Ano 4 • Número 194
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 16 a 22 de novembro de 2006
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Arquivo MST/PR
No dia 8, sem-terra ligados ao MST deixaram a área da Syngenta após oito meses de ocupação; no dia 13, voltaram, depois de a área ter sido desapropriada
EDITORIAL
Importante avanço na organização do povo
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rganizar o povo para exigir mudanças. Esse é o desafio dos movimentos sociais. E, nesse sentido, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) deu um importante passo em sua 5ª Plenária, realizada dia 11, com a participação de representantes de 25 entidades nacionais e regionais. Destacam-se duas avaliações. A primeira é que a reeleição de Lula foi uma clara demonstração de consciência política do povo brasileiro, que não se deixou enganar pela velha elite privatista e neoliberal, nem se deixou manipular pela tendenciosa mídia hegemônica. A segunda conclusão é a necessidade de organizar o povo e fazer a luta nas ruas. Vivemos um momento ímpar na história brasileira. Nunca tivemos um ambiente tão favorável para avançarmos na luta por um Brasil mais justo, soberano e solidário, com desenvolvimento econômico e social. Agora é preciso se preparar para as grandes mobilizações. E um primeiro passo é garantir a unidade e a autonomia dos movimentos sociais para fazer valer a vontade do povo expressa nas urnas. É preciso lutar pela soberania nacional e pela integração latino-americana, lutar pela anulação do leilão da Companhia Vale do Rio Doce – processo criminoso e ilegal que alienou esse estratégico patrimônio brasileiro –, lutar por uma reforma política democrática, que respeite a pluralidade partidária banindo a restritiva e autoritária cláusula de barreira. Os partidos têm de ser fortalecidos por meio da instituição da fidelidade partidária e do sistema de listas para a escolha dos candidatos. Além disso, é fundamental aprofundar os mecanismos de participação popular, como os plebiscitos, referendos, orçamento participativo, além do fortalecimento de conselhos, assembléias e conferências. O Brasil justo e soberano só será
possível com o fim da criminalização dos movimentos sociais e a plena liberdade de organização das entidades representativas da sociedade civil. Outra importante bandeira da CMS será a luta contra o criminoso monopólio da mídia, que impõe a agenda da elite neoliberal à imensa maioria do povo. É urgente a democratização dos meios de comunicação por meio da revisão das políticas da publicidade do governo federal e o fim da repressão às rádios comunitárias. É preciso multiplicar as concessões de canais de rádio e televisão com financiamento público para as entidades do movimento social, além da criação de canais públicos na televisão aberta. A CMS promete também não dar trégua à política econômica conservadora que impede o país de crescer e trilhar os caminhos da justiça social. Só com o crescimento acentuado da economia, no sentido do desenvolvimento sustentado, será possível gerar empregos e distribuir renda. Os movimentos cobram a efetivação da reforma agrária, da reforma urbana, a ampliação das políticas sociais com mais investimento em saúde e educação públicas. Precisamos de uma nova economia que permita a ampliação dos investimentos nas áreas sociais com políticas públicas universais voltadas à ruptura da desigualdade de raça, etnia, gênero e orientação sexual. Para ver implementado esse projeto é fundamental a consolidação da unidade dos movimentos sociais em torno de uma agenda de lutas que impulsione as mudanças no Brasil. Essa disposição da CMS com certeza dará novo ânimo à militância social. Cabe a todos nós e, em especial, às entidades que participam da CMS construir e participar de outras iniciativas e processos de mobilizações, como a Assembléia Popular, para reforçar a unidade e fortalecer a ação.
Desapropriação da Syngenta é conquista da reforma agrária Roberto Requião determina que área onde a transnacional realizava experimentos ilegais seja transformada em centro de agroecologia
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tendendo à reivindicação da Via Campesina, o governador do Paraná, Roberto Requião, assinou, no dia 13, um decreto para desapropriar uma área de 300 hectares da transnacional Syngenta. Os camponeses haviam ocupado a terra em março para denunciar experimentos ilegais com soja e
milho transgênicos. Na ocasião, o Ibama comprovou a irregularidade e multou a transnacional, fabricante de sementes e agrotóxicos, em R$ 1 milhão. A idéia, tanto do movimento quanto de Requião, é transformar a área em um centro de irradiação da agroecologia. Pág. 3 Ricardo Stuckert/PR
No dia 13, Lula e Chávez inauguraram ponte que liga o Brasil à Venezuela
Ações de Evo alimentam esperança dos bolivianos A população boliviana acredita em seu presidente, que, contrariando um histórico de governantes que prometiam muito e pouco faziam, nacionalizou o gás do país e adota políticas so-
ciais. Entrevistados pela reportagem do Brasil de Fato, trabalhadores de La Paz acreditam que se está construindo uma Bolívia mais justa e soberana. Pág. 6
O julgamento de um torturador da ditadura O Comandante do DOI-Codi, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como Comandante Tibiriçá, acusado por ex-presos políticos de ter mandado e praticado atos de tortura durante a ditadura militar, está sendo julgado em São Paulo. É a primeira vez que um torturador brasileiro é posto no banco dos réus. Pág. 4
Firmes na luta, povos de Oaxaca recebem apoio A Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) segue sem perder força, apesar da dura repressão. Nos dias 10 e 11, ela organizou seu primeiro congresso constitutivo, que serviu para dar estatuto ao novo movimento social. A APPO recebeu o apoio dos zapatistas e de Andrés Manuel López Obrador, que irá tomar posse de um governo rebelde. Pág. 7
No rio Madeira, a arte em defesa do meio ambiente Pág. 8
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DEBATE
CRÔNICA
Por um Brasil livre de transgênicos O princípio andrópico Gabriel B. Fernandes m 2004, o governo e suas lideranças no Congresso trabalharam duro para derrubar seu próprio Projeto de Lei (PL) de biossegurança e moldá-lo aos interesses do agronegócio. A pressão foi tamanha, que quando o PL voltou do Senado para o segundo turno de votação na Câmara, muitos deputados do PT e da base do governo mudaram de lado e votaram a favor da atual lei pró-transgênicos. Essa guinada, somada a várias outras medidas do governo e constantes denúncias de corrupção, só fez crescer a desilusão com o rumo conservador que o governo assumira. Conservador inclusive na forma de fazer política, que é talvez onde se deveria esperar a principal inovação desse governo. A regulamentação da Lei de Biossegurança levou praticamente um ano para ficar pronta. Com isso, no final de 2005, veio a disputa pelo processo de indicação dos membros para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Ambas as etapas foram conflituosas, mas mesmo sob um marco legal desfavorável, a ação organizada da sociedade civil permitiu algumas conquistas, entre elas, a obrigatoriedade de que todos os membros da CTNBio assinem uma declaração de conflito de interesses explicitando seus possíveis envolvimentos com os processos a serem analisados e/ou as empresas proponentes; a exigência de quórum de 2/3 de votos favoráveis da comissão para liberação comercial de transgênicos; o aumento da transparência dos atos da CTNBio; a representação na CTNBio de cientistas indicados pela sociedade civil; e a possibilidade de a sociedade convocar audiências públicas nos casos de liberação comercial. Do ponto de vista prático, a inação do governo tem favorecido a multiplicação dos plantios ilegais de transgênicos. Além do contrabando de países vizinhos, plantios experimentais e áreas demonstrativas também já provaram ser fonte de sementes nãoautorizadas. Soja e algodão transgênicos ganharam autorização após entrarem pelas portas dos fundos e driblarem qualquer estudo de impacto ambiental e à saúde. A sociedade deve estar atenta para impedir que isso se repita. No caso do milho transgênico, plantios e venda ilegal de sementes já foram comprovados no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. O Brasil é centro de diversidade do milho, e os agricultores familiares conservam, multiplicam e
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Soja e algodão transgênicos ganharam autorização após entrarem pelas portas dos fundos e driblarem qualquer estudo de impacto ambiental e à saúde selecionam centenas de variedades locais, tradicionais, crioulas, caboclas ou da paixão, conforme a localidade. São variedades que coevoluíram junto a seus agroecossitemas e que conferem à agricultura familiar, camponesa e ecológica autonomia frente aos pacotes tecnológicos e biotecnológicos da revolução verde. Toda essa diversidade está ameaçada pela expansão dos plantios ilegais e com possíveis novas liberações, uma vez que a poluição genética é inevitável. Na pauta da CTNBio há uma lista de oito pedidos de liberação comercial de transgênicos, entre eles seis de milho (Bayer, Syngenta e Monsanto). Os dossiês que as empresas apresentam à CTNBio “comprovando a segurança” de suas sementes contêm em sua maior parte cópias em inglês de documentos apresentados às autoridades dos Estados Unidos. Esses materiais não servem para orientar os membros da comissão a tomarem decisões, primeiro porque foram feitos para outro contexto, e segundo porque o processo de aprovação de transgênicos nos EUA não é exatamente um modelo que prime pelo rigor e pela isenção. O máximo que as empresas têm apresentado são pareceres contratados de professores de universidades públicas, como USP, Unesp e Unicamp, atestando que “as variedades transgênicas são similares às convencionais”. Esses pareceres são baseados em poucos estudos de campo, que duraram no máximo um ciclo agrícola, e avaliaram apenas alguns elementos do desempenho agronômico das variedades modificadas. Não há estudos de impacto ambiental.
