BDF_204

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Ano 5 • Número 204

Uma visão popular do Brasil e do mundo

R$ 2,00

São Paulo • De 25 a 31 de janeiro de 2007

www.brasildefato.com.br

A luta global passa pela África Valter Campanato/ABr

O 7º Fórum Social Mundial, realizado no Quênia, incorpora movimentos africanos na resistência ao neoliberalismo

Grupo de dança queniano do Centro Comunitário Saint John, grupo católico que trabalha com crianças e adolescentes da periferia de Nairóbi

EDITORIAL

Um pacote para os empresários

O

governo federal anunciou um pacote de medidas que visam aumentar os investimentos na economia e acelerar o crescimento. Esse pacote vinha sendo anunciado desde as eleições e prometia grandes novidades. Apesar de muito estardalhaço na imprensa, as medidas anunciadas não têm quase nada de novo. Vejamos. Os números – O governo anunciou que, nos próximos quatro anos do segundo mandato, vai articular para que se invistam R$ 504 bilhões. Nesse total, o governo inclui os R$ 217 bilhões de investimento que o empresariado vem anunciando. Portanto, não depende do governo. Portanto nenhuma novidade. Outros R$ 219 bilhões virão das empresas estatais, em especial a Petrobras e o setor energético, que também já estavam programados. E o governo federal entrará com R$ 68 bilhões do Orçamento Público da União, ou seja, em média, R$ 17 bilhões por ano, que também já estavam programados. A única mudança prevista nas fontes desses investimentos anunciados com tanta pompa é que o governo, só em 2007, vai renunciar a R$ 6,6 bilhões de impostos, esperando que os empresários beneficiados usem esse dinheiro em investimentos. E também vai estimular que se use R$ 5 bilhões do FGTS (fundo dos trabalhadores) em obras de habitação e saneamento. Onde será aplicado esse dinheiro? – R$ 275 bilhões serão aplicados em obras de energia (petróleo e hidrelétricas, tudo já previsto antes); R$ 171 bilhões serão aplicados em obras de infra-estrutura social e urbana, como metrô, saneamento e habitação. A novidade é a garantia de R$ 6,6 bilhões para as obras de transposição do Rio São Francisco. Obra polêmica e que

divide os setores sociais, principalmente porque falta transparência sobre os encaminhamentos do projeto. Outros R$ 58 bilhões devem ser investidos em rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. O fundamental, nada mudou! – A economia brasileira para crescer acima de 5% ao ano precisa de investimentos anuais de 30% do PIB. Isso aconteceu no período de 1930-1980 e, por isso, crescíamos 7,6% ao ano. Desde que o capital financeiro transformou nosso país em paraíso da especulação, os capitalistas preferem ganhar dinheiro com juros, a investir em obras e produção. Por isso, os investimentos caíram nos últimos quinze anos para apenas 18% do PIB. Para fazer esses investimentos, os manuais da economia dizem que só há dois caminhos. Reduzir o consumo da população e aí sobra mais para investir, ou reduzir os ganhos do capital com juros. No Brasil, dos R$ 400 bilhões arrecadados por ano pela União, cerca de R$ 140 bilhões são gastos em juros, como rendimento do capital de seus títulos da dívida interna. E, por outro lado, o governo aplica apenas R$ 16 bilhões em investimentos, como foi reafirmado no pacote. Se o governo tivesse coragem de acelerar o crescimento, deveria reduzir os gastos com juros e reaplicar esses recursos em investimentos. Em segundo lugar, em vez de aplicar em obras, que apenas pavimentam as condições para os empresários exportarem, a prioridade deveria ser para atender aos interesses do povo, investindo nas áreas que resolvam os problemas sociais. Ou seja, em habitação popular, agricultura camponesa e reforma agrária, educação pública, com a construção de escolas e contratação de professores. E na saúde, com

mais hospitais, médicos e programas preventivos. Terceiro, e mais grave. O governo se compromete com os empresários a congelar os salários dos servidores públicos. Acrescentar apenas a inflação. E, em relação ao salário mínimo, que é o principal instrumento de distribuição de renda, o governo se compromete a corrigir apenas em relação à inflação e o crescimento real da economia de dois anos anteriores. Assim, ele jogou no lixo a promessa de 2002, de que, em quatro anos, dobraria o valor real do salário mínimo. O ministro Guido Mantega, envergonhado, disse: “bem, se tudo der certo, podemos pensar nos próximos anos em baixar o superavit primário dos atuais 4,75% para 3,75% do PIB”. Ele, como economista, sabe que esse pacote não vai mudar em nada a repartição da renda nacional, e nem o volume real de investimentos públicos, se não transferir substancialmente os recursos públicos, que são do povo, hoje aplicados em juros, para investimentos produtivos. Por essas razões o empresariado bateu palmas e os jornais burgueses cantaram loas. A CUT ficou quieta e a Força Sindical ameaça entrar na justiça para proteger os R$ 5 bilhões do FGTS. Infelizmente o governo Lula perde mais uma oportunidade de mudar de fato a política econômica, em favor dos trabalhadores, das maiorias. O espetáculo do crescimento não virá. Os problemas do povo, de falta de emprego, renda, educação e saúde, infelizmente, continuarão se agravando.

