Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 4 • Número 201
São Paulo • De 4 a 10 de janeiro de 2007
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br João Zinclar
A VIDA E O RIO - Ensaio do fotógrafo João Zinclar percorre as margens do rio São Francisco e testemunha a luta dos ribeirinhos para resistir frente ao avanço do latifúndio e do hidronegócio
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Reforma agrária chega às periferias N
uma experiência inédita e recente, o MST organiza um novo modelo de reforma agrária chamado Comuna da Terra, que consiste em organizar assentamentos em pequenos núcleos, perto de grandes cidades, para trabalhadores urbanos que já foram agricultores ou que podem vir a ser. A primeira comuna, o assen-
tamento Dom Tomás Balduíno, foi implementada em Franco da Rocha (SP). Um aspecto importante do modelo é em relação à produção e à comercialização, já que localização das comunas permite um tipo de cultura agrícola que garante renda num espaço menor de terra e também facilita o escoamento. Pág. 3
Francisco Rojas
Em São Paulo, sem-terra criam um novo modelo de assentamento, chamado Comuna da Terra
Governo criminaliza os pobres na França Mais de um ano após a onda de revoltas de jovens nas periferias das cidades da França, o governo reforça a segregação dos imigrantes e ignora a dificuldade que as pessoas pobres têm para encontrar emprego. Em vez de
investir em projetos estruturais contra a desigualdade, nove leis sobre delinqüência foram aprovadas desde 2002, quando Nicolas Sarkozy assumiu o Ministério do Interior. Pág. 7
Faixa de Gaza vive crise humanitária
EDITORIAL
Além do fim do repasse de verbas por parte de Israel e da União Européia, a população da Faixa de Gaza, na Palestina, ainda teve que enfrentar, entre junho e novembro de 2006, massivos ataques militares israelenses. Centenas de pessoas morreram, e boa parte da infra-estrutura foi destruída. A historiadora Arlene Clemesha qualifica a situação atual de “desastre humanitário”. Pág. 6
Na área rural das grandes cidades, as Comunas da Terra permitem que os sem-terra não tenham de se deslocar centenas de quilômetros para conquistar um pedaço de chão; na foto, Comuna em Franco da Rocha, na região da Grande São Paulo
Mudança de época ou época de mudanças?
O
economista Rafael Correa, recém eleito presidente do Equador, disse, em encontro com o presidente Lula, que a América Latina não estava vivendo apenas uma época de mudanças, mas sim uma mudança de época, numa referência clara à forte reação ao ciclo de políticas neoliberais que devastaram a região. Ficou implícito no raciocínio do dirigente equatoriano que a conjuntura política latino-americana estaria tomando o rumo de transformações sociais, que entenderia por época de mudanças. A eleição e a reeleição de dirigentes apoiados pelo campo popular, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, na Nicarágua, no Equador, na Venezuela e no
Brasil, são a expressão exata de que na América Latina estaria ocorrendo exatamente o contrário do que calculavam os que já cantavam a vitória da Alca. E também é importante considerar a importância da votação do candidato de esquerda no Peru, da derrota da direita no Chile e também da situação de duplo poder que emergiu das eleições mexicanas, um país consulsionado, um presidente que teve de sair pelos fundos do palácio após a cerimônia de posse. Mas, também no campo social, há algo a mencionar. A Venezuela é hoje um país livre do analfabetismo, conforme reconheceu a Unesco! Isso, sim, tem a dimensão de uma mudança de época, já que o analfabetismo é
uma mazela comum a todos os demais países. Com exceção de Cuba, que erradicou o analfabetismo com apenas um ano de revolução. Algo que, sim, sinaliza época de mudanças sãos projetos como a Aliança Bolivariana para América Latina (Alba), com realizações já concretas, como a Operação Milagro, pela qual centenas de milhares de cidadãos pobres de vários países estão sendo submetidos a cirurgia de cataratas em Cuba e Venezuela, tudo gratuitamente. O levantar do povo boliviano, as medidas iniciais para a realização da reforma agrária e a nacionalização do gás e do petróleo também indicam uma caminhada rumo a mudança de
épocas. Na mesma dimensão, estão as políticas que favorecem a integração latino-americana, apesar de toda a pressão dos EUA e da mídia colonizada. Por isso, os governos e movimentos sociais progressistas não podem ignorar as condições criadas para uma política de unidade antiimperialista mais profunda, com o atendimento das necessidades socioeconômicas gritantes das massas pobres, buscando aprender das dolorosas lições do passado, seja do golpe do Chile em 1973, ou no Brasil em 1964, e também dos processos de sabotagem contra os líderes nacionalistas revolucionários, como Alvarado, no Peru, Torrijos, no Panamá, e outros, nem sempre compreendidos pela esquerda.
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De 4 a 10 de janeiro de 2007
DEBATE
CRÔNICA
Intervenção militar dos EUA
Ritos e previsões para o ano novo
Maria Luisa Mendonça intervenção militar dos Estados Unidos da América (EUA), em suas diversas formas, é um dos mecanismos do imperialismo, que tem como objetivos a apropriação de recursos estratégicos, o controle territorial, a exploração da força de trabalho, a expansão do modelo econômico neoliberal. A estratégia militar do governo estadunidense inclui implementação de bases militares, treinamentos e presença de tropas em território estrangeiro, investimentos em tecnologias de monitoramento, espionagem e projetos de infra-estrutura.Essa estratégia está baseada em diversos pilares, desde a intervenção direta até campanhas de propaganda e difamação, passando por processos das chamadas “guerras de baixa intensidade”, que promovem a opressão e estimulam a violência contra populações de baixa renda, urbanas e rurais. A militarização serve também para garantir o lucro de grandes transnacionais. Além de beneficiar empresas de armamentos, que tiveram um crescimento de 60% em suas vendas de 2000 a 2004, a “indústria da guerra” movimenta cerca de 100 bilhões de dólares por ano em projetos de infra-estrutura, assistência técnica, consultoria, treinamento, planejamento estratégico, análise operacional, logística e serviços de segurança, vigilância e inteligência. O processo de privatização dos serviços militares tem se intensificado nas últimas décadas. Desde 1994, o Departamento de Defesa dos EUA firmaram mais de 3.000 contratos com empresas de guerra, que ultrapassam o valor de US$ 300 bilhões. Os EUA mantêm bases militares (725 bases oficiais e outras secretas) em todos os continentes, com exceção da Antártica.Esse aparato é fundamental para a indústria naquele país, que fornece desde armamentos até roupas, comida e os mais variados serviços para os soldados. Por exemplo, com o início da guerra no Iraque foram encomendados 273 mil frascos de protetor solar de uma empresa na Flórida chamada Sun Fun Products (Produtos Solares Divertidos).
Os EUA mantêm bases militares (725 bases oficiais e outras secretas) em todos os continentes, com exceção da Antártica Existem cerca de 500 mil soldados, espiões, técnicos, professores e assessores a serviço do Pentágono e da CIA trabalhando para os EUA em outros países. Em abril de 2006, o governo estadunidense reforçou a atuação das tropas de elite do Comando de Operações Especiais (cuja sigla em inglês é Socom) para cerca de 20 países no Oriente Médio, África e América Latina. O número de funcionários desse departamento subiu de 40 mil para 53 mil. Desde 2003, o orçamento para o Socom aumentou 60% e deve chegar a US$ 8 bilhões em 2007. Segundo o jornal The Washing-
Marcio Baraldi
A
ton Post, essas missões incluem recolher informações para o planejamento de eventuais ações militares em países onde não há guerra ou conflito direto. Na América Latina, um dos principais focos dessas tropas é a Tríplice Fronteira, entre Brasil, Paraguai e Argentina. A estratégia nessa região combina campanhas de propaganda sobre suposta “ameaça terrorista”, com a presença de militares estadunidenses, favorecida pelo acordo militar bilateral dos EUA com o Paraguai. Na tentativa de envolver Brasil e Argentina em sua estratégia, em julho de 2006, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma resolução pedindo que o presidente Bush formasse uma força-tarefa para atuar contra o “terrorismo no Hemisfério Ocidental, especialmente na Tríplice Fronteira”.
Na América Latina, um dos principais focos dessas tropas é a Tríplice Fronteira, entre Brasil, Paraguai e Argentina O embaixador do Brasil nos EUA, Roberto Abdenur, manifestou “profundo desconforto” com a resolução e declarou que mesmo a “Casa Branca reconhece não haver atividades de terrorismo operativo na região”. O prefeito da cidade fronteiriça de Foz do Iguaçu, Paulo Ghisi, afirmou “não aceitar mais essa discriminação”. O presidente do Centro Cultural Islâmico em Foz do Iguaçu, Zaki Moussa, conclui: “Eles querem a região, não os árabes. Todo mundo sabe a importância geopolítica da Tríplice Fronteira, inclusive pela concentração de água doce”. Em oposição ao processo de militarização no continente, foi criada a Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA). Intensas lutas de resistência, combinando mobilização local com solidariedade internacional, lograram interromper operações militares em Vieques, Porto Rico. Um plebiscito popular obteve mais de 10 milhões de votos no Brasil, impedindo o controle da base de Alcântara pelos EUA. Na Costa Rica, um forte movimento popular impediu a presença da Academia para o Cumprimento da Lei (uma versão da Escola das Américas para policiais latinoamericanos). Um forte movimento de oposição na Argentina impediu a realização de uma operação de treinamento liderada por militares estadunidenses para países latinoamericanos, chamada Águillas III.
