Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 4 • Número 200
São Paulo • De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
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Bolsa Família é solução para pobres? T
erminado seu primeiro governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa como principal realização o programa Bolsa Família. É pouco para aqueles que dedicaram 20 anos de militância para eleger um governo transformador. Por outro lado, é muito para as 11,1 milhões de famílias que, pela primeira vez na história do Brasil, passaram a ser assistidas pelo Poder Público. Analisar o Bolsa Família é uma questão de perspectiva. Sendo assim, alguns setores da esquerda preferem exaltar seu papel na redução da pobreza e da desigualdade, enquanto outros alertam para os efeitos colaterais, como o aumento da dependência em relação ao Estado e o amortecimento dos conflitos sociais. VENEZUELA – Em seu novo mandato, as tarefas de Hugo Chávez não serão fáceis. Para seguir “rumo ao socialismo”, o presidente já anunciou algumas mudanças, como as reformas constitucional e ministerial, além da criação de um partido socialista único. Sobre essa nova fase, o Brasil de Fato buscou a avaliação de representantes de dois grupos fundamentais para a sustentação de seu governo: organizações sociais e Força Armada. Págs. 3 e 5
Enquanto Lula aposta no aperfeiçoamento de seu Bolsa Família...
... seu colega Chávez, na Venezuela, aprofunda a reforma agrária
A urgência de formar novas vanguardas
EDITORIAL
Segue a luta de classes Encerra-se 2006. É de praxe nesse período fazermos os balanços das atividades do ano. Todos os movimentos sociais, forças políticas, correntes e partidos políticos devem estar fazendo suas análises e balanços políticos. Assim, modestamente, o Brasil de Fato, que pretende estar cada vez mais colado aos movimentos sociais, quer também dar sua opinião. O ano de 2006 se inseriu em um contexto histórico mais prolongado, em que a sociedade brasileira continua dominada pela hegemonia do capital financeiro e internacional, popularizado pela expressão de modelo neoliberal. Nele, as 200 maiores corporações financeiras, brasileiras e transnacionais, associadas entre si, estão ganhando muito dinheiro. Acumulando muita riqueza e crescendo a 7,2% ao ano (nos últimos quinze anos). Recebem do Estado brasileiro as mais altas taxas de juros do mundo, e obtêm taxas de lucro impressionantes. Do outro lado, uma imensa multidão de 82 milhões de brasileiros adultos que vivem do trabalho, cada vez mais mal pago, mais escasso e que exige mais sacrifício das famílias para sobreviver. Entre eles há ainda 18 milhões de desempregados, a maioria jovens. Somase a isso, resultado também dessa hegemonia, a continuidade do refluxo do movimento de massas e de uma crise po-
lítico-ideológica profunda das esquerdas brasileiras. No meio disso, tivemos uma eleição presidencial. Um primeiro turno chocho. Parte da classe dominante apoiou Lula. E a parte mais reacionária e mais comprometida com o imperialismo resolveu derrubá-lo. Conseguiu assustar no primeiro turno. Porém, no segundo turno, todas as forças sociais progressistas e o povão em geral manteve apoio a Lula, e o obrigou a adotar um discurso mais contudente. Mas as circunstâncias da luta de classes, ainda adversas para a classe trabalhadora, não possibilitaram que tivéssemos nas eleições um debate de projetos para o país. Assim, resultou da eleição a derrota da fração mais reacionária da classe dominante brasileira e seus meios de comunicação (Globo, Veja, Folha e Estadão etc.), mas ao mesmo tempo, a vitória eleitoral não alterou os rumos do governo. Seguiremos tendo um governo de composição de classe e de posições políticas formadas pela direita, centro e esquerda. De tudo isso, resultam muitas lições para a classe trabalhadora e todas suas formas de organização. Estamos ainda em tempo de plantar. Precisamos colocar nossas energias para retomar o trabalho de base, que eleve o nível de consciência das massas. Formar mais e melhores militantes.
Marcelo Garcia
Ricardo Stuckert/PR
Principal programa social do governo beneficia milhões, mas não atinge estrutura que gera a desigualdade
Estimular todo tipo de luta social, como única forma capaz de obter conquistas de melhoria de vida, e fazer disputa na sociedade. Seguir construindo nossos meios de comunicação, em todos os níveis. Rádios comunitárias, TVs comunitárias, jornais e revistas de todo tipo. Promover, cada vez mais, debates em torno da necessidade de um novo projeto de desenvolvimento para o país, que priorize a solução dos problemas do povo. Tudo isso deve culminar com um novo processo de reascenso do movimentos de massas no Brasil, única força capaz de alterar a atual situação hegemonizada pelo neoliberalismo. Mas há sinais positivos no final do túnel. Há em curso vários processos unitários dos movimentos sociais, das pastorais, em torno da Coordenação de Movimentos Sociais, da construção da Assembléia Popular, e a consolidação de um calendário de lutas comum entre todas as forças, que pode iniciar um novo tempo, neste 2007. Oxalá, possamos avançar com muitas lutas unitárias e conquistas neste ano que começa.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o filósofo italiano Domenico Losurdo aponta para a necessidade de se formar vanguardas revolucionárias, um dos elementos para impedir o avanço
do imperialismo estadunidense. No entanto, segundo ele, tal vanguarda não seria uma elite, e sim um grupo sem hierarquia, para pontencializar a democracia. Pág. 6
Oaxaca: diversidade e unidade
Arquibancadas gritam por justiça social
A Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca, do México, composta inicialmente por professores, abrange organizações sociais das mais diferentes orientações. Nela, indígenas e marxistas tomam decisões coletivas para resistir e derrotar a estrutura coronelista do governo. Pág. 7
Torcidas organizadas brasileiras realizam diversas ações sociais nas periferias, atuando nas comunidades, além de apoiar a luta dos movimentos populares. Torcedores mostram como a arquibancada pode se transformar em espaço de formação política e de luta por justiça social. Pág. 4
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De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
DEBATE
CRÔNICA
Parlamentares desavergonhados
Dom Franco Masserdotti, o camisa 10 da seleção Fernando Lopez / Cimi
Leonardo Boff
João Pedro Baresi onta uma lenda fúnebre do antigo Egito que, quando uma pessoa morre, esse alguém é carregado num barco para ser levado à cidade das almas. Chegando à porta de entrada, um guardião tem de conferir se a pessoa será destinada a um lugar de felicidade, ou a um lugar de infelicidade eterna. O que decide isso é o teste da balança. O coração do defunto é arrancado do corpo e posto no prato da balança. Se seu peso for suficiente, sua viagem continuará até o lugar da felicidade eterna. Se for escasso, seu destino será outro. Não há dúvida de que dom Franco Masserdotti, bispo missionário de Balsas, no interior do Maranhão, e presidente do CIMI (organismo da CNBB, que luta junto aos índios), recentemente falecido, seria aprovado com a maior nota. A certeza vai bem além de uma lenda. A palavra de Jesus está aí para confirmar aquilo que os antigos intuíam: o que conta é o amor ao próximo; em primeiro lugar, por aqueles que não são amados pelo mundo, isto é, pela sociedade que não se inspira na vontade amorosa de Deus: os famintos, os sedentos, os forasteiros, os sem-roupa, os presos, os doentes, os sem-casa. E, sem dúvida, os povos indígenas perseguidos e massacrados, para os quais dom Franco dedicou o amor especial dos últimos seis anos de sua vida. A participação popular ao seu enterro, feita de lágrimas, aplausos, orações e faixas, foi um triunfal testemunho de sua dedicação aos humildes. Todos traziam lembranças de sua indiscutível solidariedade com o povo. Como quando ao iniciar uma missa na catedral, desceu do altar para atender uma velhinha que queria conversar com ele. Sua coerência com a opção pelos pobres se manifestava em todas as oportunidades. Uma das mais marcantes aconteceu em Porto Seguro, por ocasião das celebrações dos 500 anos da chegada dos portugueses à terra dos índios. Na hora da solene missa presidida pelo representante do papa – enquanto este estava acompanhado por cardeais e bispos – , dom Franco preferiu ficar no meio do povo, misturado com os índios, que no dia precedente tinham sofrido a repressão da polícia, digna sucessora dos invasores de cinco séculos antes – ocasião na qual o próprio dom Franco também acabara sendo preso em meio ao brutal arrastão.
Há momentos em que a única reação digna diante de barbaridades éticas é a indignação. Muitos estamos indignados com a decisão dos líderes do Congresso tomada no dia 14 de dezembro, em reajustar praticamente em 100% seus próprios salários. De R$ 12.847,00 elevaram a R$ 24.500,00 que é o teto do Judiciário. Devido ao efeito cascata nos Estados e nos municípios, o gasto anual, surrupiado dos cofres públicos, será de 1,66 bilhões de reais. Os nomes dos que se opuseram por respeito à ética merecem ser citados: do PSOL a senadora Heloísa Helena (Senado), Chico Alencar (Câmara) e do PT Henrique Fontana. Todos os demais ou se calaram consentindo ou exultaram. Houve despudorados como o deputado Inocêncio de Oliveira (PFL-PE) que proclamou em péssimo latim “habemus aumento”. Ciro Nogueira (PP-PI) foi simplesmente desavergonhado: “fui a favor sim; não tenho vergonha de forma nenhuma”. O que nos estarrece não é apenas o fato aviltante de votar em causa própria, mas é a realidade que esse fato sinaliza: a total falta de ética dos “representantes” do povo. Já Aristóteles nos ensinara que ter vergonha é um dos indicadores mais inequívocos de que ainda não perdemos de todo o senso ético; o enrubescimento mostra que nos damos conta dos atos maus que praticamos. Os congressisas nem tiveram vergonha nem se enrubesceram diante do seu despudor. Deram mostra de total falta de ética.
