Ano 4 • Número 199
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 21 a 27 de dezembro de 2006
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Natal, celebração do consumo Solange Engelmann/MST
A data, que marca o nascimento de Jesus Cristo, se desvirtuou de seu caráter místico e se tornou a expressão de ideais individualistas
E
specialistas em economia, mídia e religião explicam como a celebração do nascimento de Jesus Cristo se transformou na data mais importante para o capitalismo. O consumismo, amparado pela mídia, espalha a lógica do “compro, logo existo”. O papai noel criado pela transnacional
Coca-Cola assume a posição do “santo presenteador”, ícone principal do Natal, mera obra de publicidade. E os cristãos, que vão obedecendo a ideais individualistas e de acumulação do capital, substituem a celebração do nascimento de Cristo pelo consumo desenfreado. Pág. 5
Contra Evo, Estados querem independência Quatro dos nove Estado bolivianos (Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija) ameaçam declarar independência, com eleições próprias. As regiões, controladas pela oposição ao governo,
são responsáveis pelas maiores divisas do país. Evo Morales afirmou que não vai permitir a separação, cujo objetivo, denuncia, é apenas desestabilizá-lo. Pág. 7
EDITORIAL
O que é mais vergonhoso? Leve em conta ainda que, ao mesmo tempo em que defende transferência de mais de R$ 160 bilhões, anualmente, para os cofres dos banqueiros nacionais e internacionais, a maioria dos parlamentares tem como maior preocupação a criação de CPIs contra os movimentos sociais e contras as ONGs. Para esses parlamentares, o problema não é a rapinagem que ocorre em nosso país. O problema é o povo brasileiro! Assim, se você conhece tão bem o Congresso Nacional, por que se surpreender com o aumento de quase 91% dos seus próprios salários? Eles estão legislando em causa própria. Não deveria haver nenhuma surpresa para você. A maioria dos parlamentares dá ao Congresso Nacional um o retrato fiel da burguesia brasileira: desprezo pelo patrimônio e riqueza pública e oportunismo pessoal. Não é sem razão que a mídia burguesa protege seus parlamentares, mesmo frente à imoralidade desse aumento que ela finge criticar. Alguém viu o nome ou a fotografia nos jornais dos líderes do PFL e PSDB que ajudaram a aprovar esse aumento? Já o presidente do Congresso, deputado Aldo Rabelo (PCdoB) e o líder do PT, deputado Arlindo Chinaglia, a todo momento precisam dar explicações sobre porque concordaram com o aumento. Ao se juntar com a direita, estes estão ficando com o ônus da política exercida de costas para o povo e contra ele. Tudo isso porque o primeiro quer se manter no cargo que ocupa hoje e o segundo quer seu lugar. O presidente do Congresso Nacional teve, ainda, o desplante de dizer que, numa democracia, todos têm o direito de discordar da proposta e de se manifestar, mas que a decisão dos líderes do Parlamento não será mudada. Esqueceu apenas de dizer que, numa democracia, o que impera é a vontade do povo. E povo um dia saberá cobrar esse seu direito.
O presidente boliviano Evo Morales conta com o respaldo do povo para evitar um golpe de Estado contra seu governo Maurício Scerni
No dia 14, numa reunião dos líderes dos partidos políticos com as duas Mesas Diretoras do Congresso Nacional, uma questão foi posta em discussão: qual deveria ser o salário dos deputados federais e os senadores para a próxima legislatura? Duas propostas foram apresentadas: a que defendia que o reajuste deveria se limitar à reposição da inflação dos últimos 4 anos – em torno de 28% – o que elevaria o salários dos parlamentares dos atuais R$ 12.847 para R$ 16.500. E, a outra, defensora de que os salários dos parlamentares deveriam se igualar ao teto do Supremo Tribunal Federal (STF), elevando os salários para R$ 24.500 – um aumento de 90,7%. Qual das duas propostas você acha que foi aprovada, por unanimidade, naquela reunião? Para responder a essa questão, não se guie por princípios éticos. Também não leve em conta que o atual salário mínimo é de R$ 350 e esse mesmo Parlamento discute se o aumento deverá elevá-lo para R$ 367 ou R$ 375, mas jamais chegar até os R$ 420 exigido pelas centrais sindicais. Também não considere que o Brasil é um dos países campeões em desigualdade social, perpetuada há décadas graças às políticas econômicas respaldadas pelo Parlamento brasileiro. Se você seguir esses critérios, certamente não acertará a resposta acima. Se quiser acertar a resposta, lembre-se de que o Parlamento colaborou com a onda de privatizações do governo FHC, demonstrando já naquela oportunidade seu total desprezo pelo patrimônio público. Tenha presente que as CPIs para apurar a corrupção interna do Congresso deram em nada. Não se esqueça de que a maioria dos parlamentares que se reelegeram para o próximo mandato contou com apoios milionários dos grupos econômicos internacionais, como a Monsanto, Aracruz Celulose e Companhia Vale do Rio Doce.
Brasil, outros 500 anos – Maurício Scerni, fotógrafo colaborador do jornal Brasil de Fato, conquistou o primeiro lugar no 3° Salão Nacional de Fotografias da Cidade de Votorantim, interior de São Paulo, com esta foto tirada na Bahia na véspera do dia 22 de abril de 2000, numa das vielas da cidade de Porto Seguro, Estado da Bahia
Vitória parcial contra o milho transgênico Pág. 3
Difundir a igualdade racial pelo samba
Saneamento: lei favorece o capital privado
Pág. 8 Congresso aprova lei proposta pelo governo Lula que regulamenta o serviço de saneamento básico e abre mais espaço para as empresas. “O Estado não pode transferir ao capital privado esse direito humano fundamental. Recursos para investir existem, só precisam ser canalizados, garantidos e priorizados”, afirma Luiz Fernando Novoa Garzon. Pág. 4
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DEBATE
CRÔNICA
Raúl Zibechi Cúpula da Comunidade Sul-americana de Nações (CSN), realizada entre os dias 6 e 9, em Cochabamba (Bolívia), deixou um sabor amargo. A maior parte dos presidentes da região optaram por um tipo de integração baseado em grandes obras de infra-estrutura, enquanto os movimentos sociais enfatizam os direitos dos povos. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva foi o mais claro. Aposta em uma integração sobre a base da Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da Região da América do Sul (IIRSA), que consiste em 300 megaprojetos para a conexão física do continente. Financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Brasil, conta com suficientes recursos (mais de 30 bilhões de dólares) para impulsionar grandes obras (represas, gasodutos, estradas, portos etc.) com a finalidade de alavancar o comércio Atlântico-Pacífico, colocando os recursos naturais sul-americanos à disposição do mercado global. Os movimentos indígenas, ambientalistas e algumas ONGs criticaram a iniciativa por seus profundos impactos sociais e ambientais. Além disso, sustentam que esse tipo de integração sobre a base do livre comércio, que supõe a exportação de produtos básicos e recursos naturais, tende a aprofundar a desigualdade e a dependência no continente. Alguns presidentes, como Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), além do presidente eleito do Equador, Rafael Correa, mostraram receios com relação à IIRSA. O primeiro afirmou, em sintonia com os movimentos, que se trata de uma iniciativa que favorece as grandes transnacionais que buscam exportar os recursos do continente até para o Norte. Correa, por sua vez, disse que a maioria dos projetos devem ser revisados. Na realidade, em Cochabamba se enfrentaram duas formas de ver a integração regional, mas ficou claro que a maioria dos presidentes, e o país que conta com os maiores recursos (Brasil), já fizeram sua opção por uma integração à medida dos mercados.
A
Marcio Baraldi
As horas amargas da integração
No fim de novembro Lula disse na Amazônia brasileira que os indígenas, os quilombolas (descendentes de negros que fugiram da escravidão), os ambientalistas e o Ministério Público deviam deixar de ser “travas para o desenvolvimento”. Seu discurso foi contestado pelos movimentos sociais e pela Comissão Pastoral da Terra. De todos os modos, esse é o pensamento das elites do continente. Escutam os movimentos, mas não estimam que suas análises e posições devem ser levadas em conta. Alguns dos grandes projetos da IIRSA vêm sendo criticados pelos movimentos e ONGs, como a construção de duas grandes usinas hidrelétricas no rio Madeira (Brasil), entre muitos outros. O secretário-geral das Relações Exteriores do Brasil, Samuel Pinheiro Guimarães, foi tão claro como seu presidente: “O progresso tecnológico que vemos no mundo inteiro impulsiona todas as áreas, desde a economia até a guerra. Necessitamos construir
(um tributo a Leandro Konder – II) Luiz Ricardo Leitão Às vésperas de mais um Ano Novo (cujos desígnios desconhecemos, mas oxalá sejam bem mais auspiciosos do que têm sido as últimas jornadas), uma estranha e difusa inquietude se instala em milhares de cidadãos atormentados de Pindorama. Algo precisa mudar, intuem os espíritos mais insatisfeitos, porém ninguém logra vislumbrar como e quando essa transformação logrará traduzir-se em um evento concreto e irreversível. Por enquanto, há apenas uma sensação inequívoca de que a nossa tosca experiência periférica de sociedade, submetida aos ditames do invisível e onipotente mercado, há muito dá sinais de profunda exaustão. A crise não se restringe apenas ao âmbito estrutural, com a falência do modelo neoliberal recomendado pelo “consenso de Washington”, algo já visível em toda a América Latina, como o atestam as significativas vitórias nas urnas dos críticos mais contundentes do projeto imperialista, desde Evo Morales, na Bolívia, até a esmagadora reeleição de Hugo Chávez, na Venezuela. No plano ético e social, fatos escabrosos têm marcado este conturbado século XXI, sobretudo nos círculos da burguesia e da alta classe média, cujos filhos, herdeiros diretos de Brás Cubas, parecem esmerar-se em tornar reais as ficções mais perversas que lemos em um conto de Rubem Fonseca...
