Ano 4 • Número 195
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 23 a 29 de novembro de 2006
www.brasildefato.com.br
Movimentos sociais do país desafiam a ordem política instituída e criam formas de organização alternativas
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m novo México insurgente. Movimentos populares no Estado de Oaxaca enfrentam diariamente nas ruas a polícia. Reinventam a política, criando novas formas de organização, sem líderes. Recebem o apoio dos zapatistas que, no dia 20, fizeram manifestações em Chiapas. Ao mesmo tempo,
Andrés Manuel López Obrador, apoiado por várias entidades mexicanas, tomou posse de um governo paralelo, em resistência à classe dominante do país. Nesse contexto de luta, a população pobre, outrora humilhada e apática, começa a acreditar que um novo México é possível. Pág. 7
Divulgação/Assessoria Andrés López Obrador
Lutas impõem novo rumo ao México
Dois anos após o massacre de Felisburgo, quando cinco semterra foram assassinados e 12 ficaram feridos, os assassinos e o mandante do crime, o fazendeiro Adriano Chafic Luedy, continuam
em liberdade. O MST e entidades de direitos humanos reivindicam a indenização às famílias das vítimas do crime e a desapropriação da fazenda de Chafic. Pág. 5
Reduzir auxílios sociais não distribui renda
Resultado de eleição gera crise no Congo
Economistas revelam que o sistema financeiro está ávido pela reforma da Previdência, com o objetivo de preservar seus lucros. A economia no orçamento público seria apenas um embuste. Segundo a Unafisco, para o Brasil crescer, é preciso reduzir os encargos da dívida pública, que pressionam a carga tributária. Pág. 4
O resultado das eleições presidenciais na República Democrática do Congo (RDC) foram o estopim de um conflito entre apoiadores do vitorioso, o atual presidente Joseph Kabila, e do candidato derrotado, Jean-Pierre Bemba. Este, o vice-presidente do país, acusa Kabila de ter fraudado o pleito. Pelo menos, 23 pessoas morreram. Pág. 6
A promiscuidade Haitianos exigem entre candidatos saída de tropas e empresas e fim da dívida Pág. 3
Pág. 6 Joka Madruga
No Paraná, mulheres sem terra protestam contra o bloqueio do repasse de verbas para a assistência técnica aos assentamentos
Edesc/Creative Commons
Felisburgo: assassinos de sem-terra ainda impunes
Multidão acompanha a posse “legítima” do governo paralelo de López Obrador, no dia 20, no Zócalo da Cidade do México ao mesmo tempo em que a Comuna de Oaxaca (foto abaixo) continua a se organizar sob o lema “sem líderes”
EDITORIAL
Agenda do povo ou da elite? Mal terminaram as eleições — em que a direita representada por seu candidato Geraldo Alckmin foi fragorosamente derrotada, e que 60% da população preferiu manter o governo Lula frente às ameaças de retrocesso –, as classes dominantes voltaram a atuar articuladas. De um lado, a chamada grande mídia continuou a atacar o governo, os movimentos sociais, a exigir repressão (vide matérias sobre ocupação da fazenda irregular da Syngenta) e pressionar o governo tentando influenciar na linha política e na composição dos ministérios. Do outro lado, os mais ilustres representantes da classe dominante, não mais os presidentes do PFL e PSDB que demonstraram incompetência, mas agora assumiram o comando diretamente, os senhores Henrique Meirelles (com seus 20 banqueiros), Jorge Gerdau, Roger Agnelli (da Vale), Benjanim Steinbruch (CSN) etc. E passaram a se reunir com freqüência com o presidente Lula, como se não tivéssemos tido eleições. Como se o povo não tivesse feito nenhuma opção. Os sinais da agenda da classe dominante brasileira são claros. Querem mais dinheiro público e liberdade para fazerem seus investimentos estratégicos de infra-estrutura, de exploração de minérios e recursos na Ama-
zônia. Para isso, precisa dar um “chega pra lá” no Ibama etc. O ilustre comandante da direita brasileira, senhor Gerdau, teve a petulância de pedir ao presidente nada menos do que o BNDES para quem sabe administrar, a seu bel-prazer, o maior naco da poupança nacional, os R$ 80 bilhões anuais, que o maior banco de investimentos públicos do mundo aplica, sem nenhum controle externo. Na frente parlamentar, as vozes da direita insistem que precisamos de nova reforma da Previdência. Que precisamos flexibilizar os direitos trabalhistas. Que precisamos reduzir a carga tributária. Tudo isso para diminuir a renda dos salários, dos trabalhadores, e aumentar a renda do capital, dos burgueses. Já não bastasse o estrago feito nesses 15 anos de neoliberalismo em que a divisão da renda nacional passou de 45% destinada ao capital para nada menos do que 62%. Enquanto o trabalho fica com apenas 38%. Nunca, na história do Brasil, os que vivem do trabalho ficaram com tão pequena participação na renda nacional. O ministro Luiz Dulci, em palestra aos membros da Quarta Semana Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), garantiu que essa não é a agenda do governo, e que nenhum direito dos trabalhadores
será reduzido. E que o governo pretende implementar uma nova política de desenvolvimento baseada na distribuição de renda. Já os movimentos socais, as pastorais, a CUT e outros movimentos populares têm anunciado publicamente que o Brasil precisa de um novo projeto de nação. Um projeto que seja baseado numa política econômica voltada para resolver os verdadeiros problemas do povo brasileiro. E os problemas fundamentais do povo brasileiro são o direito ao trabalho, à terra, à educação, à renda, moradia e cultura (como o Brasil de Fato tem mostrado em suas edições semanais). Essa é a verdadeira situação da luta de classes neste momento. Do lado da burguesia, como avisou o nobre governador de São Paulo, professor Cláudio Lembo, as classes dominantes não têm nenhum escrúpulo de compor com o governo Lula, pois seu objetivo sempre será manter as taxas de lucro e se manter “mamando” no Estado. O novo governo foi eleito para mudar. Com a palavra, o presidente Lula!
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DEBATE
CRÔNICA
Mutirão por um novo Brasil
O sabor da amizade na pedagogia da justiça Marcelo Barros e Railton Nascimento Souza Continua soando atual a observação de uma senhora pobre e analfabeta do interior do Maranhão. Em 1969, seus vizinhos discutiam se era mesmo verdade que o homem tinha finalmente posto seus pés na lua. A mulher refletiu e concluiu: parece mais fácil o homem chegar à lua do que um vizinho conseguir se entender com o outro vizinho. A convivência é sempre frágil e exigente. Desde que nasce, o ser humano precisa do seu próximo até para sobreviver fisicamente. Entretanto, tem dificuldades com a convivência mais profunda. A amizade não é apenas o companheirismo fortuito que faz com que colegas se encontrem, por acaso, na mesma escola ou trabalho. Também não sobrevive a relações de utilidade nas quais as pessoas se usam mutuamente. Com freqüência a amizade começa pelo reconhecimento de semelhanças e afinidades entre as pessoas. A aproximação se dá porque o outro tem as mesmas idéias sobre o mundo ou uma sensibilidade semelhante. Descobrem que têm gostos e projetos em comum. Entretanto, é inevitável que, após esta primeira fase, se a relação se aprofunda, cada um acaba confrontado com as diferenças do outro. Apesar de ser óbvio, é como se cada um estranhasse que o outro seja outro. Muitas vezes, a mesma pessoa, que antes parecia agradável, começa a ser enfadonha. Parece inconveniente. Às vezes, chega mesmo ao ponto de não respeitar os limites. Querendo ou sem querer, o outro restringe nossa liberdade e, não raras vezes, nos parece injusto e desagradável.