A

diversidade das lutas e a solidariedade entre os militantes que delas participam deram o tom no 7º Fórum Social Mundial, realizado entre os dias 20 e 25 em Nairóbi, capital do Quênia. Durante o evento, cerca de 50 mil pessoas trocaram experiências e fizeram contatos. Uma das prioridades do encontro foi a incorporação dos movimentos sociais africanos à luta contra o neoliberalismo, que faz da África sua maior vítima. Os temas foram diversos: direito à terra, direito à água, luta contra a dívida, Estado palestino, direito das mulheres, entre muitos outros. Na edição deste ano, o Fórum privilegiou as ações unificadas. Mas os desafios também permanecem. Um deles é a de popularizar o evento. O alto custo do valor da inscrição e das refeições inviabilizou a presença da população pobre do Quênia, o que gerou protestos diários. Pág. 7

Em São Paulo, violência policial contra sem-teto A repressão policial contra a população de rua foi o alvo de protesto realizado no Centro da capital paulista, dia 19. Para os manifestantes, essas ações são parte de uma política de “limpe-

za social”. Na periferia, entidade de direitos humanos elaborou uma cartilha para orientar a população contra abusos de policiais. Pág. 5

Sem preservação, Correa: inicia-se desenvolvimento uma nova era na concentra renda América Latina Pela terceira vez consecutiva, o Ibama bateu o recorde histórico de licenciamentos ambientais. Em 2006, foram 278, mais que o dobro de 1999. É uma resposta do Instituto aos setores da economia que consideram o meio ambiente um entrave ao crescimento. Na Amazônia, o sucateamento do Ibama é um dos elementos que contribui para o aumento do desflorestamento. Pág. 3

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o presidente do Equador, Rafael Correa, aponta para o início de um momento novo no continente, em que “o neoliberalismo ficou para trás”. Correa, que participou da Cúpula do Mercosul, afirmou que a integração latino-americana deve ser dirigida por seres políticos “com visão integral e histórica, e não por economistas que acreditam que tudo é mercadoria”. Pág. 6


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DEBATE

CRÔNICA

As imagens do socialismo Raúl Zibechi polêmica nascida no calor da recente proposta do presidente Hugo Chávez de criar um partido único de seus partidários na Venezuela, que vai no sentido da sua iniciativa de construir o socialismo do século 21, parece uma boa oportunidade para animar um debate sempre vigente e necessariamente não concluído sobre o outro mundo, o qual tanto aspiramos. Como disse o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, é impossível avançar no debate sem fazer um balanço do socialismo real. Para nós formados no pensamento de Marx, a experiência passada e presente do “movimento histórico que se está desenvolvendo diante de nossos olhos” (Manifesto Comunista) é a referência inevitável nesse debate. As trajetórias de muitos movimentos sociais latino-americanos têm estreita relação com as metáforas, nas quais Marx se apoiou para delinear suas visões da revolução e o mundo novo. Marx não se empenhou em formular uma “teoria da revolução”, ao contrário do que alguns de seus seguidores afirmavam, mas se limitou a pensar com base em imagens oriundas da experiência concreta. Suas construções teóricas pretendiam impulsionar o movimento real, não indicar um caminho único, atemporal, a-histórico, válido para todos os tempos e em todas as latitudes. Na linha da Comuna de Paris, recordou que “os operários não têm nenhuma utopia listada para implantar pelo decreto do povo (...) não têm que realizar nenhum ideal, senão simplesmente livrar da nova sociedade os elementos que a velha sociedade burguesa agonizante leva em seu seio”. Em outras ocasiões, recorreu à imagem da revolução como parteira: não é a revolução que cria o mundo novo, ela, ‘simplesmente’, o ajuda a nascer. Nunca considerou o Estado como a ponta de lança na construção do socialismo, instituição que sempre considerou como obstáculo ao caminho emancipatório. Diante de nossos olhos aparecem hoje múltiplas práticas de mudança social que crescem no seio dos movimentos, da Selva Lacandona à Patagônia. São criações originais de parcelas dessas outras sociedades (de indígenas, sem-terra, desempregados, pobres das periferias urbanas) às margens do mercado e contra a acumulação de capital. No geral, não respondem a desenhos préfixados por tal ou qual corrente política – “não se baseiam em idéias e princípios inventados por tal ou qual reformador do mundo”, como disse o Manifesto –, mas bebem nos inesgotáveis mananciais das culturas e tradições dos de baixo. Como todas elas são diferentes, suas criações são igualmente diversas e díspares. Nos territórios dos movimentos, que são outras sociedades em movimento, surgem práticas educativas, de saúde, de produção, assentadas em relações sociais não capitalistas. Operários de fábricas recuperadas que produzem sem capatazes e reinventam formas de divisão do trabalho que não geram hierarquias; camponeses que criam assentamentos que supõem uma verdadeira revolução cultural na vida rural; indígenas que recuperam seus

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A esperança possível de um mundo renovado Marcelo Barros

saberes curandeiros ancestrais; desempregados que inventam mercadorias e as trocam com outros desempregados. Nesses espaços, a educação se converte, amiúde, em auto-educação e, portanto, adquire traços emancipatórios ao dissolver a clássica relação sujeito-objeto que reina nas aulas.

Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos: ou se assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo ou se assenta no aparato estatal, um rumo já conhecido Se alguém pretende delinear o aspecto que terá o socialismo, não tem mais que observar esses outros mundos para captar traços que vão se revelando aos poucos, em múltiplas práticas que são embriões do mundo novo. Mas o primordial está por vir. Ainda não sabemos como será o socialismo porque, no fundamental, vai tomando forma nas diferentes experiências dos oprimidos na medida em que vão demonstrando suas potências criativas. Ao contrário dessa imagem tão apreciada por certos revolucionários, que asseguram que “o caminho está traçado” e somente falta percorrê-lo. O entendido como propriedade estatal dos meios de produção e desenvolvimento das forças produtivas fracassou retumbantemente. O mundo novo cresce de dentro para fora e se expande horizontalmente, por fora e na contramão das instituições. Para o parto dessa sociedade nova, parece necessário contar com uma ferramenta de caráter estatal – a força, a violência organizada –, esses fórceps que ajudam a ‘romper a casca’, para voltar às imagens de Marx. Depois, os fórceps devem ser descartados para que não se transformem em um fim em si mesmos e acabem desfigurando o mundo novo. Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos. Ou se assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo, nos mais de 6 mil comitês de terra urbana ou nas 2 mil mesas técnicas de água, para colocar apenas dois exemplos, onde milhões de pessoas estão partici-

pando; ou se assenta no aparato estatal. Neste caso, o Estado se encarrega da produção, saúde e da educação e, com o tempo, de todos os aspectos da vida. Será um Estado cada vez mais forte, mais poderoso, mais centralizado, que formará uma sociedade a sua imagem e semelhança: homogênea, idêntica a si mesma, sem espaços para a diferença e a dissidência. É um caminho conhecido. Com toda segurança, conduz à melhora dos índices de vida da população, mas não tem nada a ver com o socialismo nem com a emancipação. A relação mando-obediência, um dos eixos do sistema capitalista e do Estado, seguirá ocupando um lugar dominante. Esse modelo tem em seu favor a previsibilidade. Sabe-se até onde conduz, quem tem o timão e quem executa as ordens. Ao contrário, os caminhos que levam a um outro mundo, ao socialismo, digamos, são incertos, imprevisíveis e devem se reinventar sempre. Não há modelos. No meu modo de ver, a experiência de autogoverno dos de baixo mais avançada que existe hoje é Chiapas, onde todos e todas aprendem a se governar, dissolvendo assim o Estado. Longe de ser um modelo, é apenas um ponto de referência, a prova palpável de que é possível ir mais além do que existe, além dos caminhos trilhados que a história de mais de um século tem mostrado que reproduzem formas de opressão intoleráveis. Raul Zibechi é jornalista uruguaio, editor do semanário Brecha

Engravidar a realidade com a expectativa de um mundo melhor faz parte da vocação humana. É isso que será fortalecido pelas mais de 100 mil pessoas de todos os continentes e das mais diversas culturas que se reúnem nestes dias (de 20 a 25 de janeiro) em Nairobi, capital do Quênia, no 7º Fórum Social Mundial (FSM). Infelizmente, os meios de comunicação, que dão destaque a qualquer Big Brother da vida, não se interessam muito em acompanhar esse processo que reúne desde intelectuais e políticos de destaque no mundo, até os mais pobres do mundo, como os dalits da Índia, até hoje considerados “impuros”, e os representantes de tribos africanas que lutam para sobreviver a séculos de colonialismo. O FSM é espaço de discussão e integração entre organizações e movimentos que buscam outra forma de organizar o mundo. Não tem poder de decisão, mas o povo boliviano que, pela primeira vez na história, tem um índio como presidente da República e vários outros países da América Latina que vivem um caminho social e político novo sabem que, dificilmente, isso teria sido possível sem o processo que os fóruns sociais desencadearam no mundo. O Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) e o Faces do Brasil, em conjunto com várias entidades, redes e empreendedores, bem como instâncias internacionais como a Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (Ripess), estão em Nairobi, como caravana da economia solidária. Coordenam a oficina “Comércio Justo e Economia Solidária no Brasil”. O objetivo é apresentar as muitas experiências que já existem nesse campo e propor que, a partir de uma articulação maior entre entidades da sociedade civil e governo, se crie uma política pública de apoio ao desenvolvimento de cadeias comerciais alternativas.

O FSM é espaço de discussão e integração entre organizações e movimentos que buscam outra forma de organizar o mundo É muito importante que este 7º FSM esteja se realizando no coração da África negra. Ele desvenda para todo o mundo a realidade terrível de sofrimentos e injustiças que os povos africanos continuam a sofrer, desde que, no século 15, o Ocidente começou a colonizá-los. Vindos da Europa e da América, os brancos souberam atiçar as rivalidades entre chefes tribais e, assim, puderam melhor roubar os bens naturais e explorar as riquezas minerais do continente. Milhões de africanos foram escravizados. E, até hoje, as potências ocidentais levam da África diamantes, petróleo e outras riquezas, deixando com os negros várias guerras assassinas e uma miséria sempre maior. A rica diversidade de crenças, culturas, línguas e religiões que nasceram e florescem em terras africanas é desconhecida e desprezada. Ao se realizar no Quênia, o 7º FSM viabiliza o encontro de organizações, movimentos, militantes, ativistas e pessoas de todas as regiões do mundo com os movimentos sociais e comunidades da África. É um momento histórico, tanto para as lutas de resistência no continente africano, quanto para o processo dos fóruns sociais. As atividades do FSM se dão em torno de nove objetivos gerais, definidos a partir de uma ampla consulta às organizações e movimentos internacionais que prepararam este fórum. Cada participante pode escolher um entre nove eixos temáticos de trabalho para as reuniões e atividades do Fórum. Cada eixo temático reunirá milhares de pessoas em diversos seminários, oficinas e encontros autogestados. Eles começam no segundo dia do fórum, já que a tarde do primeiro é dedicada a uma grande e festiva caminhada pelas ruas da cidade. É a caminhada da esperança. A maioria dos participantes vem ao fórum para fortalecer a esperança de que é possível mudar a forma de organizar o mundo e a vida. O escritor Eduardo Galeano conta a história do homem que dizia à utopia: “Eu me aproximo de ti um passo e vejo que te distancias dois. Dou um passo a mais e vejo que te distancias mais dois. Para que serves, então?” A utopia respondeu: “Para te fazer caminhar”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefa to.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim

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NACIONAL MODELO ECONÔMICO

Ao contrário do que diz a mídia corporativa e as empresas, Ibama duplicou número de licenças ambientais em sete anos Luís Brasilino da Redação

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Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) dobrou a emissão de licenças ambientais entre 1999 e 2006. Esse desempenho recorde na quantidade de licenciamentos contradiz o senso comum, segundo o qual, a preservação da natureza é um entrave ao desenvolvimento econômico. Por outro lado, essa disparada no número de licenças – 131, em 1999, frente a 278, em 2006 – levanta suspeitas com relação ao rigor aplicado pelo órgão na liberação das obras. A explicação do Ibama para o crescimento é a contratação de mais funcionários e uma reestruturação interna. Porém, para o biólogo Rogério Grassetto, doutor em comportamento animal pela Universidade de Saint Andrews, “apesar de algumas notícias sobre desvios de conduta”, os funcionários do Ibama são realmente pessoas bastante idealistas e engajadas na causa ambiental. Restam dúvidas, contudo, sobre qual o poder de pressão e ingerência praticado pelas empresas quando se trata de empreendimentos maiores. “A impressão geral que fica é que há pouca margem de manobra e que as obras acabam

saindo de um jeito ou de outro. Nunca se ouve falar que os projetos podem, em tese, ser recusados”, alerta. Além disso, o processo é constantemente criticado pelos grupos privados, que não estão dispostos a esperar o tempo da natureza. Grassetto explica que, para um licenciamento ser bem feito, em alguns casos, eles devem mesmo ter um prazo mais longo. “Alguns tipos de estudos biológicos e de ecologia demandam tempo para serem feitos com qualidade. Senão, corre-se o risco de que haja falhas ou lacunas”, afirma.

SUSTENTABILIDADE O fato é que – 15 anos depois da Conferência das Nações Unidas (ONU) para o Meio Ambiente, a Eco 92, realizada no Rio de Janeiro – o desenvolvimento sustentável ainda aparece na mídia corporativa, nos discursos dos políticos mais proeminentes e em setores estratégicos do governo ligados à infra-estrutura, quase como um sonho hippie, fruto da ideologia radical de alguns poucos ecologistas. A Eco 92 é o principal marco histórico de uma reação popular, iniciada no final da década de 1960, para denunciar o esgotamento dos recursos naturais resultante do modelo capitalista industrial. A partir de então,

Leonardo F. Freitas/Creative Commons

Meio ambiente: entrave da economia?

Região da floresta amazônica ameaçada pela expansão da agropecuária no município de Itaúba, MT

Emissão de licenças dobrou entre 1999 e 2006 Tipos de licença

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

Prévia*

21

29

34

32

28

47

47

45

De instalação**

42

38

56

58

37

76

77

142

De operação***

68

78

61

102

80

99

113

91

Total

131

145

151

192

145

222

237

278

Fonte: Ibama * Avaliação do Estudo e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), confere a viabilidade do projeto. ** Autoriza o início da construção, normalmente, após atender a algumas condicionalidades exigidas na licença prévia. *** Após a conclusão da obra, libera o seu funcionamento.

o movimento ambientalista evoluiu questionando os limites do desenvolvimento econômico desregulado e concluiu que é insustentável. Dessa forma, em 1987, a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da ONU produziu um documento, o Relatório Brundtland, que estabelece um conceito para o desenvolvimento susten-

hippie. Assim, esconde-se um outro lado da questão, o de que o crescimento da economia não é neutro e, de acordo com as políticas públicas, pode se contrapor à redução das desigualdades e ao respeito ao meio ambiente. Foi o que aconteceu no Brasil, na década de 1970, e em outros países que passaram por um processo de modernização tardia, em

tável. “É aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Mais tarde, a busca pela eqüidade social também foi incorporada a esse conceito.

IDEOLOGIA É essa construção que é classificada como ideologia

Preservação da Amazônia, só no papel Gisele Barbieri, de Brasília (DF) Quase sete anos depois de o governo federal, ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso, instituir o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) para coibir a exploração irregular da maior floresta tropical do planeta, os resultados dessa política não empolgam as comunidades e Organizações Não Governamentais do país. Segundo a investigação concluída em 2006 pelo Greenpeace, nos últimos 25 anos, uma área de floresta primária maior do que os Estados do Mato Grosso do Sul e do Rio de Janeiro, juntos, foi destruída para sempre na Amazônia. A grande questão, segundo ambientalistas, é que o poder público não tem cumprido com seu papel de fiscalização. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e outros órgãos também responsáveis por esta fiscalização deixam a desejar. Os problemas passam por questões técnicas, financeiras e até mesmo políticas. “As unidades de conservação, segundo o que está no papel poderiam resolver o problema de grilagem na Amazônia, porém o governo cria essas unidades no papel mas não de fato. Não há fiscalização depois que elas são criadas”, analisa o diretor de campanhas do Greenpeace, Marcelo Furtado.