Em todo o continente, desde o México, com as lutas populares em Chiapas e Oaxaca, até a mobilização de povos indígenas no Brasil, que ocuparam recentemente a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores mineradoras do mundo, refletem o repúdio às políticas de dominação econômica e militar. A recuperação de fontes de recursos estratégicos é fundamental. Na Bolívia, a forte oposição à política de privatização da água e do gás natural causou a renúncia de dois presidentes e culminou na eleição de Evo Morales, que garantiu também maior participação do Estado sobre a atuação de empresas petroleiras no país. Na Venezuela, a retomada do controle da PDVSA pelo presidente Hugo Chávez foi essencial para a continuidade da revolução bolivariana. E, mais recentemente, o povo equatoriano elegeu o presidente Rafael Correa, que declarou seu compromisso de não renovar o acordo que permite que os EUA utilizem a base de Manta. Em toda a América Latina estão ocorrendo mobilizações que refletem o repúdio popular às políticas de dominação econômica e militar dos EUA e de seus aliados.A cada dia surgem novas formas de resistência, a partir da sabedoria popular. Como diz o povo de Oaxaca, “La Victoria no es de los poderosos sino de los mejor organizados”. (A íntegra deste artigo encontra-se na Agência Brasil de Fato – www.brasildefafo.com.br) Maria Luisa Mendonça é jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Marcelo Barros Apesar de que a sociedade contemporânea é avessa a mitos e ritos, os ritos do ano novo são apreciados no mundo inteiro e em todas as culturas. Mesmo nos tempos mais fechados do comunismo, os chineses encontravam formas de justificar os ritos ancestrais que fazem as festas de ano novo durarem uma semana. Todas as donas de casa fazem uma limpeza completa na casa para espantar os maus espíritos e atrair a boa sorte para o ano que se inicia. No Japão se toca um sino para expurgar os pecados e desejos maus. Para cada badalada se profere um desejo que se espera seja cumprido no decorrer do novo ano. Em Cingapura, a melhor forma de se desejar “feliz ano novo” é se trocar tangerinas como símbolo de boa sorte. Na Europa moderna, os ritos de ano novo têm sabor de velhas crenças. Na Dinamarca, as pessoas esperam o ano novo subindo em cadeiras. Quando o relógio soa meia noite, todos pulam da cadeira para o ano novo e brindam com champanhe. Os ingleses usam rolhas de champanhe como amuletos. Tiram a cortiça e colocam dentro uma moeda. Na Irlanda e outras regiões do Norte, costuma-se oferecer aos gnomos um pote de arroz doce. Coloca-se o pote nos estábulos, crentes de que, assim, os gnomos não incomodarão os humanos durante o ano que se inicia. Na Turquia, três pedras de sal grosso são postos secretamente em um saco e com turquesas. O amuleto é colocado sobre a porta de entrada para proteger as pessoas que entrarem por aquela porta e pelo ano novo que se inicia.
O capitalismo neoliberal também tem seus ritos e estes são menos afetuosos e humanos. Compete à sociedade civil defender suas culturas ancestrais e romper com o dogma do mercado todo-poderoso Na Colômbia de ancestrais indígenas, as pessoas enchem uma mala de objetos pessoais e dão três voltas em torno da casa. Durante esse rito, se despedem de todos os que cruzam no caminho e acreditam que isso atrairá um ano novo de sorte e aventura. No Brasil de matriz afro, as pessoas vão à praia para oferecer flores e presentes a Iemanjá. Nos templos de Candomblé, as mães de santo consultam os búzios para ver o Orixá regente do ano novo. Quem faz leitura fundamentalista da Bíblia pode ver esses costumes como superstições. Entretanto, mesmo em Israel, a festa do ano novo (Hosh Hashaná) é comemorada com cabeça de peixe, símbolo do desejo de um mundo melhor. Os judeus proclamam que a Shalom (paz) depende do Altíssimo, mas seja como for, na ceia do ano novo, todos devem comer maçã e cenoura com mel para tornar o mundo mais doce. Apesar de todos os ritos expressarem o desejo de um ano novo feliz, as previsões internacionais e também aqui no Brasil falam de um quadro difícil e pesado. O capitalismo neoliberal também tem seus ritos e estes são menos afetuosos e humanos. Compete à sociedade civil defender suas culturas ancestrais e romper com o dogma do mercado todo-poderoso. O fato de a humanidade mais lúcida e solidária iniciar o ano de 2007 realizando o 7º Fórum Social Mundial e desta vez em Nairobi, no coração da África, é uma profecia de que o ano novo pode, de fato, ser um tempo melhor e mais feliz para a humanidade e para o planeta, nossa pátria comum. Em todas as tradições espirituais, as pessoas mais abertas compreendem que a fé não pode contradizer ou se opor à cultura. Ao contrário, ela deve apoiar e aprofundar as intuições das culturas. Lê a sabedoria ancestral como inspiração do Espírito. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato .com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Comuna da terra: trabalho e dignidade Em ocupação rururbana (rural e urbana), sem-terra organizam atividades de modo coletivo e solidário
A
ssentamento Dom Tomás Balduíno, Franco da Rocha, São Paulo. O forte sol do meio-dia não amedronta Mauro da Silva e seus quatro colegas, que munidos de capacetes vermelhos de plástico, realizam a construção da casa de Sebastião de Araújo, conhecido como Índio pelos moradores do assentamento. O ofício de pedreiro é familiar tanto para ele quanto para Mauro, que antes de entrar para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) haviam trabalhado vários anos erguendo paredes de casas e prédios em cidades do Estado. Eles participam da construção em mutirão de 62 casas do assentamento, projeto iniciado em novembro de 2006 com apoio da Caixa Econômica Federal em conjunto com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e com previsão para término em dezembro de 2007. A construção das casas é uma entre várias atividades que os moradores do Dom Tomás Balduíno fazem coletivamente no assentamento, parte de uma experiên-cia chamada “Comuna da Terra”, modelo idealizado pelo MST que consiste em organizar assentamentos de semterra em pequenos núcleos, perto dos grandes centros urbanos. “Aqui a gente faz tudo em conjunto, e os nossos filhos convivem entre si e crescem e liberdade, diferente do que acontecia na cidade”, afirma Índio. Nascido em Santana do Ipanema, no sertão de Alagoas, como outros milhares de nordestinos, Índio veio para São Paulo em busca da “ilusão de que aqui era a terra do dinheiro”. Quando chegou, viu que a situação era diferente, e acabou indo parar na periferia de Francisco Morato, onde morou por 13 anos “trabalhando sem carteira registrada como servente de pedreiro”.
DO ASFALTO À TERRA Em 2001, participou de uma assembléia do MST e começou a pensar na possibilidade de retornar ao campo, “mas tinha medo de expor a família a um movimento que parecia ser tão radical. Naquela época eu achava que o movimento era aquilo que a mídia mostrava”. Sem contar para a esposa, começou a freqüentar as reuniões do movimento e, aos poucos, foi descobrindo que a luta do MST era bem diferente do que ele imaginava. Então resolveu contar para a mulher que participaria de uma ocupação, mas ouviu o seguinte: “Você está louco. Está desempregado, tem seis filhos e agora quer pegar a terra dos outros?” No entanto, quando conheceu o acampamento, Cleide se rendeu. “Vendi tudo que tínhamos em casa, e em três dias estava embaixo da lona”.
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA A mulher demorou três meses para sair do barraco, “eu tinha vergonha”, mas com o tempo foi se soltando, e passou a integrar o setor de educação do acampamento, depois passou a cultivar a
A produção das mudas que os assentados usam em seus lotes é toda orgânica “porque faz parte do princípio da comuna” e é feita no Viveiro Pedagógico Chico Mendes, onde há mudas de plantas, hortaliças e frutas como maracujá, mamão, maçã, abacate, graviola, laranja e mexirica feita com adubação verde vinda do curral do assentamento. Os moradores do Dom Tomás também construíram com a ajuda de agrônomos duas estufas onde produzem pimentão, que é vendido nas cidades de Cajamar e Franco da Rocha. “Na terra onde antes se plantava eucalipto, fazia-se desova de carros e cadáveres, hoje produzimos frutas e hortaliças orgânicas”, orgulha-se Mauro, que nasceu na cidade de Jacobina, na Bahia, e, assim como Índio, veio para São Paulo em busca de trabalho.