omunicado final da Quarta Semana Social Brasileira – Seminário de Conclusão, realizado em Brasília (DF), de 17 a 19 de novembro de 2006 Realizou-se, em Brasília, de 17 a 19 de novembro de 2006, o Seminário conclusivo da Quarta Semana Social Brasileira, encerrando um processo de três anos, desde o seu lançamento no início de 2004. Participaram representantes de todos os Estados do país, de pastorais e de movimentos sociais e de outras entidades que aderiram a essa iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A proposta da Semana foi suscitar um Mutirão por um Novo Brasil, apostando na articulação das forças sociais para a construção do país que queremos. Concluído esse seminário e terminada a Quarta Semana Social Brasileira, os participantes identificam com clareza os compromissos decorrentes desse rico processo de construção coletiva, em vista a continuar a construção de um novo Brasil, em especial, continuar e aprimorar a articulação das forças sociais. Para levar adiante o processo de articulação das forças sociais, os participantes se propõem: – Apostar no processo da Assembléia Popular – Mutirão por um novo Brasil, como instrumento dinamizador de causas comuns a serem assumidas em conjunto, em âmbito nacional, regional e local; – Fortalecer os fóruns que aglutinam pastorais ou movimentos afins (Fórum das Pastorais Sociais, Fórum da Reforma Agrária e outros); – Trabalhar em redes, socializando causas, metodologias ou iniciativas, para fortalecer o processo que nos une com outras instâncias que visam o mesmo objetivo da construção do país que queremos; – Valorizar a comunicação alternativa para diminuir a influência negativa dos grandes meios de comunicação e fortalecer uma comunicação eficaz e democrática entre os atores sociais populares; – Dar atenção a todo tipo de novos atores sociais que vão surgindo. Para fortalecer a formação dos atores sociais, os participantes se propõem:
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– Empreender um esforço especial de levar às bases os temas debatidos em nível nacional ou regional; – Apostar na formação de novas lideranças; – Dar atenção especial para as juventudes urbanas; – Incentivar escolas de formação política, com metodologia popular, abertas à participação de todos; – Socializar experiências positivas. Dada sua importância, os participantes se propõem aderir a iniciativas articuladoras em nível nacional, como: O plebiscito para anulação do leilão da Vale do Rio Doce; As campanhas nacionais Campanha da Fraternidade, Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, Campanha para redução das tarifas de energia elétrica e pela criação de outras fontes renováveis de energia, Campanha contra o rebaixamento da idade penal, Campanha de valorização do salário mínimo e contra o modelo neoliberal (maio 2007), Campanha da Marcha das Mulheres (8 de março). Os participantes se propõem continuar o Mutirão por um novo Brasil, construindo um projeto de país, em parceria com outras forças sociais democráticas, integrando valores que nos unem no sonho de um país politicamente democrático, economicamente justo, socialmente solidário, culturalmente plural, religiosamente ecumênico, ecologicamente sustentável, sem discriminações, que se traduza em um país com as seguintes características: Com um sistema político em que se exerça a democracia direta através de plebiscitos, referendos, iniciativas populares de leis, orçamento participativo e com a cidadania controlando o Estado; Que seja soberano, recupere as riquezas nacionais e respeite e valorize a biodiversidade. A democracia participativa será a garantia de soberania nacional; Em que o trabalho seja fonte de valorização pessoal, tenha remuneração digna e estabilidade e seja suprimido todo tipo de trabalho escravo; Cujas cidades sejam humanizadas, através de uma reforma urbana profunda, com garantia de moradia digna a todos;
Que recupere o sentido primordial da terra com sua destinação universal como patrimônio comum da humanidade, respeite o meio ambiente e a biodiversidade, faça a Reforma Agrária e a regularização fundiária das comunidades tradicionais e garanta a soberania alimentar; Cuja economia seja regulada pelo Estado para estar a serviço da vida de todos, organizada de maneira solidária; Em que sejam democratizados os meios de comunicação social, se faça a inclusão digital e se incentive a comunicação popular; Em que a educação e a cultura sejam um direito de todos, se valorizem os profissionais da educação e o patrimônio cultural, afirmando a importância da arte e da cultura popular nas suas diversas expressões; Em que a saúde seja direito de todos, se incentivem os Conselhos de Saúde e se cuide prioritariamente da saúde preventiva. A Quarta Semana Social Brasileira se encerra. Mas o Mutirão por um novo Brasil continua, reforçado por esses compromissos. Brasília, 20 de novembro de 2006. Quarta Semana Social Brasileira da CNBB – Seminário de Conclusão – de 17 a 19 de novembro.
A amizade é o caminho de convergência indicado por todos os grandes mestres espirituais aos homens e mulheres que sonham como eles com um mundo de paz Nestes tempos de intolerância e desrespeito às alteridades, o diálogo cede lugar, cada vez mais, à guerra. A qualquer hora e por qualquer motivo, desencadeamos o conflito. Restringimos nosso contato a relações de troca de prazeres e utilidade. Não bastam relações assemelhadas à amizade. A utilidade recíproca que uma pessoa representa para a outra pessoa ou o prazer que uma é capaz de dar a outra não fundamenta um caminho de amizade. Esta também não pode ser apenas uma relação baseada na privacidade de relações muito restritas com um grupo de poucas pessoas, enquanto se mantêm relações de opressão e violência no nível mais social e político. Enquanto o amor passional, embora maravilhoso, mantém sempre a tensão entre o desejo de possuir e o respeito pela alteridade, a amizade é essencialmente gratuita. São amigas as pessoas que se escolhem. Aelredo de Rievault, grande pensador medieval, diz: “Somos irmãos de todos os seres humanos, mas não podemos ser amigos de todos. A todos, devemos a justiça, o diálogo verdadeiro e profundo, mas somos convertidos a esses valores na relação com os verdadeiros amigos”. No Evangelho, Jesus de Nazaré nos ensina que não há mérito algum em amar os que nos amam. Grande é a pessoa que consegue fazer bem aos que a odeiam e opta por desarmar seus inimigos através do amor. Ao grupo mais íntimo de seus discípulos, durante a ceia, ele falou: “Eu não vos chamo discípulos porque o discípulo não sabe o que faz o mestre. Chamo-vos amigos porque tudo o que ouvi do Pai partilhei com vocês. Vós sois meus amigos se verdadeiramente fizerdes o que o Pai tem como projeto” (João 15). A amizade, então, é o caminho de convergência indicado por todos os grandes mestres espirituais aos homens e mulheres que sonham como eles com um mundo de paz. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006. Raílton Nascimento Souza é filósofo clínico e professor
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato .com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS
A promiscuidade da política brasileira Construtoras, siderúrgicas, agronegócio e bancos foram os principais doadores aos candidatos a cargo público em 2006 Daniel Merli de Brasília (DF)
chos, a Gerdau doou cerca de R$ 5 milhões. A assessoria de imprensa da siderúrgica não conseguiu localizar nenhum representante da empresa para conceder entrevista até o fechamento desta matéria. O valor das doações é pequeno para o nível de ganhos das empresas. Segundo o movimento, no ano passado, o setor faturou R$ 90 bilhões. O MAB afirma que cerca de um terço da energia elétrica produzida pelo país é consumida pela chamada indústria eletro-intensiva – que utiliza grande quantidade de eletricidade. Entre elas, a siderurgia e a celulose.
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TRÁFICO DE INFLUÊNCIA “Na prática, isso é tráfico de influência porque a empresa banca a campanha mas quer o retorno”, critica Eliana Graça, do Fórum Brasileiro de Orçamento, uma das 20 organizações que elaboram o projeto “Reforma Política: Construindo a plataforma dos movimentos sociais”. O documento, que será entregue ao Congresso Nacional, tem propostas de como tornar a política brasileira mais democrática. “A empresa banca a campanha mas quer um retorno”, critica a secretária-executiva do Fórum, rede de entidades que acompanha os gastos do Estado. Graça lembra que muitas empresas doadoras de
APOIO AOS TRANSGÊNICOS
Mar ingo ni
e cada R$ 100 gastos pelos candidatos na campanha deste ano, pelo menos R$ 10 dos cofres de empresas do setor de construção, siderurgia, agronegócio ou bancos. Os quatro foram os principais doadores declarados pelos candidatos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) . O balanço ainda é parcial, já que quase 40% dos candidatos não entregaram sua declaração. Também não leva em consideração quem doou dinheiro para as campanhas presidenciais, dado ainda não divulgado. As quatro maiores doações foram R$ 66,3 milhões das construtoras, R$ 21,6 milhões das siderúrgicas, R$ 19,6 milhões do agronegócio e R$ 17,8 milhões do mercado financeiro. Somente esses setores responderam por 10% da arrecadação de campanha.
dinheiro são prestadoras de serviços para o Estado, como as construtoras e siderúrgicas. Segundo ela, isso é uma promiscuidade. “Não há clareza da relação entre financiador e o candidato”, criticou. Além do conflito de interesses, Graça considera que a doação de empresa torna “totalmente desigual” a luta política. “Os atores da sociedade que não têm dinheiro para doar aos candidatos têm um peso menor de negociação”, afirmou. No financiamento privado, predomina o poder econômico, em que os candidatos com campanhas mais caras têm mais condições de se eleger. E, para isso, precisam de mais doações. A principal proposta para a legislação eleitoral é a instituição do financiamento público de
campanha e o fim das doações para candidatos.
GARANTIR O LUCRO Para as empresas, as eleições são uma forma de garantir espaço político no Congresso Nacional e nos governos estaduais e federal. O objetivo final seria a manutenção ou ampliação de privilégios que o Estado brasileiro oferece aos grupos privados. Essa é a avaliação de duas organizações que criticam o financiamento privado de campanhas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). No caso das siderúrgicas, que doaram R$ 21,6 milhões às campanhas eleitorais deste ano, o interesse
seria manter o subsídio ao consumo de energia elétrica, afirmou o MAB. Marco Antonio Trierveiler, da coordenação nacional do movimento, apresenta números sobre a tarifa de energia elétrica para comprovar que há interesse das siderúrgicas em financiar campanhas. O preço da energia elétrica para o consumidor familiar está em até R$ 0,68 por quilowatt/hora. Mas as siderúrgicas recebem um subsídio, determinado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que lhes permite pagar até R$ 0,07 por quilowatt/hora. É o caso, segundo Trierveiler, do Rio Grande do Sul, onde a siderúrgica Gerdau pagaria R$ 0,07 pelo quilowatt/hora. Para o consumidor familiar, o custo seria de R$ 0,64. Só entre os candidatos gaú-
No caso das empresas do agronegócio, segundo o MST, o motivo das doações seria o interesse em obter apoio dos governos para ações que degradam o meio ambiente. “Essas empresas representam risco ao meio ambiente e às populações tradicionais”, acredita José Batista de Oliveira, da coordenação nacional do MST. Batista cita o caso específico dos transgênicos, liberados em parte pelo governo federal, e da companhia Aracruz, que disputa judicialmente uma área de 11 mil hectares, no Norte capixaba. A Fundação Nacional do Índio (Funai) deu parecer afirmando que a área é de ocupação dos Tupiniquim e Guaranis. “O agronegócio quer se fortalecer onde possa garantir seus interesses”, acredita o integrante do MST, citando o Congresso Nacional e os governos estaduais. Batista considera que a ocupação do poder é uma forma de garantir apoio à degradação que essas empresas cometem no meio ambiente e sociedade.
