a examinar a lei até hoje.
ATRASO Entre os 25 membros da União Européia, 17 países têm legislação
mais avançada que a França. Irlanda, Suécia, Dinamarca e Holanda integram a lista das 12 nações onde um residente de qualquer nacionalidade pode votar. No dia 8, a Bélgica realizou as primeiras eleições municipais com o voto dos estrangeiros. Reino Unido, Espanha, Portugal, Malta e República Tcheca também permitem o voto, embora com restrições. Além da França, Alemanha, Itália, Chipre, Áustria, Grécia, Polônia e Letônia se recusam a conceder o direito aos residentes. “Se quisermos construir uma maneira de vivermos juntos, não podemos aceitar que essas pessoas não possam votar. Não é possível que a França dos direitos humanos seja a última a fazê-lo”, afirma Bouziri.
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AMÉRICA LATINA
A voz popular contra o livrecomércio
Verena Glass
COSTA RICA
Mesmo sob ameaças de repressão, 150 mil manifestantes protestam contra acordo com os EUA da Redação
da República em 2002 pelo Partido Libertação Nacional, o mesmo do atual presidente. Araya, que esteve presente nas mobilizações, considera que o acordo pode alterar o sistema vigente na Costa Rica: “Vamos passar da democracia para a ‘corporatocracia’”, disse à BBC Mundo em meio ao som dos fogos e tambores que acompanhavam a marcha na capital.
P
ara barrar a ratificação do Acordo de Livre-Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês), cerca de 150 mil manifestantes paralisaram as suas atividades e foram às ruas das principais cidades da Costa Rica, no dia 23. O acordo, idealizado por Washington, tem como seu maior defensor na Costa Rica o presidente da República, Oscar Arias, recentemente eleito. A 1ª Grande Jornada de Luta Contra o TLC contou com mobilizações na capital San José, onde aproximadamente 20 mil pessoas marcharam pacificamente e também em outras cidades como Cañas, Nicoya e San Carlos, no Sul do país, assim como em San Isidro del General, no Norte. Esse tratado de livre-comércio (TLC) foi assinado na capital estadunidense, Washington, em 24 de janeiro de 2004 pelos países centroamericanos (Nicarágua, Guatemala, El Salvador e Honduras) e a República Dominicana. O presidente Oscar Arias pretende colocar o TLC em votação na Assembléia Legislativa, na qual tem ampla maioria, em dezembro próximo. Os entusiastas do TLC afirmam que sua implementação atrairá um maior número de investimentos, gerando bons empregos para os trabalhadores costarriquenhos. Não é o que pensa Rolando Araya, candidato à presidente
IGUALDADE ENTRE DESIGUAIS Se aprovado o acordo, os produtos estadunidenses “competirão” livremente com os produtos centro-americanos e dominicanos. O exemplo do Nafta (TLC que envolve México, EUA e Canadá) tem servido de argumento aos manifestantes anti-Cafta: “O México tem 12 anos de TLC e está cada vez mais pobres. Os gringos estão construindo um muro para conter os trabalhadores mexicanos que emigram porque não têm o que fazer em seu país”, disse, também à BBC Mundo, a contadora Xinia Ramírez, na marcha do último dia 23. Na Costa Rica, diferentemente da maioria dos países subdesenvolvidos da América Latina, o setor estatal possui uma forte influência na economia. Os opositores do TLC acreditam que sua aprovação representa o início da venda do patrimônio público, sobretudo o Instituto Costarriquenho de Eletricidade, responsável pelas telecomunicações e energia, e o Instituto Nacional de Seguros.
A luta contra os Tratados de Livre Comércio (TLCs) é antiga. Em 2004, milhares de pessoas participaram de uma marcha contra esses tratados durante o 1º Fórum Social das Américas, em Quito, no Equador
Além desse risco à soberania nacional, os opositores apontam mudanças nos direitos da propriedade intelectual, previstas nos termos do Cafta, e a entrada de empresas estadunidenses subsidiadas, levando à ruína camponeses e pequenos industriais.
REPRESSÃO FRACASSA Ao saber das mobilizações programadas para os dias 23 e 24 de outubro, o governo Arias tratou de ameaçar os eventuais manifestantes, afirmando que os funcionários públicos que paralisassem suas atividades para comparecer à jornada de lutas sofreriam sanções salariais.