um bloco para fazer frente a essa realidade, e a conexão física do continente é imprescindível”. Com raras exceções, não existe entre os estadistas progressistas e de esquerda a convicção de que o denominado “progresso” e o “desenvolvimento” não são a opção dos povos e que estes têm outras prioridades que supõem rechaçar ambos os conceitos. Parece haverem optado por um pragmatismo simples, que os leva a pregar-se às iniciativas de quem tem os fundos para financiar as grandes obras. Estudos sérios como os realizados pelo Fórum Boliviano de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Fobomade) acerca das obras do IIRSA, ou posições como as do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), não são sequer levados em conta. Menos ainda as cosmovisões índias que rechaçam os conceitos de progresso e desenvolvimento e, portanto, as obras que dizem impulsioná-los. São duas formas de ver o mundo e os problemas de nossa região. Os de cima (terei que seguir empregando essa linguagem, pesem as exceções) seguem transitando o mesmo caminho que as elites vêm recorrendo há cinco séculos, ainda que se deva reconhecer que agora o fazem com modos melhores, fingindo que escutam e, sobretudo, sem reprimir. É algo, mas não é suficiente. DIFICULDADES QUE SE EMPILHAM
TRAVAS AO DESENVOLVIMENTO?
Nos umbrais da transição
A integração regional atravessa enormes dificuldades. Chávez disse em suas visitas antes da cúpula, em Brasília e Buenos Aires, que seu objetivo é “relançar” o Gasoduto do Sul, que deverá unir Venezuela e Argentina, promovendo uma necessária integração energética. Se mais de um ano depois de haver lançado o projeto, crê que é necessário “relançá-lo”, é porque as coisas não marcham segundo o previsto. O Gasoduto do Sul é uma peça-chave da integração já que é uma obra que interconecta países sul-americanos e não com o mercado global. Mas os estudos vão muito lentos e não parece existir entusiasmo em colocá-lo em marcha. Inclusive na área energética os países sul-americanos seguem sendo dependentes das transnacionais. A Argentina privatizou seus recursos durante os de 1990; a brasileira Petrobras já não é uma empresa estatal, já que a maior parte de suas ações estão em mãos privadas; a nacionalização sem expropriação na Bolívia
deixou nas mãos das transnacionais a maior parte da cadeia do gás, ainda que o Estado receba mais dinheiro que antes; inclusive na Venezuela, a PDVSA não controla a totalidade da rica faixa petroleira do Orinoco, em mãos majoritariamente das transnacionais. É certo que alguns governos fazem importantes esforços para romper com os poderosos da energia, mas as dificuldades seguem sendo enormes. Como demonstrou a recente Cumbre de Cochabamba, os ritmos e os rumos da integração dependem daqueles países que têm as condições para se erguer como referência e liderança da região. Desse ponto de vista, e pese a intensa atividade dos movimentos, não há muitos motivos para o otimismo. A justiça eleitoral do Brasil começou a divulgar as contas de campanha dos diferentes candidatos. O maior doador da campanha de Lula foi o setor bancário, com quase cinco milhões de dólares. O segundo doador foram as construtoras, com outros cinco milhões de dólares, destacando Camargo Correa, com 1,6 milhões. Não é casualidade: os bancos obtiveram, sob os quatro anos de Lula, os maiores lucros da história; as construtoras brasileiras são as grandes beneficiárias dos mega-projetos contemplados na IIRSA. Certamente, a integração à medida do mercado vai ganhando pontos. Raúl Zibechi é jornalista uruguaio
Algo já visível em toda a América Latina, como o atestam as significativas vitórias nas urnas dos críticos mais contundentes do projeto imperialista, desde Evo Morales, na Bolívia, até a esmagadora reeleição de Hugo Chávez, na Venezuela Quando quatro jovens de Brasília atearam fogo em um líder indígena que dormia ao relento na capital (crime hediondo que todos acerbamente condenaram, mas uma juíza federal assim não o considerou), muitos julgaram que isso seria apenas um caso isolado. Não se lembravam, decerto, que naquelas mesmas paragens, três décadas antes, um playboy chamado Fernando Collor e seus parceiros haviam seduzido e levado à morte a jovem Aracelli, escândalo que só não obteve maior projeção porque o criminoso era herdeiro de um dos mais importantes clãs da política tupiniquim. É fato, porém, que, agora, se reedita uma explosão de barbárie no seio das elites, seja a adolescente paulista que convoca dois amigos para assassinar os pais, a sangue-frio, na própria casa, em São Paulo, seja o aumento das gangues de traficantes universitários na Zona Sul do Rio, consolidando uma via de mão dupla no consumo de drogas (o morro é o entreposto da cocaína que sai pelo Brasil para a Europa; o asfalto é o paradeiro das “pastilhas” que vêm do Velho Mundo para a colônia). Como engendrar um “homem novo”, o velho sonho de Marx (e do próprio Che, quando ocupou seu posto na Revolução Cubana), em meio a tamanha corrosão espiritual? Segundo advertia o mestre Leandro Konder, para que alcancemos essa meta será preciso que venha a ser criada, talvez em escala global, “uma sociedade efetivamente nova, baseada em um novo modo de produção”. Tal desafio, bem o sabemos, já tem sido objeto de inúmeros projetos, embora nenhum deles tenha sido plenamente bemsucedido. Ainda assim, o mestre nos adverte que isso tampouco é motivo para que nós, os socialistas, nos desesperemos: afinal, “o capitalismo levou mais de cinco séculos sendo experimentado até começar a funcionar eficientemente (com sua perversa eficiência!)”. E, já que a saga do socialismo moderno mal completou duzentos anos, é natural que ainda tenhamos uma longa estrada pela frente. Portanto, estamos apenas nos umbrais da transição, mas não faz mal imaginá-la como o fez um trovador cubano ao cantar que “la era está pariendo um corazón / no puede más, se muere de dolor, / y hay que acudir corriendo / pues se cae el porvenir”... Feliz 2007, meus caros e combativos leitores! A era está parindo um coração e temos de acudir, porque o futuro há de nascer. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato .com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL TRANSGÊNICOS
A vez do milho da Bayer Semente da transnacional está no centro da nova crise da CTNBio; Ministério Público impede liberação comercial Marcello Casal Jr./ABr
Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)
A
COMISSÃO OLIGÁRQUICA Gabriel Fernandes, assistente técnico da entidade ambientalista ASPTA, discorda do posicionamento do presidente e afirma que a Comissão autorizou, em média, 30 campos experimentais de transgênicos por mês em 2006. Dado que, para ele, comprova que os trabalhos não estão emperrados, como muitos afirmam. “Esse tipo de crítica só deixa mais evidente pra gente que toda essa discussão sobre o meio ambiente e os impactos dos transgênicos não é importante para uma parcela da sociedade. Ruralistas, latifundiários e empresas de biotecnologia estão mais preocupados em comercializar as sementes rapidamente, sem nenhum tipo de cuidado com o meio ambiente e a saúde”, diz
Entidades pressionam CTNBio para que a sociedade participe das decisões sobre o milho trangênico
Entidades civis e pesquisadores ambientalistas prevêem o acirramento da disputa na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). “O fato de a CTNBio ter passado o ano inteiro sem nenhuma liberação comercial e a liminar do Ministério Público são vitórias da sociedade civil, mas não são suficientes para barrar a pressão de ruralistas e de empresas”, analisa Gabriel Fernandes, da ASPTA. O engenheiro agrônomo avalia que o lobby pelos trangênicos tem duas frentes de pressão na CTNBio: pela redução do número de integrantes da Comissão, retirando algumas entidades civis, ou pela alteração no quórum da votação. “Atualmente, é necessário
2/3 do quórum para aprovar qualquer coisa na CTBio, ou seja, não pode ser liberado transgênico com menos de 18 votos favoráveis dos integrantes”, diz. A MP dos Transgênicos (327), em tramitação na Câmara, que prevê o plantio de sementes de soja transgênica a menos de 10 km de
áreas de proteção ambiental, traz uma emenda do relator, o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), que reduz o quórum de deliberações da CTNBio. “Se for votada a MP, teremos um enorme retrocesso. Tenho a impressão de que todos os transgênicos que estão na pauta da Comissão serão aprovados
rapidamente”, afirma Maria Rita Reis, da Terra de Direitos. Para Gabriel, o desfecho dessa disputa depende diretamente de como o governo irá atuar. “A liberação em massa ou não dos transgênicos está diretamente relacionada pelo que o governo federal irá trabalhar. Se vai mobilizar a base aliada para
O que é a CTNBio A CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) foi criada em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, para regulamentar a política de biossegurança brasileira. Entre as suas funções, está a liberação do plantio comercial e da venda de sementes e de produtos transgênicos no Brasil. É composta por membros da
sociedade civil, pesquisadores, governo federal e ministérios. Segundo dados da CTNBio, em 2006 foram analisados 420 processos. Destes, 125 tratavam de liberação de pesquisas de transgênicos em campo. Já em relação aos processos de liberação comercial de produtos geneticamente modificados, nove continuam parados na Comissão.
votar contra ou a favor da MP”, argumenta. Para 2007, a questão positiva está na decisão do presidente da CTNBio, Walter Colli, em realizar audiências públicas com a sociedade antes de qualquer liberação, acatando a reivindicação das diversas entidades e organizações civis. Colli enxerga as audiências como uma forma de levar mais informações sobre os geneticamente modificados à sociedade. “É necessário mostrar às pessoas que os transgênicos não são ruins, qualificar o debate”, diz. No ano que vem, os trabalhos devem seguir o seguinte critério: primeiro, vão ser realizadas audiências públicas; depois, as reuniões setoriais; e por fim, a plenária.