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A participação popular ao seu enterro, feita de lágrimas, aplausos, orações e faixas, foi um triunfal testemunho de sua dedicação aos humildes A marca da firme e inegociável atitude libertadora de dom Franco era a mansidão. Uma lembrança pessoal: por ocasião da reunião de um grupo de bispos mais
Senadores e deputados perderam o sentido da realidade. O mundo virtual de Brasília corrompeu suas mentes, desgarradas da penosa luta do povo por sua sobrevivência
comprometidos com a dimensão social do Evangelho, o conhecido Dom Tomás Balduíno confessava publicamente: “Este dom Franco é um santo. Sua paciência nunca acaba”.
Sua coerência com a opção pelos pobres se manifestava em todas as oportunidades. Uma das mais marcantes aconteceu em Porto Seguro, por ocasião das celebrações dos 500 anos da chegada dos portugueses à terra dos índios Querendo comparar a atuação dos bispos a um time de futebol, o lugar de Dom Franco seria o meio-de-campo. Ao lado de outros, como o grande craque Dom Luciano Mendes que o precedeu na Casa do Pai, poucas semanas antes. Ele seria escalado para o espaço de quem costura a jogada entre a defesa e o ataque, para que bispos como (para lembrar só de alguns bem conhecidos) o próprio Tomás Balduino, dom Pedro Casaldáliga, dom Erwin Kräutler possam fazer a bola chegar ao gol, com jogadas rápidas e substanciais, deixando em alvoroço os defensores adversários. Não que os craques de meiode-campo não saibam também chegar ao gol. Mas, normalmente, o fazem com jogadas mais rebuscadas. O que mais vale é afirmar que todos têm claro onde fica a trave dos adversários do Reino de Deus, prometido aos pobres e, juntos, desenharem a jogada do gol. Dom Franco faleceu em Balsas, vítima de acidente de trânsito, em 17 de setembro passado,
quatro dias depois de completar 65 anos. Nasceu na Itália aos 13 de setembro de 1941. Na juventude, ingressou na congregação dos Missionários Combonianos, querendo dedicar sua vida à missão sem fronteiras. Chegou ao Brasil em 1972. Em 1996, assumiu a diocese de Balsas (MA). Em 1999, foi eleito presidente do CIMI. A imagem que fica dele é a de um rosto aberto, sereno, firme, sorridente e acolhedor. Sempre disponível para novos desafios missionários, como no Sul do Brasil e em Moçambique. De otimismo invencível, cativando pessoas e grupos para se associarem às iniciativas pastorais de sua criatividade incansável, foi fiel ao seu lema de bispo: “Para que tenham vida”. João Pedro Baresi é missionário comboniano, foi diretor da Revista Sem Fronteiras; este texto foi originalmente publicado na Revista Mundo e Missão
Mas o que é pior é que eles confirmam o que a historiografia política brasileira sempre tem repetido, especialmente o saudoso José Honório Rodrigues: eles não amam o povo, tem vergonha das bases populares empobrecidas, pois as vêem compostas de jecas-tatu, joões-ninguém, zé-povinho lascado. Só vão a estes em tempos de eleição para ludibriá-los e arrancarem-lhes o voto sob muitas e falsas promessas. Uma vez instalados no Parlamento, fazem os acertos de amigos-da-onça, de costas ao povo e contra ele. Decidiram o vergonhoso aumento exatamente no momento em que os movimentos sociais e os sindicatos estão discutindo miseráveis taxas de aumento de seus salários. Quem não se indigna e sente vergonha de ter representantes desse jaez? Não resisto à tentação de citar as palavras do profeta Amós, o vaqueiro, que, corajoso, entrou corte adentro denunciando as sem-vergonhices dos poderosos. Denuncia em nome de Deus: “odeio e desprezo vossas festas e não gosto de vossas reuniões; vós transformais o direito em veneno e o fruto da justiça em absinto” (capítulos 2 e 6). Senadores e deputados perderam o sentido da realidade. O mundo virtual de Brasília corrompeu suas mentes, desgarradas da penosa luta do povo por sua sobrevivência. O Parlamento não é apenas instância delegada do poder popular, nem gerenciamento técnico das questões do bem comum. Ele é principalmente instância ética. Representa valores da cidadania, da transparência no cuidado da coisa pública. Nós, cidadãos, temos o direito de esperar que nossos representantes vivam esses valores e não os neguem por suas práticas “sem vergonha”. Graças a Deus, que existem ainda parlamentares do mais alto gabarito ético que conferem dignidade à sua função e que não nos deixam desesperar. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
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De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
NACIONAL GOVERNO LULA
As perspectivas do Bolsa Família Luís Brasilino da Redação
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o conceder uma renda mensal inferior a um terço do salário mínimo (R$ 350), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu, em seu primeiro mandato, melhorar as condições de vida de dezenas de milhões de brasileiros. Nas eleições de outubro, o Programa Bolsa Família foi consagrado. Todos os candidatos, da direita à esquerda, defenderam sua manutenção, aperfeiçoamento e, até, ampliação. Além disso, seus resultados são apontados como um dos principais fatores que garantiram a reeleição. No entanto, o sucesso do programa, atingir famílias em condições de extrema pobreza, também é a sua maior limitação. Com o orçamento atual, não teria os mesmos efeitos se buscasse resultados mais abrangentes ou estruturantes. O Bolsa Família chega ao final de 2006 atendendo 11,1 milhões de famílias (das mais de 40 milhões que vivem no país), ou seja, quase todas que se encontram abaixo da linha de pobreza – renda familiar per capita de menos de R$ 120 mensais. Para essas famílias, o programa transfere R$ 15 mensais por filho, até um máximo de três. Aquelas com renda familiar per capita inferior a R$ 60 ainda recebem um acréscimo de R$ 50 por mês. O orçamento para 2006 foi de cerca de R$ 8,2 bilhões, o equivalente a 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, os recursos ainda estão bastante aquém de outras políticas sociais, como a Previdência (7,8% do PIB), Saúde (1,8%) e Educação e Cultura (1,3%).
OLHAR PARA BAIXO Chico Menezes, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), avalia que o programa alcança, de fato, o público mais vulnerável. “Não é perfeito mas, em relatório recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) reconhece que o Bolsa Família está se aproximando mais daqueles que necessitam”, cita. Segundo o escritor Frei Betto, ex-assessor da Presidência e ex-coordenador do Fome Zero, sendo a família comprovadamente miserável, o impacto do programa é grande; sobretudo se a inflação estiver sob controle, o que reduz o preço dos alimentos. Nesse sentido, Menezes explica que, graças ao Bolsa Família, um número maior de pessoas está fazendo três refeições ao dia, com aumento na quantidade consumida e uma maior diversificação dos itens. Além dos efeitos na alimentação, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) comemora que, entre 2002 e 2005, houve uma redução de 19,3% no grau de pobreza dos brasileiros, assim como uma queda na desigualdade de renda. Em 2002, o índice de Gini (escala que vai de zero a 1, sendo que 1 significa que uma pessoa possui toda a renda de uma comunidade) era 0,589 e, em 2005, caiu para 0,568. Na opinião de Rosani Cunha, secretária nacional de renda de cidadania do Ministério do Desenvolvimento
Ricardo Stuckert/PR
Com orçamento 26 vezes menor que o da Previdência, programa beneficia milhões; incertezas no longo prazo
Presidente Lula cumprimenta beneficiária do Bolsa Família, em Contagem, Minas Gerais; programa atinge 11,1 milhões de famílias em todo o país
Social e Combate à Fome (MDS), destaca outra realização do programa. Como o benefício é pago com muita regularidade diretamente para as mulheres, elas têm condições de planejar o orçamento familiar, estimulando um processo de empoderamento dentro de sua casa. Existe um outro aspecto que, embora não tenha sido objeto de pesquisa específica do MDS, mostra um aumento na dinâmica das economias locais onde o programa chega. “Os municípios mais pobres acabam recebendo mais recursos do Bolsa Família do que o próprio repasse tributário. Temos visto pesquisas de associações de varejistas que mostram aumento no consumo e, em
função disso, crescimento da economia local”, revela.
MUDANÇAS Só que esse não é o primeiro programa de transferência de renda do país. O que o governo Lula fez ao criar, no fim de 2003, o Bolsa Família foi unificar experiências existentes, junto com outras políticas criadas no início do seu mandato. Entretanto, Rosani assegura que existem cinco grandes diferenças de modelo que explicam o maior sucesso do programa petista. Primeiro, ele atende toda a família, não seus membros separadamente, conferindo a cada um responsabilidades e direitos diante do programa. Outra variante é trabalhar
com o universo completo de famílias pobres, as 11,1 milhões, segundo estimativa feita pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um terceiro elemento é o valor do benefício que saiu de uma média de R$ 23, que era o somatório do Bolsa Escola e Auxílio-Gás (principais programas de Fernando Henrique), para R$ 62. Existe outra questão que é o acerto do destinatário, na focalização. Por fim, Rosani afirma haver uma diferença que é a integração com outros programas sociais denominados complementares (microcrédito rural, alfabetização de adultos, combate ao trabalho escravo, entre outros).