DESIGUALDADE RACIAL
Da consciência do problema a propostas efetivas Fotos: Anderson Barbosa
Eduardo Sales de Lima da Redação Em 20 de novembro, houve manifestações para marcar o Dia da Consciência Negra. Em São Paulo (SP), a 3ª Marcha da Consciência Negra reuniu cerca de 12 mil pessoas. Celebrados no dia da morte do herói nacional, Zumbi dos Palmares, os atos trazem à tona debates sobre a desigualdade social ligada à desigualdade racial. E, no balanço, mesmo com algumas conquistas na área da educação (segundo o IBGE, cresceu de 18% para 30% o número de universitários negros e pardos na última década), as diferenças continuam: no mercado de trabalho, os afro-brasileiros ganham metade do salário dos brancos. Segundo a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em setembro , nas seis principais regiões metropolitanas do país (Recife, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro), a população declaradamente preta ou parda recebia, em média, R$ 660,45; os brancos, R$ 1.292,19. Para Frei David Raimundo dos Santos, diretor da Educafro, entidade que luta contra a desigualdade racial, somente com a conscientização e a participação efetiva dos governos haverá mudanças substanciais. “O movimento negro pressionou o então ministro da Educação, Paulo Renato Souza, a não aplicar em filantropia e, sim,
No dia 20, 12 mil pessoas participaram da 3ª Marcha da Consciência Negra, na cidade de São Paulo; percorrendo o trajeto da Avenida Paulista até o Parque do Ibirapuera
em inclusão. O governo FHC não fez nada. Lula enfrentou o problema, e um exemplo foi seu tratamento aos quilombos, identificando-os”, conta Frei David. Segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2002 eram 743 quilombos identificados pelo governo federal; hoje, são mais de 2.500. Em setembro, entre os empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado (que têm maior proteção legal e melhores remunerações), 59,7% era de brancos; 39,8%, de pretos e pardos. “Dar oportunidade à população que hoje está abaixo da linha de pobreza
causará um efeito positivo no mercado interno e em aspectos sociais como no caso da segurança pública, porque se cria um sentimento de pertencimento a uma sociedade. Políticas que visam a justiça social serão benéficas em qualquer lugar do mundo”, afirma o economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo Paixão.
INCLUSÃO Segundo Paixão, o Prouni, programa do governo que abre vagas em universidades particulares para pessoas de baixa renda, significa um acesso maior a pessoas pobres e negras no ensino
superior. No entanto, acredita, a universidade precisa reformatar suas agendas acadêmicas de pesquisas, dialogando mais com a realidade; daí a importância da maior inserção dos afro-brasileiros nas universidades. “Num longo prazo, todo mundo vai sair ganhando. A sociedade estadunidense não ficou mais racista depois da adoção das políticas de ação afirmativa”, explica o economista. Para Frei David, as cotas são ações temporárias que visam equilibrar e estancar as fontes de exclusão e, “se os governos forem sérios, com certeza as cotas serão suspensas muito antes do que imaginamos”. Com base nos
dados da PME, a relação entre estudo e rendimento é desigual: em comparação com “pretos” e “pardos” com oito a dez anos de escolaridade, os “pretos” e “pardos” que, pelo menos, completaram o ensino médio têm um acréscimo de 62% em seu rendimento. No caso dos brancos, a diferença sobre para 250%. Instrumento fundamental para evitar tal disparidade e injustiça seria o Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador gaúcho Paulo Paim (PT), que se encontra engavetado no Congresso. Defende que a participação política dos afro-brasileiros seja promovida por meio da “eliminação dos obstáculos
históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade racial nas esferas pública e privada”. Para Frei David, a briga partidária esquece que o partido está para servir ao povo e passa a ser um “servir a si mesmo”. “O PFL e o PSDB brigaram para não deixar o projeto de cotas ir para o Senado. Se eles não tivessem feito o requerimento, já estaríamos com as cotas em todo território nacional. Eles não aprovaram porque entendiam que aquela matéria iria apoiar o governo Lula e menosprezaram a sociedade organizada que pautou esse assunto”, revela.
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NACIONAL ECONOMIA João Zinclar
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Três perguntas A reeleição de Lula e a vitória do PT para o Congresso Nacional devem suspender a apuração do caso da compra de dossiê, quando foram aprendidos R$ 1,7 milhão com militantes petistas e até agora de origem não esclarecida? Os envolvidos em eventuais crimes financeiros e eleitorais devem ou não ser punidos? Quem é de esquerda e luta pelo socialismo deve esquecer tais fatos? Censura sutil Os Estados Unidos adoram fazer propaganda de que são os reis da democracia e da liberdade de imprensa, mas na vida real a coisa não é bem assim. Em outubro, a emissora de TV Al Jazeera, do Catar, inaugurou canal em língua inglesa com transmissões para boa parte do mundo. Só não estava sendo captada nos Estados Unidos devido a boicote dos principais grupos televisivos locais. Desgoverno – 1 O próprio presidente Lula determinou a busca de saídas legais e jurídicas para contornar os impedimentos do Ministério do Meio Ambiente e do Poder Judiciário aos projetos públicos e privados que causam danos ao meio ambiente. Se a ordem for cumprida, a construção de estradas, usinas hidrelétricas e outras obras vão acelerar a destruição de rios e florestas nos próximos anos. Desgoverno – 2 Depois de comprar – ilegalmente – a TVA, já que empresa estrangeira não pode ser dona de canal pago, a espanhola Telefônica anunciou que vai lançar seu próprio canal via satélite. O setor de telecomunicações está um verdadeiro faroeste, um território sem lei deliberadamente comandado pelo ministro Hélio Costa para favorecer os negócios dos grupos privados. Contra os interesses do povo. Projeto polêmico A Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão está tentando aprovar a toque de caixa, sem estudo de impacto ambiental e o necessário debate com a população, um projeto de reflorestamento numa área de 71 mil hectares no cerrado, que deverá afetar a vida das populações de nove cidades. O projeto polêmico é da empresa Margusa, do Grupo Gerdau, uma estrela ascendente no governo federal. Outro presente Depois de liberar da internalização e dos impostos 30% do montante obtido com a exportação, o governo estuda nova isenção do imposto de renda para fundos de investimentos privados que aplicarem seus recursos em obras de infra-estrutura. Como os trabalhadores continuam pagando regiamente o imposto de renda na fonte, a isenção para o capital só favorece a concentração da renda. Botim disputado No momento em que o presidente Lula ensaia a composição e os planos da nova gestão, as elites conservadoras e a imprensa burguesa tratam de indicar de onde querem tirar recursos para favorecer os grupos empresariais que sempre se beneficiam do Estado brasileiro: o alvo preferido é a Previdência Social, os outros são o funcionalismo público e os projetos sociais. É só esperar para ver. Mentira global Finalmente apareceu alguém de peso, com autoridade, para enfrentar e denunciar as bandalheiras da TV Globo, que costuma aprontar das suas e não dá satisfações para ninguém. O governador do Paraná, Roberto Requião, desmentiu e desmoralizou publicamente as reportagens da emissora sobre supostos congestionamentos no porto de Paranaguá. Baixou o espírito de Leonel Brizola. Tudo azul A Bolsa de Valores de São Paulo, principal centro de especulação de ações do Brasil, comemora o fechamento de mais um ano em alta, como foram todos os anos do governo Lula. Na fase anterior, no 2º mandato de Fernando Henrique Cardoso, a Bovespa só teve alta em 1999, depois amargou três anos – 2000, 2001 e 2002 – de baixas seguidas. Agora os especuladores estão rindo à toa.
Ao contrário do senso-comum, a despesa do governo com a Previdência não é crescente; em 1995, ela representava 34% do total do orçamento, em 2005, 31%
O crescimento não é neutro Financiar expansão da economia com corte na Previdência e nos gastos sociais concentra renda Luís Brasilino da Redação
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orte de gastos públicos, redução de impostos e uma nova reforma da Previdência. De que candidato mesmo era essa agenda? Por enquanto, esse também é o teor das medidas que vem sendo discutidas pelos ministros da área econômica do governo federal. Nesse debate, a equipe ligada ao ministro Paulo Bernardo (Planejamento) e ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, lançou a proposta de desvincular a correção do piso previdenciário dos aumentos do salário mínimo. A idéia ganhou o apoio da mídia tradicional, marcando o início de uma segunda etapa da estratégia conservadora para pautar a agenda política do país. Nos últimos 12 anos de política econômica neoliberal (dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e um de Lula), o país praticamente não cresceu. Porém, o sistema financeiro bateu seguidos recordes de lucro, boa parte graças ao mecanismo monetarista de combater a inflação com uma política recessiva e elevadas taxas de juros – o Brasil possui as maiores do mundo. Na campanha, o presidente Lula se comprometeu com um crescimento anual de 5% do Produto Interno Bruto (PIB). Como o governo não tem um projeto de como fará essa expansão da economia, as portas ficaram abertas às especulações e à pressão dos grupos hegemônicos. Neste mês, Lula chamou seus ministros da área econômica para discutir um pacote de iniciativas para obter os 5% de expansão.