O presidente, que reiterou a possibilidade de sanções em rede nacional de televisão, destacou seus ministros para fazerem declarações à imprensa a fim de desencorajar os cidadãos contrários ao TLC. O ministro da Educação, Leonardo Garnier, ordenou aos diretores dos colégios públicos que fizessem uma lista com o nome dos professores ausentes nos dias de mobilização. Já o ministro Rodrigo Arias, irmão do presidente, afirmou que “o TLC está em estudo no Congresso, é lá que ele será aprovado ou rechaçado, não nas ruas.” Mesmo com a investida do governo, o primeiro dia da jornada
teve uma boa adesão: atividades foram paralisadas em escolas de todos os níveis, bem como em instituições de saúde, que garantiram os atendimentos de emergência. Para Albinio Vargas, secretário-geral da Associação Nacional de Empregados Públicos, maior entidade sindical do país, os atos dos dias 23 e 24 são apenas uma primeira etapa de uma luta maior. “Esta não é a batalha final contra o TLC, mas sim o começo das grandes jornadas: é um ensaio geral do que virá nos primeiros meses de 2007”, previu o dirigente, que não descarta futuras reações repressivas por parte do Estado.
VENEZUELA
Evo repassa terra a camponeses
Trabalhadores enfrentam a Coca-Cola
Rosa Rojas de La Paz (Bolívia) Como parte de sua revolução agrária mecanizada, o presidente da Bolívia, Evo Morales, outorgou 16 mil hectares na Província de Guarayos de Santa Cruz a 300 famílias da Comunidade de Povos Unidos, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Além disso, o governo repassou-lhes quatro tratores e outros equipamentos agrícolas – que inicialmente seriam entregues por meio de crédito – para que possam trabalhar. O presidente sublinhou que respeitará as terras produtivas, mas enfatizou que serão revertidas ao Estado e distribuídas entre indígenas e trabalhadores rurais as terras monopolizadas pelos latifundiários, que “aproveitam o poder político, o poder econômico, às vezes de forma ditatorial, controlam milhares de hectares e querem terras somente para negociar, hipotecar e vender, sem trabalhar”, discursou. Apesar da outorga, integrantes da Assembléia do Povo Guarani levantaram hoje o bloqueio iniciado ontem – e o retomarão na próxima segunda-feira, na estrada de Santa Cruz-Camiri – exigindo que o Congresso aprove as modificações e a lei do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra) para a recondução comunitária da distribuição de terras. Com a mesma demanda, a Confederação dos Povos Indígenas do Oriente da Bolívia (Cidob) convocou uma marcha nacional rumo ao Congresso que se iniciará na próxima quarta-feira (31 de outubro).
Sebastian Hacher/Centro de Mídia Independente
BOLÍVIA
Juno Gomez de Caracas (Venezuela)
Evo: 16 mil hectares para famílias do MST boliviano
Adolfo Cháves, dirigente da organização, conversou com o vice-presidente da República, Álvaro Garcia Linera, antes que o funcionário se dirigisse à Brigada Parlamentar Cruceña, onde informou que buscará entrar em consenso com os empresários agropecuários nos quatro pontos em que há discordância para a aprovação das modificações na lei do Inra. Uma das questões centrais é o procedimento para a expropriação e reversão ao Estado de latifúndios improdutivos, informou a rádio Erbol.