LIMITAÇÕES No Brasil, estima-se que existam 20 milhões de hectares de Unidades de Conservação (UCs) criados nos últimos quatro anos, sendo que 19 milhões estão na Amazônia. “Nós questionamos é a incapacidade dos instrumentos do governo federal para garantir a

gestão dessas unidades. Criam-se flotas, falamos em reservas biológicas, reservas extrativistas e cada uma delas precisa de um tipo de fiscalização rigorosa, mas o Ibama está limitado em termos de pessoal para o trabalho simples nas unidades”, destaca o padre Edilberto Sena, representante da Frente em Defesa da Amazônia. As UCs estão divididas em dois grupos: as de Proteção Integral, que incentivam a preservação da natureza, admitindo apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, e as de Uso Sustentável, que estabelecem o meio termo entre a conservação e a utilização de parte dos seus recursos naturais. É entre essas duas categorias que surgem as divergências entre incentivar a exploração ilegal de madeira ou garantir essa extração apenas para as comunidades que dependem da floresta para sobreviver.

Leonardo F. Freitas/Creative Commons

Área desmatada para o plantio de soja no município de Belterra, no Pará

Unidades criadas não solucionam problemas As experiências vividas por comunidades que conseguiram a implantação das Unidades de Conservação (UCs) no Pará, por exemplo, ainda não são consideradas como bem sucedidas. Para as entidades envolvidas na criação da Reserva Extrativista (Resex, outro tipo de unidade de conservação) Tapajós-Arapiuns (PA), a luta começou em 1995 e terminou quatro anos depois. “Enquanto buscávamos apoio para a criação da Resex a oposição do governo foi muito forte. Mesmo implementada, os avanços não são muitos. O problema maior é a falta de capacidade do Ibama em gerenciar as ações necessárias para que essa Resex cumpra seu verdadeiro papel”, critica o integrante da ONGSaúde e Alegria, Tibério Allóggio. Ele relata que o conselho deliberativo criado para a gestão da reserva reuniu-se apenas três vezes desde sua instituição. Esse modelo, que consiste

em uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, tem como objetivo básico proteger os meios de vida e a cultura dessas populações. Além disso, assegura também o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. Mas muitas vezes a ausência do Estado nessas áreas, com ações como as de fiscalização, pode trair até mesmo as comunidades locais. A criação da Floresta Nacional (Flona) Tapajós no município paraense de Belterra já conseguiu expulsar três aldeias indígenas. “Eu vejo que o governo precisa criar uma política bem definida para os indígenas. Não conseguimos a demarcação de nossas terras e aí ficamos assim esperando pela expulsão”, protesta o cacique Odair José Borari, da aldeia de Novo Lugar (PA).

que o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) resultou numa maior concentração de renda. O biólogo Rogério Grassetto, por exemplo, propõe que, primeiro, se pense em “repartir o bolo” para, depois, investir num crescimento que seja distribuidor de renda. “Podemos planejar o aumento do PIB incentivando setores industriais e de serviços que demandem menor quantidade de energia por real produzido, em vez de setores perdulários, numa espécie de cálculo de energia agregada”, aponta. Para Grassetto, também seria interessante desestimular o crescimento do agronegócio posto que gera muita destruição por real exportado; o qual, muitas vezes, acaba sendo remetido ao exterior por meio da remessa de lucros das transnacionais que exploram o campo no Brasil. “Na agricultura, seria melhor incentivar a substituição de importações; o cultivo de produtos com alto valor agregado e que demandem menor área de cultivo (flores, por exemplo); e a pequena propriedade – a qual gera mais empregos – com um modelo de reforma agrária diferente do atual, oferecendo apoio qualificado, subsídios no início e fiscalização ambiental eficiente e rigorosa”, indica. Por fim, o biólogo aposta em atividades que necessitem do meio-ambiente intacto, como o turismo e o cultivo de plantas no interior da floresta.

No Pará, disfarce para a exploração O Pará é o Estado onde a violência no campo já vitimou centenas de trabalhadores rurais. A governadora do Estado, Ana Júlia Carepa (PT), que assumiu o Palácio dos Despachos no início deste ano, chega com um grande desafio deixado por seu antecessor, Simão Jatene (PSDB). No final do ano passado, o tucano ganhou destaque na mídia nacional e internacional ao assinar um decreto que instituía “a maior área de preservação do mundo”. Um corredor verde situado em grande parte em área paraense, formado por cerca de 15 milhões de hectares. Mas os movimentos sociais e entidades, que lutam pela preservação do meio-ambiente no Pará, consideraram a medida como um “disfarce” para privilegiar os madeireiros, já que nos 12 anos de liderança do PSDB no Pará foram escassas as medidas de apoio do governo para conter os problemas responsáveis pelos conflitos agrários. Para o padre Edilberto Sena, representante da Frente em Defesa da Amazônia, o governo tucano quis impressionar e se utilizou da questão ambiental para isso. “Nós sabemos que ele sempre foi aliado das madeireiras e mineradoras”, denuncia. Em artigo divulgado em resposta à criação de Unidades de Conservação (UCs) por Jatene, o coordenador da campanha Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, afirma que, do total das sete unidades de conservação instituídas, 56% são destinadas à exploração de madeira. O que dará continuidade à extração clandestina que já é altíssima nessas áreas. Adário conclui que os 7,8 milhões de hectares de terras ficaram à mercê dos madeireiros. (GB)