O mesmo pode ser dito dos aspectos de saúde. As empresas não apresentam em seus dossiês estudos de testes de alimentação com ratos de laboratório. Isso indica que não há informação disponível na CTNBio que permita seus membros votarem a favor da liberação de qualquer organismo transgênico que está na pauta. Se isso acontecer, é que algo estranho se passou lá. Algo tão estranho quanto a reação indignada de alguns de seus membros à presença de uma procuradora da República nas reuniões da comissão. O que se faz na CTNBio que não pode ser acompanhado por uma servidora cuja missão é garantir transparência e o cumprimento da lei? Ataques contínuos também vêm sofrendo os pesquisadores que representam a sociedade civil e os membros pró-biossegurança da comissão. Dentro da CTNBio os biotecnólogos procuram se valer do discurso de autoridade para desqualificar as informações contraditórias. Do lado de fora, os setores pró-transgênicos contam com a virulência de veículos das elites, como O Estado de S.Paulo, Exame e outros. Onde está que não se manifesta nosso setor acadêmico que não compartilha da visão reducionista promovida pela transgenia? A sociedade precisa de uma ação mais politizada da ciência que não compactua com a ciência corporativa. A acolhida que Lula deu a Blairo Maggi (governador do Mato Grosso, latifundiário, defensor do agronégocio e dos transgênicos) em seu palanque foi indicativa do rumo que seu segundo mandato deve assumir. Do ponto de vista das indústrias de biotecnologia, o Brasil é o grande mercado mundial ainda a ser conquistado. Assim, é de se esperar que a pressão por novas liberações de transgênicos só cresça, que a multiplicação de plantios ilegais tenda a impactar a agrobiodiversidade e sirva de fonte de pressão para novos “fatos consumados” e que a rotulagem de alimentos continue a ser boicotada. Estão aí os principais elementos que deverão orientar as lutas por um Brasil mais sustentável e livre de transgênicos. Gabriel B. Fernandes é assessor técnico da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA)
Leonardo Boff A vida e a consciência pertencem ao universo, mais concretamente à nossa galáxia, à Via Láctea, ao sistema solar e ao planeta Terra. Para que tivessem surgido, foi preciso uma calibragem refinadíssima de todos os elementos, especialmente das assim chamadas constantes da natureza (velocidade da luz, as quatro energias fundamentais, a carga dos elétrons, as radiações atômicas, a curvatura do espaço-tempo, entre outras). Se assim não fosse, não estaríamos aqui escrevendo sobre isso. Refiro apenas um dado do último livro do astrofísico Stephen Hawing Uma nova história do tempo (2005): “Se a carga elétrica do elétron tivesse sido ligeiramente diferente, teria rompido o equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional nas estrelas e, ou elas teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio, ou então não teriam explodido. De uma maneira ou de outra a vida não poderia existir” (p.120). A vida pertence, pois, ao quadro geral. Para conferir alguma compreensão a essa refinada combinação de fatores, se criou a expressão “princípio andrópico” (que tem a ver com o homem). Por ele se procura responder a esta pergunta que naturalmente colocamos: por que as coisas são como são? A resposta só pode ser: se fosse diferente nós não estaríamos aqui. Respondendo assim não cairíamos no famoso antropocentrismo que afirma que as coisas só têm sentido quando ordenadas ao ser humano, feito centro de tudo, rei e rainha do universo?
Talvez o recurso ao acaso mostre apenas nossa incapacidade de entender ordens superiores e extremamente complexas, como a consciência Há esse risco. Por isso os cosmólogos distinguem o princípio andrópico forte e fraco. O forte diz: as condições iniciais e as constantes cosmológicas se organizaram de tal forma que, num dado momento da evolução, a vida e a inteligência deveriam necessariamente surgir. Esta compreensão favoreceria a centralidade do ser humano. O princípio andrópico fraco é mais cauteloso e afirma: as precondições iniciais e cosmológicas se articularam de tal forma que a vida e a inteligência poderiam surgir. Essa formulação deixa aberto o caminho da evolução que de mais a mais é regida pelo princípio da indeterminação de Heisenberg e pela autopoiesis de MaturanaVarela. Mas olhando para trás, para os bilhões de anos, constatamos que de fato assim ocorreu: há 3,8 bilhões de anos surgiu a vida e há uns 4 milhões de anos, a inteligência. Nisso não vai uma defesa do “desenho inteligente” ou da mão da providência divina. Apenas que o universo não é absurdo. Ele vem carregado de propósito. Há uma seta do tempo apontando para frente. Cabe ainda considerar que o cosmos está em gênese, se autoconstruindo. Cada ser mostra uma propensão inata a irromper, crescer e irradiar. O ser humano também. Apareceu no cenário quando 99,96% de tudo já estava pronto. Ele é expressão do impulso cósmico para formas mais complexas e altas de existência. Alguns aventam a idéia: mas não seria tudo puro acaso? O acaso existe como mostrou Jacques Monod. Mas ele não explica tudo. Bioquímicos comprovaram que para os aminoácidos e as 2 mil enzimas subjacentes à vida pudessem se aproximar, constituir uma cadeia ordenada e formar uma célula viva seriam necessários trilhões e trilhões de anos. Portanto mais tempo do que o universo e a Terra possuem. Talvez o recurso ao acaso mostre apenas nossa incapacidade de entender ordens superiores e extremamente complexas como a consciência, a inteligência, o afeto e o amor. Não seria melhor calarmos reverentes e respeitosos? Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.
Uma visão popular do Brasil e do mundo
EDITAL DE CONVOCAÇÃO Assembléia Geral Ordinária. A Sociedade Editorial Brasil de Fato, associação civil sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ 05.522.565/0001-52, com sede na Al. Eduardo Prado, 342, casas 1 e 2, Campos Elíseos, São Paulo – SP, CEP – 01218-010, representada por sua diretora presidente Suzana Angélica Paim Figueredo, no uso de suas atribuições que lhe confere o Estatuto Social, conforme o Art. 34, parágrafo 1º, vem através deste convocar todos os sócios a comparecer na sede da Sociedade, no endereço acima citado, aos dezesseis dias do mês de dezembro de 2006, às 10 horas (dez horas), com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados para deliberar sobre a seguinte pauta: Eleição da nova Diretoria e Conselho Fiscal da Sociedade Editorial Brasil de Fato. PS.: Fica aberto, a partir desta data, conforme art. 34, parágrafo 1º, aos sócios (as) apresentarem, em dez dias úteis, os nomes aos cargos eletivos. São Paulo, 16 de novembro de 2006.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • PréImpressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL BIOSSEGURANÇA
Transnacional da Suíça cometeu crime ambiental grave ao realizar testes com transgênicos em área de preservação
Fotos: Eduardo Rodrigues Ferreira
Paraná desapropria terra da Syngenta Irregularidades da empresa “Fica vedado o plantio de sementes de soja geneticamente modificada nas áreas de unidades de conservação e respectivas zonas de amortecimento, nas terras indígenas, nas áreas de proteção de mananciais de água efetiva ou potencialmente utilizáveis para o abastecimento público e nas áreas declaradas como prioritárias para a conservação da biodiversidade”, determina o artigo 34 da Lei de Biossegurança (nº 11.105/2005), ao convalidar registro provisório do artigo 11 da Lei 10.814, de 2003.
Luís Brasilino da Redação
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luta em defesa da biodiversidade conquistou uma de suas mais expressivas vitórias. Em um manifesto, 119 entidades – sendo 78 estrangeiras de 23 nações diferentes – cumprimentaram o governador do Paraná, Roberto Requião, que, no dia 13, assinou um decreto determinando a desapropriação de uma área de 300 hectares da Syngenta, em Santa Tereza do Oeste (no oeste paranaense). Em março, 600 militantes da Via Campesina ocuparam o terreno para denunciar o descumprimento de leis federais e estaduais por parte da transnacional suíça de agrotóxicos e transgênicos. A empresa, uma das maiores indústrias de sementes do mundo, realizava experimentos com milho e soja geneticamente modificados na zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu. Isso caracteriza crime grave contra a biossegurança, pois representa risco de contaminação genética. Além disso, o Parque do Iguaçu foi reconhecido, em 1986, como Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco (entidade da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). “(A punição) é uma das maiores conquistas da luta pela defesa da biodiversidade em todo o mundo”, revela Maria Rita Reis, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos. Ela destaca o caráter simbólico da decisão, já que “a existência de um campo de experimentação de transgênicos em uma zona de amortecimento é uma grande ameaça à biodiversidade”. Tanto é que, no dia anterior à ocupação da Via Campesina, 13 de março, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) havia multado a Syngenta em R$ 1 milhão pelo crime. À época, Marino Gonçalves, então superintendente do Ibama paranaense, revelou que o plantio da transnacional colocava em risco a produção orgânica na região, a saúde humana, animal e das plantas.