Fotos: Francisco Rojas
Tatiana Merlino da Redação
NOVA VIDA
A família de Índio e Cleide planta mandioca, milho e uva isabel e vendem junto com a produção de outros assentados numa feira na entrada do assentamento e para mercados das cidades vizinhas.
Depois de trabalhar num bar, como pedreiro, azulejista e pintor em São Paulo, Franco da Rocha e Jaraguá, o desemprego chegou junto com o alcoolismo na vida de Mauro. Certo dia, estava bebendo num bar quando viu militantes da frente de massa do MST fazendo trabalho de base. “Eu não sabia direito como era o movimento, mas estava com 42 anos, desempregado e sem ter o que dar de comer à minha filha. Não tinha nada a perder”. Depois do dia 20 de outubro de 2002, quando ajudou na ocupação do acampamento Irmã Alberta, a vida de Mauro começou a mudar. “Ofereceram-me cursos de política, de formação, e abracei a oportunidade. Em seis meses de MST, resgatei minha vida, minha dignidade e parei de beber”. Alguns meses depois da ocupação, Mauro foi chamado para participar de uma brigada de construção da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), onde ficou três meses. “Quando voltei ao campo, minha vida mudou radicalmente. Se na cidade tinha uma vida individualista, aqui é totalmente o contrário”, afirma.
Como o perfil dos assentados é predominante de origem urbana, muitos deles trazem a experiência de suas profissões anteriores para o campo, o que também contribui para a comunidade. A integração cultural com a cidade também é bem maior do que nos assentamentos convencionais, aponta a coordenadora do MST: “Muitos grupos urbanos vão conhecer o assentamento e levam experiências culturais interessantes, e há uma troca bastante produtiva”. O retorno ao campo também ajuda na conquista da dignidade de pessoas que migraram para a cidade em busca de trabalho e com o desemprego acabam indo morar em favelas, em condições muitas vezes subumanas. “Apesar da luta, das dificuldades, a qualidade de vida das pessoas muda muito. Elas dizem que estão realizando um sonho que elas tinham perdido e que agora estão recuperando”, diz Roseli.
Após o debate da necessidade de construção de espaços como os da comuna próximos às cidades, o MST começou a fazer ocupações em áreas próximas aos grandes centros. Hoje, a experiência concreta existe apenas no Estado de São Paulo. “No Rio de Janeiro e em Recife há discussões a respeito”. Na região da Grande São Paulo há o assentamento Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha, o acampamento Irmã Alberta, no município de Cajamar, um assentamento em Campinas, um assentamento e um acampamento em Ribeirão Preto, e três assentamentos na região do Vale do Paraíba. A área onde hoje está o assentamento Dom Tomás Balduíno pertencia ao governo do Estado de São Paulo e era improdutiva. A primeira ocupação foi feita em novembro de 2001 e as famílias foram despejadas no mesmo dia. A área foi novamente ocupada em 2002 e desapropriada para fins de reforma agrária.
Mauro da Silva, na foto acima, na janela de seu barraco, e Sebastião de Araújo, que finaliza a construção de uma parreira para erguer suas ramas de uva, estão entre as 62 famílias assentadas a alguns quilômetros do centro da capital paulista
horta medicinal e a fabricar xampu e sabonetes. Hoje, já na terra conquistada, ajuda no mutirão da construção das casas quando o marido não pode, “cozinho para os visitantes do assentamento,
Reforma agrária para trabalhadores urbanos A Comuna da Terra é uma experiência recente. Idealizada em 2000 por Delwek Matheus Junior, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), consiste na organização de assentamentos em pequenas áreas próximas às cidades para trabalhadores urbanos que já foram agricultores ou que podem vir a ser. De acordo com Roseli Paini, da coordenação estadual do MST, cerca de 80% dos assentados e acampados da comuna são provenientes da área urbana. “Muitos têm vocação agrícola, mas viviam na área urbana em decorrência do êxodo rural”. O objetivo do MST é fazer a reforma agrária, seja
participo de ocupações e tenho mais consciência política”. Ìndio também iniciou sua formação política embaixo da lona preta do acampamento Irmã Alberta. Apesar de ter freqüentado a escola apenas
com trabalhadores urbanos ou rurais; no entanto, segundo Roseli, o projeto da comuna defende a idéia de “recampezinação, que é o retorno do camponês à terra, na tentativa de ocupar os espaços que ficaram ociosos com o êxodo rural”. O que diferencia o assentamento convencional do da comuna é que o segundo está territorialmente próximo às cidades e o modo que se faz o corte dos lotes prioriza a sociabilidade, a integração entre as famílias e o desenvolvimento cultural, “de modo que as pessoas tenham mais convívio. Aquele corte convencional que a familia vivia num lote distante dificultava a relação, o lazer”, explica Roseli. Outro aspecto importante é em relação à produção e comercialização. A localização das comunas permite um tipo de cultura agrícola que garante renda num espaço menor de terra e também facilita o escoamento. “É mais fácil de fazer a venda direta, sem a figura
até o quinto ano do ensino fundamental, o homem de pele cor de barro discute a situação política do país com propriedade. “Sei mais da prática. Ainda preciso aprender mais de teoria”, diz, sorrindo.
do atravessador. Este é um dos nossos princípios: priorizar a venda direta para os consumidores. Em geral, nos assentamentos convencionais é muito difícil tirar o atravessador, mas nas comunas, como há um número maior de consumidores por perto, fica mais fácil evitálo.”, aponta Roseli. Como o transporte da mercadoria do assentamento para as cidades é mais barato, “eles podem oferecer um produto orgânico por um custo menor”, diz Roseli.
PRODUÇÃO ORGÂNICA A produção das comunas é por princípio orgânica e agroecológica, e varia de acordo com a vocação da região. Explica a integrante do MST: “No caso dos assentamentos de Franco da Rocha e Cajamar, por exemplo, há uma predominância da produção de hortifrutigranjeiro. Se a comuna estiver localizada no interior, a produção será mais regionalizada, e assim por diante”.
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NACIONAL MOBILIZAÇÕES
União contra a direita Em 2007, movimentos sociais procuram centralizar calendário de lutas para exigir mudanças Dafne Melo da Redação
U
nidade e mobilização. Essas são as palavras de ordem dos movimentos sociais para fazer frente aos esforços da direita em 2007. “A polarização que se deu no segundo turno das eleições nos deu a certeza de que a direita está organizada e vai se articular neste segundo mandato. Só nossa mobilização é capaz de fazer um embate”, avalia Nalu Faria, da Marcha Mundial de Mulheres (MMM). Marina dos Santos, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também acredita na articulação e união das elites econômicas. “Eles farão de tudo para manter a política econômica e fazer as reformas que julgam necessárias”, opina. Por outro lado, a polarização do debate no segundo turno, afirma Marina, também trouxe uma contribuição para a esquerda. “Ao colocar a questão da disputa de classe no centro da questão política, deu a possibilidade de os movimentos se reunirem, discutirem pautas em comum e também as contradições da nossa realidade e propor saídas para elas”, diz. Embora as mobilizações também tenham como objetivo pressionar para que o governo se sensibilize com as demandas dos movimentos, para Louise Lima e Silva, vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), a luta não se encerra no campo institucional. “A institucionalidade pode facilitar ou dificultar nossa luta, mas ela não acaba aí”, diz a estudante, para quem o ano de 2007 exigirá “mais ousadia” nas ações. “Movimento social deve ocupar o espaço que lhe pertence por direito e ir às ruas”.
mo essa, como a educação pública pode se viabilizar? Não adianta um projeto de reforma universitária que declara a educação pública como um direito se isso não vai se concretizar na prática”, avalia. Os outros temas que a UNE terá como
linha central de suas ações são: a reforma política, a democratização dos meios de comunicação, a questão da unidade latino-americana e o plebiscito da Vale. Entre março e maio, a entidade fará uma caravana que percorrerá todo o país
propondo discussões nas universidades sobre essas questões.