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NACIONAL ROMPIMENTO DE BARRAGEM

Tragédia brasileira O Serviço Internacional de Aquisição em Agrobiotecnologia prevê que a área plantada com sementes transgênicas no Brasil continuará crescendo mais do que nos outros países e atingirá 36 milhões de hectares até 2015. Em 2006, o Brasil ocupou a terceira posição em área de transgênicos, com 11,5 milhões de hectares. É o laboratório do mundo para se testar algo muito perigoso. Reação reacionária Seja qual for a situação do Mercosul, as empresas de comunicação do Brasil, os analistas e os acadêmicos conservadores continuam fazendo críticas generalizadas ao processo de integração dos países da América Latina. É uma forma de tentar inviabilizar o bloco econômico e esconder que a verdadeira intenção deles é defender os interesses dos Estados Unidos e do capital internacional. Popularidade Por mais que a imprensa empresarial brasileira tente ridicularizar e desqualificar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ele consegue sempre angariar simpatias quando visita o Brasil. Na reunião do Mercosul, no Rio de Janeiro, mesmo com a presença de vários presidentes latino-americanos, Chávez foi quem atraiu mais a atenção popular. Quanto mais a mídia bate, mais ele é referência. Troca-troca O novo governo paulista, do PSDB, chamou para sua equipe administrativa alguns colaboradores do governo Lula e da gestão de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, ambos do PT. Da mesma forma, o governo federal tem aproveitado quadros da gestão tucana de FHC. O trânsito entre uns e outros ocorre na maior naturalidade e sem diferenças a destacar. É o nivelamento programático. Lógica dominante Crescimento com desoneração do capital e subsídio para a produção apenas concentra a renda nos mais ricos. Crescimento com distribuição de renda implica em financiar a geração de empregos qualificados, estimular a elevação dos salários, melhorar os serviços públicos básicos e reduzir as despesas com moradia, alimentação, educação, transportes e saúde. Quem vai comprar essa briga? Decadência liberal O desabamento no Metrô de São Paulo é um exemplo trágico da falência das políticas neoliberais, que enfraqueceram o papel do Estado a tal ponto que nem fiscaliza mais as obras patrocinadas com o dinheiro público. A ausência de fiscalização – nos vários níveis de governo – é uma forma deliberada de proporcionar bons lucros para as empreiteiras e facilitar os esquemas de corrupção. Crime brasileiro Foi brutalmente assassinado, no Maranhão, o engenheiro e professor José Henrique de Carvalho Paiva, de 54 anos, casado e pai de três filhos, que ano passado denunciou um esquema de desvio de dinheiro público envolvendo empresas empreiteiras, prefeituras e o deputado Sebastião Madeira, do PSDB. Após a denúncia, o engenheiro foi ameaçado de morte, mas estava sem proteção policial. Comunicação abusiva A empresa espanhola Telefônica, que comprou a TVA, antes mesmo de ter o negócio aprovado pela Anatel, já está fazendo propaganda do pacote da emissora via linha telefônica. O capital estrangeiro avança na comunicação social e mistura interesses empresariais de vários setores de atividades com um serviço de radiodifusão que deveria se preocupar unicamente com o bem público e a sociedade. Novas leis Entidades sindicais, personalidades vinculadas às lutas populares e movimentos sociais devem entregar, em fevereiro, ao Congresso Nacional, um manifesto em defesa da ampliação dos instrumentos de democracia direta e participativa, correção das distorções do sistema de representação popular e reforma da organização dos poderes públicos visando o desenvolvimento nacional. A reação dos parlamentares, só Deus sabe!

Empresa mineira culpa chuva Governo ignorou denúncias de impactos da exploração de bauxita na Zona da Mata Silvia Alvarez de Brasília (DF)

Carlos Weick

Hamilton Octavio de Souza

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chuva foi novamente acusada de ser responsável por um desastre ambiental e social. Na madrugada de 10 de janeiro, a barragem de rejeitos da Mineradora Rio Pomba Cataguases despejou, segundo estimativa da Defesa Civil de Minas Gerais, cerca de 2 milhões de metros cúbicos de lama de bauxita no rio Fubá, em Miraí (MG). Casas foram atingidas, e famílias de Miraí e outros municípios próximos, como Muriaé e Patrocínio do Muriaé, ficaram desabrigadas. Em nota oficial, a empresa justificou o rompimento “devido à elevada concentração de chuvas” e ainda afirmou não serem tóxicos os componentes do rejeito. Segundo o geólogo Nilson Botelho, do Departamento de Geociências da Universidade de Brasília (UnB), “no geral, muitas vezes não são tomadas as devidas medidas e cuidados para se evitar os impactos ambientais da mineração. A chuva não é desculpa, chove muito sempre naquela região, que é muito acidentada. Os cuidados lá devem ser maiores”. Entidades ambientalistas também questionaram a justificativa. Botelho acrescenta ainda que a extração de bauxita não utiliza, de fato, componentes químicos na sua atividade. Porém, segundo o especialista, a quantidade de lama despejada é uma “sujeira concentrada” que interfere na composição do solo, prejudica a produção agrícola e aumenta as partículas em suspensão (quantidade de material sólido) na água, impossibilitando o tratamento eficaz nas usinas, ocasionando a falta de água para a população da região. Em março de 2006, ocorreu um primeiro vazamento na mesma barragem. Em menores proporções, o acidente desabrigou muitas famílias e deixou a população da região sem água durante sete dias. A Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) de Minas Gerais, na ocasião, entrou com um processo para multar a empresa, ainda sem julgamento. Mesmo antes de saber o valor da