Por sua vez, o artigo 2 da Resolução nº 13/1990 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), determina como zona de amortecimento as áreas que ficarem a menos de dez quilômetros das unidades de conservação (como o Parque Nacional do Iguaçu). Resultado do lobby da Syngenta, o artigo 11 da Lei 10.814, de 2003, foi revogado graças à medida provisória 327, de 31 de outubro. A desapropriação da área em Santa Tereza do Oeste, entretanto, não está ameaçada. O governo estadual tem a prerrogativa de desapropriar qualquer terreno por interesse público. Nesse casso, o fez para preservar a biodiversidade. (LB) Na foto maior, o contraste entre a grama e o chão batido cercado por girassóis delimita a localização que os barracos das cem famílias sem-terra tiveram ao longo de oito meses de ocupação; na lousa da escola itinerante, a data: 2 de novembro
por uma aliança de forças populares no Estado do Paraná desde o final da década de 1990. “O objetivo é enfrentar a lógica do agronegócio e, ao mesmo tempo, construir propostas alternativas para uma agricultura mais soberana, que preserve a biodiversidade e as sementes crioulas”, revela. Baggio explica que esse movimento desembocou em jornadas de agroecologia que procuravam conciliar discussões políticas com mobilizações. Uma delas aconteceu em 2003, quando ocuparam uma fazenda da transnacional estadunidense Monsanto, em Ponta Grossa,
que cultivava ilegalmente milho transgênico. Mas foi em março, durante conferência sobre biodiversidade da ONU em Curitiba, que a mobilização começou a construir sua maior vitória, com a ocupação da área da Syngenta em Santa Tereza do Oeste. “Era uma afronta à soberania do país. Uma transnacional veio, se instalou numa área protegida e passou a ameaçar a biodiversidade. E ninguém tomava nenhuma medida”, recorda Baggio. A partir da ocupação, a Via Campesina promoveu uma campanha internacional e resistiu dentro
AÇÃO DE BASTIDORES A Syngenta não pagou e nem recorreu da multa. Para Maria Rita, a transnacional preferiu ignorar a determinação do Ibama e centrar seus esforços num trabalho de bastidores. “Com isso, conseguiram do governo federal uma medida provisória reduzindo os limites das zonas de amortecimento. Também houve uma campanha midiática; vários jornais criticaram a ocupação e a multa em editoriais”, afirma. Da cobertura da imprensa comercial, vale destacar matéria do jornal O Estado de S. Paulo de 3 de julho, onde a legislação brasileira de proteção ambiental é ridicularizada e a ocupação tratada de forma pitoresca. Com o título “A invasão que não chega ao fim”, o texto contém ameaças da transnacional de reduzir investimentos no Brasil e, em especial, no Paraná. Há ainda um outro texto no qual um executivo brasileiro relata as dificuldades de explicar a legislação do Brasil para seus superiores na matriz suíça.
OITO MESES DE LUTA Enquanto a Syngenta atuava nos bastidores, cerca de cem famílias permaneceram na área, que passou a se chamar Acampamento Terra Livre. Segundo Roberto Baggio, integrante da Via Campesina, a ocupação está inserida em um conjunto de políticas desenvolvidas
Depois de despejadas no dia 8, as famílias foram para a beira da estrada
Transnacional cometeu maior contaminação do mundo A Syngenta não é uma empresa qualquer. A transnacional da Suíça é simplesmente a responsável pelo maior caso de contaminação genética comprovado no mundo. A revista estadunidense Nature revelou em 31 de março que a corporação comercializou por quatro anos nos Estados Unidos um milho transgênico sem a autorização dos órgãos reguladores. Ou seja, sem qualquer pesquisa sobre os efeitos para a saúde humana e animal e para o meio ambiente. Nesse período, a variedade Bt10 era vendida misturada com a Bt11, essa sim aprovada. O produto foi exportado para diversos países, dentre eles alguns da União Européia, a África do Sul, a Argentina, o Canadá, o Japão e o Uruguai. O Brasil, que não permite a importação de milho transgênico, não deve ter sido afetado. De acordo com a Nature, as alterações genéticas ao grão foram realizadas de modo a conferir-lhe resistência ao antibiótico ampicilina. Isso significa que o gene modificado, ao entrar em contato com bactérias presentes no estômago de pessoas e animais, pode conferir ao organismo resistência a esse antibiótico, um dos mais utilizados atualmente. De acordo com a Syngenta, a mistura teria sido acidental. (LB)
da área. “Durante esses meses, pleiteávamos do poder público o fechamento desse empreendimento. E, por fim, fomos surpreendidos pelo governo do Estado do Paraná, que atendeu nossa reivindicação para servir ao interesse público”, relata. Segundo Baggio, por enquanto, a posse do terreno é das famílias
da Via Campesina que o ocupam. “Elas estão acampadas, trabalhando, resistindo, recuperando a biodiversidade e descontaminando o solo. No local, queremos instalar um campo de pesquisa e um banco de sementes crioulas para transformar o terreno no centro irradiador de uma matriz agroecológica”, esclarece.
MP do governo para atender corporação
caução. “Há um grande risco de contaminação. É o tipo de decisão que não deveria ter sido tomada sem consultar a população”, diz. Segundo a ambientalista, a medida provisória atende ao interesse de poucos, ignorando a maior parte da sociedade civil. “É muito grave. Com a avaliação caso a caso, cada vez que for liberado um novo transgênico, terá que ser editado um novo decreto (determinando o tamanho das zonas de amortecimento). E isso abre espaço para novas brigas e novas discussões. Por sua vez, o governo não consegue saber nem onde estão as plantações transgênicas, então como é que vai fiscalizar essas distâncias diferentes, para cada tipo de plantação, em cada uma das unidades de conservação? Ninguém diz como isso será feito”, observa. Roberto Baggio, integrante da Via Campesina, lamenta que, com a decisão, o governo federal, mais uma vez, atenda aos interesses do agronegócio. “Além de pedir que a sociedade brasileira banque os investimentos do setor, repassando bilhões de reais para investir no latifúndio, o governo premia o agronegócio no sentido de ampliar sua exploração sobre os recursos naturais”, protesta. Para Baggio, essa política do governo tem que ter um limite. “Esperamos que, daqui para a frente, ele se preocupe em defender os interesses maiores de nossa agricultura e da soberania. De todo modo, lamento que o governo atenda de forma tão rápida aos interesses do capital e das grandes transnacionais, que querem especular, ampliar a exploração e destruir todo o nosso meio ambiente sem recompensar a sociedade”, afirma. (LB)
Em 31 de outubro, o governo federal editou uma medida provisória (número 327/2006) sob medida para a transnacional Syngenta, da Suíça. A nova legislação determina que as zonas de amortecimento (área que circunda unidades de conservação ambiental), antes definidas em dez quilômetros, sejam definidas caso a caso. Isso favorece a corporação, que mantinha no município de Santa Tereza do Oeste (PR) experimentos com soja transgênica a quatro quilômetros do Parque Nacional do Iguaçu. A denúncia sobre a irregularidade foi feita, em março, pela Via Campesina. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) comprovou a irregularidade e multou a Syngenta em R$ 1 milhão. A MP reduz a zona de amortecimento para o plantio da soja transgênica para 500 metros – 20 vezes menos que a área original. Gabriela Vuolo, da campanha de engenharia genética do Greenpeace, explica que a zona de amortecimento de dez quilômetros havia sido definida pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), que “determina que toda atividade que possa ter impacto negativo sobre uma unidade de conservação tem que ser licenciada. Por isso, a atividade com transgênicos entrou nessa regra”.
CONSEQÜÊNCIAS Para Gabriela, a mudança feita pelo governo federal representa uma afronta ao princípio da pre-
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NACIONAL BRASIL NUNCA MAIS
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza
A ditadura no banco dos réus Em decisão inédita no país, militar acusado de tortura é processado Fotos: Arquivo Brasil de Fato
Vida dura A democracia burguesa é assim: o povo trabalhador elege seu presidente da República e, depois, precisa se mobilizar, demonstrar força e lutar muito para conquistar algumas migalhas, enquanto as elites dominantes, em reuniões tranqüilas e festivas, conseguem tudo o que querem para manter seus privilégios. O risco de ficar a ver navios é sempre do povo, mesmo quando elege seu presidente. Jabaculê global Emissora que funciona sem respeitar a Constituição Federal, a TV Globo tenta compensar a ilegalidade com forte atuação nas relações públicas. Tempos atrás organizou grupos de professores para visitar a produção do Jornal Nacional. Agora levou acadêmicos de várias universidades para acompanhar a filmagem da minissérie A Pedra do Reino, em Taperoá, na Paraíba. A emissora tenta comprar cúmplices.
Saúde privatizada Médicos do Instituto do Coração, hospital público mantido pelo Estado, criaram a Fundação Zerbini, para privatizar serviços médicos, atender pacientes ricos em ala VIP e receber doações e pagamentos por fora de seus salários. A fundação montou um hospital em Brasília e Aruba, diversificou suas atividades em empresas de coleta de lixo e produziu um rombo financeiro de R$ 245 milhões. Agora quer socorro do dinheiro público do BNDES. É muita picaretagem. Boca grande Conhecido por sua truculência e falta de educação, o secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, acaba de ser denunciado pelo Tribunal de Justiça pelo crime de desacato aos deputados paulistas. Se for condenado, Saulo pode pegar até três anos e meio de prisão. É claro que a “Justiça” brasileira não faz isso com os ricos e poderosos, mas seria muito engraçado ver o secretário cumprir pena junto com o pessoal do PCC. Bolso grande No momento em que setores da sociedade questionam a privatização da Companhia Vale do Rio Doce e fazem campanha por sua reestatização, a empresa financiou a campanha eleitoral de 46 deputados de vários partidos, inclusive do presidente da Câmara, Aldo Rebelo, do PCdoB, com uma doação de R$ 300 mil. Pelo menos 16 deputados federais do PT foram financiados pela Vale. Independência política é isso aí! Congresso particular Segundo informações do Tribunal Superior Eleitoral, publicadas no jornal Valor, do dia 10, além da Vale do Rio Doce várias empresas privadas financiaram grandes bancadas de deputados federais: Banco Itaú, 31; Grupo Gerdau, 27; Klabin, 26; Camargo Corrêa, 25; Construtora OAS, 23. Será que esses deputados conseguem atuar contra os interesses dessas empresas? Atraso social Toda vez que a ONU divulga o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a auto-estima do brasileiro fica lá embaixo, pois o país continua distante das potências mundiais e dos países emergentes nos quesitos sociais. O relatório divulgado na semana passada, referente ao ano de 2004, colocou o Brasil no 69º lugar do ranking, depois da Argentina (36º), Chile (38º), Uruguai (43º), Costa Rica (48º), Cuba (50º), México (53º) e Panamá (58º).