Valter Campanato/ABr
O formato em debate Existem três grandes eixos de discussão quando se fala em programas de transferência de renda, como o Bolsa Família: a imposição ou não das condicionalidades, a distribuição de dinheiro versus a de produtos de primeira necessidade e o conflito orçamentário com a Previdência e o saláriomínimo. Além de ter renda familiar per capita inferior a R$ 120 mensais, para receber o Bolsa Família os beneficiários precisam manter atualizada a vacinação de crianças de sete anos; os filhos com idade entre seis e quinze anos matriculados na escola e com uma freqüência mínima de 85%; e as mães devem fazer acompanhamento médico pré e pós-natal. Caso contrário, o pagamento pode ser cancelado. O sociólogo Clóvis Zimmermann, da Ong FIANBrasil, escreveu em artigo na agência eletrônica Adital, afirmando que, por isso, o Bolsa Família não pode ser considerado um direito humano. Para ele, mais grave do que a exigência de contrapartidas é a punição de um portador de direito,
Agricultor Afonso Francelino da Silva espera em fila para receber
especialmente a exclusão de um beneficiário do programa pelo não cumprimento das condicionalidades. Rosani Cunha, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), no entanto, assegura que esse modelo reforça um direito. Ela reconhece que prestar esses serviços é responsabilidade do Estado, mas acredita que também é das famílias.
COMIDA E PREVIDÊNCIA Já a distribuição do dinheiro é criticada pelo historiador Valério Arcary. Para ele, o governo deveria dar os alimentos pois, comprando em grandes quantidades, os produtos ficariam mais baratos. Rosani responde que, além da “absurda” dificuldade operacional para comprar, a melhor decisão sobre como gastar quem pode tomar é a família.
Por fim, fica a dúvida sobre o Bolsa Família ser o melhor instrumento para reduzir a desigualdade. O economista Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o estudou e considera que “o Programa Bolsa Família tem méritos e algum efeito distributivo. Mas é um despropósito conceitual e empírico tratálo como causa da melhoria na distribuição pessoal da renda”. Entretanto, Rosani acredita que o Bolsa Família e o salário mínimo têm objetivos diferentes. “O salário mínimo chega para quem está no mercado formal ou aposentado. Normalmente, as famílias mais pobres e excluídas não são as destinatárias e o Bolsa Família chega justamente para elas”, garante. (LB)
É neoliberal e reacionário, afirma Valério Arcary Criticar o Bolsa Família não é tarefa para qualquer um na atual conjuntura. Porém, o historiador Valério Arcary, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet-SP), não tem dúvidas: o programa é neoliberal, reacionário e funciona como elemento desorganizador da classe trabalhadora. “Não adianta tomar um anti-inflamatório fenomenal se, depois de três anos, ele vai te matar com um ataque do coração”, ilustra Valério sobre o fato de o Bolsa Família provocar efeitos colaterais superiores aos benefícios que traz. Para começar, o historiador afirma que o Bolsa Família não diminui a miséria. Com orçamento de 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB), o programa não passa de uma gota no oceano. Além disso, ele explica que o Bolsa Família é reacionário, pois acentua a dependência dos beneficiários em relação ao Estado. “Numa sociedade com grande desigualdade e desemprego e um imenso estoque de pobreza, esse programa desestimula a busca pelo emprego gerando dependência”, analisa. E ressalva que esse não é um argumento reacionário, pois o Bolsa Família não é um direito universal. Para Arcary, seria melhor o Estado investir em obras públicas para garantir emprego a todos. Fetiche do dinheiro O historiador também critica a distribuição do dinheiro por defini-la como uma tese neoliberal que tem a função de criar uma hipnose social segundo a qual ter acesso ao mercado faz as pessoas serem livres. É o fetiche do dinheiro, gera disputa, ganância. “Toda pessoa que nasceu sem herança sabe que a liberdade depende da
segurança. Se a sociedade escolhe que o direito a comer é garantido pelo Estado, aí sim você tem liberdade. O direito aumenta a segurança social”, sustenta. Já a conseqüência de dar o dinheiro é a formação de uma pequena burguesia proprietária. “Os donos de pequenos bares e mercados, ou seja, uma camada intermediária, embora empobrecida, ganham muito dinheiro com o Bolsa Família, pois são eles que atendem à distribuição do mercado. Assim, o programa aumenta a desigualdade em regiões do país onde a pobreza é muito intensa”, avalia. Luta de classes Por fim, Arcary identifica o Bolsa Família como um agente desorganizador da classe trabalhadora brasileira. Ele lembra que esse modelo de política social compensatória foi planejado dentro do Banco Mundial, tendo como objetivo amortecer conflitos, mantendo a coesão social. Como a maioria do povo brasileiro não tem a noção de direitos assimilada, sempre que a sociedade faz um investimento nela, isso é visto como um favor. O Lula aparece como aquele que cuida dos pobres, não como se o Estado tivesse o dever de garantir o direito à vida, à educação, ao trabalho etc. Dessa forma, o programa social se transforma numa relação de clientela. “As pessoas não lutam porque estão ocupadas com a sobrevivência, elas não o fazem por medo, por não se organizarem enquanto sujeitos coletivos. A sociedade se politiza e se organiza na medida em que surge entre aqueles que estão na miséria uma consciência de classe para si e não há nada indicando que o Bolsa Família estimule isso”, afirma. (LB)
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De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
NACIONAL FUTEBOL
Na arquibancada, com o povo Torcidas organizadas realizam trabalhos assistenciais e se aproximam de movimentos sociais Eduardo Sales de Lima da Redação
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gressões. Vandalismo. Bandidos. Cadeia. Essas são as palavras mais usadas na mídia corporativa para se referir às torcidas organizadas. No entanto, o que pouco – ou praticamente nada – é que, dessa complexidade da massa que integra essas organizações, estão surgindo algumas iniciativas promissoras. Algumas torcidas organizadas brasileiras já realizam diversas ações assistenciais, atuando nas comunidades, e, até mesmo, apóiam a luta dos movimentos sociais, como a Gaviões da Fiel. As organizadas desenvolvem projetos sociais para as periferias e possuem estatutos que visam uma sociedade mais fraterna. O surgimento de escolas de samba provenientes dessas organizações refletem essa tendência. Mas o torcedor brasileiro se deu conta de que a arquibancada, além de continuar sendo o espaço para gritar o nome do time de coração, pode se transformar em espaço de formação política e de luta por justiça social, e isso já acontece. Como exemplo da luta social das torcidas, a Gaviões da Fiel tem uma história bastante específica, pois surge como um movimento de oposição à ditadura que existia no Corinthians e ao longo dessa
Divulgação
história, pontuada por participações da vida política do país, destacouse no episódio da bandeira a favor da anistia no final dos anos de 1970 e na participação no movimento “Diretas Já”. “Além disso, a Gaviões vai entrelaçar a prática torcedora com a prática cultural do samba e, da esteira desse movimento, outras torcidas vão seguir seus passos. Esse caminho não se esgota no diálogo do samba com o futebol, mas, no caso da Gaviões, há uma prática que cria uma interface com os movimentos sociais”, avalia o sociólogo e diretor do Museu da Cultura da PUC - SP, José Paulo Florenzano. Para Alex Sandro Gomes (Minduin), diretor da agremiação, os Gaviões não se fundem com outros movimentos sociais, mas defendem algumas de suas bandeiras, como as reformas agrária e urbana. “A arquibancada, para nós, significa mais que acompanhar o Corinthians, é o espaço para defender uma sociedade mais fraterna, justa e igualitária”, avalia.
Apoio a Cuba
REVOLUCIONÁRIOS
Algumas torcidas organizadas desenvolvem atividades de formação política
Outras torcidas de grandes clubes brasileiros também se utilizam da identificação com revolucionários latino-americanos para simbolizarem seus ideais de sociedade, como a Camisa 12, do Internacional de Porto Alegre, com a presença de Che Guevara em sua página eletrônica, em bandeiras e faixas da arquibancada. “O Internacional nunca teve preconceito com jogadores negros. O time mudou isso e sofreu muita discriminação, daí vem o pensamento de ser revolucionário, de querer mudar as
coisas”, conta Miguel Dagnino, presidente da Camisa 12. Além dos colorados, a agremiação Galoucura, do Atlético Mineiro, comercializa camisetas com uma ilustração de René Barrientos, o ex-presidente boliviano que ordenou o assassinato de Che, com os dizeres “O sonho acabou”. A Torcida Jovem, do Santos, expõe o músico Bob Marley como figura inspiradora da torcida. “Somos uma entidade que tem essa abertura política de construção”, afirma Edu-
ardo Romanini, diretor social da agremiação. Para o diretor do Museu da Cultura da PUC, existe uma prática política das torcidas que pode trilhar um caminho comum em conjunto com os movimentos populares, sociais, políticos e culturais do Brasil comprometidos com uma sociedade mais justa. “Mas não podemos nos esquecer que dentro de cada torcida organizada existe uma diversidade muito grande de posições políticas e ideológicas”, diz Florenzano.
A bateria da escola de samba da Gaviões tocou nas manifestações de apoio a Cuba, em maio de 2005, na 13a. Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba. “Somos solidários à Revolução Cubana porque essa transformação tem beneficiado bastante o seu povo, e aproveitamos essa visibilidade que o futebol brasileiro tem e o que os Gaviões representam para mostrar também um pouco de nossa história a eles”, explica Alex Sandro Gomes (Minduin), diretor da Gaviões da Fiel. Segundo o diretor da agremiação, o socialismo, para diversas culturas, pode funcionar de maneira diferente. “É algo que o povo cubano assimilou. Deve-se analisar o tipo de sociedade que será aplicado o sistema o qual nós defendemos, que é o socialismo. Tenho minhas dúvidas se o ele caberia em uma sociedade consumista como a estadunidense, a japonesa e, agora, a chinesa. Deve ser analisada a questão cultural de cada sociedade”, aponta Minduin. Diante de tal diversidade, Minduin conta que existe um esforço por parte dos diretores da agremiação para que haja esse aprofundamento da politização no quadro associativo e “que a torcida possa questionar mais o mundo no qual ela vive”.