A cidade de Muriaé foi uma das mais atingidas pela lama de bauxita que vazou da barragem da mineradora Rio Pomba

multa que deveria pagar pelo primeiro vazamento, a mineradora foi reincidente no erro. Agora, neste novo episódio, devido a uma mudança na legislação estadual que agiliza o processo de autuação, a mineradora soube dois dias depois do acidente que deverá pagar uma multa de R$ 75 milhões e já teve suas atividades encerradas em Miraí. Matéria-prima do alumínio, a bauxita tem sua segunda maior reserva do país localizada no solo da região da Zona da Mata, onde está Miraí. É um recurso natural cobiçado por transnacionais eletrointensivas (que utilizam grande carga de energia elétrica em sua produção).

Prejuízos para as famílias atingidas Os rejeitos que vazaram da barragem da Mineradora Rio Pomba Cataguases, em Minas Gerais, percorreram quilômetros e traçaram um rastro de desgraça e prejuízo para a população dos municípios próximos. Famílias perderam tudo o que tinham, suas casas, seus bens, suas memórias. Foi o caso de Maria de Fátima de Souza Freitas, 45 anos, que morava com o mari-

Atualmente, as empresas que atuam na extração do minério na região são a Companhia Brasileira de Alumínio, que faz parte do grupo Votorantim, e a mineradora Rio Pomba Cataguases, responsável pelo vazamento. Independente do rompimento de barragem ou enchentes, os impactos ambientais e sociais da atividade de mineração na Zona da Mata vêm sendo denunciados há tempos por entidades que atuam na região. “Infelizmente, existe uma vontade muito grande de se extrair bauxita na Zona da Mata custe o que custar. Não se discute com as comunidades atingidas conforme deveria”, conta Reinaldo Barberine, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Em 2004, foi montada a Comissão dos Atingidos e Atingidas pela Mineração, cujos membros participaram de várias audiências públicas com o governo e órgãos competentes para denunciar as conseqüências da exploração de bauxita para o meio ambiente e para a comunidade. Entre os impactos denunciados pela comissão estão: solo empobrecido, contaminação dos riachos, destruição de nossa fauna e flora; expulsão das famílias do campo, prostituição, mudança na paisagem e, principalmente, doenças como hepatite e câncer. Antonio Maira, da CPT, relata que nos últimos 10 anos o número de doenças e atendimentos em hospitais locais aumentaram.

do, dois filhos e dois netos. “Perdi minha casa com tudo dentro. Meu marido está até com depressão, e não podemos pagar o aluguel de uma nova casa, está tudo caro”, disse. Ela está alojada no Centro de Formação e Ascensão Social (Cefas), um dos abrigos providenciados pela prefeitura. José Carlos da Silva, porteiro 43, também foi atingido. “Foi uma enchente que eu nunca vi na região. Não veio só água, veio muita lama. TV, aparelho de som, guarda-roupa, foi tudo embora. Eu estava atolado até a cintura”. José está abrigado na casa do sogro “que fica num lugar alto. Aqui eu e minha família fica-

mos mais seguros”. Ambos moravam no bairro da Barra, em Muriaé, um dos mais atingidos pela lama. Até agora eles não têm notícias de indenização ou reembolso dos bens. A Prefeitura de Muriaé informou que os desabrigados estão alojados em escolas públicas e no Cefas. Além disso, há uma campanha de doação de alimentos e agasalhos na cidade. Militantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) estão acompanhando e acolhendo a população desabrigada pela lama da barragem. Segundo eles, a população rural é a menos assistida, já que está mais isolada. (SA)

DESASTRE NO METRÔ DE SÃO PAULO

Empreiteiras são campeãs de financiamento de parlamentares Renato Godoy de Toledo da Redação As empreiteiras OAS, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Odebrecht e Queiroz Galvão possuem ampla influência política no país, financiando campanhas políticas, tanto do Legislativo quanto do Executivo. Elas fizeram uma parceria inédita – o consórcio Via Amarela – para vencer a licitação para construir a linha 4 do Metrô paulista. No dia 12, um canteiro das obras da futura estação Pinheiros desabou, matando sete pessoas e desalojando 80 famílias. As empreiteiras responsabilizaram a chuva – que não foi recorde para o mês, como revelou o Brasil de Fato, no número 203 – pelo desabamento. A próxima legislatura do Congresso Nacional, que tem início em 1º de fevereiro, contará com 269 parlamentares (254 deputados federais e 15 senadores) que receberam doações de empreiteiras, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. No total, há 513 deputados federais e 81 senadores. As empreiteiras doaram R$ 24,5 milhões – 8,55% das doações aos parlamentares eleitos – para candidaturas legislativas, consolidandose como o setor que mais financiou campanhas. A maior parte dessa quantia é oriunda das cinco empresas que compõem o consórcio Via Amarela (cerca de R$ 16 milhões). A Camargo Corrêa e a OAS foram as que mais destinaram verbas aos