PLEBISCITO A atividade que concentrará os esforços dos movimentos no segundo semestre será o plebiscito
Calendário de Lutas Fevereiro Início da Campanha da Fraternidade da CNBB: “Vida e missão neste chão”. Março a Maio Caravana Nacional da União Nacional dos Estudantes (UNE). 8 de Março Mobilizações do Dia Internacional da Mulher Abril Mês dos Povos Indígenas; Dia 17 – Dia Internacional de Luta pela Reforma Agrária: Jornada de Lutas da Via Campesina
CALENDÁRIO Marina dos Santos explica que há a indicação de três datas principais para a mobilização conjunta dos movimentos: 8 de março, o Dia Internacional da Mulher; o mês de maio, com as comemorações pelo Dia do Trabalho; e a realização, em setembro, de um plebiscito em que a população será consultada sobre a anulação do leilão que privatizou a Companhia Vale do Rio Doce. Para março, Nalu Faria conta que as atividades da MMM serão feitas em cada Estado, com um eixo central que será definido no início do ano. Apesar da importância de unificar as lutas e garantir apoios, Nalu chama atenção que o 8 de março não pode ser descaracterizado. “É um dia de mobilização das mulheres, quando reivindicamos pautas específicas das mulheres, claro que incorporando uma visão feminista de questões mais gerais que também atingem as mulheres”, diz. Já as atividades de maio devem centrar foco na questão da política econômica. “A economia tem que crescer, mas distribuindo renda, desconcentrando a riqueza. A governabilidade de Lula depende do respaldo popular também, não só do Congresso”, analisa Dom Demétrio Valentim, bispo de Diocese de Jales (SP) e membro da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “O país não tem como continuar com esse modelo de concentração. Só o que cresce é o setor financeiro. Precisamos de uma política econômica que resolva os principais problemas da população brasileira”, afirma Marina dos Santos. Para a UNE, explica Louise, mudança no plano econômico é um dos temas centrais que estará presente nas discussões e mobilizações da entidade em 2007. “Com uma política econômica co-
sobre a anulação do leilão que privatizou – há 10 anos – a Companhia Vale do Rio Doce. Dom Demétrio Valentim explica que, além de acumular forças para a campanha pela reestatização da Vale, o tema permite uma discussão pedagógica com a população. “Temos que questionar o que o Brasil faz com suas riquezas naturais, como cuida de seu patrimônio. A rigor, bens naturais são bens públicos e não podem ser privatizados”. Nessa mesma linha, a CNBB terá como tema da Campanha da Fraternidade de 2007 – a Amazônia. A ação, batizada de “Vida e nissão neste chão” se inicia na Quaresma (40 dias antes da Páscoa), mas se estende por todo o ano. A CNBB coordena a campanha, elaborando materiais que são usados como base das discussões em escolas, associações de bairros, pastorais etc. “O tema também é pedagógico e, por ter importância mundial, permite pensar o Brasil integrado ao contexto global, pensando como o país se comporta nessa dinâmica”.
Maio Mobilizações por mudança na política econômica. Setembro Grito dos Excluídos: Plebiscito sobre o anulação do leilão da Vale do Rio Doce.
Assembléia Popular como instrumento de aglutinação Criada em 2005, a Assembléia Popular é um dos fóruns de articulação dos movimentos sociais para unificar as lutas em 2007. Em entrevista ao Brasil de Fato, Paulo Maldos, da secretaria nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da coordenação da Assembléia, fala sobre o processo de formação da entidade, que tem como principal objetivo articular propostas para um projeto popular para o país. Brasil de Fato – Como foi formada a Assembléia Popular? Paulo Maldos – A Assembléia foi se constituindo a partir de várias vertentes. Primeiro, o processo da Campanha Contra a Alca e das atividades organizadas pelo Jubileu Sul, como a luta contra a militarização e da auditoria da dívida externa. Do outro lado, as semanas sociais brasileiras da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que teve sua 4º edição este ano e foca em questões mais estruturais do país, os principais conflitos, problemas,
encruzilhadas e projetos. Paralelo a essas duas redes em movimento, havia uma frustração gerada pelo governo Lula que na questão macroeconômica é uma repetição bastante acentuada do governo Fernando Henrique Cardoso. A conjunção de muitos movimentos se mobilizando, mas num cenário político frustrante, foi criando a convicção de que era necessário aglutinar forças, para que mostrassem sua cara nesta conjuntura. BF – Quando se deu essa unificação? Maldos – Em dezembro de 2004, após uma série de seminários em Brasília, foi lançada a proposta de unificação. Primeiro, se unificou a coordenação da Semana Social e do Jubileu Sul. Aí começaram a se misturar as águas. A partir disso, foi feito um planejamento conjunto que desembocou na assembléia realizada em outubro de 2005. A tarefa foi unificar nossos projetos e idéias que estamos amadurecendo há décadas. Alçar essas propostas a um patamar superior no sentido de sistematização, de clareza, objetividade e novidade. Para se contrapor a essa mediocridade no governo. BF – Como a Assembléia articula as agendas dos movimentos? Maldos – A Assembléia não pre-
tende nem substituir nem competir com a agenda dos movimentos. A linha central é estimular a participação na agenda dos movimentos, para que haja um intercâmbio. Cada movimento apóia a luta um do outro, todo mundo fortalece a agenda de todo mundo. Claro que há um limite pra isso, não dá para todo mundo participar de tudo, mas um início é sensibilizar os movimentos da luta um dos outros, para criar uma cultura mais aberta e menos centralizada em questões específicas. BF – Como se dá a interlocução com o governo? Isso é uma preocupação? Maldos – O que mais interessa é constituir um ser político que reúna o máximo possível a diversidade social e étnica presente na sociedade brasileira. Constituir esse movimento, fortalecendo e qualificando suas propostas, com alternativas viáveis para serem implementadas. Como conseqüência, há o diálogo com o governo, mas o foco principal é a autonomia, a capacidade de produção de propostas que possam ser apresentadas para o conjunto da sociedade e, conseqüentemente, para o Estado. Foi simbólico o debate do último dia da assembléia em 2005. Questionou-se se haveria espaço para o go-
verno ir lá falar. O consenso foi pelo “não”. Eles tinham que ir lá para escutar, não para falar. Não é para irem no final e assumirem o protagonismo, que é dos setores populares. Então, quem falou no final? Catadores de papel, uma jovem sem terra, um negro. E os representantes do governo ficaram sentadinhos lá escutando. Muitos ministros circularam, mas viram que ali não era lugar de discurso. BF – Os movimentos estão centrando esforços na questão da Vale, como vai ser o plebiscito? Maldos – Não decidimos os moldes em que vai se dar, mas o certo é que há um grande acúmulo com os plebiscitos da Alca e da dívida externa. O que queremos discutir é: qual o papel do setor privado? Como a economia atinge a vida das pessoas? A questão da Vale vai puxar o fio para discutirmos um monte de temas. Primeiro, discutir o processo fraudulento que foi o leilão, depois discutir o Estado brasileiro. Pra que ele serve, a quem serve? Quem controla as decisões? Onde estão os recursos, para onde são destinados? O que é patrimônio público? Na verdade, o assunto é uma porta de entrada para discutir a função do Estado, seu caráter, sua democratização. (DM)
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NACIONAL PERSPECTIVAS REVOLUCIONÁRIAS Ricardo Stuckert/PR
O segundo mandato de Lula, pelo prisma da luta de classes Para o cientista político Carlos Nelson Coutinho, os marxistas precisam rever seus conceitos, para entender os problemas atuais que enfrentam João Alexandre Peschanski da Redação
ção dos primeiros passos no sentido do socialismo.
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BF – O que ocorreu efetivamente? Coutinho – Ocorreu não só a opção pela persistência de uma política econômica abertamente neoliberal, liderada de resto por um banqueiro, mas a adoção de métodos de governabilidade de causar inveja aos políticos mais corruptos da história brasileira. O abandono do socialismo como proposta estratégica e a adoção de procedimentos como o mensalão são duas faces da mesma moeda. A conseqüência disso foi que, longe de abrir uma nova era para o Brasil, como tantos de nós esperávamos, tivemos um terceiro governo da era Fernando Henrique Cardoso, como bem disse o sociólogo Francisco de Oliveira. E com um agravante: a era FHC, em seus dois primeiros governos, encontrou uma forte resistência no PT e nos movimentos sociais, o que dificultou em muito a adoção de uma política abertamente neoliberal. No governo Lula, essa resistência se enfraqueceu, o que tornou mais fácil a implementação de várias contra-reformas, como, por exemplo, a da Previdência.