ANÁLISE
Neoliberalismo no futebol Emir Sader Na euforia mercantil que tomou conta do país há uma década e meia, surgiu a panacéia para o futebol (e para os outros esportes): “profissionalização” tornou-se a palavra mágica. Lei Pelé, ou como ficou conhecida a lei, supostamente daria mais liberdade aos jogadores e melhor administração aos clubes. Mas o que aconteceu com os esportes – e, em particular, com aquele que, de longe, é o de prática e significação social mais ampla: o futebol? O que mais avançou não foi a melhoria na gestão dos clubes, nem suas finanças, menos ainda as instalações esportivas ou a formação dos jogadores e a conseqüente melhoria na qualidade do futebol jogado no país. A principal mudança foi a passagem do reinado dos clubes para o dos empresários. A mercantilização se estendeu até limites insuspeitos: camisas coalhadas de publicidades, fazendo desaparecer o distintivo dos clubes. Jogadores e treinadores que só dão entrevistas com bonés de patrocinadores. Jogadores que fazem gestos da empresa que os patrocina quando fazem gol ou correm na direção das placas de publicidade de seus patrocinadores. Jogadores que, de repente, deixam seus clubes no meio do campeonato por “propostas irrecusáveis” da Bielorússia. E, mais grave ainda, jovens comprados e vendidos em tenra idade, sem formação mental e física minimamente estruturada, levados para o exterior. Os jogadores se livraram da despótica lei do passe para se transformar em mercadorias nas mãos dos empresários. Como se tivessem sido abolidos os grilhões da servidão medieval para que os jogadores se tornassem “livres” – com são “livres” os trabalhadores no capitalismo: têm que vender sua força de trabalho a quem consigam, por
não ter meios próprios de sobrevivência. A liberdade passou a ser a do empresário e a do capital, para comprar e vender suas mercadorias, não a dos jogadores. Situação ainda mais cruel para os pobres – e, especialmente para os pobres negros e mulatos –, em um país em que para a grande maioria dos jovens – que são pobres – as únicas oportunidades de ascensão social são a música e o futebol (ou algum outro esporte) e que, portanto, se submetem à exploração dos empresários pela falta de oportunidades e de atração para um caminho distinto – educacional, cultural, profissional em outras áreas. Para democratizar o futebol é preciso desmercantilizá-lo. É preciso democratizar os clubes, imprimir-lhes o caráter daquilo que são na prática, mas sem expressão nas suas estruturas de poder – seu caráter público. Cuidar do destino do Flamengo e do Corinthians – para tomar os dois clubes de maior torcida no Brasil – é uma função pública, que atinge a identidade, o estado de ânimo, produz alegria, sofrimento em dezenas de milhões de pessoas. A superação desse processo de mercantilização, de banalização, de conspurcação da identidade futebolística – das únicas identidades que permanecem, quando tantas outras (políticas, de gênero, nacionais, entre outras) entraram em crise – só pode se dar por políticas públicas no esporte, que abranjam também os clubes, patrimônios nacionais e que não podem ser entregues ao mercado de capitais, assim como os jogadores. A polarização, central no neoliberalismo, entre o público e o mercantil, abarca em cheio o futebol e os esportes em geral. Emir Sader é sociólogo, recémeleito secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)
Fórum busca união das torcidas No âmbito esportivo, o próprio Estatuto do Torcedor prometia mais segurança e respeito aos espectadores, mas não interrompeu a inércia dos dirigentes desportivos e nem os maltratos ao torcedor brasileiro. “Quando ocorre a invasão de campo, o torcedor e o clube são punidos, mas quando a polícia bate no torcedor, quem é punido?”, questiona o presidente da Torcida Uniformizada Os Imbatíveis, Fábio Menezes, do Vitória da Bahia. Para que o torcedor possa ser mais respeitado, e a partir daí haja mudanças na própria sociedade brasileira, as principais torcidas organizadas do país estão organizando para o segundo semestre de 2007 o Fórum Nacional das Torcidas Organizadas. As regiões Norte e Nordeste, no entanto, saíram na frente com a realização de um fórum regional em junho deste ano, em Fortaleza, no Ceará. Segundo Jorge Pilonia
Projetos Sociais nas periferias Com a maioria formada por jovens da periferia, as organizadas estão encabeçando iniciativas assistenciais com a população mais pobre. A Torcida Jovem , do Santos, por exemplo, tem uma parceria com o projeto “Barracão”, da Secretaria da Cultura, onde se desenvolve as atividades como capoeira e xadrez, gratuitamente, para crianças de 7 a 14 anos. William Palumbo, o Ferrugem, do conselho administrativo da Galoucura, diz que existe um projeto no bairro São Paulo,
Segundo Alex Sandro Gomes (Minduin), diretor da Gaviões da Fiel, o Fórum Nacional será um marco não só para as torcidas organizadas, mas também para o futebol de forma geral. Ele defende, como principais bandeiras, o ingresso identificado, para coibir a venda de cambistas, o valor unificado para os campeonatos nacional e estaduais, a criação de uma associação que promova uma disputa sadia entre as torcidas de todo o Brasil e, por último, o fim da segregação das organizadas nos estádios de futebol. Para o sociólogo Paulo Florenzano, o Fórum pode retomar uma
idéia que estava colocada no final dos anos de 1970 e no início dos anos de 1980, de um espaço de diálogo entre essas torcidas. “Se houver essa democratização das torcidas organizadas, isso vai repercutir muito além do futebol”, afirma o diretor do Museu da PUC-SP. Segundo ele, essa reunião deveria ser pautada na participação de uma maneira legítima e democrática nas decisões que afetam o futebol brasileiro. “As agremiações precisam adquirir essa legitimidade através de uma ação política pacífica, mas ao mesmo tempo contestadora dessa estrutura de poder dentro do futebol e isso passa pela capacidade do Fórum em criar esse espaço de convivência da diversidade entre as torcidas organizadas”, conclui José Paulo. O presidente da Camisa 12, do Internacional, vê o debate de idéias com bons olhos. E sobre a dificuldade de se estabelecer um diálogo com torcedores rivais, Anderson Clemente, vicepresidente da Raça Rubro-Negra, do Flamengo, resume: “as lideranças que não dialogam com a torcida rival ou amiga está desatualizada”.
em Belo Horizonte, com 100 crianças treinando capoeira num galpão, e que “aproveita” os 30 mil sócios da torcida para realizar o “Natal sem Fome” e as doações de sangue. Fábio Menezes, da torcida “Os Imbatíveis”, do Vitória, afirma que a entidade sempre atendeu crianças e idosos que precisam de agasalhos e o presidente da Camisa 12 destaca a oficina de percussão que fica na própria quadra da torcida. Os projetos, na Gaviões, são voltados para a Escolinha de Futebol, a escolinha de bateria, o curso pré-vestibular para estudantes de baixa renda e os cursos
de teatro. “Temos parceria com o Estado, com a prefeitura e a contribuição do próprio associado. Agora, a margem de pessoas que são atingidas pelo projeto corresponde hoje a 5% ou 10% da torcida”, afirma Minduin. A agremiação possui um quadro de 70 mil associados. Uma das iniciativas se chama Gaviões Vai à Periferia: “O objetivo é trazer uma interação dentro da própria comunidade através do recolhimento de materiais recicláveis que são, muitas vezes por falta de orientação, lançados nos córregos dentro dessas comunidades, causando enchente”, relata Minduin.
de Abreu, diretor da Leões da TUF (Torcida Uniformizada do Fortaleza), que participou dos debates, os principais pontos abordados foram a violência, estratégias para o desenvolvimento de projetos sociais e a criação de um conselho entre as torcidas. “Desde o fórum, a gente percebeu que o Estatuto do Torcedor só funciona no papel, na realidade a polícia continua mandando a chibata em todo mundo”, afirma Jorge.
DIÁLOGO ENTRE TORCIDAS
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De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
REVOLUÇÃO BOLIVARIANA
NACIONAL : Marcelo Garcia
O futuro da Venezuela Camponês e militar analisam os desafios do país para seguir “rumo ao socialismo”, como afirmou Hugo Chávez Claudia Jardim De Caracas (Venezuela)
A
pós as eleições presidenciais, o clima de festa na Venezuela durou menos do que muitos poderiam imaginar. Imediatamente após a vitória, o presidente Hugo Chávez sinalizou que a Revolução Bolivariana entrava em uma nova fase, rumo ao socialismo. A batalha para destruir de uma vez o velho Estado ineficiente, burocrático e corrupto foi lançada. Um mês após as eleições, Chávez lançou a proposta de criação de um partido único socialista, uma tentativa de eliminar as contendas políticas entre os 23 partidos que compõem a coalizão de seu governo (leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br). Além disso, pretende reformar a Constituição criada em 1999 e definitivamente construir uma nova
Hora de ações concretas “Já não podemos apenas fazer discursos; (...) é preciso levantar o debate sobre o socialismo e enfrentar as antíteses que serão apresentadas pela oposição”. Para Alberto Muller Rojas, de Divisão do Exército da Venezuela, o novo mandato do presidente reeleito Hugo Chávez é a oportunidade para os venezuelanos construírem, na prática, uma sociedade igualitária. Brasil de Fato – Quais são as expectativas em relação ao segundo mandato do presidente Hugo Chávez? Alberto Muller Rojas – Os anúncios realizados pelo presidente indicam que existe uma clara intenção de estabilizar o regime político que estava em uma etapa de transição. A reforma do Estado, o ataque à burocracia e a idéia do partido único podem ser a ponte de intermediação do poder presidencial com a população. BF – O presidente Chávez anunciou a criação de um partido único revolucionário. Qual sua avaliação sobre essa decisão? Rojas – Ainda não está claro como será a organização desse partido. Penso que não deveria se basear na velha estrutura dos partidos de quadros que pretendiam formar uma vanguarda e acabaram criando uma nova classe que utilizava o poder para obter privilégios. O partido único deve romper com a estrutura verticalizada e constituir-se a partir de uma organização horizontal. BF – Quais mudanças considera necessárias para realizar transformações estruturais nesta nova etapa? Rojas – Temos que romper com a dualidade de duas sociedades que tratam de conviver. A primeira fundamentada em uma economia de acumulação e a outra, conformada por uma maioria, é sustentada por uma economia de subsistência. Essas duas “sociedades” impedem o desenvolvimento de uma sociedade igualitária, na qual as diferenças possam ser minimizadas e possamos reduzir as tensões sociais no país. Um dos caminhos para conquistar essas mudanças é fortalecer a educação e entregar à população os instrumentos do conhecimento.