Imagens que marcaram a ditadura militar: o “suicídio” forjado do jornalista Vladimir Herzog e a repressão aos estudantes
Tatiana Merlino da Redação
grávida de sete meses foi surrada pelo coronel até perder a consciência. “Eu acordei toda urinada, com dificuldade para enxergar e respirar, de tão inchado que meu rosto estava”, conta. Em uma ação movida por Criméia juntamente com sua irmã, Maria Amélia de Almeida Teles, seu cunhado César Augusto Teles e os sobrinhos Janaína de Almeida Teles e Edson Luis de Almeida Teles, Ustra, conhecido na época como “Comandante Tibiriçá”, começou a ser julgado, dia 8, em São Paulo, pelo crime de tortura.
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o próximo 29 de dezembro, vai completar 34 anos que a ex-presa política Criméia de Almeida foi detida em São Paulo (SP) e levada para as dependências da Operação Bandeirantes (Oban), um dos mais temidos órgãos de repressão do regime militar. Do período em que esteve presa, a então militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se esqueceu de muitas coisas. Mas um momento que ficou marcado no corpo e na memória de Criméia foi o espancamento que sofreu de um homem forte e musculoso, que muitos anos depois veio a saber que era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, à época major. A mulher franzina e
DANOS MORAIS A decisão é inédita, pois pela primeira vez na história do país um funcionário público, e não o Estado, é acusado de tortura. A família
Teles move contra Ustra ação cível declaratória, na qual pede o reconhecimento de que houve danos morais e à integridade física dos integrantes da família. A ação não requer indenização pecuniária nem implica pena de multa ou prisão. “Essa ação é uma novidade no Brasil. Na Argentina, Chile e Uruguai, torturadores do período da ditadura estão sendo julgados, e aqui, pela primeira vez temos essa possibilidade”, afirma a historiadora Angela Mendes de Almeida, representante do Coletivo Contra a Tortura e do Observatório das Violências Policiais do Estado de São Paulo. “Apesar de vir com atraso, essa ação representa um passo adiante, pois passa a personalizar o ato da tortura”, completa. “Toda essa questão dos abusos não pode ficar
Anistia para quem? A ação movida pela família Teles reacendeu uma discussão importante, porém esquecida nos últimos anos: a interpretação da Lei de Anistia. De um lado, o advogado de defesa do coronel Brilhante Ustra – e oficiais das Forças Armadas que se manifestaram após a audiência do dia 8 – argumenta que a Lei de Anistia beneficiou não apenas os opositores do regime, mas também os funcionários dos governos militares, ainda que não tenham sido alvo de ações na Justiça. Já no entendimento do tribunal, o processo não fere a lei, já que tramita na esfera cível, que trata da responsabilidade sobre atos e direito sobre bens. Na interpretação do juiz, a Lei da Anistia impede apenas o julgamento em um juizado criminal, que apura responsabilidade sobre crimes. De acordo com o jurista Fábio Konder Comparato, a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi criada pelos militares “para absolvêlos, e não poderia continuar em vigor depois da redemocratização do país. Além disso, em 1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, que torna imprescritíveis os crimes de tortura”, diz ele, criticando a “impunidade de torturadores e assassinos”.
CRIMES CONEXOS Um ponto questionado por Comparato e defensores de direitos humanos é a interpretação oficial da lei dada pelos juristas da ditadura e aceita integralmente por significativas parcelas da sociedade no que se refere aos chamados crimes conexos. A lei garantiu anistia a todos os que cometeram crimes políticos ou conexos entre setembro de 1961 e agosto
Raul Kawamura
Novela conhecida Todos os anos o Brasil enfrenta a mesma lengalenga sobre o reajuste do salário mínimo: as centrais sindicais pedem um aumento maior e o governo acaba fechando com um aumento menor. O Congresso Nacional aproveita o apelo público do assunto, que interessa a mais de 25 milhões de trabalhadores, e faz a sua própria demagogia. Tudo indica que o mínimo vai para R$ 375, um reajuste de 7,14%, provavelmente a partir de 1º de março de 2007.
Monumento do Movimento Tortura Nunca Mais, em Recife
de 1979. Os atos praticados por militares, policiais ou autoridades nesse período foram considerados crimes conexos e, portanto, os que os cometeram passaram a ter direito à anistia. “Essa questão é muito grave e reflete um caráter covarde da esquerda, dos juristas e dos intelectuais, que aceitaram essa lei. Isso não podia acontecer. Eles tinham que ter proposto uma ação contra essa lei”, diz.
PIOR DAS AMÉRICAS O jurista lembra que o Brasil é o país mais atrasado da América Latina no que se refere à revisão e reparação histórica sobre a ditadura. Na Argentina, as “leis do perdão” foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-1983) são submetidos a julgamento. No Chile, tramita um pedido de revogação da Lei de Anistia, após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de condenar o Estado pela aplicação
dessa legislação no caso de um opositor assassinado durante a ditadura de Augusto Pinochet. “O Brasil também poderia fazer isso, mas nós temos que reconhecer nossos defeitos e ver que somos acomodados”, diz. Comparato e o também jurista Hélio Bicudo irão entrar com um processo contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos pedindo a revogação da Lei de Anistia. No que se refere ao pagamento de indenizações às vítimas da ditadura, o professor Comparato acredita que deveriam ser pagas pelos militares que atuaram de forma ilegal, que torturaram ou assassinaram pessoas durante o regime militar. “O Estado, ao pagar esses valores, assumiu que foram cometidas ilegalidades. O pagamento é justo, mas é dinheiro público. Os militares deveriam ser condenados a reembolsar o Estado”, conclui. (TM)
assim enterrada como está”, afirma o jurista Fábio Konder Comparato, advogado da família, que acredita que a Lei de Anistia foi criada para absolver os militares, e defende sua revogação (ver matéria abaixo)
ACUSAÇÃO DE TORTURA Na ação, os ex-presos políticos acusam o coronel Ustra de torturar prisioneiros, ao longo da década de 1970. A defesa do coronel afirma que ele não tem responsabilidade direta sobre os fatos relatados e que, seja qual for o juízo sobre esses fatos, os crimes cometidos durante o período foram anulados pela Lei da Anistia, de 1979. Na decisão, publicada em 27 de setembro, o juiz titular Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, considerou que o processo pode ter, como réu pessoa física, Ustra, e não necessariamente a União. E que, mesmo três décadas após os acontecimentos relatados pelos autores da ação e negados pelo militar, é possível haver punição, porque estão “em causa direitos humanos”. Para Santini, a ação é imprescritível. De setembro de 1970 a janeiro de 1974, período em que Ustra esteve no comando do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão ligado ao Exército, que congregava naquela época membros das polícias civis federais e estaduais, das polícias militares e do Exército, foram relatados 502 casos de tortura, muitos deles executados pelo próprio Comandante Tibiriçá. “Fui torturada pessoalmente pelo coronel. Foi ele também que determinou a invasão de minha casa, a prisão da minha irmã e de meus dois filhos, que tinham quatro e cinco anos”, afirmou Maria Amélia, que ficou 11 meses presa. “Meus filhos ficaram pelo menos dez dias na prisão”, revela. O DOI-Codi era o principal órgão de segurança empenhado no combate a opositores do regime militar. Em sua unidade paulista, ao menos 40 militantes foram mortos sob tortura de setembro de 1970 a janeiro de 1974. O jornalista Ivan de Seixas, uma das testemunhas do processo da família Teles, tinha 16 anos em 1971, quando foi preso com seu pai, Joaquim Alencar Seixas, que acabou morrendo na prisão, então sob comando de Ustra. Durante os seis anos que ficou preso, o militante viu muitos presos “desaparecerem” e testemunhou Ustra torturando muitas pessoas, entre eles o jornalista e militante do Partido Operário Comunista (POC) Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que depois de uma noite inteira de maus-tratos não resistiu às torturas e morreu.