paciência revolucionária. Para o cientista político Carlos Nelson Coutinho, é essa a virtude que os marxistas brasileiros mais têm que exercitar. Crítico em relação ao primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, cético em relação ao segundo, aposta na intensificação da organização popular para fortalecer a luta por uma sociedade mais justa. O socialismo, para não ter medo de usar a palavra. Em entrevista ao Brasil de Fato, Coutinho, um dos principais teóricos brasileiros do marxismo, destrincha as diferenças entre a luta de classes no século 19 (o de Marx) e o do século 21 (após o colapso da União Soviética). Deixa seu recado: os marxistas precisamos atualizar nosso arsenal conceitual. Brasil de Fato – Num tipo de balanço, qual o impacto do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva para a esquerda? Carlos Nelson Coutinho – O balanço me parece claramente negativo. Por mais de uma década, a esquerda brasileira se empenhou em levar Lula à Presidência da República. E não tanto por Lula, por ser ele um ex-retirante e um operário, mas porque ele encarnava um projeto de transformação radical da sociedade brasileira, que tinha no Partido dos Trabalhadores (PT) e em vários movimentos sociais a ele ligados uma forte base social de apoio. Esse projeto foi abandonado não só depois da chegada ao governo, mas já antes, na campanha eleitoral. A famosa “Carta aos brasileiros” já anunciava uma clara tomada de distância em relação à proposta transformadora que caracterizou o PT, a Central Única dos Trabalhadores e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde suas origens. Muitos de nós, eu inclusive, fingimos ignorar isso e continuamos empenhados na campanha e, de certo modo, mesmo depois da vitória, ainda nos mantivemos por algum tempo confiantes, com a idéia de que o governo Lula seria efetivamente reformista, no sentido forte da palavra. Não exigíamos, é claro, que ele tentasse estabelecer o socialismo por decreto, o que, de resto, é impossível. Mas esperávamos por reformas de estrutura — como, entre outras, a reforma agrária —, que mudassem a correlação de forças em nosso país e abrissem caminho para o aprofundamento da democracia, para a consolida-
A estratégia das classes subalternas no século 21, inclusive no Brasil, deve ser o reformismo revolucionário. Não devemos temer as reformas, mas buscar dirigilas sempre no sentido da superação da lógica do capital BF – Os movimentos sociais, no segundo turno do pleito presidencial, decidiram apoiar Lula, alegando que a eleição de Geraldo Alckmin era inaceitável e que poderiam fazer uma campanha de conscientização contra o neoliberalismo. Essa decisão foi correta? Coutinho – Decerto, no segundo turno, colocou-se uma opção entre a direita aberta, representada por Alckmin e pelas forças que o apoiavam, e a candidatura Lula, que continuava a significar para muitos uma alternativa popular. Foi importante a denúncia da privatização, até porque ela pôs Alckmin na defensiva e contribuiu fortemente para sua derrota. Mas me pergunto: a denúncia das privatizações
representou o anúncio de uma inflexão na política neoliberal praticada por Lula e pelo PT em seu primeiro governo ou foi apenas uma hábil manobra eleitoral? Sou, no mínimo, cético quanto à possibilidade dessa inflexão. Mas torço para que o segundo governo Lula desminta o meu ceticismo: um desmentido que se tornará menos improvável se os movimentos sociais resistirem à tentação da cooptação e colocarem claramente suas demandas, pressionando o governo a adotá-las. BF – Organizar a população. Esse é o desafio dos movimentos sociais, nesse segundo mandato. No marxismo, a resposta que foi dada para isso é estimular a consciência da classe proletária. No Brasil, ainda se pode falar em proletariado? Coutinho – Marx definiu o proletariado como o segmento social que, destituído dos meios de produção, é obrigado a vender sua força de trabalho ao capital para sobreviver. Em sua época, essa caracterização valia sobretudo para os operários fabris. Hoje, podemos dizer que não são poucos os trabalhadores do setor de serviços, cada vez mais submetido à lógica do capital, que se enquadram nessa caracterização. São proletários também, evidentemente, os assalariados agrícolas. É claro que trabalhadores desse tipo continuam a existir no Brasil. Porém, por mais que ampliemos o conceito de proletariado, não creio que dele façam parte o sem-terra de Pernambuco, a dona de casa de uma favela carioca ou o estudante que luta pelo passe livre, por exemplo. Os sem-terra não são proletários, nem lutam para se tornar proletários. São pessoas que aspiram a se tornar camponeses parcelares ou cooperativados. É hoje muito grande a variedade daqueles que são excluídos e marginalizados pela lógica do capital. Creio que Antonio Gramsci captou bem isso, já em seu tempo, quando criou a expressão classes ou grupos subalternos. Trata-se do conjunto dos segmentos sociais que não participam do poder e que tendem assim a se opor à permanência da lógica capitalista. Sem abandonar a importância atual do proletariado na constituição de um sujeito revolucionário, creio que devemos dar a máxima atenção ao universo plural formado pelo conjunto das classes subalternas. BF – O que diferencia a luta de classes, no século
O governo de Lula foi um terceiro mandato de FHC, diz o cientista político Carlos Nelson Coutinho
19, em Paris, e a luta de classes no Brasil, no século 21? Coutinho – No século 19, pelo menos até seus primeiros dois terços, valia aquilo que Marx e Friedrich Engels disseram em 1848 no Manifesto comunista: o capitalismo não permite nenhuma melhora na condição de vida dos trabalhadores e, assim, numa revolução, eles nada têm a perder a não ser suas cadeias. Com a legalização dos partidos operários e dos sindicatos, com a universalização do sufrágio universal, criaram-se novas condições para a luta de classes. Importantes conquistas dos trabalhadores tornaram-se possíveis ainda no quadro do capitalismo. Marx já dizia, em 1863, que a fixação de limites legais para a jornada de trabalho havia sido uma vitória da economia política do trabalho contra a economia política do capital. Muitas outras conquistas desse tipo foram asseguradas já no final do século 19 e, sobretudo, no século 20, com o Estado de bem-estar social. Todas essas conquistas são o resultado da luta de classes, nenhuma delas resultou da “bondade” dos capitalistas. Com o neoliberalismo, com o enfraquecimento dos subalternos na correlação de forças entre as classes, o capitalismo vem tentando, em muitos casos com êxito, desmantelar essas conquistas. Sabemos assim, cada vez mais, que não bastam as reformas. Elas só podem ser asseguradas e aprofundadas se forem encaminhadas no sentido de superar a lógica do capital. Por isso, creio que a estratégia das classes subalternas no século 21, inclusive no Brasil, deve ser o reformismo revolucionário. Não devemos temer as reformas, mas buscar dirigi-las sempre no sentido da superação da lógica do capital. BF – A alienação impede a formação da consciência de classe. Coutinho – Só posso aqui caracterizar muito sumariamente o conceito de
alienação, um dos mais complexos do instrumental teórico marxista. Ocorre alienação quando os produtores das riquezas, materiais e culturais, não se identificam com seus produtos, não os reconhecem como fruto de sua própria atividade. Há um belo poema de Vinicius de Moraes, O operário em construção, que evoca muito bem esse fenômeno: “Era ele que erguia casas / onde antes só havia chão. / Como um pássaro sem asas / ele subia com as casas / que lhe brotavam da mão. / Mas tudo desconhecia / de sua grande missão”. Vinicius descreve o processo que leva esse operário a superar sua consciência alienada e a ver “em tudo o que fazia / o lucro do seu patrão./ E em cada coisa que via / misteriosamente havia / a marca da sua mão. / E o operário disse: Não!”.
Como dizia Gramsci, o intelectual sabe, mas não sente, enquanto o subalterno sente, mas não sabe. É da integração entre saber e sentimento que surge a consciência desalienada BF – Nesse processo de desalienação do operário, do subalterno, qual o papel do intelectual? Coutinho – Ele não traz de fora a consciência “verdadeira”, como ainda supunha Vladimir Lênin. Ele dialoga com o subalterno e, ao mesmo tempo em que aprende com ele, ajuda-o a superar sua falsa consciência. Como dizia Gramsci, o intelectual sabe, mas não sente, enquanto o subalterno sente, mas não sabe. É da integração entre saber e sentimento que surge a consciência desalienada. Estamos diante daquela consciência que, sempre segundo Vinicius, transforma “em operário
construído / o operário em construção”. BF – Assumir-se revolucionário no Brasil hoje é quase ser visto como animal de circo. Após a queda do muro de Berlim e a crise do PT, o que é ser marxista hoje? Coutinho – Nem sempre ocorre, mas às vezes os animais de circo devoram os domadores e até os donos do circo... Hoje, como sempre, ser marxista significa um duplo compromisso: com a compreensão crítica da realidade, em suas contradições e tendências, mas também com o empenho para transformá-la. A necessidade dessa compreensão crítica obriga os verdadeiros marxistas a renovar permanentemente seus conceitos. Temos, por exemplo, de abandonar uma velha concepção de revolução, concebida com um assalto ao poder que se daria necessariamente em conseqüência de uma insurreição. Ser revolucionário hoje significa ter a paciência para travar uma longa batalha, uma luta cotidiana pela conquista da hegemonia, por reformas estruturais que apontem no sentido do socialismo. Mas, antes de mais nada, ser revolucionário hoje nos impõe a mesma missão que, segundo Carlos Drummond de Andrade, cabia ao poeta: “O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta / um verme”.
Quem é Professor do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Nelson Coutinho é formado em filosofia e faz pesquisas em ciência política. Entre outros livros, é autor de Marxismo e política (Cortez, 1996) e Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Civilização Brasileira, 1999).
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INTERNACIONAL PALESTINA
Faixa de Gaza, um desastre humanitário Igor Ojeda da Redação
Naughton321
O fim do repasse de verbas e os ataques militares israelenses criaram uma caos social na região sem os recursos repassados pela União Européia e pelo próprio governo israelense.