institucionalidade. A tarefa não é nada fácil. Durante um ato realizado no dia 17 de dezembro, data da morte do libertador Simon Bolívar, Chávez pediu que todos seus ministros renunciassem para que pudesse “ajustar” o novo governo. Para entender e analisar as perspectivas dos próximos anos do processo bolivariano, o Brasil de Fato conversou com dois grupos que são os pilares de sustentação da revolução. As organizações sociais e a Força Armada. Do campo popular, conversamos com Franklin González, membro da direção nacional da Frente Nacional Camponês Ezequiel Zamora, um dos poucos movimentos sociais que apóiam o governo e mantêm autonomia em relação às orientações estatais. Do campo militar, Alberto Muller Rojas, general de Divisão do Exército, um dos generais mais próximos ao presidente da República.
BF – Chávez afirma que a Constituição deve ser reformada. Qual sua opiniao? Rojas – Não sei até que ponto a Constituição deve ser reformada. Da maneira como está concebida permite adiantar algumas mudanças e ir reorganizando o Estado. BF – Porque essas mudanças não foram concretizadas no primeiro mandato? Rojas – Porque estávamos em um processo de transição. Apenas nas últimas eleições, a oposição admitiu o sistema democrático. Antes não. Sem dúvida alguma, a responsabilidade do governo aumenta nesta nova etapa. Já não podemos apenas fazer discursos. É preciso tomar ações concretas. Há que controlar o poder público, levantar o debate sobre o socialismo e enfrentar as antíteses que serão apresentadas pela oposição. BF – Como eliminar a burocracia, a corrupção e construir uma nova institucionalidade? Rojas – A corrupção é fruto da descomposição social que enfrentamos. É muitas vezes a expressão das desigualdades. A burocracia é uma herança de um modelo capitalista de produção, mecanizado, taylorista, baseado em teorias pouco flexíveis. A saída é modificar o sistema de produção. As missões são uma nova forma de gerência pública, eficiente e eficaz. Temos que avançar ainda mais. Estamos apenas começando. BF – No golpe de abril de 2002, parte da Força Armada contribuiu com o intento de derrocar o presidente. Qual a atual situação da Força Armada nesse momento? Rojas – Não existem elementos de conflitos internos. A tarefa da Força Armada será a de seguir contribuindo com o desenvolvimento do país e preparando a defesa nacional. Há indícios de que as tensões com os Estados Unidos devem dimuir, mas não podemos baixar a guarda. A torpeza é o principal inimigo. Temos que estar alertas. BF – Qual a responsabilidade do povo venezuelano nisso? Rojas – O papel que assumiu o povo é fundamental. Se não damos continuidade à democracia participativa, esse processo não poderá continuar. Os avanços que conquistamos são frutos da participação popular. (CJ)
Chávez pretende criar um partido único socialista, no lugar dos 23 partidos que compõem a coalizão do seu governo
Agenda do projeto socialista - Referendo para reforma da Constituição; - Fundação do Partido Socialista Unido da Venezuela (partido único); - Reforma Agrária; - Ampliação das Missões (programas sociais); - Ampliação dos Conselhos Comunais (assembléia
E a propriedade privada? Em entrevista, Franklin González, integrante da Direção Nacional da Frente Nacional Camponês Ezequiel Zamora – um dos movimentos sociais autônomos que apóiam Hugo Chávez –, afirma que os camponeses querem rever, na Constituição, a definição de propriedade privada, em meio ao debate do socialismo em construção na Venezuela. Brasil de Fato – Quais são as expectativas em relação ao segundo mandato do presidente Hugo Chávez? Franklin González – Após as eleições, entramos em uma nova fase. Agora chegou o momento de aprofundar o processo de transformação política, econômica e principalmente social que iniciamos no primeiro mandato. Nesse sentido, a reforma agrária tem um peso muito importante. Necessitamos que as terras sejam entregues de maneira maciça e que o governo se esforce mais no processo de resgate das terras. Não podemos aceitar que o governo continue pagando por terras que comprovadamente são de propriedade do Estado. Esses recursos têm que ser destinados à área social, e não na compra de terras que já são públicas. Hoje, não temos soberania alimentar e importamos 70% dos alimentos. Em um processo revolucionário como pretendemos construir, esses índices não podem ser mantidos. O Estado necessita coordenar junto com o setor camponês uma nova política produtiva. Ao efetivar essa dinâmica também vamos interferir na economia do país. BF – Quando reeleito, Chávez afirmou que trabalharia para dar mais poder para o povo. O que significa isso na prática?
popular em que se discute a gestão pública e a utilização do orçamento do Estado, semelhante ao Orçamento Participativo de Porto Alegre); - Banco do Sul (banco de crédito para os países latino-americanos); - Fortalecimento da Integração Latino-americana.
González – Esperamos e limitamos nossas críticas em relação ao governo, principalmente neste ano, porque era fundamental para o nosso povo garantir a vitória nas eleições. Agora, não haverá trégua com ninguém. Assim, como organizamos marchas para apoiar o processo, vamos organizar manifestações e ocupações de terra se as instituições não cumprirem as demandas das organizações. Chegou o momento de exigir mudanças e vamos cobrar. BF – A burocracia e a corrupção têm sido assinaladas como os principais freios às transformações. Como mudar essa realidade? González – Precisamos de mais conscientização. Uma das maneiras para mudar a mentalidade dos funcionários públicos é, primeiro, que se considerem como servidores públicos, ao pé da letra. Isso significa modificar os valores éticos dessas pessoas. Uma escola de formação poderia ser um dos caminhos. Por outro lado, nós estaremos vigilantes. Vamos denunciar os casos de corrupção e trazer à luz pública as irregularidades. Calar frente à corrupção pode significar perder a revolução. BF – O presidente Chávez anunciou a criação de um partido único revolucionário... González – Estamos de acordo porque o partido único pode ajudar a resolver uma das principais debilidades do processo revolucionário: a carência de quadros políticos. Quando mataram Simon Bolívar, a luta pela libertação da América Latina se estancou. O Movimento V República (partido de Chávez) tinha como principal tarefa a formação dos quadros políticos, mas não a cumpriu. Há uma carência ideológica e ética que precisa ser resolvida. Não podemos seguir dependendo de Chávez,
como se ele fosse o vereador, o prefeito, o governador. Precisamos formar para que possamos resolver nossos problemas. BF – De onde viriam as orientações do partido único? González – Ainda não sabemos como o partido será estruturado, mas sabemos o que não queremos. As decisões políticas não podem ser tomadas pela cúpula do partido. Tudo deve ser discutido com as bases. Queremos a participação dos operários, camponeses, mulheres, enfim, a participação de todo o povo. Necessitamos de um partido com cheiro de povo. BF – Chávez afirma que a Constituição, criada em 1999, tem de ser reformada. O que pensam sobre isso? González – Em primeiro lugar, a discussão sobre a elaboração das leis têm que necessariamente ser discutida com as bases populares, e isso não está acontecendo. Há projetos inconstitucionais em discussão na Assembléia. Para nós, é preciso rever alguns artigos. Entre as propostas que nós pretendemos apresentar no próximo ano está a de redefinição do conceito de propriedade privada. Se estamos discutindo a construção do socialismo, também teremos de redefinir o papel da propriedade privada na Constituição. BF – Como criar uma nova institucionalidade e acabar com o velho Estado? González – Temos que aumentar a participação popular nos Conselhos Comunitários e exercer a controladoria social. Os Conselhos Comunais são fundamentais para delegar poder ao povo. Acredito que em pouco tempo teremos que discutir se a figura política de vereadores e prefeitos será necessária neste novo Estado em construção. Temos que dar mais poder para nosso povo. (CJ)
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INTERNACIONAL PERSPECTIVAS REVOLUCIONÁRIAS
Contra o império, refundar o comunismo Para o filósofo Domenico Losurdo, é importante repensar o marxismo, com base nas condições atuais do capitalismo Patrick Quinn-Graham/Creative Commons
João Alexandre Peschanski da Redação
É
preciso formar vanguardas revolucionárias. A constatação do filósofo italiano Domenico Losurdo aponta para um dos elementos necessários para deter o imperialismo estadunidense. Tais vanguardas devem ter a tarefa, diz, de denunciar as violências (ideológicas e militares) do governo dos EUA e fomentar a organização popular. Essa vanguarda, conceito que Losurdo retoma do leninismo, não se trata de uma elite, que dirija as massas. Não há uma relação hierárquica. Ao contrário, é um grupo que deve mostrar os meios para potencializar a democracia e a igualdade. Revela o filósofo: a vanguarda não surge quando algumas pessoas dizem sê-la, mas quando as condições objetivas e histórias para seu surgimento estão dadas. Na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), por exemplo, Lenin surgiu como vanguarda, porque denunciou o conflito, enquanto a maioria dos partidos, incluindo aqueles que se reivindicavam da tradição marxista, o apoiavam. Losurdo concedeu essa entrevista com exclusividade ao Brasil de Fato, quando esteve em São Paulo (SP) para lançar seu livro Liberalismo. Entre civilização e barbárie (Editora Anita Garibaldi, 2006). Na obra, assim como na entrevista abaixo, ele disseca a formação do imperialismo estadunidense e enfatiza a necessidade de se ler Vladimir Lenin, nos dias de hoje. Brasil de Fato – Três quintos da população mundial passa fome, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Ambientalistas advertem para a proximidade de um colapso ecológico, principalmente devido à escassez de água doce, caçada por governos e corporações. A desigualdade social é crescente. Mas, ao mesmo tempo, apesar do panorama catastrófico, não há uma mudança radical global? Domenico Losurdo – Há uma contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção, resultado de um desequilíbrio da reprodução da vida, mas as revoluções não são mecanicamente determinadas. Além da contradição geral, cada uma delas tem uma configuração histórica própria, que só se analisa com base em um reconhecimento das condições complexas de dado país. Para analisar a Revolução Russa, em 1917, deve-se levar em consideração: a luta contra a guerra, a questão camponesa, as lutas das nações oprimidas dentro da Rússia, a resistência às potências colonialistas e a contradição dentro do sistema produtivo. Não há uma só contradição que tudo determina, mas várias. A fórmula de Karl Marx diz respeito a uma época de revoluções, não a uma revolução determinada.