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De 16 a 22 de novembro de 2006
NACIONAL MOBILIZAÇÃO
Após fortalecerem aliança no segundo turno das eleições, organizações querem sinalização do governo de que os pobres serão prioridade no segundo mandato
Verena Glass/Agência Carta Maior
Movimentos querem “cobrar a fatura” Calendário da CMS Novembro 13 – Reunião de lançamento e mobilização para o FSM 2007– São Paulo 15 e 16 – Plenária Nacional da Assembléia Popular – Brasília 21 a 23 – Fórum Educacional do Mercosul – Belo Horizonte 23 e 24 – Reunião Nacional Preparatória à Cumbre dos Povos da Bolívia – São Paulo 23 e 24 – Plenária nacional da Campanha contra a ALCA – São Paulo 25 e 26 – Plenária Nacional de organização da Campanha pela anulação do leilão da Vale do Rio Doce – São Paulo
Jorge Pereira Filho da Redação
M
udanças na política econômica e democratização dos meios de comunicação. Essas serão duas prioridades para 25 organizações populares brasileiras nos próximos meses. A definição foi tomada na 5ª Plenária da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), realizada em São Paulo no dia 11. No encontro, representantes das organizações de 14 Estados avaliaram que o ponto alto da vitória do presidente Lula nas eleições foi o fortalecimento da aliança dos movimentos sociais. “Houve uma polarização no segundo turno que permitiu uma ação mais organizada dos movimentos. Agora, temos mais autoridade para cobrar”, opinou o jornalista Altamiro Borges, convidado para fazer a análise de conjuntura no encontro. O calendário das mobilizações da CMS define duas atividades já para dezembro. No dia 4, a UNE promoverá um ato, em São Paulo, cobrando mudanças na política econômica. Já nos dias 6 e 7, a CUT organizará uma mobilização nacional pela valorização do salário mínimo. Os trabalhadores cobram aumento para R$ 420 e correção da tabela do Imposto de Renda de 7,7%. Para o próximo ano, os movimentos prometem fazer intensas mobilizações nos meses de fevereiro, março e abril (veja o calendário da CMS ao lado). A avaliação na 5ª Plenária foi de que a derrota de Geraldo Alckmin, o fiasco da campanha da mídia contra a reeleição de Lula e o fracasso eleitoral do discurso tucano – de mais privatizações e corte de gastos públicos – construíram um cenário distinto para esse segundo mandato. Em 2002, a vitória do petista veio no rastro da Carta ao Povo Brasileiro e da postura defensiva em relação ao mercado financeiro. Uma janela aberta, nesta nova conjuntura, é a oportunidade de denunciar o poder midiático, segundo os movimentos. “Devemos
João Pedro Stedile, da coordenação do MST, fala durante a 5ª Plenária da Coordenação dos Movimentos Sociais que aconteceu no dia 11
entrar com tudo neste debate, defender a criação de uma rede de comunicação pública (como diz a Constituição), rediscutir as políticas que orientam o uso das verbas publicitárias do governo e a repressão às rádios comunitárias”, sugeriu Borges. Em tempo: no primeiro mandato, a revista Veja e as Organizações Globo foram as maiores beneficiadas pela publicidade do governo federal, como publicação impressa e meio televisivo. Já a atuação da Polícia Federal contra as rádios comunitárias foi mais intensa que no governo Fernando Henrique Cardoso. “Não se trata de censurar, mas precisamos dar voz a quem não tem. Queremos estimular um grande debate nacional sobre a democratização dos meios de comunicação e pela cobrança de uma rede pública”, enfatizou João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST.
MUDANÇAS Outro ponto a ser fortalecido pela CMS é a mudança na política econômica. “Precisamos ampliar a mobilização popular para reverter essa idéia de que neoliberalismo é um destino, de que não há alternativas”, disse Sônia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres (MMS). Para Gustavo Petta, presidente da UNE, embora a direita tenha sido derrotada, falta convicção política do governo Lula sobre o projeto a implementar. “Só a pressão popular pode reverter isso. Queremos mudanças na política econômica, que é inconciliável com a promessa de ampliar o investimento em educação”, disse. O secretário de Relações Internacionais da CUT, João
Felício, acrescentou que, embora o voto em Lula não tenha sido ideológico, o momento é propício para a radicalização da ação política porque, desta vez, a esquerda ficou com a maioria pobre da população nas eleições. “Não vamos bater para fazer o jogo da direita, mas precisamos ter uma interferência nesse processo com mais força senão a direita vai levar”, disse em referência à pressão exercida sobre o governo para cumprir a agenda conservadora. Para o sindicalista, parte do movimento social teve excessiva cautela no primeiro mandato. “O segundo turno mostrou que a luta de classes não acabou. Lula precisa entender isso”, afirmou. João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST, alertou que a reeleição de Lula não refletiu a vitória de um projeto popular, e ocorreu mais devido a uma identificação dos pobres e ao carisma do presidente. O sucesso eleitoral tampouco alterou o quadro político de hegemonia do capital financeiro e internacional. “Nosso desafio de fundo é reverter o refluxo dos movimentos de massas e estimular a luta social, com a formação de quadros dialogando no potencial da juventude excluída do meio urbano”, avaliou.
UNIDADE A 5ª Plenária da CMS também manifestou apoio à campanha pela anulação do leilão da Vale do Rio Doce, considerando a venda da estatal “um processo criminoso e ilegal que alienou esse estratégico patrimônio brasileiro”, como registrou
a carta divulgada ao final do encontro. Outra definição foi o apelo para que as entidades da CMS passem a integrar também a Assembléia Popular, outra articulação dos movimentos sociais que conta também com setores da igreja e ONGs no intuito de discutir um projeto popular para o país. Todas essas iniciativas buscam ampliar a articulação dos movimentos sociais no segundo mandato de Lula. João Paulo Rodrigues, do MST, acrescentou: “A conjuntura exige a construção da
unidade em dois campos: na ação, com greves, manifestações, ocupações; e na questão programática, apresentando alternativas fundamentadas teoricamente e politicamente com as bases, como a construção do Projeto Brasil. Segundo ele, as organizações populares precisam ter o cuidado de manter o diálogo para o próximo período. “Não podemos queimar pontes; é melhor errar coletivamente que acertar sozinho”, avaliou. (Mais informações na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
Dezembro 4 – Ato público “Desenvolvimento nacional com justiça social” – (UNE) São Paulo 6 a 7 – Mobilização Nacional pela Valorização do Salário Mínimo – Brasília 6 a 9 – Cumbre Social pela Integração dos Povos – Cochabamba, Bolívia 13 a 15 – Cúpula Social do Mercosul – Brasília Janeiro 20 a 25 – VI Fórum social Mundial, em Nairobi, África
ECONOMIA SOLIDÁRIA
Trabalhadores retomam fábrica de capangas Centro de Mídia Independente
Pedro Carrano de Curitiba (PR) Os trabalhadores da fábrica autogestionária Cooperbotões, em Curitiba, viveram uma situação incomum no início de novembro. No dia 8, “capangas” do proprietário do terreno expulsaram os operários da unidade alegando cumprir uma liminar de reintegração de posse. A ação teve, ainda, o aval de um oficial de Justiça, apesar de a lei determinar que apenas a Polícia Militar deve cumprir medidas deste tipo, já que o Estado possui o monopólio da força. Expulsos, os trabalhadores fizeram vigília em frente à fábrica para que nenhum maquinário ou documento fosse retirado do local. Dois dias depois, reverteram a decisão na Justiça e conseguiram retomar o pátio no dia 13. Quando entraram na fábrica, viram documentos fiscais desapareceram, arquivos revirados e violação de correspondências eletrônicas. Não foi a primeira ocasião em que os trabalhadores da Cooperbotões enfrentaram uma reintegração de posse, embora dessa vez nem de longe a lei tenha sido observada. Em abril de 2004, os funcionários ocuparam a fábrica após ter sido decretada a falência da Diamantina Fossanese, a segunda maior fabricante de
Nas mãos dos trabalhadores, Diamantina virou Cooperbotões
botões do país. Estavam com três meses de salários atrasados. A dívida da empresa somava R$ 33 milhões. De lá pra cá, os trabalhadores assumiram o comando das operações e respondem, em conjunto, pelas definições estratégicas da empresa. Um conselho administrativo executa as tarefas diárias e burocráticas. Apesar de existir diferença de salários, o menor rendimento não pode ser seis vezes inferior ao maior. Do lucro, 80% é usado para modernizar a fábrica, e 20% repartido. Nesses dois anos, a empresa se recuperou e hoje emprega 90 pessoas. De acordo com Luigi Verardo, o assessor técnico de comunicação da Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão (Anteag), das 675 fábricas recuperadas visitadas pela entidade, desde
a década de 90, um terço delas conseguiu manter-se em atividade. Muitas vezes às mínguas.