“CHOQUE DE GESTÃO”? A principal medida reverberada pelos meios de comunicação corporativos e por “analistas” econômicos é de que, sem maior rigor fiscal, o PIB não crescerá. Evidentemente, a redução das despesas com os serviços da dívida não entraram no tubo de ensaios da equipe econômica, ou seja, preservam-se os lucros do sistema financeiro. A tese neoliberal é de que, com o corte nos gastos públicos, a União teria sobra de recursos para fazer investimentos necessários e impulsionar o crescimento. Outra frente de ação é a redução da carga tributária, criando condições para os empresários também investirem. No entanto, essas propostas parecem ser frágeis e limitadas. Primeiro, quem garante se, em vez de investir na produção, as empresas não vão aumentar a sua taxa de lucro? Um estudo da economista Silvana Mendes Campos e o engenheiro Marcelo Cota Guimarães, batizado de Execução Orçamentária do Brasil: de FHC a Lula - Parte 1, do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal –
Delegacia São Paulo (Unafisco-SP), mostra que o orçamento federal é, de fato, pressionado pelos gastos financeiros – e não com outros, como sociais ou Previdência. A pesquisa investigou os oito anos de governo Fernando Henrique e os três primeiros de Lula com base em dados oficiais. De acordo com os auditores-fiscais, em 2005, o governo federal aplicou 26,49% do orçamento em áreas sociais (aquelas que seriam alvo do tal “choque de gestão”) frente a 42,45% em serviços da dívida pública. A verba restante, 31,06%, foi destinada para a Previdência Social. Para os pesquisadores, melhorar a eficiência do gasto – seja lá o que essa expressão signifique – não altera significativamente o panorama das contas públicas. “Mesmo que, com um enorme esforço, houvesse 5% a
mais em eficiência sobre o conjunto dos gastos de infra-estrutura e social, isso representaria pouco mais de 1% no cômputo geral dos gastos da União”, revelam.
CONCENTRAÇÃO DE RENDA Como a lógica conservadora é evitar cortes nas despesas financeiras (basicamente, pagamento de juros), naturalmente, o outro alvo indicado são os 31,06% do orçamento. Um grande engano, já que apesar de beneficiar cada vez mais pessoas, a despesa do governo com a Previdência não é crescente – ao contrário dos compromissos financeiros. “Os gastos com a Previdência Social passaram de 34% em 1995 para 31% em 2005 do total do orçamento público, apesar da inclusão de mais benefícios sociais para as áreas rural e doméstica. Portanto, esses gastos
sofreram um declínio proporcional e, por isso, não poderiam estar influenciando negativamente o equilíbrio das contas públicas”, argumenta o estudo da Unafisco-SP. Mais do que uma idéia ruim, na opinião do economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o corte previdenciário atende a um projeto de classe da elite. “A idéia de cortar o gasto social na realidade não resolve nenhum dos problemas que já existem na economia. Por outro lado, levaria a uma recessão ainda mais profunda nesse setor de bens básicos de consumo. Ao se vislumbrar a possibilidade de crescimento sem o papel da demanda efetiva representada pelo gasto social, o que se está acenando é com a idéia de piorar a distribuição de renda”, observa.
Em 11 anos, gastos com a dívida subiram 1000% Para o economista Guilherme Delgado, a tese de reduzir gastos previdenciários para estimular o desenvolvimento não passa de um truque. “Isso não tem nada a ver com crescimento. Esses cortes seriam transferido para o superavit primário (economia de recursos usada para pagar juros) de modo a gerar o deficit nominal zero”, coloca, retomando a proposta encampada pelo ex-deputado Delfim Netto de um corte agressivo no gasto público. Dessa forma, a concentração de renda provocada pela atual política econômica de juros altos iria aumentar. Hoje, cerca de 20 mil famílias brasileiras ficam com 4,25% do PIB só por emprestar dinheiro ao governo, segundo estudo do economista Marcio Po-
chmann, da Unicamp. Com o deficit nominal zero, esse percentual subiria 7% do PIB, Já a proposta de cortar investimento social e gasto público nem de longe enfrenta um dos maiores entraves do país: os gastos com juros da dívida que, entre 1995 e 2005, passaram de R$ 26 bilhões (16% do orçamento) para R$ 257 bilhões (42% do orçamento). “A carga tributária cresce para cobrir o aumento dos encargos da dívida. Se, por hipótese, extirpássemos essa rubrica do orçamento, a carga tributária cairia dos atuais 39% para o patamar dos 26% do PIB, percentual aceitável para a economia brasileira”, afirmam Silvana Mendes Campos e Marcelo Cota Guimarães, no estudo elaborado para a Unafisco-SP.
O estudo da Unafisco-SP conclui que, para o Brasil crescer, o ponto crucial é reduzir os encargos da dívida pública, uma vez que é o fator que mais pressiona a carga tributária. “Devemos ao sistema financeiro a metade de todas as riquezas que conseguimos produzir no país (PIB). Para reduzir os encargos da dívida, necessariamente, temos de passar por uma redução significativa da taxa de juros, por uma auditoria responsável do total da dívida pública e por uma conseqüente renegociação ampla. Somente, então, a carga tributária poderá ser reduzida efetivamente, estimulando a economia e permitindo que uma parcela maior do orçamento seja destinada aos gastos sociais e estruturais”, orientam Silvana e Guimarães. (LB)
ASSEMBLÉIA POPULAR
União contra a política econômica Gisele Barbieri de Brasília (DF) A unidade dos movimentos sociais. Este é o ponto de consenso para diversas mobilizações populares em 2007 que devem exigir a mudança da política econômica. Cerca de 130 integrantes de 45 redes de movimentos sociais reuniram-se em Brasília (DF), nos dias 15 e 16 deste mês, para avaliar o processo da Assembléia Popular e planejar as ações em 2007. “Não ocorreram as mudanças estruturais que esperávamos, e sim políticas compensatórias que ajudaram a melhorar a vida dos pobres. Vamos pressionar muito neste segundo mandato para que se mude a política econômica. Queremos recursos investidos na
geração de emprego, com mais postos de trabalho e, principalmente, nos aspectos sociais como a saúde, transporte e moradia”, avalia Luis Bassegio, da Secretaria Continental do Grito dos Excluídos. A Assembléia Popular é uma ampla articulação de movimentos sociais do país, centrada na discussão de um projeto para o país. As organizações impulsionam debates em assembléias, em cada região, sobre as necessidades locais. Nos municípios, participam tanto pessoas ligadas às entidades quanto a sua população. Depois, as propostas levantadas são levadas para uma assembléia estadual. Essas discussões depois, por sua vez, integram o debate da Assembléia Popular Nacional, que realizará
sua segunda edição no próximo ano, em Brasília. Cinco eixos de ação foram estabelecidos para fortalecer a união dos movimentos na Assembléia: Trabalho e Emprego, Distribuição de Renda, Soberania, Educação, Democratização dos Meios de Comunicação e Meio-ambiente. As ações definidas pelos integrantes dos movimentos sociais, pastorais e centrais sindicais presentes na plenária começam ainda este ano, mais especificamente em 6 de dezembro, na terceira edição da Marcha Nacional pela valorização do salário mínimo, em Brasília (DF), organizada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) com o apoio dos movimentos populares. A principal reivindicação é um salário mínimo de R$ 420.
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NACIONAL
Após dois anos, assassinos continuam livres
Renato Lopes/Estado de Minas
FELISBURGO
Movimentos exigem indenização às famílias das vítimas do massacre e a desapropriação da fazenda do mandante do crime Tatiana Merlino da Redação
A
inda era cedo, em 20 de novembro de 2004, quando 18 homens encapuzados invadiram o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Terra Prometida, em Felisburgo (MG), e assassinaram cinco pessoas, deixaram 12 feridos, queimaram barracos e destruíram uma escola. Dois anos depois do acontecimento, que ficou conhecido como Massacre de Felisburgo, apenas três dos acusados da chacina permanecem presos. Sete jagunços identificados e o mandante, o fazendeiro Adriano Chafic Luedy, continuam em liberdade. Além dos crimes permanecerem impunes, os moradores do acampamento continuam sendo agredidos e ameaçados por pistoleiros e fazendeiros da região. Segundo eles, a prefeitura da cidade tem se recusado a melhorar a infra-estrutura e assistência ao acampamento. “O prefeito trata os acampados com desdém e não atende a nenhuma de nossas demandas”, afirma Vanderlei
comarca local para Belo Horizonte, para que não haja controle do caso pelo poder local. De acordo com Valente, a própria juíza da comarca local solicitou o desaforamento do caso, por questões de segurança. A prisão do fazendeiro já foi decretada duas vezes, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu ao réu habeas corpus em ambas as vezes. Em outubro, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou, por unanimidade, o pedido de Chafik de não ser julgado pelo Tribunal do Júri. Diante disso, ele entrou com mais um recurso no STJ para evitar o júri, e ainda não teve resposta.
Martini, da coordenação estadual do MST. De acordo com Martini, quando chove, a prefeitura não manda transporte para buscar as crianças para ir à escola, o que as obriga a acordar às 4h30 e a caminhar cerca de seis quilômetros. “Para completar, a professora da escola é casada com um amigo de um dos jagunços”, lembra Martini.
PERIGO PERMANENTE A omissão da prefeitura com o acampamento acontece porque “há uma nítida influência de Chafic sobre o poder público municipal, que acaba controlando possíveis melhoramentos na área”, analisa Flávio Valente, relator Nacional para os Direitos Humanos, a Alimentação, Água e Terra, da Plataforma (Dhesca). Valente visitou o acampamento Terra Prometida no dia 16. De acordo com ele, a postura dos jagunços da região é tão agressiva, “que existe o risco de haver novos acontecimentos de violência por lá”. Dessa maneira, uma das maiores reivindicações do MST e de defensores de direitos humanos é a transferência do julgamento da
OMISSÃO DO GOVERNO A indenização às famílias das vítimas da chacina é outra exigência do MST e entidades. Após o massacre, o governo de Minas Gerais concordou em indenizar as famílias das cinco vítimas pelas mortes e conceder aposentadoria às viúvas. Antes do massacre, o MST, a Comissão Pastoral da Terra e o Ministério Público Estadual denunciaram as
Em novembro de 2004, mais cinco sem-terra tombaram na luta pela terra
ameaças que os sem-terra estavam sofrendo. “Está claro que o governo do Estado teve responsabilidade no que aconteceu lá”, afirma Valente, que está preparando um relatório denunciando a situação atual dos acampados e com recomendações aos governos municipal, estadual e federal. “Para o Estado, além de solicitar a indenização, vamos pedir que eles tomem medidas para proteger as famílias”, lembra o relator. O documento
deve estar pronto até o final de novembro, quando será encaminhado a entidades governamentais e à Organização das Nações Unidas (ONU), a fim de mobilizar entidades internacionais na cobrança de providências. O deputado estadual Rogério Correio (PT), vice-presidente da Assembléia Legislativa de Minas, protocolou o projeto 2.972/2006 que transforma o acordo em lei. Outra exigência do MST é a desapropriação da fa-
zenda Nova Esperança por interesse social em função do grave conflito que persiste e o assentamento de todas as famílias acampadas na região. “Seria o primeiro caso de desapropriação por sanção ao proprietário”, aponta Valente. Composta de dois mil hectares de terras griladas e devolutas, de acordo com o Instituto de Terras de Minas Gerais (ITERRA), a fazenda Nova Alegria está ocupada desde maio de 2002.