BF – Que elementos se deve levar em conta para fazer o reconhecimento das condições do mundo, na atualidade? Losurdo – As dimensões do novo ator imperialista: os Estados Unidos. Este ainda não passou pelo tipo de colapso pelo qual passaram as forças imperialistas européias, no século XX. O imperialismo estadunidense nasce, no final do século XIX, quando disputa com a Espanha o controle de parte do Caribe. Hoje, os neoconservadores falam de um Novo Século Americano, como uma tentativa de estabelecer um novo grau nesse imperialismo. No plano militar, isso se dá por uma concentração de poder ja-
Em inglês, no Canadá, pichação afirma: “Resista ao imperialismo nos Estados Unidos”. Para Losurdo, tal resistência deve se fundamentar no resgate do marxismo
mais vista. No plano ideológico, há uma idéia fundamentalista, dominante na cúpula do governo, de que os EUA têm que se manter como superpotência. BF – Você compara, em seus livros, o imperialismo estadunidense e o nazismo. Losurdo – Se tomarmos a origem da democracia estadunidense, constamos que a maioria de seus grandes líderes, como George Washington e Thomas Jefferson, eram proprietários de escravos. Os pensadores da Constituição estadunidense eram também escravistas. Toda a formação do país está marcada por isso. Tem que se questionar aqueles que dizem que os EUA são a mais antiga democracia do mundo: é uma democracia para alguns senhores brancos. Essa concepção é a mesma de Adolf Hitler, quando ele pensou o regime nazista. O principal teórico do nacional-socialismo, Adolf Rosenberg, falava com entusiasmo sobre a formação dos EUA, pois, segundo ele, está baseada na idéia de que não há igualdade entre as raças. Ele quis aplicar a mesma coisa na Alemanha. BF – Nessa concepção racista e colonialista, está a origem do fundamentalismo religioso estadunidense? Losurdo – A história dos EUA é a iniciada por puritanos que deixam a Inglaterra e chegam ao Novo Mundo com a idéia de ser o povo eleito, chegando à terra prometida. Divulgam a impressão de que a América era um deserto, um grande vazio, quando chegaram. Escondem assim o massacre dos povos nativos. Legitimam o genocídio.
alteração discursiva marcante no governo dos EUA, no decorrer do século XX: quando intervém na 1ª Guerra Mundial, o faz, explicitamente, para controlar seus aliados; na 2ª Guerra Mundial, há uma justificativa religiosa, transcendental. Isso é característico dos EUA, que pôs a religião a serviço de seu nacionalismo.
O imperialismo se baseia na hierarquização de raças e povos, e exigir a democracia entre os povos é uma opção emancipadora BF – A justificativa religiosa é uma fachada para justificar ganhos? Por exemplo, a luta pela liberdade no Iraque é para legitimar a exploração dos recursos naturais do país? Losurdo – Há interesses materiais, mas não se pode dizer que Bush não acredite no que ele fala. Não é hipocrisia. Bush acredita nisso. Tem um espírito missionário, catastroficamente sincero, que se liga com os interesses econômicos e geopolíticos dos EUA.
Os nazistas falavam com entusiasmo sobre a formação dos EUA, pois, segundo eles, está baseada na idéia de que não há igualdade entre as raças
BF – Qual o ponto fraco desse imperialismo? Losurdo – Se avaliarmos a constituição histórica dos EUA, vemos que há grupos étnicos que mantêm sua identidade, apesar da dominação branca. Isso é uma vantagem para os governantes, pois evita a formação de uma classe de resistência unitária. Mas há um outro lado: os diferentes grupos étnicos, outrora totalmente dominados, começam a romper com as diretrizes culturais e morais dos EUA. O ideólogo neoconservador Samuel Huntington está preocupado com a força dos grupos étnicos e revela que, em Estados do Sul, o espanhol se tornou o idioma mais falado. Há nos EUA a construção de uma alternativa de identidade à neoconservadora.
BF – Hoje, escondem os impactos das guerras preventivas, conceito caro a George W. Bush. Losurdo – Há uma visão religiosa do mundo, que define o bem e o mal. Têm a idéia de que precisam construir, por todos os meios, o Império da Liberdade, desde a criação do mundo. Essa concepção é inspirada do Jefferson. Há uma
BF – Mas esse cenário favorece o surgimento de uma força revolucionária? Losurdo – Como disse, a divisão dos dominados não permite o surgimento da consciência de classe. Mas há um indício interessante nesse aspecto: a adesão massiva dos trabalhadores ao governo está ruindo. A resistência às intervenções militares de Bush são outro
indício marcante, pois, retomando Lenin, um povo não é livre se oprime outro povo. Os estadunidenses parecem ter entendido isso, a despeito do que diz seu governo. BF – Essa idéia que cita do Lenin não foi – ou, pode-se dizer, não é – consensual na esquerda. Losurdo – Lenin é certamente o autor que mais enfatiza a necessidade de relações democráticas nas relações internacionais. Pensar assim, hoje, é confrontar ao imperialismo a visão do nacionalismo. Aquele se baseia na hierarquização de raças e povos, e exigir a democracia entre os povos é uma opção emancipadora. Para os estadunidenses, eles são os escolhidos por Deus e os outros devem ser guiados, isto é, negam relações entre iguais nos contatos entre nações. BF – Para Lenin, a consciência da luta de classes não se desenvolve de modo uniforme. Surge, inicialmente, em uma vanguarda, que tem o papel histórico de agitar a consciência do povo. Concorda com essa visão? Losurdo – Antes de mais nada, ressalto que a teoria leninista não tem nada a ver com a elitista. A vanguarda, a partir do momento em que difunde o conhecimento ao qual teve acesso, se torna supérflua. Não se solidifica. O problema de alguns partidos de esquerda, em muitos casos, é que cristalizam uma elite. Daí, o que ocorre, como no caso da 1ª Guerra Mundial, é que a elite, cristalizada, dá ordens contrárias aos interesses dos trabalhadores. Manda-os para a guerra. Lenin mostrou os limites dessa elite e denunciou o catastrofismo da guerra. Ele assumiu o papel de vanguarda, contra a elite. Um fenômeno parecido ocorreu na Itália, durante o fascismo, quando Benito Mussolini conclamava a população a apoiar a guerra imperial contra a Etiópia. Os únicos que protestaram, dizendo que era uma agressão inaceitável, foram os membros do Partido Comunista, assumindo assim, nesse momento específico, o papel de vanguarda. BF – No Brasil, hoje, muitos setores da esquerda dizem ser a vanguarda revolucionária. Como reconhecer o rumo para qual a luta de classes deve ir? Losurdo – Marx diz: a história se repete uma vez como tragédia e depois como farsa. Não se pode confundir um com o outro. Há farsas, aqueles que dizem ser a vanguarda e rejeitam outras formas de luta. Saliento que só reconhecemos que Lenin, durante
a 1ª Guerra Mundial, estava certo, vários anos após ele tomar a decisão. O importante é saber em que elementos nos baseamos para tomar nossas decisões políticas, nossa interpretação das condições históricas. BF – Em 1991, o Partido Comunista Italiano se desmanchou e muitos militantes, nos quais o incluo, formaram o Partido da Refundação Comunista. Qual o balanço dessa experiência? Losurdo – O termo “refundação” é muito bonito, pois pode ser um pretexto para repensar o marxismo. Mas acredito que Fausto Bertinotti, líder da agremiação, é a negação do comunismo, não sua refundação. Se alguém diz que é a vanguarda, não somos obrigados a acreditar que ele realmente o é. BF – É preciso refundar os instrumentos políticos diante do novo tipo de adversário – o imperialismo estadunidense – que temos pela frente? Losurdo – Para tal, é preciso entender que a categoria de imperialismo é decisiva. No caso da esquerda européia, nem todo mundo está de acordo com isso. Bertinotti acredita que esse conceito não faz sentido. Quando falamos de imperialismo, inscrito na evolução do capitalismo, temos que manter em mente a força dos Estados Unidos, por razões militares e ideológicas. O comunismo precisa colocar alternativas claras ao modo como se fundamentam as relações internacionais. Por isso, retomar Lenin é importante. João Alexandre Peschanski
Quem é
Domenico Losurdo é professor titular de Filosofia da História na Universidade de Turim (Itália). Dedica-se especialmente ao estudo de Friedrich Hegel, Karl Marx e do significado da revolução socialista na Rússia e na China. Entre outros, escreveu Democracia ou bonapartismo (Editora da Unesp, 2004) e Liberalismo. Entre civilização e barbárie (Editora Anita Garibaldi, 2006).