TERRENO E MAQUINÁRIO O desafio dos trabalhadores da Cooperbotões, agora, é regularizar o espaço onde vão continuar a produzir. O prédio e o terreno onde a fábrica está localizada são reivindicados pelo advogado João Casiro, que chegou a propor – como “solução” para o impasse – assumir o controle da empresa e acabar com a cooperativa, transformando-a em uma companhia tradicional. Os trabalhadores não cogitam aceitar essa proposta e planejam uma assembléia nos próximos dias para decidir se vão continuar no mesmo local. (Leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA Fotos: Fotografiadiagonal
Evo, um de nós Nas ruas bolivianas, a população se identifica com o presidente, que realiza políticas de transformação social Elaine Tavares de La Paz (Bolívia)
É
cedo na grande La Paz, capital boliviana. Devagar, os pequenos comerciantes de rua começam a abrir suas caixas de lata, onde guardam as mercadorias durante a noite. O frio dos Andes é cortante nas primeiras horas da manhã, mas, depois, o sol vai aquecendo a vida, embora as mulheres autóctones permaneçam com seus longos xales de pura alpaca. Dê o tempo que dê, elas não mudam a indumentária. Saias rodadas, que aumentam as ancas – símbolo da fertilidade e da beleza originária –, chapéu preto e mantos de lã. E são elas, na maioria das vezes, as que garantem o sustento da casa com o trabalho no mercado informal. Muitas vieram do interior do país buscando vida melhor. “A gente não tem terra e lá não tem trabalho”, dizem. Ali, nas ruas, pelo menos conseguem dar jeito na comida dos filhos. Pela rua do comércio, que é uma espécie de calçadão central, a cidade fervilha. A gente da chamada nova Bolívia observa o governo Evo Morales com muitas reservas. E não é sem motivo. Porque, afinal, ao longo de toda a vida republicana deste povo, muitos foram os que se elegeram dizendo que iam mudar a vida de todos, e nada fizeram. As gentes sempre souberam quando era hora de se rebelar e virar o jogo. Foi o que aconteceu agora, na história recente, em 2004, quando derrubaram Sánchez de Lozada. Por isso, entre os mais pobres, não se vê aquele fervor como o que se observa na Venezuela de Chávez. Os bolivianos são mais céticos. “Está indo bem até agora”, diz a vendedora de chicha morada – uma bebida típica feita de milho – Marisol Oblitas. Abrigada do sol do meio-dia numa tenda de plástico onde oferece seu produto, ela analisa o governo de Evo com a perspicácia de quem é letrada em coisas de Estado. “A gente vê que ele tem boa vontade, mas está muito mal assessorado. A gente sabe que não é do dia para a noite que se muda um país, por isso estamos vendo onde isso vai dar. Penso que o presidente precisa dar mais atenção para a questão do emprego. Tem muita gente indo embora da Bolívia porque não tem como trabalhar. Eu mesmo gostaria de ter um emprego fixo e não ficar aqui vendendo chicha. Vamos ver como vai ficar”, revela. Marisol sabe o que diz. Em frente ao setor que libera passaportes, a fila é imensa. Centenas de pessoas deixam o país a cada dia. E não é só agora durante o governo de Evo. Faz muito tempo que é assim. A migração é um fenômeno em toda a América Latina. Em alguns países, e a Bolívia está nesse grupo, são os migrantes os responsáveis por grande parte do dinheiro que circula. É que, dos países onde buscam abrigo, eles enviam dólares para os parentes que ficaram e, a partir deles, fazem girar a economia nacional. “Eu não tenho onde trabalhar. Preciso crescer, ser alguém”, diz a bonita aymara
de 25 anos, Luiza Huilka, na fila há três dias esperando o passaporte. Quer arriscar a vida na Espanha, que é para onde vão centenas de bolivianos todos os anos. Ela acredita que Evo vai fazer mais pelo povo. “Ele é um de nós”, diz. Mas, ainda assim, não pretende ficar para ver.
NACIONALIZAÇÃO DO GÁS Nada nas ruas diz da revolução que acontece no interior dos centros de poder bolivianos. Só os jornais gritam a manchete em letras garrafais: “Fechado o acordo com as petroleiras”. Depois de várias semanas de completo terrorismo midiático, no qual as grandes redes e jornais falavam de uma fuga em massa das empresas petroleiras da Bolívia, o governo logra um acordo histórico. As 12 empresas estrangeiras que exploram o gás no país e que vinham fazendo declarações
Ainda assim, fechado o acordo, as informações são desencontradas. O governo boliviano insiste em dizer que a Petrobras vai prestar serviços ao país, já a empresa afirma que isso não está em questão, mantendo uma posição arrogante, apesar de ter capitulado ao acordo. Resta ao Congresso boliviano ratificar todos os contratos.
MINEIROS É nas entranhas da terra que se esconde uma outra batalha. No começo de novembro, na região mineira da Bolívia, os trabalhadores amanheceram armados. Muitos encheram os bolsos de dinamite e se dispuseram a atos extremos caso o governo decidisse ocupar as minas, no processo de nacionalização divulgado pelo presidente. Por incrível que possa parecer, os mineiros estão na defesa das transnacionais,
A gente vê que Evo tem boa vontade, mas está muito mal assessorado. Não é do dia para a noite que se muda um país Marisol Oblitas, vendedora
bombásticas sobre decisões da Justiça e indenizações milionárias por quebra de contrato cordialmente assinam novos contratos em que a parte do leão da exploração e comercialização do gás fica com o Estado boliviano. Não há fugas, nem processos. A oposição se obriga a declarar que o acordo é mesmo muito bom para a Bolívia, que vai ficar com quase 85% da renda do gás. As vozes, que antes vociferavam contra o “autoritarismo” do governo boliviano, se calam diante do pacífico acordo. Evo fala à nação dizendo que agora não haverá mais cláusulas de confidencialidade nos contratos, o que significa que todo mundo vai poder saber o que dizem as “letras pequenas”. Aqueles que até então se faziam donos dos recursos naturais da Bolívia passam à condição de sócios. É outra relação. Há muito para avançar, diz o presidente, mas vai ser pouco a pouco. Mais de um bilhão de dólares devem ser investidos no setor e o governo já pensa até em discutir um projeto de industrialização, buscando oferecer mais empregos para o povo. “Essa era a promessa principal da campanha do Evo. Por isso derrubamos Lozada. Por isso votamos por uma nova Bolívia”, diz um militante mais exaltado na praça Murillo. Dentre todas as petroleiras, a que mais relutou em aceitar o acordo foi a Petrobras, que leva o selo do Brasil, embora grande parte da empresa já não esteja mais no controle do governo brasileiro. Ela se comporta, na Bolívia, como uma típica transnacional e talvez por isso cause tanta antipatia na população. Não é à toa que, agora, a empresa está realizando uma campanha massiva de mídia, mostrando os projetos sociais que desenvolve na Bolívia.
não querendo permitir que as minas passem para o controle estatal. O maior rechaço é dos mineiros da Mina Porco, que era de Lozada. Como a maioria dos trabalhadores do setor está organizada em cooperativas – são 56 mil mineiros nessa condição – há o medo de perder o controle do processo de produção, daí a relutância em aceitar uma parceria com o governo. Em função da crise que se avizinhava e buscando evitar novos conflitos, como o da região de Huanuni, onde em outubro deste ano vários trabalhadores acabaram mortos no confronto entre mineiros assalariados e cooperativados, o governo de Evo decidiu adiar o processo de nacionalização das minas. Assim, enquanto todos esperavam que, fortalecido pela vitória diante das petroleiras, ele anunciasse a decisão, o que aconteceu foi o anúncio do que o presidente chamou de “revitalização do setor”. A primeira medida foi a reativação da Corporación Minera de Bolívia (Comibol) e é a partir dela que serão contratados os trabalhadores para a extração do estanho das minas de Huanuni. No dia 1º, o governo anunciou o fechamento de um acordo com várias cooperativas e o investimento de 10 bilhões de dólares no setor. Por parte dos assalariados houve aprovação. Segundo o presidente da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores em Minas da Bolívia, Próspero Mamani, esta foi a melhor decisão, pois garante salário digno aos trabalhadores e evita o confronto desnecessário. “De qualquer forma estaremos vigilantes para que os recursos naturais do país sigam administrados pelo Estado”, afirma. Na região de Huanuni, está uma das maiores reservas de estanho do mundo.
POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA A propaganda da televisão dá conta das mudanças
na política boliviana. Um menino, indígena, caminha por entre os enormes prédios coloniais do centro de poder de La Paz. Ele olha, extasiado, as enormes construções. Logo, passa pela porta do palácio presidencial. Vai entrando, sem que ninguém o detenha. Seu olhar é de assombro e encantamento. Ele perscruta as paredes, os quadros, vai entrando a passos lentos. A câmera mostra os pés pequenos, calçados com um chinelo velho. O
do ensino fundamental terá direito a 200 bolivianos, o equivalente a 30 dólares. Com isso, pretende o governo, vai ser possível manter as crianças na escola. Para Juana Rodriguez, que tem três filhos na escola e mora no bairro Chamoco Chico, esse dinheiro é uma bênção. “Agora vamos ter dinheiro para comprar o material escolar e também para comer”, revela. Segundo Evo, o projeto se configura como uma medida de emergência. Para
Há que se pensar em construir uma nação para todos, sem que haja uma guerra étnica Mário Duran, morador de El Alto
bonezinho na cabeça, meio virado, dá um ar de picardia. Então, ele abre lentamente uma porta e espia. Lá dentro está Evo em sua mesa de trabalho. O homem sorri e o chama para sentar. Então, o pequeno aymara e o presidente estabelecem uma conversa alegre e fraterna. “Evo promete, Evo cumpre, Bolívia muda”, finaliza a propaganda. É assim que o governo boliviano mostra o início do projeto “Juancito Pinto”, uma espécie de bolsa-escola. A partir de agora, todo garoto ou garota que esteja cursando da primeira à quinta série
Mário Duran, morador da cidade de El Alto, o Juancito é só um salva-vidas. “Não podemos ser rentistas, viver do dinheiro do Estado. O governo tem que gerar emprego”, diz. Mas nem todas as notícias são boas. No dia 3 de novembro os jornais de La Paz anunciaram a ida de uma tropa de soldados bolivianos para o Haiti, para participar da chamada “força de paz”. O tom do discurso midiático era o mesmo que foi usado no Brasil. Embarcavam os bolivianos para ajudar os haitianos. Mas, sabe-se muito bem a quem servem as for-
ças militares no país: aos interesses estadunidenses que ficam se escorando nos “países gerentes” para evitar mais desgaste do que o que vive no Iraque. Na Bolívia, nenhuma voz se ergueu para condenar a decisão.