Semente ilegal: a política do fato consumado A exemplo da soja da Monsanto, o milho transgênico – da mesma transnacional – chegou ao campo antes de ser liberado pelas autoridades do país. Em novembro de 2005, o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS) denunciou a venda ilegal de sementes de milho geneticamente modificadas na Agropecuária Campesato, na região Norte do Rio Grande do Sul. Depois da divulgação do caso ao Ministério da Agricultura (Mapa) e ao Ministério Público Federal (MPF), surgiram outras denúncias de agricultores que já vinham plantando a semente na região das Missões e do Planalto gaúcho. A questão do milho transgênico ilegal é mais preocupante do que a soja devido ao caráter de fácil cruzamento da planta, inclusive com alguns tipos de árvores e gramas. Assim, o perigo de contaminação genética é bem maior do que a oleaginosa. Também tem a questão econômica, já que o milho é a base da propriedade rural brasileira. “Assim como a soja, o milho transgênico traria toda a cadeia de produtos químicos oferecidos pelas transnacionais, tornando o agricultor dependente”, diz Gabriel Fernandes, assessor técnico da ASPTA.
AS-PTA
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) termina 2006 como o iniciou: gerando polêmica e protagonizando disputas. No entanto, desta vez é o milho, e não a soja geneticamente modificada, o pivô da crise que deve provocar mudanças no órgão em 2007. Na última reunião do ano que a CTNBio realizou, entre os dias 13 e 14, uma liminar judicial expedida pelo Ministério Público Federal (MPF) do Paraná trancou a análise da liberação de duas variedades de milho transgênico. Atualmente, a Advocacia Geral da União (AGU) está trabalhando para derrubar a liminar, a pedido do ministro da Agricultura, Luís Carlos Guedes Pinto. Nicolau Konkel Júnior, juiz da Vara Federal Ambiental de Curitiba, acatou a ação movida pelas organizações civis Terra de Direitos, Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor (Idec) e Assessoria e Serviços em Projetos de Agricultura Alternativa (ASPTA) contra a análise técnica da variedade de milho transgênica Liberty Link, de propriedade da Bayer. As entidades reivindicavam que fosse realizada uma audiência pública com a sociedade civil antes de a CTNBio tomar qualquer decisão em relação à liberação comercial da semente. O pedido foi negado pela Comissão, que alegou já possuir estudos técnicos suficientes para decidir sobre a questão e não ter dinheiro para organizar uma audiência. O juiz, baseado no princípio da precaução, julgou não haver certeza suficiente sobre os efeitos da semente em relação ao meio ambiente e à saúde humana. Em entrevista coletiva realizada em Brasília logo após o término da reunião, o presidente da CTNBio, Walter Colli, considerou a ação judicial ilegal, mas preferiu acatar a liminar. “Decisão da Justiça não se contesta, mas não concordo com ela. É ilegal”, opina Colli. Para ele, o desconhecimento de grande parte da sociedade em relação aos transgênicos, aliada à oposição dos integrantes ambientalistas da Comissão, tem atrasado os trabalhos da Comissão.
Mais propenso à contaminação genética que a soja, milho é a menina dos olhos dos ruralistas
De todas as denúncias feitas, apenas em uma o Mapa tomou providências: um agricultor da cidade de São Borja foi notificado e encaminhado ao MPF para explicar o que foi feito com a semente que plantou. Os outros casos, inclusive o da Agropecuária Campesato, denunciada pelo deputado, não foram confirmadas pelo órgão federal. Para Frei Sérgio, há um profundo desinteresse das instâncias governamentais em relação aos transgênicos. “A minha avaliação é que o Ministério da Agricultura não quer encontrar a ilegali-
dade. O que leva a concluir que existe uma certa conivência ou conluio com as empresas transnacionais do fato consumado”, diz. Essa atitude, segundo o parlamentar, viria ao encontro da pressão que empresas e setores ruralistas realizam na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). “Vão querer aprovar sem nenhuma avaliação de risco. As transnacionais querem ganhar dinheiro, não estão preocupadas com a saúde do povo. O povo que tem que se dar conta disso e começar a se posicionar de uma maneira
mais clara, exigindo que o princípio da precaução seja utilizado”, defende
DENÚNCIA Em novembro do ano passado, o deputado Frei Sérgio assumiu, ao lado da Via Campesina do Rio Grande do Sul, uma denúncia feita por um agricultor de que a Agropecuária Campesato vendia sementes de milho transgênico aos produtores locais. O caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério da Agricultura (Mapa) Na ocasião, uma amostra desse milho foi submetida a
análise no laboratório Alac, em Garibaldi, na Serra gaúcha. O resultado apontou que a semente possui 27,5% do gene GA21, resistente ao herbicida glifosato – mais conhecido pelo nome comercial Roundup, fabricado pela transnacional estadunidense Monsanto. Aquele gene é utilizado na variedade de milho transgênico RR GA21, da Monsanto, e é a que domina o mercado da semente geneticamente modificada na Argentina. Depois dessa denúncia, apareceram casos de agricultores que já plantavam, há mais de dois anos, milho transgênico na região das Missões e do Planalto gaúcho. Já Francisco Signor, superintendente do Mapa no Rio Grande do Sul, questiona a denúncia feita pelo deputado no ano passado. Na ocasião, amostras do milho comprado na agropecuária foram entregues às instâncias. Apesar de ter dado no exame laboratorial que a semente era transgênica, o Ministério não a encontrou no estabelecimento quando foi fazer vistoria. “No caso do deputado, ele veio até aqui e trouxe a semente. Faz a gente gastar dinheiro à toa e correr por todos os lugares. Quem denuncia, precisa comprovar”, afirma. (RC)
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NACIONAL SANEAMENTO
A solução pelo capital privado Lei aprovada pelo Congresso regulamenta, depois de 20 anos, o saneamento básico no Brasil Luciney Martins
Gisele Barbieri e Luís Brasilino de Brasília (DF) e da Redação
C
om um governo conciliador de interesses e um Congresso conservador, a aprovação, dia 12, de uma lei para regulamentar o saneamento básico brasileiro acendeu um sinal de alerta nas organizações populares preocupadas com a possibilidade de privatização da água. A legislação ainda depende de sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas, um dia depois da decisão dos parlamentares, as ações ordinárias (aquelas que dão direito a voto) da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) negociadas na bolsa de valores tiveram uma elevação de 16,58%. A carência do Brasil, 16ª economia do planeta, nesse setor é inquestionável. Segundo o Programa das Nações para o Desenvolvimento (Pnud), o serviço de tratamento de esgoto atende a apenas metade da população; já abastecimento de água, a 90%. No entanto, segundo pesquisa da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apenas 25% dos brasileiros têm saneamento básico de má qualidade e só 50% recebem água adequadamente. O sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, membro da Rede Brasil – Vigilância de Instituições Financeiras, acredita que a nova lei representa um perigo maior ao permitir a implantação de parcerias público-privadas (PPPs) nos serviços de saneamento. Assim, seria possível às empresas segmentar o serviço público e ficar somente com o esgoto ou recortar áreas da cidade onde há menor inadimplência. “São as empresas organizando os serviços públicos de forma privada”, denuncia. Para ele, o governo federal, por meio de fundos públicos, deveria se responsabilizar pela universalização do serviço de saneamento. “Sem a garantia desse direito humano fundamental não há desenvolvimento. E o Estado não pode transferir para o setor privado um dever, um pré-requisito da soberania nacional. Para cumpri-lo, são necessários cerca de R$ 180 bilhões, ao longo dos próximos 20 anos, e esses recursos existem, só precisam ser canalizados, garantidos e priorizados”, afirma. Garzon enfatiza que o pior cenário é o de uma privatização subsidiada pelo setor público. Assim, as áreas mais pobres só seriam atendidas pelas empresas por meio da intermediação de recursos públicos. “Essa lei flexibiliza os mecanismos de pleito de acesso dessas empresas aos serviços públicos, a vantagem delas é que o Estado se compromete a financiar os investimentos que as próprias empresas iriam fazer em função de uma lucratividade maior”, destaca.
SEM PRIVATIZAÇÃO Já Edson Aparecido da Silva, assessor de saneamento da Federação Nacional de Urbanitários (FNU), discorda que a Lei nº 7.361/06 permitirá que ocorra com a água o mesmo que se passou com a energia, a telefonia e as estradas, cujos serviços foram desestatizados durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, companhias particulares já podem controlar serviços de saneamento, entretanto, isso acontece em apenas 1% dos municípios brasileiros, atendendo a 4% da população. Edson explica que, ao setor privado, interessa atuar apenas com ganho de escala, ou seja, quando atende a um grande número de pessoas. Nesse sentido, ele destaca como muito mais preocupante a polêmica envolvendo a titularidade dos servi-
Organizações populares estão preocupadas com a possibildade de privatização da água; no Brasil, milhares de pessoas não possuem abastecimento de água
ços. Um lado defende que o controle deve ficar com os municípios em qualquer hipótese, o outro diz que o Governo do Estado é o responsável quando as cidades se localizam em regiões metropolitanas. A disputa está no Supremo Tribunal Federal (STF), que, segundo Edson, provavelmente vai se posicionar a favor dos municípios. No entanto, se isso não acontecer, o risco de privatização em ampla escala pode se tornar real. “Se as empresas puderem negociar diretamente com o Estado, sem a intermediação dos municípios, o negócio vai se tornar interessante – e,
agora, seguro – para elas. A receita líquida da Sabesp, por exemplo, foi de R$ 4,9 bilhões em 2005. Só que desse total, 72% veio apenas dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo. Os outros 329 abastecidos pela companhia contribuíram com os demais 28%. Dependendo da decisão do STF, o setor privado vai voltar-se para esse mercado específico”, explica Edson. Segundo o assessor da FNU, a privatização que se pode detectar hoje se dá de forma indireta. “As empresas públicas, sobretudo as mais saudáveis, estão ampliando a participação do setor privado no
seu capital por meio do mercado de ações”, alerta. As bolsas de valores de São Paulo e a de Nova York já negociam 49,7% dos papéis da Sabesp e outras companhias estaduais mostram tendência de fazer o mesmo. De acordo com Edson, a próxima deve ser a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa).