INJUSTIÇA INSTITUCIONALIZADA
Gisele Barbieri de Brasília (DF) O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) entregou, em outubro, a integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), um relatório sobre a criminalização sofrida pelos movimentos sociais brasileiros. A idéia da denúncia internacional surgiu em abril, em Brasília (DF), na Assembléia Nacional do Movimento de Direitos Humanos. No Brasil, o relatório foi lançado em novembro. A criminalização dos movimentos populares sempre foi preocupante, afirma o relatório, mas, em 2005 e 2006, a situação se agravou. A análise conclui que os processos judiciais, envolvendo movimentos sociais, são em grande parte utilizados para frear a atuação dos defensores de direitos humanos. Ao todo, no Brasil, 130 pessoas de diversos movimentos sociais estão sendo processadas. Os integrantes das organizações, aponta o relatório do MNDH, revelam que a mídia conservadora esconde, nas mobilizações sociais, as causas da luta, geralmente por justiça social, e as tratam como caso de polícia. Além do Brasil, oito países das Américas participaram da reunião com a OEA. Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, Peru e Panamá elaboraram o mesmo material
descrevendo sua realidade. No material, é abordado o processo histórico de injustiça sofrida pelas organizações populares, em anos de luta. A diferença de tratamento dada pela sociedade em espaços como os meios de comunicação, Poder Judiciário e a forte repressão policial.
Arquivo Brasil de Fato
Movimentos sociais, tratados como criminosos
FALTA DE RECURSOS Um programa nacional para proteção de defensores de direitos humanos foi lançado pelo governo federal, em 2003. Desde lá está prevista sua implantação em nove Estados, porém por falta de recursos e problemas, como a falta de comprometimento dos governos estaduais, funciona somente em três Estados. Entre eles, está o Pará. Segundo documento produzido por várias entidades, dentre as quais o MNDH, após missão investigativa neste Estado, foi apurado que em torno de 60 paraenses ligados à defesa da reforma agrária estão ameaçados de morte. Ocorreram, além disso, muitos casos de assassinatos que tinham como objetivo travar essa luta. É o caso da irmã Dorothy Stang, morta em fevereiro de 2005 no município de Anapu (PA). No município, há uma das maiores incidências de assassinatos de trabalhadores em conflitos de terra. Dorothy lutava desde a década de 1970 junto aos trabalhadores rurais, pedindo geração de emprego e renda com pro-
Só no Pará, 60 defensores da reforma agrária estão ameaçados de morte
jetos de reflorestamento em áreas degradadas e recebeu diversas ameaças de morte, mas nunca se intimido. Foi morta com sete tiros. O MNDH sugere diretrizes para uma reforma do Judiciário, que amenize a perseguição a lutadores do povo. “Hoje existe claramente um interesse de alguns membros do Judiciário em favorecer grandes proprietários de terra, atendendo o grande capital e o agronegócio. Eldorado dos Carajás, por exemplo, são 10 anos e até agora ninguém foi julgado. Se um fazendeiro entrar com uma ação na justiça hoje, amanhã já será julgada”, critica o coordenador nacional do Setor de Direitos Humanos do MST, João Luis Vieira de Souza.
Os movimentos sociais consideram nítida a distância entre a justiça social e justiça legal. Um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) no ano passado, revelou a diferença das ações judiciais nos conflitos agrários. O estudo analisou três processos contra agricultores, três contra fazendeiros e outros três contra policiais. Os Estados analisados foram Rio Grande do Sul, São Paulo, Pará e Pernambuco. Algumas das conclusões nos processos analisados comprovam a desigualdade de tratamento dado pela Justiça. Somente na fase da denúncia, os trabalhadores rurais enfrentam uma média de seis meses de prisão preventiva, contra um máximo de 20
dias para fazendeiros. Os policiais recebem o mesmo prazo dos fazendeiros com a diferença de que cumprem prisão administrativa.
PERSEGUIÇÃO POLÍTICA Luiz Gonzaga da Silva, conhecido como Gegê, é coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP). Teve a prisão provisória decretada por suposta co-autoria em um homicídio, ocorrido em 2002, em uma ocupação. “Não fui o primeiro e nem serei o último a passar pela avaliação desta Justiça que está a serviço dos já servidos. Nós só poremos fim na criminalização com muita luta e com o povo na rua. Eu não vejo alternativa, pois é uma crise que está na elite da so-
ciedade, cada dia que passa mais movimentos e pessoas enfrentam essa situação”, afirma. Ele prestou depoimento no inquérito policial e levou testemunhas que estiveram com ele na hora do fato. Mesmo assim, sua prisão foi decretada. “Não é fácil ser preso e ter de viver escondido. Por mais que a gente saia dessa situação, a gente sente como é difícil voltar a viver na sociedade. O povo nunca vai deixar de acreditar na mídia e passar a acreditar no que você diz. Por mais que você não deva e não tenha nada a ver com isso, eles nunca vão dar espaço para dizer que tudo aquilo era mentira”, afirma Gegê. Ele ficou quase dois meses preso em 2004. Solto, compareceu em todos os atos do processo. No entanto a sentença em abril de 2005, que além de determinar que o caso fosse a julgamento por júri popular, determinou nova prisão preventiva. Tratando-se de mais um pedido de prisão preventiva injusto, Gegê não se apresentou e no relatório consta que ele só voltou a sua vida normal depois que foi concedido novo habeas corpus. Atualmente, Gegê está em liberdade. “O problema da criminalização é como uma doença, você vê as pessoas morrerem todo o dia dessa doença, mas você não entende enquanto não sofrer na própria pele” conclui.
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INTERNACIONAL CONGO
Oposição não aceita resultado de eleição Nando Quintana
Joseph Kabila, atual presidente, é reeleito; partidários do candidato derrotado, JeanPierre Bemba, dizem ter havido fraude
Divulgação
Judith Rose
Igor Ojeda da Redação
A
República Democrática do Congo (RDC) entrou em um novo ciclo de violência, após o anúncio do resultado do 2º turno da eleição presidencial, a primeira em mais de quatro décadas. No dia 21, na capital Kinshasa, apoiadores do candidato derrotado, o exlíder rebelde e atual vice-presidente Jean-Pierre Bemba, entraram em confronto com a polícia em protestos contra o que chamam de fraude eleitoral. As manifestações causaram um incêndio na Suprema Corte do país, além de dois carros terem sido queimados. A polícia usou gás lacrimogêneo e as tropas de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) atiraram para o alto para dispersar a multidão. O Ministro do Interior,
Joseph, filho de Laurent Kabila, assassinado em 2001 (no detalhe), foi reeleito para o cargo que foi também uma vez ocupado por seu pai
Denis Kalume, disse que alguns dos manifestantes carregavam armas, e atiraram contra as forças policiais. O 2º turno foi realizado em 29 de outubro. No dia 15 de novembro, o presidente da Comissão Eleitoral Independente (CEI), o abade Malumalu, declarou reeleito o atual presidente Joseph Kabila, do Partido do Povo para a Reconstrução e a Democracia (PPRD), que obteve 58,05% dos votos válidos. Bemba, do Movimento de
Libertação Congolês, conquistou 41,95%. A violência fez com que a Suprema Corte suspendesse a audiência em que o candidato derrotado denunciava uma suposta fraude no pleito. Logo após a declaração do vencedor pela CEI, apoiadores de Bemba, incluindo alguns membros da Igreja Católica, afirmaram não aceitar o resultado. Observadores da ONU e da Comissão Eleitoral da África do Sul disseram que as
irregularidades não aconteceram numa escala suficiente para mudar o resultado. A diferença entre os dois candidatos ficou em mais de 2,5 milhões de votos (9.436.779 contra 6.819.822). Após o anúncio dos resultados do 1º turno, em agosto, forças de segurança ligadas a Kabila e a Bemba entraram em confronto na capital, causando a morte de pelo menos 23 pessoas. Teme-se que agora ocorram conflitos mais graves, principalmen-
te na capital, onde Bemba comanda milícias e Kabila possui o poder sobre milhares de guardas presidenciais fortemente armados, apesar da discutível lealdade destes.