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AMÉRICA LATINA
MÉXICO
O mosaico da força popular em Oaxaca APPO, iniciada pelos professores, é encampada por indígenas e jovens, articulados em barricadas Edouard Escougnou/Creative Commons
Pedro Carrano enviado especial a Oaxaca (México)
A
Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) só pode ser definida como um mosaico, um tecido social complexo e por vezes até contraditório. São diferentes organizações com um tempo político próprio que encontraram um ponto comum na demanda pela queda de Ulises Ruiz Ortiz, governador de Oaxaca (México). O desafio, agora, é mostrar sua capacidade de organização e reinvenção nesta hora de ataque por parte do governo de Felipe Calderón, que assumiu a presidência no dia 1º de dezembro. Segundo Luiz Hernandez Navarro, editor do La Jornada, principal jornal de esquerda mexicano, as principais receitas do Estado de Oaxaca se dividem entre o turismo e as remessas oriundas dos Estados Unidos. Antes da rebelião dos professores que inaugurou, em maio, a Comuna de Oaxaca, o cenário era de um governo comandado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que só fazia crescer o “caciquismo” na região: estruturas verticais e coronelistas de funcionamento do Estado. Ao mesmo tempo, existiam organizações comunitárias, camponesas e políticas maduras em Oaxaca, além de trabalhos ligados à teologia da libertação e comunidades eclesiais de base. Para Navarro, esse conjunto forma um tecido de organizações, caso único entre os Estados mexicanos e uma experiência que não vai se aplicar como um modelo pronto para outras regiões. Os professores encabeçaram a luta da APPO agrupados em um sindicato corporativo, o Sindicato Nacional de Trabalhadores da
Comunistas e indígenas juntos
Educação. Com forte inserção nas comunidades indígenas, os professores têm a confiança das famílias. Já as organizações indígenas não vêem na APPO o reflexo rigoroso de suas demandas, porém apóiam o movimento. No entanto, seu tempo dentro da organização é outro e, até por isso, organizaram recentemente o Fórum Indígena, debatendo a sua presença no movimento. Navarro pensa que todo esse tecido social encontrou um ponto de unidade como movimento social e político no desejo de que Ulises Ruiz caía.
REPRESENTATIVIDADE A pesquisadora uruguaia radicada no México, Silvia Ribeiro, reflete que os professores possuem uma capilaridade e representatividade
e os alimentos e mercadorias que chegavam dos Estados Unidos. O recurso era olhar para o Norte. Gente das 16 etnias indígenas do Estado (das 60 existentes em todo o país) podem ser encontradas vivendo no grande “irmão” do Norte. Quando regressavam, a casa na comunidade já não era a mesma e os migrantes partem em busca dos parentes na periferia das cidades. “Mas não só migraram as pessoas e sim as culturas, a produção e a ajuda mútua”, descreve Nicéforo.
ESSÊNCIA DO POVO O centro histórico e a catedral de Oaxaca não dizem nada da essência do povo, que está ali, fora da cidade. Comunismo é uma prática do seu povo antes que nada, assim ele pensa. “Os marxistas é que têm de aprender com a gente pois os professores falam de socialismo, mas não se utilizam de exemplos concretos, então não é espontâneo”, reflete. É algo superior a uma consciência de luta de classes, diz, e não pode haver dualismo, sujei-
entre as povoados. Ela comenta que outras organizações, camponesas ou indígenas, que compõem a assembléia são oriundas de articulações independentes. Uma delas é a Unorca, organização camponesa que compõe a Via Campesina no México, da qual, segundo Silvia, faz parte Flavio Sosa, um dos dirigentes mais conhecidos da APPO, que recentemente foi preso. Silvia destaca a herança da organização indígena. “É uma forma de funcionamento real, discutida por consenso. No caso de Oaxaca, o único Estado do país onde a autonomia é reconhecida por lei, a organização funciona autônoma do governo. Se não fosse assim, acabaria ficando nas mãos do PRI”, avalia.
to e objeto, numa cultura onde o máximo valor seja o outro, o “indivíduo comunitário”, nas suas palavras, sempre muito bem medidas e adornadas. “As pessoas na comunidade são muito orgulhosas, por mais que sejam pequenas, são únicas, e estão seguras de que ali têm um super valor”, fala. Entre os 70 mil professores, ele pensa que a maioria é indígena, o que se verifica pelos seus sobrenomes, mas ressalva que a educação que receberam ainda esteve sob o molde capitalista: vertical. O Fórum Indígena, do qual participou recentemente, é o espaço para que as organizações indígenas que conformam o movimento sigam o seu caminhar a seu tempo e modo. A tendência é seguir com os congressos e encontros filosóficos para ensinar o modo de pensar dos povos originários e o conceito de comunalidade. Para que o símbolo da APPO, o punho fechado, não prevaleça sobre o símbolo do bastão de mando das comunidades. (PC) Edouard Escougnou/Creative Commons
As barricadas da Comuna de Oaxaca, levantadas nas colônias da periferia ou nas comunidades mais distantes para barrar o ataque policial e paramilitar, foram a hora e a vez dos povos indígenas. Foram eles – ao lado de outras forças populares – que criaram e, literalmente, alimentaram as barricadas, com suas tortilhas e café oaxaquenho. Assim a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca ganhava de herança as tradições indígenas. Um de seus representantes, o zapoteco Nicéforo Umbieta, valoriza a diversidade, mas insiste que o movimento não pode limitar-se ao marxismo/leninismo dos professores. A conexão entre o levante de hoje e os povos indígenas remonta aos anos de 1980, quando as colônias ao redor de Oaxaca foram formadas. Culpa da competição entre os produtos camponeses
Encabeçadas por professores, as revoltas de Oaxaca, no México, são o resultado da articulação de diversas organizações, principalmente camponesas e indígenas
As barricadas, formadas para conter o avanço da polícia, simbolizam a força e a união do povo
A Comuna de Oaxaca também conta com os “filhos do zapatismo”, a geração jovem que cresceu e teve a sua formação política lendo os comunicados do subcomandante Marcos, principal liderança do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). “Eram os jovens que estavam se pegando nas barricadas com a polícia, EZLN – Movimento são eles os que indígena que organiza, desde os anos dão a cara para de 1970, as comubater”, comenta. nidades da região dos Chiapas, no Sul Ela reforça a sua do México. idéia lembrando o notável númeOutra Campanha – Mobilização zapa- ro de coletivos tista para organizar de jovens que a resistência ao apareceram nas neoliberalismo e organizar a populareuniões prepação pobre. ratórias da Outra
Campanha, em Chiapas, no ano passado. O sociólogo mexicano Onesimo Hidalgo, do Centro de Políticas Econômicas e Ação Comunitária (Ciepac), revela a importância das assembléias populares e imagina que elas podem influir na articulação entre as forças sociais do país: “O importante das assembléias é a tomada de decisões coletivas, não há um só líder, e, sim, muitos. Seja o que for, é preciso consultar. A unidade dos diversos setores também é importante. Creio que, no médio prazo, dará fruto na unificação com a Outra Campanha, em uma nova constituição e num eixo de luta com um plano nacional onde todos os Estados terão que se mexer ao mesmo tempo”.
O abandono do campo
era nacional e fomentava o mercado agrário interno. Já as transnacionais compram o milho em qualquer país onde esteja mais barato”, explica.
Silvia Ribeiro, pesquisadora do tema da invasão das sementes transgênicos, refaz o trajeto de uma história de repressão nas zonas rurais para analisar o cenário incendiado pela insurreição popular de Oaxaca, Estado que já era marcado pela repressão aos povos indígenas e ao campesinato. “A violação dos direitos humanos era algo cotidiano”, comenta Ribeiro, para quem a APPO é uma resistência contra a estrutura dominada pelos “caciques”, uma elite ligada ao PRI e, em Estados como Chiapas, ligada ao latifúndio. A revolução mexicana, iniciada em 1910, possibilitou o reconhecimento da propriedade comunal, aquela organizada pelas próprias comunidades. Mais tarde, nos anos de 1930, no governo de Lázaro Cardenas, o sistema de “ejidos” assegurou a permanência dessas comunidades. Os camponeses podiam trabalhar a terra coletivamente ou sozinhos, só não era permitido vendê-la. Em poucos Estados mexicanos o latifúndio subsiste. Porém, o PRI, com a sua estratégia de poder que perdurou por sete décadas seguidas, logrou controlar o crédito e o subsídio para os agricultores. A situação da população piorou com o governo de Carlos Salinas de Gotari (1988-1994), que transformou uma aparente socialdemocracia em um neoliberalismo selvagem. “O campo começou a ficar abandonado”, descreve Silvia. Até 1993, Ribeiro descreve, existia a Comissão Nacional de Subsistências Populares (Conasupo), órgão que dava garantias ao campesinato, comprando as safras por um preço justo. No entanto, a instituição perdeu espaço com a chegada de corporações como a Cargill, ADM, Grupo Maseka, entre outros. “A Conasupo
EMPOBRECIMENTO Atirados ao deus-dará do mercado, os camponeses “estão abandonando o campo. As pessoas que produzem já não podem vender seus produtos”, diz. Segundo a pesquisadora, 30% do milho consumido no país vêm dos Estados Unidos. Além disso, o crédito agrícola baixou em 80% e os camponeses estão endividados. A economia do camponês tem base na troca de alimentos, muito mais do que na moeda. “O campesinato produz e vende quase tudo, vive da colheita para poder comprar roupas, sal, mas vende por um preço não competitivo”, informa Silvia. Além disso, o sociólogo Onesimo Hidalgo afirma que, com o Tratado de Livre Comércio, estão se exterminando os produtos tradicionais das comunidades e chegando novos monocultivos. “Esses produtos não só substituem os tradicionais, mas também destroem o ecossistema das comunidades”, explica.