ELEVAÇÃO DA TARIFA Roberto Malvezzi, o Gogó, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), possui uma visão ainda mais pessimista. Para ele, quando essa lei foi encaminhada
Nova lei preenche vazio Graeme Nicol
Se por um lado a aprovação da Lei nº 7.361/06 apresenta vantagens para a empresas particulares e, em certa medida, estimula a privatização, também significa um dado positivo para o saneamento no Brasil que, desde de 1985, não possui uma lei específica. Edson Aparecido da Silva, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), explica que o projeto é fruto de consenso entre trabalhadores, empresários, operadoras (como a Sabesp, em São Paulo, por exemplo) e as três esferas de governo. Ao refletir a heterogeneidade do setor, a lei acabou tendo elementos que são positivos e negativos para todos os envolvidos. “Resolvemos dar apoio a propostas em troca da aprovação”, revela. O assessor da FNU coloca entre as medidas negativas aprovadas a constituição de conselhos de controle social meramente consultivos e não deliberativos, o que impede a sociedade de interferir nos planos estruturantes do setor, na definição de investimentos e no valor das tarifas. Outro aspecto negativo é a ausência de um programa de recuperação, revitalização e fortalecimento dos operadores públicos de saneamento. Essa proposta encontrou forte resistência da equipe econômica do governo federal preocupada com o aumento dos custos. Além disso, a menção ao Código de Defesa do Consumidor foi retirado do texto final que também estabeleceu a possibilidade de cortar o abastecimento de água por inadimplência, bastando para isso um aviso prévio de 30 dias. “Ora, não se corta a água das pessoas como se corta TV a cabo ou telefone”, critica Edson.
pelo Olívio Dutra, ex-ministro das Cidades, em termos gerais, era interessante ao propor uma política de saneamento no Brasil, uma política integral que pensava o abastecimento de água, coleta de esgoto e o escoamento da chuva. “O conceito é bem formulado, mas a grande disputa que se deu no Congresso foi quanto ao acesso do capital privado nos serviços de saneamento. Na última hora, acho que o capital privado conseguiu colocar seu pé no projeto por duas questões: abertura para as PPPs, isto é, o serviço poderá ser terceirizado para empresas privadas; e o fato de constar em lei que as tarifas de água podem ser reajustadas pelas empresas”, lamenta. Na sua opinião, isso significa que além das empresas poderem adquirir concessões para serviços de água, terão autonomia para definir a tarifa. O problema é quem vai controlar esse reajuste de tarifa. Gogó prevê que, inevitavelmente, a água vai se tornar cada vez mais cara. A questão é saber se as tarifas subirão 400%, como aconteceu com as de energia depois da privatização, ou se o poder público e a sociedade vão ter poder para controlar os reajustes.
MERCANTILIZAÇÃO
Avanços Além da mera existência de uma lei nacional para o saneamento básico, Edson indica como ponto positivo a inclusão de um princípio importante, que é a universalização dos serviços. “Outro aspecto que vale ser destacado é a adoção de sistemas que consideram especialidades regionais e culturais. Existe uma tendência no setor de saneamento de pensar sempre em grandes projetos. Obra de competência estadual, por exemplo, é tudo igual”, revela. A gestão dos recursos também deve se fortalecer com a nova lei já
que as operadoras estaduais não poderão mais atuar nos municípios sem um instrumento de regulação. A partir da sanção do presidente Lula, essa relação vai ser regida por contratos. “Hoje, a Sabesp vai para uma cidade como Suzano (SP) e define onde vai construir as obras de saneamento. Nem a Prefeitura, nem a população é consultada. A lei torna esse processo mais transparente”, analisa Edson. Por fim, a nova lei obriga os municípios a construírem um plano de infraestrutura para o saneamento básico garantido por contrato, pensando a questão no longo prazo. (LB)
O integrante da CPT sustenta que, no fundo, o saneamento no Brasil acaba tratando a água como mercadoria. A Lei nº 9.433/97, no segundo parágrafo do primeiro capítulo diz que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”. Assim, ao mesmo tempo em que considera a questão ambiental, a água como patrimônio público e como dever do Estado, entrega os serviços do saneamento para as empresas privadas que quiserem entrar. “Acho que as empresas não vão se interessar por todos os serviços, vão se interessar apenas pelas regiões onde for lucrativo. Onde tiver muito custo, muito a ser construído em termos de infra-estrutura, o capital privado não vai se interessar e aí fica para o Estado”, analisa. Para Gogó, com a nova lei, o subsídio cruzado (arrecadação nas regiões mais ricas para investir nas mais pobres) acaba. No lugar, entra um saneamento de dois níveis, um privado para as localidades lucrativas e com tarifas altas e um serviço de segunda categoria feito pelo Estado em regiões distantes, onde o capital financeiro não tem interesse.
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NACIONAL NATAL Martin Kussler/Creative Commons
No Natal, papai noel toma o lugar de Jesus, personificando o “santo dos presentes” na sociedade de consumo
Da festa pagã ao culto do lucro O nascimento de Cristo como pretexto para a ativação da economia capitalista Eduardo Sales de Lima da Redação
E
m uma sufocante peregrinação, sob um calor intenso do verão, uma multidão toma a Rua 25 de Março, em São Paulo. Para o capitalismo neoliberal, a data é fundamental para alavancar a produção e o consumo, nessa ordem. Fábio Assis, que pechinchava óculosde-sol junto a um ambulante, acredita que o crescimento das compras nem se dá tanto pelo Natal. “Nessa época, acho que tem a ver com o décimo terceiro, com as férias”, afirma o advogado. Mas não é só isso. O Natal, data comemorativa do nascimento de Jesus Cristo, tem 17 séculos e foi instituído pelo Papa Libério, em 354 d.C, em substituição às festas pagãs que celebravam o solstício de inverno. “O capitalismo tem por volta de 250 anos de vida. Podemos falar em consumismo apenas a partir do século XX, quando a produção industrial começa a
ser uma produção em massa para gerar consumo em massa”, explica a socióloga Valquíria Padilha, referindo-se ao fordismo.
COMPRO, LOGO EXISTO A socióloga destaca que, ao final do século XVIII, as lojas de departamento na Europa (embriões dos atuais shopping centers) perceberam que o consumo deveria ser aliado ao prazer, e não apenas à satisfação das necessidades e explica que é daí que surge a publicidade, “porque se aliava um chapéu a uma duquesa, por exemplo”, explica Valquíria, que aponta o papel central das campanhas publicitárias hoje em dia, principalmente em datas comemorativas. “Elas invertem radicalmente a lógica inicial de que a demanda gerava a produção. Agora, a produção gera demanda, por meio da publicidade”. Segundo a professora, vivemos dentro da lógica do “compro, logo existo”. “A figura emblemática
do Papai Noel é o símbolo dessa associação entre Natal e consumo. Quem é esse santo que foi transformado pela Coca-Cola (no final do século XIX) no maior representante do Natal, sendo mais conhecido no mundo que o próprio Jesus Cristo? Ele é a figura do presenteador, o ícone do consumo no mundo todo, deixando muito para trás qualquer natureza cristã que o Natal possa ter” conclui a professora. Há economistas que defendem o excesso de consumo como uma maneira de impulsionar o mercado, mas esquecem que a economia capitalista funda-se, como salienta Valquíria, no trabalho precarizado de muitos, no desemprego de outros tantos e na apropriação privada da riqueza produzida coletivamente. “Não dá para basear argumentos em defesa do consumo levando em consideração o crescimento econômico, porque não é esse modelo de economia que precisa crescer”, aponta a socióloga.
Para não focar apenas a avidez pelo lucro dos patrões, o economista Márcio Pochmann revela que até mesmo os sindicatos estão imbuídos a elevar o padrão de vida dos trabalhadores visando o consumo indivdual. “Não há esse enfrentamento cultural ao predomínio do consumo, inclusive porque também as instituições coletivas não estão imbuídas no fortalecimento do consumo coletivo”, diz o economista.
ENDIVIDAMENTO “Nunca a população mundial esteve tão endividada como hoje. Principalmente quando consideramos que cerca de 98% da população brasileira têm televisão em casa. O pobre vê a propaganda do carro, do tênis, do celular e quer tanto quanto os mais endinheirados. Nessa onda frenética do “ter” para “ser”, da busca do preenchimento dos vazios existenciais pelo consumo de mercadorias, os bancos estão enriquecendo como nunca porque
as pessoas estão fazendo dívidas e empréstimos”, destaca Valquíria. Para o economista Márcio Pochmann, há uma disputa no final do ano a respeito do encaminhamento do recurso adicional do décimo terceiro salário, seja para o consumo, seja para pagar dívidas passadas ou para recursos de poupança. Ele explica que, principalmente em relação aos aposentados, há sinais claros de inadimplência e endividamento. “O próprio governo federal antecipou o pagamento de uma parcela do décimo terceiro aos aposentados, frente ao maior endividamento que ocorreu desde 2005 com a ampliação do chamado crédito consignado”, revela Pochmann. O vendedor da Rua 25 de Março, Marcelo Santos, concorda com o economista e afirma que o movimento na região é menor que no ano passado. “As pessoas estão economizando para pagar as contas em janeiro”, reforça o ambulante.