REGULARIZAÇÃO Garcia Linera negociou no início da semana com os empresários agropecuários, os parlamentares e o prefeito de Santa Cruz – sem a presença de dirigentes dos setores sociais, conforme esses se queixaram – a ampliação para mais sete anos para a regularização das pro-
priedades de terras, aprovada pelo Congresso no dia 18. Nessa data, vencia o prazo de dez anos que a lei do Inra havia fixado para a regularização das terras no país. Como o órgão avançou somente 16% nesse processo, o governo enviou ao Congresso uma proposta de modificação a essa lei, que a oposição bloqueou. Diante do vencimento do prazo da lei, Garcia Linera negociou a aprovação de uma lei acanhada, com um só artigo, para ampliar mais sete anos o prazo para o saneamento, o que provocou o repúdio de algumas organizações sociais indígenas e camponesas, como a Cidob. Apesar da pressa dos legisladores em aprovarem a lei no dia 18, até essa noite não havia sido promulgada pelo presidente Evo Morales, que tem um prazo de dez dias para fazê-lo, confirmou uma fonte oficial. (Prensa-Latina – www.prensa-latina.com)
A empresa estadunidense CocaCola, já dona de uma extensa ficha de denúncias de práticas ilegais e desrespeito aos trabalhadores na América Latina, está enfrentando forte oposição de seus funcionários, agora, na Venezuela. Centenas de trabalhadores e ex-trabalhadores da transnacional mexicana Coca-Cola Femsa bloquearam o acesso à plantas de engarrafamento em Caracas para exigir o pagamento de indenizações a funcionários demitidos sem justa causa. A mobilização conta com o apoio de deputados e pede ao governo que exproprie a transnacional se a empresa não cumprir suas obrigações trabalhistas. Os trabalhadores alertam que os portões das fábricas continuarão trancados com cadeados até que o impasse seja solucionado. Segundo o sindicato, a dívida da empresa com 10 mil ex-funcionários pode chegar a 2,8 milhões de dólares. “Mais de 7 mil companheiros nos apóiam porque também sofrem com as precariedades das condições de trabalho impostas pela empresa”, disse Victor Alvarado Curado, demitido pela Coca-Cola. A transnacional não reconhece as dívidas trabalhistas e afirma que o bloqueio atenta “contra a segurança jurídica e econômica do país”. A manifestação, no entanto, é apoiada por uma comissão legislativa. Em
entrevista ao canal de televisão estatal, a deputada Iris Varela afirmou que se a empresa não honrar o pagamento das dívidas “deve ser expropriada”.
VIOLÊNCIA E EXPLORAÇÃO O conflito com os venezuelanos aumenta o histórico de denúncias de desrespeito à legislação e abuso de poder contra a transnacional. Na Colômbia, por exemplo, a CocaCola é acusada pelo sindicato local de arquitetar o assassinato de oito líderes sindicais, mortos por grupos paramilitares. Também pesam contra a empresa críticas contra sua estratégia de se apropriar dos recursos hídricos. Um relatório divulgado no início do ano pela Organização Não Governamental (ONG) War on Want denuncia que a empresa recebe incentivos e isenções no México para privatizar os aqüíferos do Estado de Chiapas, rico em água. Não por acaso o atual presidente Vicente Fox, em fim de mandato, foi o principal executivo da empresa no país. E no Brasil, um laudo técnico do Departamento de Criminalística da Polícia Federal comprovou que a empresa usa folha de coca como matéria-prima na fabricação de um extrato vegetal usado em seu refrigerante de cola, como já publicou o Brasil de Fato. Tal procedimento contraria a legislação brasileira e a transnacional poderia ter o registro da Coca-Cola cassado. No entanto, nada foi feito.
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CULTURA
De 26 de outubro a 1º de novembro de 2006
Cultura, a isca predileta do capitalismo
Imagens Reprodução
LIVRO
No recém publicado Privatização da cultura, a taiwanesa Chin-tao Wu analisa a entrada das corporações no mundo das artes Dafne Melo da Redação
Q
uando chegou à Inglaterra em 1987 para iniciar seus estudos de História da Arte, a taiwanesa Chin-tao Wu se admirou com alguns dos direitos que já estavam naturalizados para os ingleses: acesso gratuito a bibliotecas, museus e galerias. Nove anos depois, viu pessoas serem impedidas de entrar na biblioteca da Universidade de Londres por não quererem ou não poderem pagar a taxa cobrada por dia de acesso. Fato simples de se entender quando visto à luz das transformações pelas quais passava o país na época: o fim da socialdemocracia e a consolidação do neoliberalismo. O caso é contado por Chin-tao em seu livro Privatização da cultura – a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80, recémlançado no Brasil e fruto de sua pesquisa na Universidade de Londres. Abordando especificamente o campo das artes plásticas e delimitando sua pesquisa aos EUA e Inglaterra, a autora mostra que – com a ascensão do neoliberalismo – o setor privado não apenas se apoderou das estatais economicamente estratégicas em áreas como energia, telefonia e transportes, mas também carimbou seu passaporte de entrada no mundo das artes. Desde a década de 1980, as corporações passaram de uma posição passiva de simples doadoras ocasionais, para agora se tornarem administradoras de museus e ga-
lerias, com participação ativa na formulação do discurso da cultura, “explorando o status social de que desfrutam as instituições culturais em nossa sociedade”, escreve Chin-tao.