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CESSAR-FOGO
Em Londres, judeus contrários ao Estado de Israel pedem o fim do embargo à Palestina, que tem feito com que as pessoas morram de fome
causaram a morte de mais de 450 palestinos – sendo cerca de 300 civis – e ferimentos em mais de 1.500. Em 8 de novembro, uma ofensiva na cidade de Beit Hanoun matou 19 civis, inclusive mulheres e crianças. “Nesse mesmo período, as tropas israelenses levaram a cabo a destruição sistemática de infra-estrutura palestina, incluindo a destruição de seis pontes na Faixa de
Em meados de novembro, a jornalista Laila El-Haddad, juntamente com seus pais e seu filho Yousuf, de dois anos e nove meses, deixou os Estados Unidos rumo à Faixa de Gaza. Voltavam de uma viagem de visita ao pai de Yousuf, Yassine, refugiado palestino que Israel não permite retornar a sua terra natal. Alguns dias depois, 20 novembro, os quatro estavam na cidade egípcia de Al-Arish, distante cerca de 50 quilômetros da divisa com a localidade palestina de Rafah. Só que a proximidade com o lar não foi nenhum alento. A fronteira está sendo controlada pelo governo israelense, que a abre quando bem entende. Por 16 dias, Laila e sua família viveram a angústia da espera sem fim. “Devido ao fato de que a fronteira agora só abre por muito poucos dias e em horas limitadas (foram somente 36 horas em novembro), há uma grande quantidade de pessoas esperando para cruzá-la. Elas têm que esperar por ordens israelenses transmitidas para os monitores europeus para que possam vir à divisa. Só podem cruzar algumas centenas por vez em ônibus que as transportam de um lado para o outro”, descreve Laila, em entrevista ao Brasil de Fato por correio eletrônico. Ela estima que entre três mil e cinco mil pessoas estavam também nessa situação (Laila ainda não havia conseguido chegar a Gaza quando
projéteis. “O que antes era bombardeio para causar terror, realmente passou a ser uma matança proposital. Não dá para dizer que os militares não conhecem as características técnicas de suas armas”, denuncia. Somando a falta de recursos à ofensiva israelense, a situação social na Faixa de Gaza tornou-se caótica. “Hoje, entre 70% e 80% das pessoas sofrem de trauma-
tismos sérios, 70% não têm acesso adequado à água. Há um ano atrás, eram 30%. Quase 80% da população está vivendo com menos de dois dólares por dia”, explica a historiadora. Como, apesar de ter retirado seus colonos da região, Israel controla as fronteiras (veja matéria abaixo), o espaço aéreo e marítimo de Gaza, a economia local não tem capacidade de se desenvolver
Tensões internas agravam situação
O dia-a-dia da Faiza de Gaza é retratado no blog da jornalista Laila El-Haddad
respondeu às perguntas da reportagem). Do outro lado, querendo sair, mais alguns milhares. A situação ainda fica pior com a falta de informações. Ninguém sabe dizer quando ou se a passagem será liberada. “A única certeza é a incerteza. A espera pode levar dias, semanas, até meses e quando a fronteira finalmente se abre, normalmente é temporário, de forma completamente abrupta e arbitrária”, conta. Os palestinos, diz Laila, deixam a Faixa de Gaza pelos mais variados motivos. Muitos vão em busca de tratamentos médicos complicados que não conseguem em sua terra, como cirurgias de cérebro e olhos. Procuram tratamento no Egito ou na Jordânia, com a ajuda do Ministério da Saúde. Outros viajam para estudar, trabalhar ou visitar suas famílias. Laila resume o drama de quem passa por uma situação dessa: “Significa padecer no limbo por semanas enquanto o mundo per-
manece relativamente em silêncio – e até cúmplice – e enquanto Gaza se torna metodicamente uma prisão. Muitos ficam sem dinheiro e precisam dividir abrigos miseráveis (um quarto custa 2,50 dólares por noite – 80% da população sobrevive com menos de 2 dólares por dia). Para os palestinos em Gaza esperando para sair e conseguir tratamento, às vezes é também uma questão de vida ou morte, de perder sua visão ou não, enquanto você espera por qualquer palavra sobre a abertura da fronteira”. (IO) Blog
Uma prisão a céu aberto
Gaza, a redução de 45% na produção de energia e a destruição de 73 casas”, afirma Yahni. Arlene lembra ainda que Israel já tinha a prática de lançar bombas numa faixa de fronteiras que considerava zona de segurança. Agora, o exército aproximou os lançadores, fazendo com que populações civis passassem a ficar dentro da margem de erro desses
Blog
população da Faixa de Gaza, na Palestina, “vive uma situação de desastre humanitário”. Quem faz essa contundente afirmação é a historiadora brasileira Arlene Clemesha, especialista na região. Há anos sofrendo com a ocupação israelense, a condição de vida dos palestinos se deteriorou ainda mais a partir da vitória eleitoral do Hamas, nas eleições legislativas de janeiro de 2006. Apesar da escolha ter sido feita de forma democrática, a União Européia (UE) suspendeu os recursos destinados à Autoridade Nacional Palestina (ANP), previstos nos acordos de paz de Oslo (Noruega), de 1994, em virtude de o partido vencedor não reconhecer o Estado de Israel. Além disso, o próprio governo israelense parou de repassar à ANP cerca de 50 milhões de dólares mensais provenientes de impostos pagos pelos próprios palestinos. Para piorar, “desde junho, à crise social e econômica se soma o impacto da violência militar por parte de Israel”, lembra o filósofo israelense Sergio Yahni. No dia 25 desse mês, grupos palestinos seqüestraram o soldado do exército de Israel Gilad Shalit, de 19 anos, dando o pretexto de que o governo israelense precisava para lançar uma ampla ofensiva contra a Faixa de Gaza. Até 26 de novembro, data em que o primeiroministro Ehud Olmert e o presidente da ANP, Mahmoud Abbas, estabeleceram um cessar-fogo, os ataques
Laila e seu filhoYousuf — 16 dias na fronteira para voltar para casa
Além de serem obrigados a encarar a ocupação israelense, os palestinos enfrentam um grave acirramento das tensões entre os os grupos Fatah e Hamas. O primeiro detém a Presidência da Autoridade Nacional Palestina (ANP), enquanto o segundo controla o Parlamento e mantém como primeiro-ministro Ismail Haniyeh. Desde a vitória eleitoral do Hamas, em janeiro de 2006, os dois partidos vêm tentando formar um governo de coalizão, sem sucesso. O confronto mais recente teve início em meados de dezembro, quando três filhos de um membro das forças de segurança do Fatah foram mortos, supostamente por membros do Hamas. Desde então, integrantes dos dois grupos se enfrentam com assassinatos, trocas de tiros, atentados e seqüestros. No dia 16 desse mês, o presidente da ANP, Mahmoud Abbas – também conhecido como Abu Mazen –, anunciou a antecipação das eleições palestinas. O Hamas disse que não irá participar. O filósofo israelense Sergio Yahni explica que as tensões entre o Hamas e o Fatah são, na realidade, conseqüência de dois projetos político-econômicos diferentes: um representado pelo presidente da ANP e as organizações de centro-esquerda, outro defendido majoritariamente pelo Hamas e as organizações de esquerda. “O projeto de Abu Mazen diz que o futuro do povo palestino es-
Para o Yahni, Israel não tem nenhuma intenção de avançar no projeto de paz. Segundo ele, Olmert “quer que Abbas leve a cabo um golpe militar na ANP – tendo como conseqüência uma guerra civil palestina – para então reiniciar as negociações”. De acordo com o filósofo, a derrota israelense no Líbano (em agosto de 2006) desgastou o governo e o exército frente à opinião pública local e ao governo dos EUA, seu principal financiador e apoiador. Por isso, Olmert ficou sem o crédito político necessário para seguir com os planos de Ariel Sharon – seu antecessor, afastado no fim de 2005 por motivo de doença. “A violência continua por inércia, uma vez que o governo não tem nada a propor”, completa. Já Arlene lembra que um cessar-fogo na Faixa de Gaza nunca dará certo enquanto o governo israelense mantiver a expansão de suas colônias, a construção de muros e os assassinatos de palestinos na Cisjordânia, outra região na teoria sob jurisdição da ANP. Tais práticas parecem estar muito longe de acabar. “Israel não poderia simplesmente ocupar toda a Cisjordânia e expulsar a população. Nem incorporar essa população, porque em poucos anos, haveria mais palestinos do que judeus, e o Estado de Israel deixaria de ser judeu. A opção é apertar a população palestina dentro de bolsões que, somados, virão a ser o Estado palestino. Aí Israel vai dizer: ‘estamos criando o Estado Palestino’, diz.