ENTREVISTA
Comprar ou não comprar, eis a questão Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatíticas (IBGE), o Brasil tem cerca de 75% da população formada por católicos. Por mais que esses dados possam ser contestados, permanece a discussão da grande contradição que envolve religião, economia e comportamento. “Os homens criam Jesus e formas de adorá-lo, mas, paralelamente, criam outros deuses como as mercadorias, que são mais veneradas que Jesus. Essa idéia pode ser entendida quando se olha criticamente para a catedral moderna que é o shopping center. Lá, não se cultuam santos, mas mercadorias e valores”, analisa a socióloga Valquíria Padilha. O teólogo e filósofo Claudemiro Godoy do Nascimento propõe a seguinte questão: “Será que uma pessoa que não participa do mercado será chamada para participar de um amigo secreto ou
de uma festa de confraternização?”, e arremata, “Depois, as elites que não reclamem, pois são elas os alicerces da violência que fomentam nos jovens os desejos de consumo”. Segundo Claudemiro, mesmo tendo adquirido territórios na Idade Média e tendo controlado muita riqueza, o lucro sempre foi mal visto pela teologia católica por se tratar de acumulação de bens. O teólogo explica que, na ética protestante, a riqueza é para todos os homens abençoados e convertidos ao cristianismo. “A acumulação é uma espécie de meritocracia proveniente da riqueza e das bênçãos dadas por Deus”, completa.
CARISMÁTICOS Claudemiro aponta, porém, uma transformação no catolicismo, que assume o discurso da teologia da prosperidade nos últimos anos, a mesma teologia da prosperidade dos grupos protestantes pentecostais e neopentecostais que compram o Deus que querem, o Jesus que querem. “ No século XX, Max Weber já re-
fletia sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Parece que o catolicismo no Brasil nos últimos anos tem assimilado a ética protestante e deixado de lado a ética católica da Doutrina Social e de uma teologia da partilha. A Renovação Carismática Católica é o símbolo desse momento de transformação do catolicismo.” E finaliza: “Se o catolicismo assume para si a ética protestante com a teologia ou lógica da prosperidade, assume, na pior das hipóteses, o espírito do capitalismo e suas conseqüências”. Diante da atual conjuntura, o teólogo não vacila ao afirmar que o catolicismo contribui, em parte, para fomentar nas pessoas a avidez pelo consumo, mas pondera, admitindo que o espírito natalino não se perderá para algumas comunidades. “Uns estarão partilhando momentos com o povo da rua, com os meninos e meninas sem lares, outros e outras estarão celebrando a chuva e a colheita nos assentamentos de reforma agrária”, diz otimista.
A mídia do Papai Noel Brasil de Fato – O impulso que a mídia dá ao consumismo chegou ao auge? Silvio Mieli – Não. Quando o lema passa a ser “vender sem trégua” sempre haverá novas modalidades de casamento entre a mídia e o consumo. Basta olhar a mídia eletrônica (internet) para perceber que colonizamos o espaço virtual pelos piores valores do capitalismo. Ou, dito de outra forma: os sites da mídia corporativa viraram grande mercados online. E com a TV digital dias piores virão. A idéia é o telespectador poder comprar a roupa que a atriz está usando na novela. É isso que alguns estão chamando de interatividade, participação e convergência das mídias... BF – A rádio e a televisão dão espaço para a reflexão sobre o Natal? Mieli – O Natal entendido enquanto mito da natividade, incluindo o seu sentido de renascimento cristão, ou
então no seu aspecto mítico, pagão, pré-cristão? O Natal enquanto oportunidade para fazer um balanço de valores e qualidades que estão em jogo na virada do ano? Não. No ano passado, uma estação de rádio colocou um microfone num Papai Noel de shopping center e mandava para o ar todos os pedidos que as crianças faziam, destacando os nomes dos brinquedos solicitados. É o máximo de reflexão a que se pode chegar via “grande” mídia. O grande artista coreano Nam June Paik costumava dizer que a televisão ainda não tinha sido inventada. Acho que o vídeo e a rádio contemporâneos, do ponto de vista social e político, ainda estão a espera de uma reinvenção. BF – Qual o papel da democratização da comunicação, tendo em vista uma sociedade livre das demandas mercadológicas? Mieli – Estamos jogando no campo do inimigo. Se não sobrar mais nada vamos ao menos rir dele. Na prática, trata-se de criar tantas campanhas quantas o mundo
corporativo coloca no ar. Um exemplo; a revista canadense Adbusters, que luta há dez anos contra o consumismo desenfreado, colocou na contracapa de seu último número (janeiro/ fevereiro de 2007) uma imagem do rosto de Jesus Cristo. Eles sugerem que o leitor recorte a imagem e vista, como se fosse uma máscara para ser usada num passeio ativista a shopping centers e demais centros comerciais. Você nem precisa comprar a revista para fazer o mesmo. Monte a sua própria máscara em casa. Seria no mínimo cômico ver uma legião de Cristos em meio ao caos das compras de Natal !
Quem é
Silvio Mieli é professor do programa de graduação no Departamento de Comunicação da PUC São Paulo. Ele é jornalista, ensaísta e pesquisador de ativismo de mídia. Em sua página eletrônica (www.imediata.com), discute informação, movimentos sociais, biodiversidade e ativismo de mídia.
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INTERNACIONAL DIREITOS HUMANOS
França: segregar e punir Hughes Leglise-Bataille/Creative Commons
A juíza francesa Evelyne Sire-Marin critica projeto de lei, aprovado no dia 5, que aumenta a repressão e não ataca as causas da delinqüência Fernanda Campagnucci de Lyon (França)
P
ara o ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, prevenir a delinqüência significa reprimir mais. O projeto de lei de “prevenção à delinqüência” apresentado por ele no Senado foi aprovado no dia 5 também na Assembléia Nacional, e voltou para uma segunda leitura dos senadores. Entre outras medidas, o texto reduz a maioridade penal para 16 anos, prevê a violação do segredo profissional de psiquiatras, educadores e assistentes sociais, além de sanções administrativas às famílias de crianças e adolescentes em dificuldades. É a décima lei sobre delinqüência em 4 anos e meio, uma série criticada pela esquerda por seu caráter repressivo. Em entrevista ao Brasil de Fato, a juíza francesa Evelyne Sire-Marin, da Liga de Direitos Humanos, chama atenção para a superficialidade e o populismo dessas medidas. Brasil de Fato – O que significa prevenção da delinqüência e como a lei de Nicolas Sarkozy pode atuar nesse campo? Evelyne Sire-Marin – Prevenir a delinqüência na França, até os dias de hoje, significava melhorar as condições de moradia da população, aumentar seu acesso à educação e à saúde. Em resumo, fornecer assistência às famílias que têm crianças em dificuldades, por meio de medidas educativas. Porém, o projeto de lei de Sarkozy não trata absolutamente disso. É apenas repressivo, quer dizer, não há intenção de atacar as causas – que são os problemas de saúde mental, moradia, analfabetismo. Ao contrário, ele visa punir uma parcela da população em dificuldade. A intervenção social é substituída pela penal. BF – Em outras palavras, o projeto pune a pobreza? Evelyne – Sim. Essa é uma tendência desse governo que, desde 2002, penaliza a miséria e se volta contra certos grupos, como os nômades (roms, em francês), os pobres e, sobretudo, os jovens da periferia, que se revoltaram com violência em novembro de 2005. BF – Há uma relação entre as revoltas de 2005 e essa nova lei? Evelyne – Certamente. Várias outras leis já foram criadas após as revoltas, todas de caráter repressivo. Uma delas agravou as penas para os jovens reincidentes; outra, sob pretexto de combate ao terrorismo, autoriza a detenção provisória e o uso de câmeras de segurança em todo lugar, nas ruas. O próprio projeto do Contrato do Primeiro Emprego (CPE), que precarizaria as relações de trabalho dos jovens e provocou manifestações em todo o país, também pode ser visto como resposta às revoltas. BF – Como se explica a criação de tantas leis penais na gestão de Sarkozy? Evelyne – Ele quer ser eleito presidente da República. Mas o balanço de sua atuação como ministro do Interior é muito negativo. Ele construiu toda a sua carreira apoiando-se na idéia de que ele iria reduzir a delinqüência. Porém, o que se constata é que a violência contra a pessoa
O ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, considera que, para conter a criminalidade nas periferias francesas, é preciso aumentar a repressão policial
10 leis em 4 anos e meio 1. Julho de 2002: lei satisfaz os sindicatos de policia e prevê a criação de 13.500 empregos na área, com um investimento de 5,6 bilhões de euros em 5 anos;
4. janeiro de 2003: lei de segurança votada em sessão solene. O artigo 50 desse texto pune com dois meses de prisão e multa de 3.750 euros a prostituição;
2. julho de 2002: lei Perben I, que instaura os Centros de Detenção Fechados – prisões especializadas para adolescentes;
5. março de 2004: lei que aumenta a prisão temporaria (sem julgamento, para investigações) para 96 horas;
3. dezembro de 2002: lei orgânica cria os juízes de proximidade, promessa de campanha do presidente Jacques Chirac;
6. agosto 2004: lei possibilita criação de “fichas”, antes do aval da Comissão de Informática e das Liberdades;