O NORTE É O DESTINO Enquanto isso, a migração se acentua. “A construção do muro na fronteira com os Estados Unidos é uma hipocrisia pois quer, na verdade, regular a força de trabalho mexicana. Em certo momento, foi útil deixar essa mão-de-obra passar, agora não”, analisa Silvia. A pesquisadora enxerga que essa narrativa de desterros está diretamente ligada à situação de abandono no campo. Paralelamente, nos últimos anos, mais de mil maquiladoras, fábricas que utilizam mão-de-obra barata, foram transferidas para os países asiáticos. Com isso, estimativas apontam para 1,5 milhão de migrantes por mês no México. (PC)
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CULTURA
De 28 de dezembro de 2006 a 3 de janeiro de 2007
TEATRO
A nova peça da Cia. do Latão, O Círculo de Giz Caucasiano, discute a questão da propriedade da terra
Fotos: Divulgação
A lógica da dominação ao avesso Bel Mercês de São Paulo (SP)
“O
intervalo é de 15 minutos”, revela o ator ao se despir de seu personagem. Já é perto das 22h, o público abandona as cadeiras de um improvisado teatro no 12º andar do Sesc, localizado na Av. Paulista, em São Paulo (SP), e aguarda o elevador. Até então, havia se passado mais de uma hora e meia do primeiro ato de O Círculo de Giz Caucasiano, peça de Bertolt Brecht, montada pela paulistana Cia. do Latão, em homenagem aos 50 anos de morte do inspirador de seu teatro dialético, e que também dá início às comemorações de dez anos de atuação grupo. A adaptação brasileira, assinada por Manuel Bandeira, conta desta vez com precisa e fiel direção de Sérgio de Carvalho, um dos fundadores do Latão e estudioso do marxismo, e com a participação de um grupo de atores convidados de outras companhias. O intervalo, recurso pouco usado no teatro contemporâneo, é pequeno, porém importante para respirar, ir ao banheiro, ouvir comentários de outros espectadores e refletir sobre o que foi contado até então na peça. Quando escreveu O Círculo de Giz Caucasiano, Brecht manteve na narrativa três histórias diferentes, porém complementares. O prólogo é essencial para o estabelecimento da dialética, apresentando o posicionamento político do debate a ser feito nos dois atos seguintes: em uma assembléia, camponeses da União Soviética de 1947 discutem o “direito à terra” no pós-guerra. A questão central levantada é sobre quem tem esse direito: os donos que a abandonaram durante a batalha ou os que ali ficaram e cuidaram do local, tornando-o mais fértil e vivo. Na encenação do Latão, a aproximação do tema com os tempos atuais transforma o prólogo em um vídeo gravado durante oficina com o grupo de teatro Filhos da Mãe Terra, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em que, juntos, os atores buscam interpretações diversas e soluções políticas para o conflito entre os camponeses soviéticos. O consenso é a solução encontrada tanto pelo dramaturgo quanto pelos atores do MST. Segundo o diretor, a escolha de trabalhar com o MST se deve à importância de contextualizar na história o Brasil político de hoje. “Brecht escreveu um prólogo entre agricultores soviéticos em outra época, com tempo e lugar definidos. O MST é um movimento que hoje radicaliza o tema da função da terra”, diz.
PRIMEIRO ATO No texto de Brecht, assim que estabelecido o direito à terra para quem dela cuidou, tem-se uma festa entre os dois grupos camposeses e, dentro dela, um espetáculo é montado para celebrar o acordo. Aqui, de dentro do prólogo, começa de fato o trabalho de palco do Latão. Os atores, após assistirem ao vídeo junto à platéia, apresentam a história de Grucha (Helena Abergaria), criada da família real que salva o príncipe da morte em meio à revolução e foge com ele para as montanhas. Perseguida por soldados que buscam recompensa, Grucha se vê diante da possibilidade de abandonar a criança em vários momentos. Passando fome e frio, vive a dualidade do desejo de estar só e manter-se segura para esperar o noivo voltar da guerra e da incapacidade de deixar o bebê Miguel no meio do caminho. Quando se depara com uma cabeça
O dramaturgo Bertolt Brecht, acima, de charuto na boca, e abaixo, dirigindo seus atores no final da década de 1940, é o autor da peça montada pela Cia. do Latão
decepada, tendo a morte diante de si apresentada, ela assume o filho em definitivo como seu. Carvalho entende que o esforço de Grucha demonstra sua humanidade: “ela é alguém que, diante da perspectiva da morte, escolhe a vida”. A tensão presente na história parece amenizar na medida em que Grucha assume um casamento de fachada para criar Miguel e tem na criança o conforto do amor. Mas é apenas um breve fôlego para a retomada do debate sobre a questão da propriedade a partir do reaparecimento da rainha Natella Abaschvíli (Deborah Lobo) e sua reivindicação de maternidade sobre o filho.
SEGUNDO ATO Dá-se então o intervalo anunciado pelo ator. Na subida do elevador, ainda há tempo para pensar sobre as contradições postas em cena e fora dela: O Círculo de Giz Caucasiano apresenta uma reflexão sobre a propriedade, numa perspectiva de esquerda. O grupo de teatro dependeu de financiamento da questionável Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, que alivia as instituições capitalistas de impostos caso elas invistam naquilo que acharem conveniente. No mundo da cultura que é ditada pelas empresas, a Cia. do Latão estreou sua montagem de Brecht no
Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (RJ), antes de seguir para o Sesc de São Paulo. O julgamento sobre a “propriedade da criança” será feito por um juiz beberrão chamado Azdak, que é empossado pelo próprio povo em momento de transição e caos político. Azdak é um personagem de constante ambivalência, um fanfarrão que quer se dar bem a todo o momento, mas nutre sentimentos revolucionários por influência de um avô. Virando a lógica burguesa pelo avesso, de modo a absolver os pobres e condenar os mais poderosos, o juiz lança mão de qualquer artifício para reverter o conceito de justiça estabelecido pela ordem dominante. Carvalho vê Azdak como catalisador de todas as contradições históricas apresentadas, “um cara que, por um instante achou que estava acontecendo uma revolução”, disse, “e aproveitou essa brecha histórica para trabalhar. Ele é verdadeiro, não é um herói, já que por vias tortas acaba ajudando os excluídos”. Quando o menino Miguel está no centro da disputa entre sua mãe natural e aquela que o criou, Azdak começa seu jogo em busca de brechas que possam subverter a lógica do sangue. Em vários momentos, a contradição vem à tona com força,
como quando ele aceita o suborno da rainha, deixando se estender longamente a dúvida sobre como se dará seu julgamento. O fato é que, sem ter encontrado um artifício suficientemente convincente e procurando não trair seu ideal de mudança, Azdak se utiliza de um recurso que o fará pôr fim na própria carreira, a arbitrariedade, e inventa uma prova: desenha um círculo de giz em torno de Miguel e pede para as duas mães o puxarem. Nas duas tentativas, Grucha não consegue encontrar forças, pois não pretende machucar o menino. Então o juiz dá o argumento final, aliviando a tensão do momento. O filho, para quem entende a justiça como o que ela deveria ser, e não como foi instituída, é de quem o criou, assim como a terra, no prólogo. Para o diretor, a peça cria panoramas de contradições o tempo inteiro, sobre as quais o publico atua ativamente: “as contradições fazem o público se sentir ativo na peça. Brecht obriga as pessoas a um prazer produtivo, a fazer parte da história”. “O importante é que a narrativa joga a pessoa para pensar o quanto nosso conceito de justiça é formado pelo modo de produção dominante. Isso causa uma crise ideológica no espectador”, comenta. Ele conta que, no Rio de Janeiro, as-
sim que a peça estreou, uma senhora protestou contra o prólogo, alegando não existir movimento como o MST na época de Brecht, e ser a favor da propriedade, causando tensão. Por isso, sem o prólogo, a peça não provocaria, pois não faria o debate político e nem permitiria a análise dialética a partir da realidade do momento. É uma virtude não deixar o público com dúvidas quanto a sua intenção de apresentar um posicionamento por meio da arte, principalmente quando se tem o complemento da sutileza poética, do trabalho sensível com a interpretação, a música que rima com o texto, figurino e cenário caprichados. Assim era Brecht, um militante de esquerda que suavizou a dureza da política. E assim se firma a Cia. Do Latão, um dos poucos grupos que, mesmo dentre todas as contradições da globalização, se assume sem medo como teatro militante.
O círculo do giz caucasiano Sesc Avenida Paulista Av. Paulista, 119 Telefone: 3179-3700 De sexta a domingo, às 20h. Até 21/1/2007 Preço: R$ 15