MUDANÇAS Empresas criam fundações com fins culturais; investem em suas próprias coleções e exibem obras originais em suas sedes; para obter mais espaço na imprensa e se afirmarem como árbritos do bom gosto, criam premiações; altos executivos passam a ocupar assentos nos conselhos de museus, ou até mesmo a chefiá-los. Em Nova York, já em 1980, o Whitney Museum – apelidado pelo jornal The New York Times como “o McDonald’s do mundo dos museus” – tinha como vice-presidente o presidente da empresa de cosméticos Estée Lauder. Motivos para o interesse corporativo na área não faltam. Dentre eles, as políticas de incentivo fiscal, em que as empresas deduzem em seus tributos as doações e gastos em ações culturais. Tal prática, que ganhou sua versão brasileira (ver matéria abaixo), é vista por muitos como subsídio estatal para a ação cultural de corporações. Em seu livro, Chin-Tao revela que o governo de Margaret Thatcher, “impaciente demais para esperar os resultados do relaxamento tributário”, chegou a criar, em 1984, um programa de incentivo em dinheiro para os patronos corporativos. Uma das conseqüências mais nefastas dessa prática, assinala a autora, é tornar cada vez mais
A figura de Van Gogh foi usada em anúncio do banco ABN-AMRO, em Taiwan
promíscua a relação entre público e privado.
MAQUIAGEM Entretanto, uma das principais teses do livro é mostrar que o grande interesse das empresas é usar as artes como moeda de valor simbólico e material. Suas ações, no campo das artes, são inseridas dentro do contexto do marketing cultural, que visa agregar valor e status a determinada marca. Nessa lógica, vale o clichê de que mais importante do que ser, é parecer. “Ao patrocinar as instituições artísticas, as corporações se apresentam como tendo em comum com museus e galerias de arte um sistema humanista de valores, e assim revestem seus interesses particulares com um verniz moral universal”, escreve Chin-tao. Na mesma linha, a autora afirma que “o culto mitológico da personalidade artística e a forte associação entre arte de vanguarda e inovação nos paradigmas do modernismo oferecem ao mundo empresarial um instrumento valioso de projeção de uma imagem de si próprio como uma força progressista liberal”.
No Brasil, experiências semelhantes Quando soube que sua obra seria lançada no Brasil, Chin-tao Wu se questionou sobre o interesse que seu livro teria para os brasileiros. “Há duas semanas aqui, já tenho algumas respostas”, disse a autora em palestra de lançamento de seu livro, em São Paulo, em 18 de outubro. Chin-tao conta que após 30 horas de vôo de Taipei – capital de Taiwan – a São Paulo (SP), ainda “meio acordada, meio dormindo” foi à conferência de inauguração da 27º Bienal de Artes de São Paulo. Mostrando uma foto de um outdoor na Bienal acompanhado de dezenas de logotipos de empresas, a pesquisadora afirmou: “Nunca, em nenhum outro lugar do mundo, vi algo como isso”, mostrando visível espanto com a desfaçatez com que as empresas privadas deixaram suas marcas de forma escancarada já na entrada do evento. A contradição é que a maior parte do financiamento para a Bienal, é público. Chin-tao aponta que o fato não é raro: “Normalmente, o maior montante é público, mas é o setor privado que é destacado”. O fato mostra que, embora possua as suas especificidades, o processo de privatização da cultura no Brasil possui muito em comum com o observado nos EUA e Inglaterra, uma vez que “fala de um processo do qual também fazemos parte”, avalia Francisco Alambert, profes-
Não por acaso, as empresas que mais investem nas artes são aquelas cujos ramos de atuação são vistos com maus olhos pela opinião pública: indústria do petróleo, de bebidas alcoólicas e de tabaco. Nos EUA, as maiores doadoras são a Exxon e a Mobil, ambas petroleiras. Na Grã-Bretanha, a maior doadora é a British Petroleum (privatizada em 1987). Nos EUA, a Phillip Morris doou, só em 1990, 15 milhões de dólares para as artes. Nas declarações do próprio vice-presidente da empresa na época, isso não só ajudou a melhorar a imagem da empresa com o público, mas também com o mercado financeiro. Outra marca que se fez notar no campo do marketing cultural foi a Absolut Vodka. Além de apoio financeiro a instituições culturais, ela promove diferentes iniciativas, como pedir a mais de 400 personalidades para pintar sua garrafa, incluindo o artista plástico Andy Warhol. Como descrito em um material de divulgação da própria empresa, “quando a Absolut Vodka participa de um evento, as fronteiras entre arte, moda, relações
públicas e marketing se desfazem muito antes de ser servido o primeiro drinque”.