cresceu 9% desde o ano passado. Ele também extinguiu a polícia de proximidade e os jovens são abordados o tempo todo em blitz policiais nos bairros pobres. Entretanto, isso não funciona, pois a violência não diminui. Sarkozy escolheu um método repressivo que enche as prisões, mas não diminui a delinqüência. BF – Como uma espécie de populismo penal? Evelyne – Diante de um balanço tão ruim, ele desloca o problema para dizer a seus futuros eleitores que ele é um bom ministro, pois pune mais. Assim, ele tenta conquistar o eleitorado de Jean-Marie Le Pen, da extrema direita. Sarkozy substitui as respostas que deveriam ser dadas a problemas sociais, o conjunto de questões graves da sociedade francesa, por respostas erradas, de caráter penal. É uma enganação, são mentiras que passam ao largo da questão. BF – O que aconteceu ao modelo de reinserção social e de assistência socioeducativa? Evelyne – O governo investiu todo o dinheiro do orçamento da Justiça na construção de prisões e o aprisionamento. Sem verba, o número de educadores é insuficiente. Em vez de priorizar as medidas educativas, destinadas à reinserção de crianças e adolescentes infratores, bem como de adultos, com penas alternativas, o governo investe nas prisões, que estão superlotadas. É uma escolha política. BF – Quais são as conseqüências dessa lei para o campo social, educativo e da psicologia publica? Evelyne – Os psiquiatras e os psicólogos, por meio de seus sindicatos, estão revoltados em relação ao projeto de prevenção à delinqüência. Eles discordam que o prefeito de uma cidade tenha poderes importantes em caso de
hospitalização psiquiátrica forçada. Na França, mesmo que você tenha uma doença mental séria, é preciso esperar um ou dois meses para ser assistido por alguém do setor público. O sistema está congestionado, falta recursos. Os educadores e assistentes sociais também são contra o projeto, porque o prefeito vai se tornar um pouco como o xerife da cidade. BF – Quais as novas prerrogativas dos prefeitos? Evelyne – Eles terão poderes de sanção. Poderão suspender as bolsas e subsídios concedidos a uma determinada família, vão determinar qual serviço à comunidade o jovem fará. Por exemplo, se uma criança não vai à escola, essas sanções podem ser aplicadas contra a família dela. Mas são medidas ineficazes, porque, se uma criança não vai à escola, seria melhor pôr em prática um programa de reforço escolar, social e educativo, do que punir toda a família. BF – Em 2005, um relatório do Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) rotulou a delinqüência como “patologia” que pode ser detectada desde a primeira infância, nas creches. Qual a relação entre esse relatório e o projeto de lei? Evelyne – Como o relatório, o projeto de lei é muito discriminatório em relação aos mais desfavorecidos. O projeto entrelaça problemas sociais, educativos e delinqüência. Parte-se do princí-
7. julho de 2005: lei acelera julgamento nos casos em que o réu confesse sua culpa; 8. dezembro de 2005: lei sobre a reincidência instaura o “bracelete eletrônico” que permite rastrear seu usuário; 9. janeiro de 2006: lei sobre o terrorismo estende a utilização da vigilância de câmeras; 10. dezembro de 2006: votação da lei de prevenção à delinqüência. pio, nessa lei, que, grosso modo, os pobres são os delinqüentes; pessoas que têm problemas psiquiátricos são delinqüentes em potencial. Mistura-se tudo. O relatório do Inserm, que é um instituto público, defendia o rastreamento de crianças, desde a idade de três anos, buscando eventuais indícios de futuros delinqüentes. Se uma criança é considerada um pouco mais agitada na creche ou na escola, esse estudo defende que seja acompanhada particularmente. Mas, de acordo com psiquiatras e psicólogos, não há nenhuma relação. BF – A polícia de proximidade – espécie de policia comunitária – foi extinta durante esse governo. Qual o peso dessa medida para o aumento da tensão entre a população da periferia e os policiais? Evelyne – Essa política foi colocada em prática pelo governo anterior de esquerda (Lionel Jospin, 1997-2002). Os policiais ditos de “proximidade” circulavam a pé e eram numerosos nos bairros mais pobres, para conhecer a população, ver o que acontecia, vigiar... E foi muito útil, pois eles conheciam a comunidade, o que evitava o controle de identidade permanente. Agora, são os policiais da Brigada Anticriminalidade que circulam, em viaturas, nesses bairros. Trata-se de uma patrulha com quatro policiais, que intervêm de modo mais brutal e que fazem controles de maneira sistemática sobre os jovens, causando
Quem é
Evelyne SireMarin é juíza, especialista em Direito Penal e integrante do comitê central da Liga dos Direitos Humanos (LDH). Evelyne é também vice-presidente da Fundação Copernic, um instituto que desenvolve estudos sobre alternativas antiliberais.
uma tensão muito grande. Mais do que isso, gera novas infrações penais, pois os jovens se rebelam, configurando um crime chamado “crime de ultraje e rebelião”. Essa polícia não é nada eficaz e intervém de maneira superficial e muito brutal. E as pessoas que sofrem os controles se sentem fortemente discriminadas. BF – Em que essa lei atenta às liberdades individuais? Evelyne – Primeiro, a lei prevê o fichamento de pessoas em diversas áreas. Fichas escolares, fichas dos beneficiários de ajudas familiares, fichas psiquiátricas – que serão cruzadas sob coordenação dos prefeitos. Estes terão o poder de ordenar uma prisão temporária, por exemplo. Os funcionários das empresas de transporte também ganharão poderes, como reter sob sua custódia uma pessoa que não tenha documentos legais – a partir de agora eles também podem fazer os controles de identidade – ou que esteja sem bilhete até a chegada da polícia. BF – O projeto de lei traz à tona o debate sobre a redução da maioridade penal. O texto prevê alguma mudança nesse sentido? Evelyne – É uma lei que muda completamente o regime penal de menores, pois graças a ela será possível julgar o adolescente imediatamente. O objetivo do governo é alinhar a legislação penal dos adultos à dos jovens de 16 a 18 anos. Na França, antes da lei, havia a “desculpa da minoridade”, que aplica metade da pena aos menores infratores dessa faixa etária. A partir de agora, os adolescentes reincidentes poderão ser julgados imediatamente e sem um juiz especial. A nova lei também prevê a detenção provisória por delitos leves para esses jovens infratores. BF – O que significa a expressão “canal penal”, cunhada por Sarkozy para designar a relação entre a Justiça e a polícia? Evelyne – Ela existe desde o começo do governo, e quer dizer que, para o ministro, a Justiça e a polícia são a mesma coisa. A polícia prende o delinqüente e a Justiça deve sentenciá-lo, sem nenhum senso critico. Mas a Constituição francesa considera que a Justiça é a guardiã das liberdades individuais. Isso significa que, se a polícia erra, e o suspeito é inocente, a Justiça deve liberá-lo e a perseguição deve acabar. Mas essa não é a concepção de Sarkozy. E isso é problemático em um Estado de direito.
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA EM TRANSE
O presidente boliviano afirmou que não vai permitir a separação, que é manobra da oposição para desestabilizar o governo
Fotos: Solange Engelmann/MST
Quatro Estados ameaçam formar novo país
Marcelo Netto Rodrigues enviado especial a Cochabamba (Bolívia)
T
ratada como “paranóia” meses atrás por alguns setores da esquerda, a iminência de um golpe de Estado contra o presidente boliviano, Evo Morales, ganhou corpo e cara em dezembro. Quatro dos nove Estados (departamentos) que compõem a Bolívia ameaçam declarar sua independência, redigir sua própria Constituição e organizar suas próprias eleições. Camisetas com os dizeres “Faço parte de uma nova república”, ao lado de uma meia lua junto à palavra “independência”, e veículos com adesivos que mostram o mapa dos quatro departamentos separatistas ao lado da frase “meu país” já tomam as ruas de Santa Cruz, capital do departamento com o mesmo nome. Os quatro Estados (Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija), que formam uma imaginária “meia lua” devido a sua disposição geográfica e que são os responsáveis pelas maiores divisas do país, assumiram o nome provisório de “Junta Autônoma Democrática”. Por sua vez, Evo – que completa um ano no poder em janeiro, como o primeiro presidente indígena da história da Bolívia – garante que “não haverá nenhuma divisão, nenhuma separação da nossa pátria”: “Os inimigos dos pobres deste país sabem que, durante o referendo em julho, o ‘não’ contra a autonomia obteve 58% dos votos em nível nacional”. “Aí estão nossas instituições armadas, que saúdo de verdade: o alto comando de nossas Forças Armadas que tem acompanhado esse processo de mudança. São oficiais de uma nova geração, não mais da época da ditadura militar, temos conversado bastante”, disse Evo, em 9 de dezembro, diante de 45 mil bolivianos durante o encerramento das Cumbres de Cochabamba, como se pressentisse que a declaração de autonomia unilateral dos departamentos da “meia lua” estava próxima.
GOLPE MILITAR? “(A direita) tentou usar algum comandante, tentou convencer o chefe da Casa Militar, tentou dividir as instituições (mas não obteve êxito)”, discursou Morales na mesma oportunidade, sem entrar em maiores detalhes. “Soubemos que militares estiveram reunidos para fazer um golpe de Estado, panfletos foram distribuídos, mas essas são apenas algumas das coisas que posso contar”. As outras coisas, é muito provável que Evo tenha confidenciado ao presidente venezuelano, Hugo Chávez, também presente no encerramento, visivelmente forçado a fazer um discurso de improviso aos soldados bolivianos: “Maldito seja o soldado que volta a sua arma contra o povo. Os soldados verdadeiros devemos estar com nossas armas ao lado do povo”. À ocasião, Evo chegou a revelar em tom de desabafo:“Voulhes falar pela primeira vez, nós sabemos que os governantes da chamada “meia lua”, no dia 15 de setembro, se reuniram aqui em Cochabamba e aprovaram duas coisas: a primeira, que, por bem ou por mal, a Assembléia Constituinte teria de fracassar, e, em segundo, que eles teriam de recuperar o governo, porque não é possível que o poder esteja nas mãos da esquerda,
Evo aproveitou a presença de mais de 45 mil pessoas, no evento de encerramento da Cumbre de Cochabamba, para falar sobre um possível golpe contra seu governo
ainda mais, nas mãos de um dirigente camponês indígena”.