DESAFIOS PARA O FUTURO Esse são apenas alguns dos aspectos de uma “mirada” sobre a nova Bolívia. Há muito caminho para percorrer. Reorganizar a polícia e o exército sob novas bases, por exemplo, já que a formação do aparato militar é toda baseada na Escola das Américas. O Judiciário, que ainda está na mão de uma maioria conservadora, fruto do passado, também precisaria de mudanças reais. Outro tema em pauta – e bastante polêmico – é o processo de racialização da política. Declarações racistas – de ambos os lados – estão se tornando comuns e isso pode provocar uma divisão perigosa. “Há que se pensar em construir uma nação para todos, sem que haja uma guerra étnica”, revela Mário Duran, morador de El Alto. Assim vai caminhando a Bolívia, entre avanços e recuos. E, com ela, vai boa parte da esperança de uma Abya Yala verdadeiramente soberana, onde o povo autóctone e os novos filhos da terra possam viver em harmonia.
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De 16 a 22 de novembro de 2006
INTERNACIONAL
MÉXICO
Os vários sentidos da luta popular Pedro Carrano de Curitiba (PR)
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Organizações de Oaxaca resistem à repressão policial e recebem apoio de outros grupos, como os zapatistas
Alternativa ao poder institucional
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uantas não foram as pessoas ao redor do mundo que, no dia 2, resolveram acessar na internet a rádio Universidad e ouvir os relatos da lendária batalha da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) para manter a Polícia Federal longe do campus da Universidade Autônoma? Apesar da repressão, as barricadas próximas à universidade para defender a rádio seguem de pé. Eram recados de jovens, contando aos pais que estavam vivos, outros que buscavam os desaparecidos, após três horas de combate. Em pleno dia dos mortos, importante celebração para os mexicanos, havia um clima contagiante de vitória, ante o recuo das tropas oficiais. A rádio foi estratégica na resistência quando, por exemplo, faltou água aos tanques da polícia e os manifestantes foram avisados para bloquear os caminhões de abastecimento. No que toca a mobilização popular, muitas análises comparam a situação mexicana a diferentes processos, vivenciados na Bolívia (2003) e na Argentina (2001), mas com a ressalva de que agora a APPO leva a esperança de ser uma representante direta dos trabalhadores. Nos dias 10 e 11, aconteceu o primeiro congresso constitutivo da APPO. A direção provisória deu lugar a uma definitiva, eleita pelos delegados, dando estatuto ao movimento social. A reportagem do Brasil de Fato conversou com Rosario Gomes, da organização local Conselho Indígena Popular Ricardo Flores Magón. Ela informou que agora a repressão segue à surdina na região. Informantes do Partido Revolucionário Institucional (PRI, do governador Ulises Ruiz)
Do Brasil, o sociólogo mexicano Alejandro Buenrostro, idealizador do centro de informação zapatista Xojobil, pensa que a organização indígena por assembléias é uma forma de pressionar o poder institucional, que neste momento se mantém na corda bamba no México. Tal forma de poder popular se estende a outros Estados ao sul com histórico de luta indígena, como Morelos, Guerrero, Michoacán, onde existem municípios autônomos e que, agora mesmo, acaba de enviar cerca de dois mil professores a Oaxaca. O sociólogo lembra da luta dos eletricistas e dos petroleiros, setores que ainda resistem à privatização. Porém, no geral, os sindicatos são cooptados, o que coloca os movimentos camponeses e indígenas como a força principal neste momento. “Vai haver um boicote ao trabalho de Felipe Calderón. Temos que descobrir os espaços que as assembléias estão encontrando, qual vai ser a sua forma, porque, ao mesmo tempo, as elites vão pela repressão”, afirma. (PC)
As barricadas em Oaxaca continuam de pé, o recado na foto é para Ulises Ruiz Ortiz, vulgo URO, governador do Estado
foram descobertos no Congresso. Um dos delegados do movimento está desaparecido e suspeita-se que tenha sido seqüestrado. Os acordos tirados no encontro da APPO (que agrega 365 organizações) apontam para a reconstrução das barricadas perdidas com a ação policial, ocupações de espaços e mais uma caminhada até a igreja Santo Domingo para celebrar uma missa, em meio ao cerco policial no centro da cidade. Também vão acontecer atividades na manifestação do dia 20, convocada pelos zapatistas. Por enquanto um dos lemas da APPO continua sendo: “sem líderes”.
O “GOVERNO LEGÍTIMO” Seguindo seu rumo próprio, o partido de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) finalmente se
manifesta com mais contundência sobre Oaxaca. Para o dia 20 está convocada a chamada posse de protesto do recém-nomeado governo legítimo. No lançamento da idéia, AMLO explicou que nomeou um gabinete de 12 membros para ser um representante do povo mexicano, em oposição à política dominante, com suas relações entre caciques e líderes sindicais corruptos. ImpossibilitaFrente Ampla Progressista – do de chegar ao Coalizão legislativa poder pela via e de governo de partidos de eseleitoral, quanquerda mexicana, do houve a susfundada depois da eleição de 2 de peita de fraude julho. É formada e o Judiciário pelo Partido da Revolução Demonegou-se a recrática (PRD), o contar os votos, Partido do Trabalho (PT) e o Partido Obrador agora Convergência. situa-se entre o
apoio recebido da entidade civil Convenção Nacional Democrática (CND) e também da Frente Ampla Progressista, formada por partidos. A iniciativa sonha reestruturar o Estado, ainda que sem questionar o capital financeiro e a conseqüente precarização do trabalho.
RECORRIDO ZAPATISTA Num recorrido pelo norte do país, Marcos, subcomandante do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), conclui um segundo momento da Outra Campanha, depois de tomar contato com os rincões de resistência em cada Estado. A viagem chegou em um momento crítico, justamente ao passar por uma região fronteiriça com os EUA, onde os muros separam as pessoas e deixam passar as mercadorias.
Os zapatistas estreitam a sua solidariedade com as outras lutas. A “comissão Sexta” está atuando na capital pela libertação dos presos políticos de San Salvador Atenco. Os zapatistas também convocaram uma greve no país contra a repressão promovida em Oaxaca. O ato, marcado para o dia 20, vai se estender para outras cidades da América e Europa.
SAARA OCIDENTAL
No processo sobre a última colônia africana, o Saara Ocidental, Kofi Annan abandona a Organização das Nações Unidas (ONU) de forma igual à de seus predecessores, discretamente e pela porta de trás. Ele não propôs medidas para resolver o conflito entre grupos independentistas e o governo marroquino, que ocupa militarmente a região, cuja população é chamada de saharaui. Em 1991, foi montada a Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (Minurso), com 220 soldados, para organizar uma consulta aos saharauis sobre a independência do território. Essa não foi realizada, e não há previsão para que seja. Apesar da morosidade, a Frente Popular para a Libertação de Saguia el Hamra e Rio de Oro (Polisário), que reúne os independentistas saharauis, não pretende romper o cessar-fogo de 1991, e se o fizesse teria a oposição de seu histórico aliado, a Argélia. Mas de acordo com nota oficial da organização, “se continuar a situação de estancamento” pode ocorrer “uma nova luta armada”. Em maio de 2005, a Polisário iniciou a Intifada da Independência, em referência à luta dos palestinos pelo fim da ocupação de seus territórios pelo governo de Israel. E, desde então, não há dia que passe sem que a administração alauita prenda, torture ou processe saharauis por se expressarem pacificamente contra a ocupação. A própria ONU, por meio do informe de uma delega-
Arquitetura da ocupação
Saharauiak/Creative Commons
I. Cabarga e Sandra Lobato de Argel (Argélia) e Madri (Espanha)
Don Meliton/Creative Commons
A intifada da última colônia africana Os interesses do Marrocos Os anseios expansionistas do Marrocos têm início nos anos 1940, pouco antes da independência, e concretizam um projeto que reivindica a adesão do Saara Ocidental, Mauritânia, das regiões argelinas de Bechar e Tinduf, assim como Ceuta e Melilla. O interesse marroquino se dá, entre outros elementos, pelo fato de a região dos saharauis dispor da quarta maior reserva de fosfato do mundo e do maior banco pesqueiro da África. Possui também importantes explorações de sal, ferro e uma morfologia propícia à existência de poços de gás e petróleo. A disputa entre as potências Principal aliado do Marrocos, a França tem apoiado o país econômica, política e militarmente, e chegou até a participar diretamente da guerra contra a Polisário. O Marrocos, por sua vez, aparece como a ponta de lança dos interesses franceses no Magreb e na África francófona. Mas o país norte-africano é também um dos principais aliados do governo estadunidense na região. A resistência de Washington aos independentistas saharauis é justificado pela suposta existência de núcleos socialistas na Polisário. A Espanha mantém relações de boa vizinhança com o Marrocos, até mesmo porque o governo espanhol depende do marroquino para controlar o fluxo de imigrantes africanos sem papéis. A Argélia pró-independência Até 1984, a Polisário contava com o apoio incondicional da Líbia e da Argélia, mas o governo líbio optou por alijar-se do movimento independentista. O governo argelino se tornou a base de sustentação da causa saharaui e permitiu o assentamento em seu território dos acampamentos de refugiados. A Polisário não decide nada sem consultar previamente Argel. De relance, a bandeira do Saara Ocidental parece com a da Palestina
ção do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, que visitou a zona há alguns meses, reconhece o estado de exceção e aponta o governo marroquino como xerife da violação sistemática dos direitos elementares da população saharaui. Para acabar com essa situação, que segundo a Polisário “se encontra no limite do suportável”,
propõe ativar “mecanismos” para a proteção desses direitos, mas não disse quais, nem quando.