DISPUTA POR RECURSOS As eleições presidenciais fazem parte de um acordo de paz assinado em dezembro de 2002 para pôr fim a uma guerra civil (1998-2003) que envolveu diversas nações vizinhas e que matou 5 milhões de pessoas. Além do processo
eleitoral, o acordo previa que os líderes de quatro grupos rebeldes fizessem parte do governo como vice-presidentes durante o período de transição – entre eles, Bemba. A causa do conflito foi a disputa pela imensa reserva de recursos minerais, principalmente no Leste do país: ouro, diamante, cobre, cobalto, urânio e tântalo, entre outros. No entanto, ainda hoje ocorrem confrontos diários na região, estimulados em grande parte pela compra ilegal desses bens por empresas transnacionais, entre elas a Bayer, que adquire o tântalo com o objetivo de processálo e vendê-lo às empresas de celular. Tal instabilidade interna põe em dúvida a capacidade de Kabila de estimular as transformações sociais de que o país precisa. Dos cerca de 60 milhões de congoleses, 70% vive abaixo da linha de pobreza. A expectativa de vida média é de apenas 51 anos. Kabila é filho de Laurent Kabila, que passou a governar a RDC em 1997, após liderar o movimento que derrubou a ditadura de Mobuto Sese Seko (1965-1996). Em 2001, Kabila pai foi assassinado numa tentativa de golpe, abrindo caminho para a subida ao poder do atual presidente. (Com agências internacionais)
PALESTINA
Dívida impede desenvolvimento
Violações aos direitos humanos em Gaza
A dívida, o livre comércio, a pobreza e as perspectivas de desenvolvimento latino-americano. Todos esses temas foram debatidos por organizações sociais de vários países da América Latina, entre 26 de outubro e 2 de novembro, num encontro realizado em Porto Príncipe, capital do Haiti, o país mais pobre do continente. Convocado pela Campanha Jubileu Sul e pela Plataforma de Ação para um Desenvolvimento Alternativo no Haiti (Papda), o encontro contou com a participação de representantes do governo haitiano. O ministro de Planejamento, Jean Max Bellerive, disse que quem exerce as funções do governo são as agências multilaterais, como o Banco Mundial (BM), e a maior parte dos empréstimos dessas instituições não vai para o Estado, mas para organizações não governamentais (ONGs). Diante disso, revela Rodrigo Ávila, economista e integrante do Jubileu Sul, “propus ao ministro a realização de uma auditoria na dívida haitiana com a participação da sociedade, e ele concordou”. Em um texto final, chamado Declaração de Porto Príncipe, assinado por todas as entidades que participaram do encontro, as instituições financeiras multilaterais (IFIs), como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), são consideradas responsáveis pela destruição da economia haitiana. O documento reforça que o Quadro de Cooperação Interina (CCI), conjunto de propostas para a economia
Claudia Herrera Beltran Beit Hanoun (Palestina) A faixa de Gaza, território palestino, sofre violações “massivas” às garantias básicas, afirmou, no dia 20, a alta comissionária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Louise Arbour, em visita a essa região. Sua permanência na área coincidiu com uma mobilização de escudos humanos na localidade vizinha, de Beit Lahiya, com o objetivo de impedir o bombardeio, promovido pelas forças armadas israelenses, à casa de supostos militantes do movimento de resistência islâmica Hamas. A proteção das moradias dos palestinos, que são ameaçados pelas tropas de Israel, foi suficiente para impedir que dois membros do Hamas morressem, quando um avião israelense disparou contra um automóvel, na cidade de Gaza. Esse novo ataque “seletivo” acabou com a vida de dois comandantes locais das Brigadas Ezzedin Al Qassam, o que elevou a 5.574 o número de vítimas fatais, a maioria palestinos, desde que se iniciou a Intifada em territórios palestinos.
Organizações sociais da América Latina debateram a retirada das tropas da ONU
haitiana elaborado pelo BM e pelos chamados “doadores internacionais”, vai contra o direito do povo haitiano de determinar seu próprio desenvolvimento, pois suas políticas de liberalização comercial e privatizações provocam outras modalidades de endividamento.
FALSA INTEGRAÇÃO A declaração denuncia que o projeto da Iniciativa para a Integracão da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), criada pelas IFIs , não é uma alternativa
de integração. “Essa iniciativa responde à necessidade de criar uma base física para que as corporações possam expandir suas atividades e controlar recursos estratégicos, como as fontes de energia, água e biodiversidade”, afirma o texto. “As políticas aplicadas ao Haiti são desenhadas e aplicadas por essas instituições. O BM faz um empréstimo ao Haiti se forem aplicadas as políticas neoliberais como a instalação de zonas francas”, afirma Fabrina Furtado, assessora política sobre
instituições financeiras multilaterais da Rede Brasil, que participou do encontro. Segundo dados da Rede Brasil, a dívida do Haiti chegava a 1,35 bilhão de dólares (sendo 556 milhões do BID), em 2004. A organização destaca que o montante dos pagamentos reclamados duplicou entre 1996 e 2003, sendo que 22% do orçamento governamental para 2004 e 2005 foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida.
Entidades acusam soldados da ONU de praticar violência sexual A Declaração de Porto Príncipe, documento divulgado por organizações sociais latino-americanas no início de novembro, denuncia o aumento da violência contra as mulheres e suas organizações. Afirma que a violência é usada como ferramenta política pelas classes dominantes. Fabrina Furtado, da Rede Brasil, que assinou a declaração, afirma que os militares da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) praticam violência sexual. “O grande problema é que os militares não são julgados. Se um caso é comprovado, o soldado é enviado de volta
ao Brasil e fica por isso”, conta. A violência política tornou-se também prática comum no Haiti. “Quando ocorre alguma manifestação, aparece a tropa da Minustah com tanques de guerra e soldados tirando fotos dos manifestantes e apontando metralhadoras. Isso permite que as transnacionais e as zonas francas se sintam muito à vontade para reduzir os direitos dos trabalhadores, porque se sentem protegidos pelas tropas. O domínio é, ao mesmo tempo, econômico e militar, uma coisa se presta à outra”, avalia o economista Rodrigo Ávila. (ESL)
Israel intensificou seus ataques “seletivos” desde o dia 14, quando um foguete palestino de fabricação artesanal, tipo Qassam, tirou a vida de uma israelense residente no Sul do país, na cidade de Sderot. Os disparos de foguetes em direção a Israel e a preocupação de Tel Aviv em frear esse tipo de ação levou um ministro, sem cargo definido, do governo de Ehud Olmert, Yitzhak Cohen, militante do partido religioso ortodoxo Shass, a aceitar a possibilidade de que uma força internacional de paz seja colocada entre a faixa de Gaza e Israel. A proposta de criar uma força de interposição entre os dois territórios ganhou força, após a Assembléia Geral da ONU aprovar uma resolução, vetada pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança, que condenou o ataque de 8 de novembro passado contra a moradia de uma família palestina em Beit Hanoun, no Norte da faixa. Arbour visitou os sobreviventes do ataque chamado de “Massacre de Beit Hanoun”. “O pedido de proteção deve obter resposta”, disse. Arbour assinalou que são os civis que sofrem as conseqüências do conflito. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)
Whiteant/Creative Commons
Eduardo Sales de Lima da Redação
Fabrina Furtado
HAITI
A destruição de casas na Faixa de Gaza é uma constante
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INTERNACIONAL
MÉXICO
Um presidente legal, outro legítimo Tanto Calderón, da direita, quanto Obrador, apoiado por vários movimentos populares, se declaram chefes do Executivo Arquivo Brasil de Fato
Domingos Tadeu/PR
Pedro Carrano de Curitiba (PR)
setor financeiro. Porém, na atual circunstância, Alejandro pensa que os aderentes da Outra Campanha apóiam Obrador, ainda que sigam por um outro caminho, pois existe uma resistência à chegada de Calderón ao poder. “A Outra Campanha não se manifestou por AMLO, mas sim as pessoas individualmente. A Outra Campanha é uma organização profunda e do povo, que tem um outro caminho e destino”, diz. Alejandro defende que o próprio subcomandante Marcos reconheceu recentemente Obrador como uma liderança de força.