NOVA CONSTITUIÇÃO Nessa lógica, a oposição não se cansa de criar pretextos, de tempos em tempos, para imobilizar as mudanças conduzidas por
Evo. Depois de ver naufragar todas as suas outras tentativas de desestabilizar o governo – como inúmeras greves de fome, bloqueios de estradas e até roubo de fuzis de um quartel, os Departamentos da “meia lua” escolheram como pretexto da vez a exigência
infundada de que todos os pontos da nova Constituição devam ser aprovados por dois terços do total dos deputados constituintes – caso contrário, prometem declarar sua independência da Bolívia. O temor é que a maioria absoluta de cadeiras obtidas pelo Mo-
BOLIVIANAS A TODO GÁS I Os motoristas de táxi de Cochabamba fazem em média 50 viagens por dia. Antes da nacionalização do gás, gastavam o equivalente a 12 dólares por dia em gasolina para trabalhar; hoje, abastecendo com gás, o custo caiu para 3 dólares. Um taxista ganha cerca de 300 bolivianos por dia, o equivalente a R$ 100. A TODO GÁS II Antes da nacionalização, a Argentina pagava pelo gás boliviano o equivalente a 0,90 centavos de dólar por milhão de BTU (unidade de medida usada para o gás natural). Agora, são 5 dólares por milhão de BTU. O Brasil, por sua vez, ainda paga pelo gás boliviano apenas um terço do valor internacional. SEDE DE QUÊ? Na cidade onde aconteceu a “guerra da água”, em 2003, o líquido é raro. No lugar, Coca-Cola, por todos os lados. PROPAGANDA Lula ficaria com inveja. Nas ruas, ambulantes vendem calendários 2007 com a história de vida e fotos de Evo e de seu vice. A módicos 1,50 bolivianos (cerca R$ 0,50), Evo passará todos os dias do ano ao lado de sua base de apoio. Uma brochura com o texto integral da nova lei de reforma agrária, aprovada em 28 de novembro, também já está à venda nas ruas ao mesmo preço. 40 ANOS DEPOIS No quartel militar que serviu de hospedagem às delegações dos movimentos sociais, uma placa abaixo de um busto com os dizeres: “Defensor da pátria, morto aos 21 anos em 1967, combatendo a guerrilha de Ñancahuazu” (ou seja, a guerrilha de Che) era lida tranqüilamente por militantes que vestiam camisas com o rosto do argentino-cubano estampado. “ESQUERDA SENHORIAL” A sala de imprensa da Cumbre oficial, abrigada em um hotel cinco estrelas, era o retrato de um governo que se viu obrigado a fazer coligações para chegar ao poder. Não se via bolivianos indígenas trabalhando na sala. Segundo uma jornalista boliviana de origem indígena, postos estratégicos na área de comunicação
foram dados ao “Movimiento Sin Miedo, Somos MAS”, um partido com membros da “esquerda senhorial”, para os quais a presença indígena “não combina” em locais desse tipo. LONGE DE CASA Diariamente, cerca de 500 bolivianos partem para a Espanha em busca de trabalho. “ENXAME” Como formigas silenciosas, milhares de indígenas surgiram, caminhando por todas as ruas que levavam ao estádio reservado ao ato massivo convocado por Evo. Alguns já estavam caminhando havia dias. REVOLUÇÃO BOLIVARIANA Com o apoio do governo venezuelano, 15 rádios comunitárias já foram instaladas na Bolívia. O objetivo é chegar a 30. Uma TV comunitária também está nos planos. Na área da saúde, o convênio Cuba-Venezuela-Bolívia já é responsável pela realização de 50 mil operações de catarata. ... LULA Apesar de ter rejeitado o convite de Evo para participar do encerramento da Cumbre Social pela Integração dos Povos, no estádio Félix Capriles, Lula foi elogiado por ter sugerido o nome de Cochabamba como sede do futuro Parlamento Sul-Americano. A sugestão serviu para fortalecer Evo frente à direita local, que preconizava que a Cumbre seria um fracasso. PARLAMENTO Evo já pediu ao governo de Cochabamba 10 hectares para construir a infra-estrutura do futuro Parlamento Sul-Americano.
A REBOQUE Coube a Chávez levantar a bola de Daniel Ortega, presidente eleito da Nicaraguá, depois de este realizar um discurso relâmpago e sem vida no encerramento da Cumbre.
vimento ao Socialismo (MAS), partido de Evo, passe como um rolo compressor em cima de todos os interesses das oligarquias que dominaram o país desde sempre. O MAS possui 142 de um total de 255 constituintes. “Os vendilhões da pátria tratam de confundir a população e a comunidade internacional, reclamando a aprovação de pontos da nova Constituição por dois terços do total dos constituintes, quando sabem que a lei convocatória da Assembléia Constituinte diz que a nova Carta deve ser aprovada por dois terços dos presentes”, explicou Evo, pedindo ao povo que “siga adiante, não desmaie, não se humilhe”. Se depender da presidente da Assembléia Constituinte da Bolívia, Sílvia Lazarte, o recado será posto em prática a despeito das ameaças dos departamentos da “meia lua”. “Temos um ano de prazo para concluir a Constituição. Já se passaram quatro meses, então, a partir de agora, queiram ou não queiram, digam o que digam os que pertencem à direita, à oligarquia, mesmo que nos custe a vida, vamos terminar nosso trabalho, e entregá-lo a Evo Morales no prazo para que ele promulgue a nova Carta política do Estado”.
SOLTAR A MAMADEIRA EVO I – REVOLUÇÃO AGRÁRIA “Dirijo-me aos companheiros camponeses indígenas da América do Sul, aqui estamos propondo uma revolução agrária, nenhuma reforma, porque a reforma agrária de 1952 nos trouxe minifúndios e latifúndios no Oriente boliviano.” EVO II – SEM ARREPENDIMENTO “Disseram-me que o ex-presidente Carlos Mesa está arrependido de não ter nacionalizado os hidrocarburetos.” EVO III – FORÇAS ARMADAS “A melhor garantia para que possamos recuperar todos os nossos recursos naturais vem dos movimentos sociais e das Forças Armadas, dos setores do povo organizado.” MAIS EVO “Saudamos os muitos companheiros da cidade, profissionais, intelectuais, que não têm problemas econômicos, que se somam, se organizam para apoiar incondicionalmente esse processo de mudança, sem buscar nenhum dinheiro em troca.” BUENA PAREJA Más-línguas fazem piadas sobre o status civil de Evo e de seu vice, Álvaro García Linera. Ambos são solteiros e, de acordo com o que dizem, formam um “belo casal”. Outros, pejorativamente, os chamam de “touro negro” e “touro branco”.
A esquerda boliviana corre contra o tempo. A nova Constituição deve ser concluída no prazo de um ano – até 6 de agosto de 2007 –, mas as votações estão emperradas porque, segundo Evo, “algumas famílias não querem soltar a mamadeira”. Continuou: “Há algumas famílias que não querem perder seus privilégios. Que não querem soltar a mamadeira, famílias que não querem perder o latifúndio, e então se organizaram nestes dias sobre o pretexto de dois terços”. “Com que moral, com que autoridade estão em greve de fome? Pessoas que negociavam com o narcotráfico, que roubaram o dinheiro do povo. Como é possível que empresários estejam em greve de fome? Eles não têm problemas de saúde, de educação, seus filhos estudam em universidades particulares, nem sequer na Bolívia, mas nos Estados Unidos. Como é possível acreditar nisso?”, pergunta o presidente boliviano, indignado. “Nós, pobres, fizemos muitas greves de fome, mas pedindo trabalho, saúde, educação. Mas a eles, lhes sobram dinheiro. Só entendo que façam greve de fome para não perder seus privilégios”, desabafa Evo, lembrando que seu governo tem sido alvo de uma conspiração permanente da “direita fascista”, desde que assumiu o poder, há 11 meses.