REPÚBLICA SAHARAUI A Polisário construiu, desde sua criação, em 1973, um autêntico Estado, a República Árabe Saharaui Democrática (Rasd), que tem sua base nos acampamentos
de refugiados de Tinduf, nos quais as mulheres encontram a oportunidade de participar da organização e administração da vida pública. A Rasd tem 266 mil quilômetros quadrados, pouco menor que a Itália, e 273 mil habitantes. Os acampamentos, erguidos em um território cedido pela Argélia, estão sobre um deserto
inóspito, onde as características de um terreno quase estéril dificultam a escassa atividade econômica existente. Quase 100% dos saharauis dependem de uma ajuda internacional, que não satisfazem as necessidades básicas e estão submetidas aos jogos políticos dos países dominantes. (Diagonal – www.diagonalperiodico.net)
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CULTURA
De 16 a 22 de novembro de 2006
RESISTÊNCIA
Verena Glass/Agência Carta Maior
Fotos: Rede Brasil
A arte nas margens do rio Madeira
Na foto maior, ponto do Rio Madeira onde o governo pretende construir a usina de Santo Antônio, na periferia de Porto Velho; contestada tanto pelos ribeirinhos (preparando a farinhada) como pelos indígenas
Daniela Lima de Porto Velho (RO)
A
música, a arte e a cultura reuniram, no dia 11, em Porto Velho (RO), a população que vive às margens do rio Madeira. Momento de festival cultural, que mostrou a importância que o curso de água tem para as populações ribeirinhas. Está ameaçado em seu equilíbrio, afirmaram os participantes do evento, em virtude da modernização desregrada da Amazônia ocidental, proces-
so esse que tem agora como carro-chefe o Complexo Hidroviário e Hidrelétrico do Rio Madeira. A “modernização” acelerada que acompanhará os megaprojetos na região poderá impor deterioração irreversível das tradições culturais locais, revelam os ribeirinhos. Daí, dizem, a necessidade de um processo continuado de valorização da cultura e do modo de vida da população que reside às margens do rio, além de suas auto-estima e cultura. O festival também foi um espaço de interação cultural, artística e organizativa entre as populações urbanas e as populações rurais tradicionais. Para tal, fizeram teatro de bonecos, demonstrações artísticas, vídeos, shows e mostras. A produção ribeirinha teve destaque durante
Músicos defendem a Amazônia As manifestações musicais, ocorridas no festival cultural de Porto Velho (RS), no dia 11, pretenderam aproximar a população local dos artistas, falando de sua terra e de suas origens. Os músicos cantaram a importância da Amazônia e do rio Madeira. Oito bandas de artistas locais se apresentaram, a maioria das quais protestou a favor do rio Madeira vivo com o slogan “Não barre o rio – nossa cultura, nossa vida”. Dentre as bandas estavam o cantor Bado –, com a participação de Bira Lourenço –, Zezinho Maranhão, Kalliko Viana e Branco Moraz, Jac Remador e Mumu, Movimento Hip Hop da Floresta, Leão do Norte, Quilomboclada, e Suco de Nós. A banda Leão do Norte usou seu reggae para denunciar as mazelas da sociedade rondoniense e cantar as origens do povo ribeirinho, como em “Beradeira”, do
a exposição dos produtos agrícolas, extrativistas e artesanais, dando uma singela amostra da imensa biodiversidade da região, bem como da fertilidade natural das margens do Madeira. Grupos urbanos apresentaram um amplo repertório musical inspirado no nexo cidade-natureza-culturas tradicionais, com apresentações intercaladas por vídeo-documentários sobre os impactos dos megaprojetos hídricos.
PROTEGER A FLORESTA Na Amazônia, os índios foram os primeiros a utilizar as sementes dos frutos das árvores para embelezar seus adornos. Depois, os ribeirinhos em contato com as tribos aprenderam essa arte e trouxeram-na para a cidade e passaram a criar artesanatos e comercializá-los nas feiras
compositor Eduardo Júnior, que fala das belezas do rio Madeira e do pôr do sol de Porto Velho: “Pela beira do rio Madeira, Amazônia brasileira. Venha sentir o calor do rio desaguando no porto do velho, Porto Velho. Venha ver o pôr do sol, na beira do rio Madeira. Do Santo Antônio ao Teotônio um Tambaqui, um Surumbi você vê pulando nas cachoeiras”. Para a vocalista da banda, Cristiane Oliveira, é o cheiro ou a música que sempre lembra um momento importante da vida. “O perfume vem da natureza e a música também, pois a nossa vida é natural, crescemos em contato direto com a natureza. A música é eterna, as palavras, são poder, cantando para se libertar daquilo que se tem preso dentro de você. É por meio da música que temos o poder de encantar as pessoas e edificar seus corações”, conta.
AUTO-ESTIMA CABOCLA Para o baterista Laureano, da banda Quilomboclada, a preocupação é fazer uma devolução e não uma revolução da auto-estima do beradeira, do caboclo ribeirinho, perdida ao longo do tempo e agora
das cidades. A facilidade com que índios e artesãos lapidam o bruto é um dom, pois combinam texturas e cores de forma instintiva e harmoniosa, transformando a matéria-prima em peças únicas que identificam suas sensações e sentimento. Há nove anos a semente e os frutos da Amazônia são o meio de subsistência de Cristiane Oliveira, nascida e criada na Amazônia, rastafári de raiz e vocalista da banda Leão do Norte. A jovem artista criou a marca Bioarte. A Bioarte elabora jóias, utilizando sementes lapidadas e polidas por meio de técnicas próprias. As sementes são coletadas pelos ribeirinhos nas matas que beiram o rio e são vendidas para os artistas locais. Segundo Cristiane, com a construção da hidrelétrica
no rio Madeira, as sementes irão acabar, pois a mata será inundada. “Não vou ter como comprar semente, não vou poder viver mais de semente, pois já existe uma escassez no mercado e com a construção das usinas esse extrativismo praticamente acabará. O meio de vida das populações locais, que é o artesanato, acabará. Tudo isso acabará com a realidade da gente”, desabafa a artista. A apresentação de teatro de bonecos, com a peça O Encantamento dos Bonecos, contou a história da chegada de grandes empreendedores para explorar o Madeira e construir uma usina hidrelétrica, além de relatar a reação da população que vive às margens do rio expulsando os invasores. A apresentação reuniu crianças e adultos que
Rede Brasil
Ribeirinhos fazem da música e do teatro meios de protesto contra a construção de um complexo hidrelétrico
Bailarina da praça de Porto Velho dança no ritmo do show das bandas da cidade
já resgatada. O vocalista Samuel Pessoa conta que a Quilomboclada surgiu com a proposta de fazer uma ressignificação cultural, por parte da nova geração de músicos do norte do país, pois, segundo ele, houve um forte crescimento na discriminação e desvalorização do beradeiro, povo que nasce nas regiões ribeirinhas da Amazônia. De acordo com Samuel, a elite dominante e a mídia têm insinua-
do que o beradeiro é sinônimo de feio, ignorante e que não passa de um nativo desqualificado. “Os músicos moram hoje na periferia e são descendentes diretos do povo ribeirinho e estão pregando essa questão de assumir suas origens. Por isso a Quilomboclada trabalha a autovalorização do povo beradeiro para que nossa geração tenha orgulho de ser daqui”, declara. “Eu me apresento: sou negro caboclo,
aprenderam por meio da peça a valorizar ainda mais o rio. Demonstrações de artistas locais surgiam durante o festival, como por exemplo, os Doutores da Alegria, que apresentaram suas palhaçadas para a criançada presente. De repente, surgia a bailarina, moradora de Porto Velho, que confecciona com as sementes da Amazônia sua própria fantasia. Outra manifestação que ocorreu durante o festival foi a Farinhada ao Vivo, em que mulheres e homens ribeirinhos montaram um forno para fazer a farinha e mostraram para o público presente como se produz a farinha – meio de subsistência dos ribeirinhos, que extraem da mandioca plantada nas margens do rio a farinha que vendem nas feiras de Porto Velho.
afro-indígena daqueles bem louco, se você gosta de tudo que é pouco, eu e você somos apenas o oposto. Já chorei, já sofri e pelo meu corpo tem as marcas de Caim. Eu sigo em frente, a minha aldeia é diferente, o meu povo é consciente. Paulo Freire me ensinou, no passado ele lutou. Hoje eu sei a diferença do oprimido e do opressor. Sou Quilomboclada”, canta. Jac Remador e Mumu cantam o hip-hop traduzido para uma linguagem local e regional, falando do povo de Porto Velho, o beradeiro, o caboclo, afirmando as origens. Para Jac Remador, o objetivo de suas letras é buscar o que estava esquecido e que muita gente não costuma falar nas músicas. Segundo Mumu, a música “Porto Velho não é mais a mesma”, de sua autoria, fala da realidade da cidade, da violência, da rebelião: “Rebelião no Sul Branco tira a mãe do sossego. Futebol tá rolando com a cabeça do detento. A cidade não é mais a mesma, muita coisa mudou, antigamente era tranqüilo, hoje é um perigo, bandido não pode ver ninguém com nada, mete o cano na cara, toma na marra”. (DL)