N
o confronto direto com a democracia representativa, a luta social no México teve, no dia 20 de novembro, mais uma data importante. Foi nesse dia que Andrés Manuel López Obrador (AMLO) tomou, como forma de protesto, a faixa presidencial e lançou os 20 pontos do seu chamado “governo legítimo”. O programa pretende defender as classes sociais que sofrem diretamente o resultado das escolhas da classe política dominante mexicana: as privatizações e o tratado de livre comércio, para citar algumas. O presidente “legal”, ou seja, reconhecido pelas instituições do país, Felipe Calderón, representa a continuidade das políticas que beneficiam apenas os mais ricos. Os movimentos sociais mexicanos não reconhecem a vitória de Calderón nas eleições de julho, que consideram fraudulenta. Os 20 pontos de Obrador definem diretrizes para diminuir o preço dos produtos de consumo das camadas populares, comprometer-se em não privatizar dois setores que ainda resistem – o elétrico e o petrolífero –, gerar melhores condições para a população, sobretudo no campo, para que as pessoas não tenham que ir trabalhar nos EUA. Entre outras reformas do Estado, ele propõe que o Exército não atue mais nas questões sociais. Porém, a ambição mais ousada da proposta é fazer com que o governo “legítimo” tenha relações diretas e organizações de base em vários rincões do país. Não por acaso o 20 de novembro também foi um momento de mobilização do movimento zapatista, em comemoração do aniversário da revolução mexicana,
VÍNCULOS SOCIAIS
À direita, Felipe Calderón, eleito sob suspeitas de fraudes; à esquerda, López Obrador, que não reconhece o resultado
cujos primeiros anos, a partir de 1910, foram transformadores e deixaram marcas na luta popular, e em protesto à repressão ocorrida em Oaxaca. Nesse dia, os zapatistas fecharam vias de acesso às principais cidades de Chiapas. As estradas ficavam até 45 minutos interrompidas, sendo abertas por 15 minutos. Houve atos de solidariedade em outras cidades do mundo e no Brasil aconteceu em São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, entre outras. No mesmo dia, em Oaxaca, houve confrontos entre a polícia federal preventiva mexicana e estudantes simpatizantes da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), deixando vários feridos e a denúncia de perseguição policial a jornalistas. Um contato que está no local contou para a reportagem do Brasil de Fato que a polícia ultimamente tem trocado os confrontos diretos pela estratégia de perseguir
UM GOVERNO CONCRETO Alejandro Buenrostro, idealizador do centro de informação zapatista Xojobil, faz questão de ressaltar que o “governo legítimo” de Obrador nada tem de simbólico. Na verdade, ele vai contar com representantes em todos os Estados mexicanos e inclusive no Parlamento, com os políticos ligados à Frente Ampla Progressista – um dos braços de sustentação de Obrador. O outro braço seria a Convenção Nacional Democrática (CND), uma entidade civil não permanente. Alejandro nos conta que ela teve o seu primeiro desenho em 1910, à época da Revolução Mexicana. Mais tarde, noutro momento histórico, teve presença em 1988, quando o candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD), Cuauhtémoc Cárdenas Solór-
RACHA? O PRD e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) eram aliados, nos anos de 1990. Atual-
Jeff Rae
Assembléias populares são mecanismos de pressão O sociólogo mexicano Alejandro Buenrostro pensa que a organização indígena por assembléias é uma forma de pressionar o poder institucional, que está na corda bamba, quando se aproxima de uma transição no próximo dia primeiro de dezembro. Como forma de poder popular, as assembléias se desenvolvem em Estados do Sul do país, com histórico de luta indígena, como Morelos, Guerrero, Veracruz e Michoacán – Estado onde existem municípios autônomos e que há pouco enviou cerca de dois mil professores a Oaxaca. Qual seria a presença de outras classes no turbilhão pelo qual passa o país? O sociólogo lembra da luta dos eletricistas e dos petroleiros, dos poucos setores que ainda resistem à privatização. Porém, no geral, os sindicatos são cooptados (os conhecidos charros), o que coloca os movimentos camponeses e indígenas como a força principal no momento. “Vai haver um boicote ao trabalho de Calde-
zano, foi impedido de chegar ao poder às custas de fraude nas eleições. Venceu o neoliberal Salinas de Gortari, do Partido Revolucionário Institucional (PRI). E qual a razão de uma convocatória da CND? Para Alejandro, “ela tem o caráter de convocar lideranças populares para reestruturar a república, num determinado momento histórico”, lembra. “Neste momento, a CND já terminou e ficou decidido por todos aqueles que o apoiaram que Obrador é o presidente”, comenta. Alejandro ainda faz o paralelo com a figura de Benito Juarez, que foi um presidente itinerante e popular no século 19, à margem do poder de Maximiliano, que era apoiado por uma elite conservadora.
individualmente os membros do movimento.
mente, há um rompimento entre eles. A primeira reunião preparatória da Outra Campanha – convocada pelo EZLN na antológica Sexta Declaração da Selva Lacandona, em 2005, como forma de organizar a população mexicana de modo paralelo à institucionalidade – simbolizava uma postura inesperada: o subcomandante Marcos colocou que Obrador e o PRD igualam-se aos outros dois partidos de direita, o PRI e o PAN, ao ter votado contra os Acordos de San Andrés (pelos direitos indígenas), financiar grupos paramilitares em Chiapas e sinalizar para os jornais gringos que não mudaria a economia do país. Naquele momento, a Outra Campanha dizia não ao tempo político, ao tempo do poder, e buscava um fazer político com os de “baixo”. Corretamente apontava que os partidos eram apenas títeres de uma elite ligada ao
É claro que os diferentes movimentos mexicanos (Outra Campanha, governo legítimo, APPO) estão de certo modo entremeados. Por isso, por exemplo, existem aderentes da Outra Campanha que reconhecem a fraude e querem Obrador no lugar de Felipe Calderón. Embora a única coisa certa seja o apoio incondicional à luta da APPO em Oaxaca. A crítica zapatista contra López Obrador, iniciada ainda nas primeiras reuniões da Outra Campanha, não comprometeria a credibilidade zapatista, risco que os próprios zapatistas reconheciam no texto da Sexta Declaração? Alejandro responde: “Não, pois o que os zapatistas estão falando é a verdade, todos sabem que a classe política está deteriorada. Eles apontaram as pessoas que estão perto de AMLO, que realmente são legisladores corruptos, que estiveram ligados a Salinas de Gortari”. Quem pode se dar mal em meio a esse apoio cidadão em torno de Obrador (e de outras experiência populares de organização) é justamente a classe política decadente, na sua busca de privilégios. Pois, Obrador, solitário e individualmente, mantém o seu carisma junto à população.
COLÔMBIA
Polícia colombiana prende jornalista da Telesul Renato Godoy de Toledo, da Redação
Munição improvisada: coquetéis Molotov e pedras
rón. Temos que descobrir os espaços que as assembléias estão encontrando, qual vai ser a sua forma, porque, ao mesmo tempo, as elites vão pela repressão”, opina.
NÃO À LUTA INSTITUCIONAL Um dado interessante da primeira reunião constitutiva da APPO foi o rechaço imediato da maioria dos participantes presentes no encontro, quando uma das mesas de trabalho leu o seguinte parágrafo, que, após vaias e protestos inflamados, teve que ser suprimido: “Considerou-se importante que a APPO negocie e ocupe espaços de decisão e poder nas instituições vigentes; que negocie com o governo federal e ocupe espaço no governo estadual,
não se oponha à busca de transformação profunda. É necessário analisar a possibilidade da APPO ser uma entidade política na legislatura local, para que possa concretizar a sua proposta e participar do próximo processo eleitoral”. Uma reação que mostra que uma das resistências do movimento se dá para mantê-lo à margem da lógica dos partidos. De acordo com dados oficiais, o encontro contou com 1.632 participantes, divididos em 1063 delegados e delegadas (198 de barricadas; bairros, comunidades rurais; 473 de ejidos – comunidades e povos indígenas; 365 de organizações sociais, civis, estudantis e sindicais; 18 professores), mais de 103 jornalistas e 466 convidados. (PC)
O Departamento Administrativo de Segurança da Colômbia (DAS) aprisionou o jornalista colombiano da Telesur Freddy Muñoz Altamiranda, no último domingo (19), quando ele desembarcava no aeroporto de Bogotá, onde é correspondente da emissora. Freddy Muñoz, que é um dos fundadores da emissora criada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, com apoio de outros países latinoamericanos, acabara de chegar da capital venezuelana, Caracas, onde participara de uma oficina de formação em audiovisual. As autoridades colombianas o prenderam sob a acusação de “rebelião e terrorismo”, o que gerou indignação entre os membros da emissora. O presidente da emissora, Andrés Izarra, acredita
que a prisão de Muñoz pode fazer parte de uma campanha de ataques sistemáticos ao veículo e à Venezuela. “Temos sofrido todos os tipos de ataques, mentiras e calúnias. Os ataques mais duros contra a Telesur têm vindo da Colômbia, assim como fazem com a Venezuela e o processo de integração latino-americana. Portanto, não descartamos que a prisão de Freddy Muñoz esteja vinculada a um pano de fundo obscuro”, alerta Izarra. A Federação LatinoAmericana de Jornalistas (FELAP, na sigla em espanhol) lançou uma nota repudiando a ação das autoridades colombianas. A FELAP considera a detenção de Freddy Muñoz “um grave ataque à liberdade de expressão e ao exercício do jornalismo”. A Telesur ouviu o encarregado do caso de Muñoz, o fiscal do DAS Manuel Molano, que dis-
se não poder falar sobre o assunto, “ainda mais para esse veículo”. Para o diretor da Telesur no Brasil e membro do conselho editorial do Brasil de Fato, Beto Almeida, a acusação contra Muñoz é genérica e sem fundamentação. “Todos sabemos que na Colômbia há um estado policial, onde qualquer um que tenha idéias próprias já é considerado inimigo”, afirma Almeida. Beto Almeida informou que a assessoria jurídica da Telesur exige a soltura imediata do jornalista. De sua cela em Bogotá, Freddy Muñoz escreveu uma carta ao público na última segunda-feira (20), em que agradece o apoio dos “colegas e amigos que o ensinaram a resistir”. O jornalista afirma que a sua prisão é “uma agressão ao jornalismo crítico e independente, oriunda daqueles que querem derrotá-lo, por meio da agressão e da mentira”.