tá ligado às potências ocidentais e somente essas são capaz de garantilo. No interior da sociedade palestina, Mazen representa politicamente uma burguesia que se enriqueceu como subcontratante da ocupação israelense. A centro-esquerda palestina representa uma nova classe média que nasceu do assistencialismo europeu e que trabalha para organizações não governamentais (ONGs) locais e internacionais”, afirma. Já o Hamas e as forças de esquerda, completa Yahni, propõem criar um regime econômico e político independente de Israel, Europa e Estados Unidos, mas ligado a alguns países do Oriente Médio, como Irã e Síria. No entanto, para a historiadora brasileira Arlene Clemesha, especialista na região, apesar de realmente existirem tais diferenças políticas, estas são há muito tempo instigadas por Israel. “O Hamas, logo depois que surgiu, começou a receber auxílio financeiro de Israel, porque era uma alternativa de oposição ao Fatah, de Iasser Arafat, figura que tinha uma hegemonia muito grande. Em janeiro de 2006, foi um grande susto a vitória do Hamas, porque o governo israelense queria que ele tivesse uma boa aceitação, mas que não ganhasse”. A partir de então, o Fatah começou a receber armas, com a ajuda de Israel. “Só passou porque teve apoio, consentimento”, denuncia Arlene. Segundo ela, em uma situação de caos social em que vivem hoje os habitantes da Faixa de Gaza, “quando já não há mais emprego, comida, água, luz”, as condições são muito mais propícias para uma guerra civil. (IO)
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INTERNACIONAL
FRANÇA
Hughes Leglise-Bataille/Creative Commons
Nas periferias francesas, a falta de moradia, o desemprego e o sentimento de humilhação social se tornam um material explosivo para levantes de jovens
A raiva das periferias continua Mais de um ano após as revoltas que se espalharam por mais de 200 cidades da França, o Estado não consegue apresentar soluções para as causas da revolta Cyrus Afshar e Fernanda Campagnucci de Lyon (França)
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ovembro de 2006. Dezenas de pessoas descem do metrô na última estação de Lyon, já no município de Venissieux, na periferia. Cinco policiais cercam dois homens, aleatoriamente – um negro, e um árabe. Os dois são obrigados a levar as mãos à cabeça, virados para a parede. Após dez minutos de averiguações – ligações para a central de policia, documentos, passaporte – Pedrito, o rapaz angolano de 25 anos, é liberado. Ele trabalha, tem sua documentação de acordo com a lei e mora na França há 12 anos. “É insuportável. Hoje é domingo, e já fui parado duas vezes só no metrô. Nos dias de semana, chego atrasado ao trabalho por causa disso, também. Se eu sei por que eles me param? Porque sou negro”. Outubro de 2005. Os adolescentes Zeyd e Bouna morrem eletrocutados, em Clichy-sous-Bois, periferia parisiense. Os dois amigos voltavam de um jogo de futebol e se esconderam em um transformador quando a viatura de polícia, mais uma vez, vinha fazer um controle de identidade. A morte dos adolescentes foi o estopim de uma das maiores revoltas que a periferia da França já conheceu: durante três semanas, insurgências se espalharam por mais de 200 cidades. Mais de um ano depois, as causas da revolta permanecem. “E outras explosões de violência ainda estão por vir, pois os problemas estruturais ainda não foram resolvidos”, afirma Thomas Sauvadet, sociólogo especialista em políticas urbanas. A dificuldade que os jovens da periferia têm para encontrar emprego é uma dessas causas estruturais, explica o sociólogo. Segundo as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (Insee), os bairros mais
pobres apresentam taxas de desemprego maiores que as encontradas nos grandes centros. Em Reynerie e Bellefontaine, por exemplo, 54,4% dos jovens estão desempregados – enquanto na cidade central, Toulouse, a taxa é de 28,6%. Em Nantes, 28,6% dos homens entre 15 e 24 anos também estão sem emprego, enquanto que em Bellevue, cidade periférica, a porcentagem chega a 42,1%. Bujar Selimi faz parte dessa estatística. Refugiado de Kosovo, ele vive em Minguettes, bairro da periferia de Lyon conhecido por ser palco de uma das primeiras revoltas de jovens, em 1981. A fama de Minguettes pesa na hora das entrevistas de emprego, com as respostas já esperadas pelos jovens: “mora em Minguettes? Bairro quente... Entraremos em contato”. Mas o telefone nunca toca. Apesar das cinco línguas que fala, Bujar também
não conseguiu o sonhado diploma. De acordo com relatório do Observatório de Zonas Sensíveis, a falta de qualificação atinge de 30% a 40% dos jovens dos bairros da periferia. A média nacional, por sua vez, é de 17,7%. “Quando terminei o colégio, me imaginava com 25 anos de terno, gravata e diploma. E hoje, eu me encontro de jeans e mais nada”, conta Bujar.
MORTOS POR NADA Além da pobreza que chama de objetiva – falta de moradia, emprego – Thomas Sauvadet aponta a pobreza “relativa” como outra causa das revoltas na periferia. Para o sociólogo, as desigualdades sociais e de padrão de consumo geram tensão: “o salário mínimo pode ser aumentado em 400% que o problema não será resolvido. Como ser pobre em uma sociedade materialista e consumista? Os jovens têm necessidade
de um tênis de tal ou tal marca, e isso é uma realidade nas escolas da periferia”. Sauvadet explica que não há nenhuma intenção da parte do governo ou da oposição de mudar esse modelo sociocultural. Ao contrario, a resposta que a atual administração tem dado às tensões é muito mais superficial: a repressão. A polícia de proximidade, iniciativa do governo anterior (Lionel Jospin, 1997-2002), era uma tentativa de diminuir os confrontos entre os policiais e os moradores dos bairros pobres, que se sentiam injustiçados com os controles de identidade truculentos. Trata-se de uma polícia que circula a pé, conhece os moradores e promove algumas atividades em conjunto com a população, como torneios de futebol. Considerada como “ineficaz”, por não ser repressiva, essa polícia foi suprimida por Nicolas Sarkozy, atual ministro do
Interior, e substituída pelo reforço das Brigadas Anticriminamidade. Evelyne Sire-Marin, juíza e integrante da Liga de Direitos Humanos, considera a medida inócua: “eles circulam apenas em viaturas e abordam os jovens de forma truculenta. Os controles de maneira sistemática só aumentam essa tensão”, afirma. Em Clichy-sous-Bois, a revolta também aumentou após a morte dos dois adolescentes. Os nomes de Zyed e Bouna foram pichados nos muros por todo o bairro, ao lado da frase “mortos por nada”. Um ano depois, os moradores organizaram uma exposição para homenagear os jovens. Fotos do cotidiano e da história da cidade, desenhos de crianças e palavras de indignação enchem as paredes. “Estão todos nervosos, mais de um ano depois”, diz um homem de 40 anos, que cuidava da exposição. Ele olha um grupo de jovens do
“A partir de agora, vocês não podem nos ignorar” Seiscentas pessoas marcharam em Paris, em 28 de outubro de 2006, no aniversário de um ano da morte de Zeyd e Bouna. A manifestação foi organizada pela associação Associação Coletivo Liberdade Fraternidade e Igualdade Juntos e Unidos (Aclefeu, cuja sigla, pronunciada em francês, também quer dizer “basta de fogo”). Criada por moradores de Clichysous-Bois após as revoltas da periferia, a Associação colheu as opiniões de mais de 20 mil pessoas em 120 cidades. O resultado foi a sistematização de um “caderno de condolências” com 114 propostas, divididas em onze capítulos como “emprego”, “saúde”, “discriminações”, “habitação” e “práticas policiais”. “Queremos ser sujeitos de nossa historia, e temos muito a dizer”, afirma Benyoussef Bouzidi, marroquino imigrado há 25 anos e um dos fundadores da Aclefeu. Após a marcha, o caderno foi entregue aos deputados e senadores, que receberam os militantes. Na carta direcionada aos parlamentares, a mensagem era clara: “Senhoras e senhores, a partir de agora vocês não podem nos ignorar”.
AGRESSÕES Para Bouzidi, o caderno é um instrumento de
Arquivo
Na periferia de Marselha, um ônibus foi incendiado e uma jovem de 26 anos ficou gravemente ferida. Após o episódio, Nicolas Sarkozy defendeu a redução da maioridade penal, já que os suspeitos detidos eram menores de 18 anos. Apesar da grande repercussão e do clima de tensão propagado pela mídia semanas antes do aniversário, os casos de destruição e queima de carros foram isolados.
CONTRA A VIOLÊNCIA
Entre janeiro e outubro de 2006, 2.458 policiais foram agredidos nos bairros pobres da França, de acordo com dados do governo
democracia participativa, em oposição às práticas violentas de incêndio de carros ou agressão de agentes do Estado. De fato, um ano após as revoltas, bombeiros, carteiros e funcionários das companhias de eletricidade e de gás (EDF-GDF) também foram alvo da revolta das periferias. Segundo relatório da Confederação Geral do Trabalho (CGT), 40 agentes da EDF e GDF foram agredidos em 2005. Mas, de acordo com Thierry Gerber, autor do estudo, “na verdade, em média 100 agentes são feridos por ano, mas não declaram, pois a violência já
está banalizada”. Dados do Ministério do Interior revelam também que 2.458 policiais foram agredidos entre janeiro e outubro de 2006 – uma média de 14 por dia. Em 13 de outubro, em Epinay-surSeine, na periferia de Paris, três policiais da Brigada Anticriminalidade foram encurralados e agredidos por cerca de 30 a 50 pessoas. Um policial perdeu dois dentes e recebeu 30 pontos no maxilar. Fatos semelhantes aconteceram no dia seguinte, na cidade de Massy e em Ris-Orangis. No aniversário das revoltas, as cenas de ônibus queimados se repetiram.