a obter 30% dos ingressos vendidos durante um ano. Essa participação foi de 26% em 2003, 14,5% em 2004 e caiu para 10% em 2005. Dentro de exemplos mais recentes, Alambert lembrou a tentativa de instalar no Rio de Janeiro uma filial do Museu Guggenheim. “É um investimento imperialista, feito em locais periféricos, que podem ser abandonados a qualquer momento. Temos que agradecer por não ter dado certo”. A seu ver, esse tipo de empreendimento se insere dentro de uma agenda de dominação econômica que também passa pela dominação das artes. “Karl Marx dizia que a cultura é a isca predileta do capitalismo”, finalizou o professor. Outro exemplo emblemático citado por Alambert foi o de Edemar Cid Ferreira, ex-controlador do falido Banco Santos, membro do conselho da Fundação Bienal São Paulo e dono da BrasilConnects, empresa responsável por mega-exibições artísticas. Ferreira foi preso em maio após acusação de obstruir as investigações da Justiça sobre a falência do banco.
em sua marca”. Na opinião de Luiz Carlos Moreira, autor e diretor de teatro do grupo Engenho Teatral, explica que a lei “parte de conceitos errados e, ao ser aplicada, gera ainda mais equívocos”. A seu ver, o que acontece hoje é que o Estado não financia o mercado das artes, mas apenas dá dinheiro para empresários, de outras áreas que não a cultural, para que coloquem em projetos culturais. Como conseqüência, a cultura passa a ser pensada dentro da estratégia de marketing cultural das empresas. Outra distorção, aponta Moreira, é o incentivo, via Lei Rouanet, a espetáculos de empresas estrangeiras. A corporação de maior atuação tem sido a CIE Brasil, de origem mexicana, que traz para o país espetáculos da Broadway (Nova York) e, mais recentemente, trouxe a companhia canadense Cirque du Soleil, que obteve R$ 9,4 milhões de incentivo e cujo preço médio dos ingressos foi de R$ 170. “São espetáculos feitos por empresas privadas em seus países de origem, com dinheiro privado, mas que aqui têm financiamento público”, revela. Em coerência com a política neoliberal, afirma Moreira, o Brasil, hoje, não tem política pública para a cultura. A seu ver, esta deveria partir de uma ação estatal que investisse estruturalmente na área, partindo do princípio de “arte como direito e necessidade, conforme constitucionalmente estabelecido” e não como mercadoria ou pior ainda, como valor a ser agregado aos departamentos de marketing das corporações. (DM)
ROUANET Obra de Roy Lichtenstein exposta na sede nova-iorquina da empresa Equitable
sor do Departamento de História da Universidade de São Paulo, que dividiu a mesa com a autora taiwanesa.
EFEITOS Acontecimento simbólico da era neoliberal no Brasil no campo da cultura foi o fechamento da Em-
brafilme em 1991, no governo Fernando Collor. Criada em 1969, a estatal foi responsável por produzir e distribuir filmes nacionais. Embora alvo de críticas, a experiência mostra que a ação estatal pode cumprir importante papel como agente interventor no mercado. Entre 1970 e 1980, o cinema nacional chegou
Outra experiência transportada para o Brasil foi o incentivo fiscal para empresas que investem em cultura, com a criação em 1991 da Lei Rouanet. Empresas e pessoas físicas podem utilizar a isenção, de até 100% do valor no Imposto de Renda, e investir em projetos culturais. Como afirma a própria página do Ministério da Cultura, “além da isenção fiscal, elas investem também em sua imagem institucional e
Título: Privatização da cultura - a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80 Autora: Chin-tao Wu Tradução: Paulo Cezar Castanheira Páginas: 408 Co-edição: Sesc e Boitempo Editorial Preço: R$ 56