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CULTURA
De 23 a 29 de novembro de 2006
RESENHA Divulgação
Entre os anos de chumbo
ea magia do futebol
Filme de Cao Hamburger trata os horrores da ditadura militar brasileira sem explicitá-los Igor Ojeda da Redação
O
ano em que os pais de Mauro saíram de férias não foi um ano qualquer. Em 1970, o Brasil passava por um dos mais duros momentos da ditadura militar, então sob o comando de Emílio Garrastazu Médici – o AI-5 estava há pouco mais de um ano em vigor. Ao mesmo tempo, os brasileiros viviam a euforia de torcer por Pelé, Tostão, Rivelino, Gérson, Jairzinho
e cia, na Copa do Mundo do México uma seleção considerada até hoje a melhor de todos os tempos. “O ano em que meus pais saíram de férias”, do diretor Cao Hamburger, lança mão do olhar de Mauro (Michel Joelsas), filho de 12 anos de um casal obrigado a entrar para a clandestinidade por suas posições políticas, para transitar por esses dois mundos – política e futebol –, aparentemente distintos, mas que inevitavelmente se confundiam na época. Muitos militantes políticos
contrários ao regime suspendiam temporariamente suas atividades e pensamentos “subversivos” para discutir se Pelé e Tostão deveriam jogar juntos e para assistir às partidas – a Copa do México foi a primeira a ser transmitida ao vivo no país. Por outro lado, muitos diziam torcer contra o Brasil, para que um eventual tricampeonato mundial não fosse capitalizado pelos militares no poder: “isso é bom, isso é bom!”, grita o personagem de Caio Blat, após a Tchecoslováquia
sair na frente na partida inaugural da seleção brasileira (além de tudo, era um país socialista), para depois vibrar enlouquecido com os gols canarinhos. E naqueles tempos tão turbulentos da história política brasileira, Mauro tem apenas duas preocupações: a Copa do Mundo e a volta de seus pais, prometida por estes, como forma de despistá-lo, para o início do torneio. O menino percebe que alguma coisa está estranha, mas não tem plena noção do que se
passa no país. Mauro sabe sim que seus pais saíram de “férias”, e que agora é obrigado a enfrentar um mundo totalmente diferente daquele que vivia em Belo Horizonte: um prédio habitado por uma colônia judaica do bairro do Bom Retiro, da já monstruosa São Paulo. Mauro está avesso aos acontecimentos políticos, às prisões arbitrárias, às torturas, à clandestinidade, ao exílio impostos pela ditadura. Mas é duramente afetado por ela. À adaptação forçada aos costumes judeus de seu novo lar, soma-se a angústia pelo não retorno de seus pais. Pois a Copa começa e os pais não voltam. Sem ser explícito, “O ano em que meus pais saíram de férias” é um filme político. Não há um diálogo sequer em que a situação pela qual passa o país seja discutida, ou mencionada. Mas ela percorre quase todas as cenas. O que vale aqui são as sensações. As sensações de um menino de 12 anos. O filme de Cao Hamburger junta-se a outros de sucesso, como o chileno Machuca (2004), de Andrés Wood, e o argentino Kamtchatka (2002), de Marcelo Piñeyro, que também põem as ditaduras sob a ótica das crianças. Os três têm o mérito de expor, com delicadeza, como as ditaduras militares pelas quais passaram esses países afetaram a vida daqueles que não tinham a mínima idéia do que se passava a seu redor e que, mesmo sob o ponto de vista dos generais no poder, não poderiam ser culpados por nada.
ENTREVISTA
Rádio, rock e resistência na Sérvia Garu/Creative Commons
Edson Castro e Rodrigo Borges Delfim de São Paulo (SP) A história da Rádio B92 se confunde com a história recente da Sérvia e da região dos Bálcãs, marcada por sua instabilidade histórica. Fundada por um grupo de jovens em 15 de maio de 1989 com o slogan “A rádio que você ouve, vê, lê, toca... a rádio que tem vida”, a B92 surgiu em um momento onde o então presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, começava a estender sua influência sobre a mídia sérvia e depois se utilizaria dela para propagar um nacionalismo sombrio que resultaria em guerras, hiperinflação, repressão política, assassinatos, limpeza étnica, entre outros. A Rádio B92 atuou como voz dissonante a esse contexto e ao regime repressor de Milosevic, apoiando manifestações contra o regime, denunciando as atrocidades que eram cometidas, lutando contra a censura imposta por Milosevic (a rádio foi fechada quatro vezes em dez anos). Mostrou uma outra Sérvia, diferente da que era descrita mundo afora como a imagem e semelhança de seu presidente, conhecido como “o açougueiro dos Bálcãs”. A oposição da rádio, como explica seu diretor executivo, Veran Matic, em entrevista ao Brasil de Fato, se refletia também em sua programação musical, baseada em músicas de protesto típicas do punk-rock, ao contrário das músicas de cunho nacionalista veiculadas pela maioria das rádios de Belgrado. Sua história está descrita no livro Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado, lançado este ano pela Editora Barracuda. Brasil de Fato – Como surgiu a idéia da B92?
Veran Matic – Desde 1984, quando eu já trabalhava com jornalismo em uma pequena rádio provincial, queria fazer um programa que fosse bem aceito pelos jovens do país. Por ocasião das comemorações do aniversário de Tito em 1989, conseguimos, junto ao governo, a autorização para que fosse transmitido um programa experimental pelo período de 15 dias. No entanto, após esse prazo, a rádio continuou operando mesmo na ilegalidade, por oito anos, até que obtivemos os documentos necessários para a regularização. O rádio era praticamente o único veículo que militava no país, e a idéia era montar uma rádio com um grupo de pessoas que lutassem contra as idéias predominantes na sociedade, um lugar onde pudéssemos ter liberdade de nos expressar e defender os direitos humanos, uma coisa diferente de tudo o que era feito até o momento, já que até então só o que havia de fato era a mídia estatal. Era uma rádio bem jovem. BF – Desde o começo você já imaginava que a B92 assumiria esse papel de oposição ao governo? Matic – A rádio já nasceu em um momento especial – pouco antes da queda do Muro de Berlim –, em uma época em que não havia outros partidos além do comunista. Então a rádio era o único lugar em que os jovens poderiam conversar, motivo pelo qual a rádio conseguiu preservar sempre sua independência. A rádio se fortalecia à medida que apoiava manifestações que contestavam o regime de Milosevic, como as que ocorreram em favor das mães, das crianças,
Paula Correa/Conteúdo Comunicação
Quem é
Fundador e atual diretor executivo da RTV B92, Veran Matic esteve no Brasil para o Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito, que ocorreu entre os dias 17 e 20 de outubro no Itaú Cultural, em São Paulo.
dos direitos humanos. Acabávamos representando as minorias presentes no país, desde políticos da oposição até prostitutas. BF – Qual foi o papel da rádio no processo de transformação da Sérvia? Matic – É uma situação muito difícil de lidar, mas um dos mais importante foi a criação de uma rede de estações de rádio e TV em volta da B92, conectados via satélite. Com isso, as discussões antes restritas a Belgrado se espalharam pelo país. Não queríamos uma democracia importada dos Estados Unidos, por exemplo. É muito importante que o desejo de democracia parta de dentro da sociedade sérvia, pois assim ele se torna mais forte e verdadeiro. Um resultado prático disso foi a queda do Milosevic em 2000. BF – Você em algum momento sentiu medo de Milosevic? Matic – Sim, mas o maior medo não era tanto em relação a mim, mas em relação a minha família. Fiz um acordo com minha esposa para que não conversássemos muito sobre
o que poderia acontecer comigo. Em 1999, eu estava em casa e por volta das duas da manhã percebi que haviam cortado o sinal da rádio. Tinha certeza de que com isso os funcionários estariam sendo detidos e expliquei para minha mulher o que estava havendo, que eu deveria ir para lá também e que eu seria preso, o que ocorreu de fato. Mas só hoje, depois que tudo isso aconteceu, é que percebemos o tamanho do risco e do perigo que corríamos. BF – Como você vê hoje a juventude sérvia? Matic – A vida dos jovens na Sérvia é bem complicada por causa do mercado de trabalho que é bastante fraco. Durante as guerras, saíram do país 400 mil jovens. Com a queda de Milosevic, muitos se interessaram em voltar ao país, mas, após vários anos de economia fraca, ainda há muitos que saem do país em busca de melhores condições. Há problemas também com drogas, como heroína, cocaína e maconha. As escolas públicas antes da guerra tinham uma boa qualidade de ensino, mas
durante as guerras foram destruídas. Meu filho todo ano aprendia na escola uma fronteira diferente por causa das guerras que alteravam a todo instante as fronteiras dos países da região, e que continuam se alterando. Em 2006, Montenegro se separou da Sérvia e em 2007, muito provavelmente a região do Kosovo tomará a mesma decisão. BF – A B92 teve como um de seus slogans “Não confie em ninguém, nem na gente”. Matic – Hoje em dia esse slogan não é mais usado. A idéia do slogan era a seguinte: durante quatro semanas, em 1993, tivemos um programa sobre política, que ia ao ar ao vivo com vários convidados políticos. Mas chegou um momento em que eu fiquei preocupado com o fato de que qualquer coisa que eu dissesse seria tomado como verdadeira pelos ouvintes, sem questionamento, não importando o que fosse. A mensagem por trás do slogan era “pense por si próprio, com sua própria cabeça, seja independente”. Com o passar do tempo, a
população passou a pensar mais por si mesma, apesar de outros problemas que surgiram agora. Hoje há um número crescente de tablóides sensacionalistas em circulação na Sérvia, com um péssimo jornalismo. Em 1998, sentíamos que o regime de Milosevic iria acabar. Então, chamamos um especialista britânico para que ele deixasse a emissora mais light, mais comercial, por uma questão de sobrevivência mesmo, para que a nossa mensagem pudesse chegar a mais pessoas. E ele ficou chocado com o slogan da B92. A evolução da rádio foi mais lenta e gradual do que na televisão. Nem todos acreditam no que a B92 diz, como os nacionalistas, mas assim mesmo eles nos assistem na TV. BF – Como fica toda a história da B92 frente a esse lado comercial, como conciliar ambos? Matic – Hoje a B92 é mais comercial, infelizmente passamos alguns programas que não gostaríamos de passar, como o Big Brother. Não é um assunto que interessa à B92, mas transmitimos por causa da sua popularidade. Mas, com o dinheiro obtido com esses programas, nós na B92 podemos produzir outras coisas que são mais ao nosso gosto. Mesmo o Big Brother nós procuramos adaptar à realidade local, colocando entre os participantes um sérvio cristão, um bósnio muçulmano, entre outros. Procuramos oferecer uma programação de qualidade. A grande vantagem da B92 em relação aos demais é que TV, Internet e rádio são conectados entre si, com os jornalistas trabalhando ao mesmo tempo para os três veículos.