A Aclefeu também aproveitou a semana em que as revoltas completaram um ano para lançar uma campanha pela inscrição dos jovens nas listas eleitorais (na França, o voto é facultativo e os cidadãos que querem votar têm que se inscrever antes do pleito). “Votar é exisitir. Não podemos deixar os extremistas de direita ganharem”, diz Bouzidi. Para o sociólogo Thomas Sauvadet, a iniciativa é importante, mas o problema é a falta de opção, com a “fuga” de partidos politicos e sindicatos das periferias. “As pessoas não sabem para quem votar. Nas periferias, a abstenção pode chegar até a 50%, e, entre os jovens, 70%. É preciso que eles tenham uma convicção politica e que eles sejam representados. Aí, sim, eles irão votar”. (CA e FC)
lado de fora, e desaconselha qualquer aproximação: “ontem os policiais feriram um vizinho meu, nos olhos. Não têm como se acalmar”. Para ele, que tem filhos adolescentes, os jovens da periferia não têm nenhuma opção de lazer. O transporte para Paris é caro, e os cinemas e boliches não existem mais, como em sua época. “E se eles tentam ir ao teatro, em um bairro melhor, há pessoas que abrem a janela e gritam: seus árabes, o que vocês fazem em meu bairro?”. Na mesma tarde em que ele contava sua história, um cinegrafista de um canal de televisão foi agredido em Clichy-sous Bois. Bombeiros, carteiros e funcionários das empresas de gás e eletricidade também se tornaram alvos da raiva (veja texto abaixo).
GIGANTES NEGROS Desde 2002, quando Nicolas Sarkozy assumiu o Ministério do Interior, nove leis sobre delinqüência foram aprovadas. Um novo projeto tramita no Senado, após ter sido adotado pela Assembléia Nacional. Tratase da chamada “lei de prevenção à delinqüência”, que reduz a maioridade penal para 16 anos, prevê a violação do segredo profissional de psiquiatras, educadores e assistentes sociais, além de sanções administrativas às famílias de crianças e adolescentes em dificuldades. Para justificar o endurecimento em relação à legislação de 1945, que protegia crianças e adolescentes, o ministro do Interior se explica: “as crianças de 1945 não têm mais nada a ver com esses gigantes negros da periferia”. Evelyne Sire-Marin critica a declaração, que considera discriminatória. “Podemos ver bem que o objetivo dessa lei é punir a população originária da imigração e da colonização. São apresentados como delinqüentes os jovens negros ou magrebinos”, afirma. Para a juíza, Nicolas Sarkozy quer atrair o eleitorado de Jean-Marie Le Pen, da extrema-direita. Na pesquisa de opinião divulgada no dia 25 de novembro pelo jornal Le Monde, o candidato do partido Frente Nacional, Le Pen, tem 17% das intenções nas eleições presidenciais de 2007. Sarkozy, mesmo sem sua candidatura oficial, lidera as pesquisas, tecnicamente empatado com a candidata do Partido Socialista, Segoléne Royal – 29% e 32%, respectivamente.
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CULTURA
De 4 a 10 de janeiro de 2007
Fotos: João Zinclar
ENSAIO FOTOGRÁFICO Reserva indígena Xacriabá Menina acompanha o cotidiano na aldeia indígena, localizada no norte de Minas. São João das Missões (MG) – Médio São Francisco
Quatro margens – Banco de areia divide o rio e traça caminhos de dificuldades nas práticas cotidianas. Malhada (BA) - Médio São Francisco
Cisternas de placa – As cisternas de placa armazenam água da chuva, garantindo a sobrevivência e a convivência com o semiárido. Canudos (BA) - Bacia do São Francisco Lagoa poluída – Despejo de óleo é responsável pela mortalidade de peixes em lagoa próxima ao rio São Francisco. Lagoa Grande (PE) – Submédio São Francisco
“O outro lado do rio São Francisco” Cristina Alvares Beskow de Campinas (SP)
V
elho Chico: rio de contrastes. De um lado, a natureza exuberante, o ecossistema diversidade, a variedade cultural das comunidades ribeirinhas e a importância histórica de um rio que banha parte do Sudeste e do Nordeste brasileiro. Do outro, a miséria de uma população que vive em suas margens, que sofre com a fome e as condições precárias, e convive diariamente com a degradação ambiental provocada pelas indústrias. É “O outro lado do rio São Francisco”, projeto do fotógrafo João Zinclar que pode ser conferido em forma de exposição fotográfica no Museu da Imagem e do Som de Campinas, até 31 de janeiro de 2007. Desenvolvido entre outubro de 2005 e agosto de 2006, o trabalho incluiu o registro fotográfico de toda a extensão do rio, desde a nascente na Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a foz nos Estados de Alagoas e Sergipe, nas regiões do Alto, Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco. A exposição é apenas parte do projeto militante viabilizado com recursos oriundos do movimento sindical e popular e contribuições individuais de pessoas da esquerda. Segundo Zinclar, a segunda etapa do projeto inclui a publicação de um livro, ainda sem financiamento, com a intenção de disponibilizar o trabalho para diversos setores sociais, estimular a reflexão em torno das condições em que se encontram o rio e sua comunidade.
REVITALIZAÇÃO De acordo com o fotógrafo, a idéia é “levar uma visão fotográfica sobre a dura rea-
lidade do ribeirinho sanfranciscano e seu rio, suas condições de vida, sua luta com muita resistência para manter suas tradições, seu trabalho e a defesa da revitalização do rio e enfrentar diariamente o latifúndio, o agronegócio e o hidronegócio”. O trabalho teve início quando se acirrava a polêmica em torno da transposição do rio São Francisco. Movimentos populares e sociais, pastorais, sindicais e ambientais, em sua maioria, fazem oposição à transposição e defendem a revitalização do rio. Ao mesmo tempo, no entanto, se mostram solidários ao sertanejo e “propõem como alternativa à transposição a convivência com o semi-árido, pois entendem que o problema maior daquela região não é a seca, e sim a concentração da terra, da água e da renda nas mãos do capital, seja financeiro, agrário ou industrial”. As imagens da exposição de 71 fotos trazem, de forma sensível, o cotidiano do povo ribeirinho mediado pelo São Francisco, desde o abastecimento de suas casas com água obtida em baldes ao preparo da mandioca, importante alimento das comunidades. Da contaminação das águas pelas mineradoras ao desmatamento das matas ciliares e do cerrado, da sobrevivência árdua do povo à exploração do carvoeiro pelas siderúrgicas, em jornadas de trabalho de até 12 horas diárias. Mais do que uma exposição de belas imagens, dotadas de sensibilidade artística e qualidade técnica, imagens antes de tudo políticas, que trazem por trás de sua plasticidade um conteúdo de denúncia da situação em que se encontra o rio São Francisco e o as pessoas que vivem em suas margens.
Uvas do agronegócio – Expostos ao uso contínuo de agrotóxicos, e recebendo baixos salários, as trabalhadoras produzem uvas para exportação. Juazeiro (BA) - Sub-Médio São Francisco Exploração do trabalho – As carvoarias exploram os trabalhadores em jornadas de até doze horas diárias de trabalho fortemente degradante. Andrequicé (MG) – Alto São Francisco
Convivência com o rio – O rio para matar a sede dos bois, lavar roupa, comer e beber. São as águas do São Francisco conduzindo a vida ribeirinha. Sítio do Mato (BA) – Médio São Francisco
Combate ao trabalho escravo – Cartilhas circulam nas comunidades carentes reforçando a luta contra o trabalho escravo. Barra (BA) – Médio São Francisco
Intervenção popular – Mobilização ribeirinha em defesa da revitalização do rio e contra o projeto de transposição do São Francisco. Saramém (SE) – Baixo São Francisco Pescaria no esgoto – Povoados da Bacia do São Francisco não tratam o esgoto, envenenam as águas do rio e matam diversas espécies de vida
“O outro lado do rio São Francisco” Exposição fotográfica de João Zinclar De 14 de dezembro a 31 de janeiro de 2007 Museu da Imagem e do Som de Campinas Rua Regente Feijó, 859, Centro - Campinas Maiores informações: (19) 3236-7851 (MIS), (19) 9121-8425 (João Zinclar) joaozinclar@yahoo.com.br
Filhos do Velho Chico – Quilombolas plantam nas margens do rio, mantendo a tradição da agricultura vazanteira. Ilha da Ressaca (MG) - Médio São Francisco