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CULTURA
De 21 a 27 de dezembro de 2006
ENTREVISTA Fotos: Naftalina007/Creative Commons
O samba é dos brasileiros de boa cabeça Músico, escritor e ativista social, Nei Lopes lança livro para difundir a igualdade racial nas escolas Áurea Lopes de São Paulo (SP)
A
utor de uma produção cultural que conta – em detalhes e com uma visão política afinadíssimas – o passado e o presente dos afro-descendentes no Brasil, Nei Lopes é músico, poeta, escritor e estudioso da diáspora africana. Ele acaba de lançar um dicionário cuja proposta é abrir espaço, nas escolas, para uma reflexão crítica sobre a situação do negro no país. Enquanto escreve (de livros a mensagens no seu blog, veja quadro abaixo), o sambista continua cantando. Seus shows lotam platéias pelo país afora. Em janeiro, Nei começa a gravar um novo CD, Chutando o balde. Nesta entrevista, ele fala de sua obra musical e literária, mas também analisa o racismo velado brasileiro: “Quanto mais o negro avança, mais a questão se acirra”. Brasil de Fato – Você acaba de lançar mais uma obra, o Dicionário Escolar Afro-Brasileiro, dirigido a estudantes. Na sua opinião, qual o espaço que o livro vai ter nas escolas? Você acredita que as escolas brasileiras, hoje, contribuem para oferecer aos jovens uma visão mais crítica da condição dos povos afro-descendentes no Brasil? Nei Lopes – O objetivo do livro é exatamente oferecer aos alunos uma visão, mesmo que resumida, dessa condição. Quanto ao espaço que ele vai ter, isso depende de ele ser aceito como material auxiliar, dentre os muitos livros que estão sendo lançados por conta da Lei nº 16.039. BF – Como você vê as ações afirmativas que vêm conquistando espaço na sociedade brasileira, como cotas nas universidades, lei anti-racismo, programas de diversidade para contratação nas empresas? Nei – Eu quero ver todas essas ações efetivamente implantadas. Se não derem certo, a gente procura outros caminhos. Mas do jeito que está, achando-se que melhorar o ensino básico vai resolver o problema, é que não pode ficar. Essa melhoria, se acontecer um dia, vai demandar muito tempo. E, aí, “o mundo já acabou”. BF – Nos últimos anos, o negro mudou de “lugar político”, na mídia brasileira? Ou apenas mudou de personagem nas novelas? No noticiário e na ficção da mídia impressa e televisiva,
houve mudanças significativas? Nei – A grande mídia finge que está promovendo mudanças. Mas enquanto não houver negros nas redações de jornais, nos núcleos de direção das emissoras de TV, nas agências de propaganda, não vai haver nenhuma mudança significativa. Em todos esses setores o número de profissionais negros parece que está diminuindo... BF – Os movimentos sociais de valorização dos negros – movimento negro, quilombolas etc. – estão articulados, no país? Nei – Conheço alguns casos de articulação, em torno de alguns interesses comuns. Mas nunca mais ouvi falhar no MNU, Movimento Negro Unificado. BF – O Brasil vai ser um país menos racista daqui a uma, duas gerações? Nei – Quanto mais o negro avança, mais a questão se acirra. Mas há uma estratégia: é glamurizar a “periferia” (através do cinema, da TV, da moda, do teatro, da dança, da música). Aí, a turma se contenta e permanece do lado de fora, sem incomodar os que estão dentro, no centro das decisões. E assim vai-se perpetuando a “democracia racial” brasileira.
O sambalanço saúda o dia do samba Nei Lopes * Dias atrás, ganhei, em São Paulo, do músico Marco Mattoli, dois CDs e um DVD. O conteúdo é “samba-rock”, que aqui no Rio a rapaziada chama de “suíngue” – aportuguesamento do inglês swing, balançar. No DVD, depoimentos e aparições de velhos conhecidos como Marku Ribas, Luiz Camilo, Boca Nervosa, Seu Jorge, Paula Lima; do inefável Ivo Meireles, dos indispensáveis herdeiros do grande cantor Wilson Simonal, e até do “tremendão” Erasmo Carlos, que um dia ia entrando no samba mas foi embora, ler seu Pasquim. Pra quem teve a oportunidade de dançar samba ao som, principalmente, de Ed Lincoln ou apenas ouvir os que vieram depois, como os conjuntos Copa Sete, Devaneios, Charme e Chanel, foi uma viagem que merece reflexão, aliás já feita por nós, em outro lugar e momento. É que, a partir da bossa-nova, instituiu-se uma espécie de “samba de concerto”, que só se podia ouvir sentado, geralmente
BF – Você esteve recentemente em Cuba. Como é a questão da diferença racial por lá? E no restante do mundo, houve avanços em outros cantos do planeta? Nei – Pelo que eu sei, Cuba, apesar do passado racista – foi o penúltimo país a ter escravidão legal; o último foi o Brasil – no final da década de 1990, dos 24 integrantes do comitê central do PC, 6 eram negros. E, mesmo com uma percentagem de afro-descendentes bem menor que a nossa, a presença deles é absolutamente visível, em quase todos os setores. Saiba também que Havana é hoje a meca dos praticantes de cultos afro nas Américas. Todas as vertentes de culto são muito fortes. E eu acho que é por isso, sinceramente,
que os Estados Unidos ainda não conseguiram seu intento. BF – Você continua levantando as platéias, por onde passa. Quem faz e quem ouve samba, hoje, no Brasil? Nei – O samba continua sendo, como sempre foi, a música dos brasileiros que não têm vergonha de ser brasileiros; que não acham que exista uma música “jovem” e uma “velha”; que não acham que samba é música de preto e pobre... dos brasileiros de boa cabeça, enfim. E quem faz samba hoje é muita gente: desde aqueles que gostam mesmo até aqueles que estão só a fim de ganhar um dinheirinho. Mas a dos que gostam mesmo e se prepararam, sempre é melhor.
Quem é O carioca Nei Braz Lopes, 64 anos, é autor e intérprete de música popular. Formado em Direito, no início dos anos de 1970 abandonou a recém-iniciada carreira de advogado para dedicar-se à música e à literatura. Entre seus parceiros, destacam-se Wilson Moreira, Cláudio Jorge, Zé Renato e Guinga. Escreveu, entre outras obras, O Samba, na realidade (1981), Zé Kéti, o samba sem senhor (2000) e Dicionário Banto do Brasil (1996). Recentemente, lançou o Dicionário Escolar Afro-Brasileiro.
no chão, quase em postura de ioga, sem dançar, como nas disciplinadas e quase militares rodas de choro. Mas o samba, que desde o pós-guerra, principalmente nas gafieiras, à base de trombone, sax e piston, já canibalizava elementos do be-bop e do boogie-woogie e os devolvia em um produto de alta voltagem rítmica, dançante até a raiz dos cílios anais, não se aquietou. E, depois de ter contaminado Denis Brean, Osvaldo Guilherme, Haroldo Barbosa, Geraldo Jacques, Geraldo Pereira e até Gordurinha, foi gerando o samba-jazz dos trios de piano, baixo e bateria; e chegou ao sambalanço de Pedrinho Rodrigues, Sílvio César, Orlann Divo, Sonia Delfino, Miltinho, Elza Soares, Luiz Reis etc., nas boates da zona Sul, até parir Jorge Ben. Esse Jorge, depois Benjor, é pois o mítico herói-fundador do samba-rock e do Clube do Balanço. Que tem hoje no Marco Mattoli e na Tereza Gama seus pontas-de-lança em São Paulo. Sinceramente, meus camaradas: se vocês têm pelo samba a gamação que eu tenho, deixem de radicalismos e ouçam o Mattoli e seu Clube do Balanço. Aí, vocês vão ver o samba numa de suas formas mais fortes e com-
petitivas: totalmente dançante, capaz de encarar pau a pau, nesse campo, a imbatível música afrocubana. E de botar até o rythm’n’ blues no chinelo, quanto mais esse pop-rockzinho michuruca que anda por aí. Quem quiser música pra ficar ouvindo sentado (o que também é bom!) ligue na Rádio MEC. Ou vá ao Teatro Municipal. Quem estiver a fim de letras literariamente elaboradas, ouça, além dos mais antigos, o Paulinho Pinheiro, o Aldir, o Hermínio, o Luiz Carlos da Vila... Mas quem, neste Dia Nacional do Samba, quiser dançar, segurando a dama pela cintura, dizendo uma lera no ouvido dela, cruzando, soltando, rodando, grudando de novo... não vá a rave, não, que rave dá raiva. O verdadeiro êxtase (e não ecstasy) é dançar um samba balançado, com a metaleira metendo bronca. Como o que faz o pessoal do sambalanço, suíngue, samba-jazz ou sambarock – ao qual o meu mais novo amigo de infância Marco Mattoli acaba de me reapresentar. “Samba é isso, afro-mestiço, do jeito que negão nunca negou” – falou Alcione, que também é do ramo. (*Texto postado no dia 1º de dezembro, Dia Nacional do Samba, no blog de Nei Lopes – neilopes.blogger.com.br)
BF – Está havendo um “resgate” do samba chamado de raiz, com forte presença da juventude. Em São Paulo, por exemplo, aumentou o número de casas onde universitários lotam as rodas de samba. Como você vê esse movimento? Nei – Esse negócio de “samba de raiz” está fazendo um tremendo mal ao samba. Samba é tudo, desde que bem feito. Pode ser cruzado com o jazz, com ritmos caribenhos, com a erudição da bossa-nova, desde que mantenha sua essência. Samba só com cavaco, pandeiro e violão fica chato. Fica que nem essas rodas de choro ortodoxas, onde só se pode tocar Jacob do Bandolim. A gente quer conhecer bem a raiz, sim, mas partir dela para criar coisas novas. Já pensou uma árvore só com raiz, sem caule, folas, flores e frutos? Árvore sem graça, não?
O ABC do Dicionário Escolar AfroBrasileiro Ação afirmativa – Política pública voltada à promoção da mobilidade ascendente de membros de um grupo social historicamente discriminado. Em relação aos afro-descendentes, especificamente, expressa-se, por exemplo, na destinação de cotas de vagas em universidade ou em empresas, bem como de bolsas de estudo, como compensação pelas dificuldades encontradas em um contexto social notoriamente adverso. Também chamada de Ação Compensatória. (...) Benedita da Silva – Nome abreviado de Benedita Souza da Silva Sampaio, parlamentar brasileira nascida no Rio de Janeiro, em 1942. Egressa de uma comunidade favelada carioca, ex-carregadora de feira livre e empregada doméstica, conseguiu formar-se em Serviço Social, sendo depois, sucessivamente, vereadora e deputada federal. (...) Clube 28 de Setembro – Agremiação fundada na cidade paulista de Jundiaí em 1897. É considerada a mais antiga associação negra do Estado de São Paulo. Dicionário Escolar Afro-Brasileiro Nei Lopes Selo Negro Edições www.selonegro.com.br 174 páginas