Sindicato dos Metroviários

Fatos em foco

Responsáveis pelas obras do metrô “doaram” R$ 16 milhões nas últimas eleições

candidatos: R$ 2,2 milhões e R$ 1,9 milhões, respectivamente. O deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), que não recebeu doação de empresas, só de militantes, acredita que as empreiteiras têm poder de influência no rumo das políticas públicas. “Essa é mais uma tragédia nacional. Como essas empreiteiras são grandes financiadoras, elas ganham imunidade, que depois se transforma em impunidade, na fiscalização das obras das quais ganham licitação”, afirma. Para o deputado, a impunidade das empreiteiras é fruto de seu poder econômico e é reforçada pela lei eleitoral, que permite o financiamento privado de campanhas políticas. Além de vencer grande parte das licitações de obras públicas, as empresas sócias do Consór-

cio Via Amarela têm se beneficiado com o processo de privatização das rodovias estaduais e federais, já que ganharam concessões que lhes permitem explorar a cobrança de pedágios. Camargo Corrêa e OAS são acionistas da Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR), concessionária responsável pela administração de importantes estradas paulistas, além da Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. A atuação das empreiteiras não se restringe, ainda, ao ramo de construções, obras públicas e concessões de rodovias. A Camargo Corrêa, por exemplo, possui 11% das ações do Itausa, a holding que controla o Banco Itaú. Também têm a participação da empreiteira a São Paulo Alpargatas (37%), responsável

pelas marcas Havaianas, Topper e Rainha, e a empresa do setor têxtil Santista (67%). O desabamento no Metrô de São Paulo não é o primeiro desastre ocorrido em obras lideradas por grandes empreiteiras. Luiz Dalla Costa, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) no Rio Grande do Sul, afirma que as empresas procuram executar a obra o quanto antes, para maximizar os lucros. Os habitantes de regiões próximas a usinas hidrelétricas também sofrem com acidentes em obras executadas por grandes empreiteiras. Desde abril de 2005, o MAB denunciava que havia constantes vazamentos na barragem de Campos Novos, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. Em junho de 2006, a barragem estourou e colocou em risco a população local. A obra era executada pelas empresas Votorantim, Companhia Brasileira de Alumínio, Bradesco e Camargo Corrêa. “Todos os desastres são casos onde há negligência e pressão sobre os funcionários, para que seja feito a toque de caixa”, conclui o coordenador do MAB, para quem o Estado está se retirando de setores estratégicos e entregando a responsabilidade às empresas, que só visam lucro. (Colaboraram Luiz Renato Almeida, da Agência Chasque de Notícias, e Tatiana Merlino, da Redação)


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NACIONAL QUESTÃO URBANA Douglas Mansur

Violência no centro, contra pobres Manifestação pede a punição de guardas civis acusados de agredirem moradores de rua em São Paulo Marjorie Ribeiro da Redação

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totalmente imprudente”, conta a vereadora Soninha Francine (PT), também atingida pelo gás.

pós mais de dois anos do massacre que deixou sete moradores de rua mortos e oito gravemente feridos, cerca de 300 pessoas, entre representantes de entidades de direitos humanos e a população de rua, se reuniram em um ato na sexta-feira (dia 19), para cobrar punição de guardas civis metropolitanos envolvidos em novos episódios de violência. Dessa vez, o motivo da manifestação foi a ação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) durante a festa do Natal Solidário, no Vale do Anhangabaú (região central), no dia 24 de dezembro. Segundo testemunhas, o evento de confraternização, apoiado pela Prefeitura, corria sem incidentes até dois guardas abordarem violentamente pessoas que dormiam embaixo de um viaduto. Indignados, um grupo de moradores de rua que participava da festa reclamou com os policiais. A resposta veio por meio de intimidação com o uso de revólveres e spray de pimenta contra a multidão. “Foi pânico total, gente se jogando, indo para trás, gente com spray no olho. Absurdo, algo

POLÍTICA DE HIGIENIZAÇÃO Durante a manifestação do dia 19, diversas lideranças enfatizaram que a ação da GCM não pode ser vista como um fato isolado. “Essa é uma política que se imprimiu na prefeitura: a limpeza, a higienização. Uma tentativa de afastar os pobres, os catadores de material reciclável e o povo da rua”, opinou o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua. “Eles [os guardas] estão sendo treinados para limpar a cidade dessa forma”, completou. Anderson Lopes, do Movimento Nacional de Luta em Defesa dos Direitos da População de Rua e um dos organizadores da passeata, acredita que a “limpeza social” nascida na gestão de José Serra (PSDB), agora levada adiante com Kassab, tem como pano de fundo a “valorização” especulativa da região central da cidade. “Eles querem um centro ‘bonito’, de primeiro mundo, para valorizar a área”, avalia. Apesar de não considerar que essas agressões sejam fatos isolados, Soninha não acredita que elas

Catadores de material reciclável, ativistas e população de rua realizaram passeata no centro de São Paulo

façam parte de uma política deliberada. O que existe, segundo ela, é uma falta de comando. “Quando os guardas agiram no dia 24, por exemplo, não tinha ninguém comandando a ação”, argumenta.

PROVIDÊNCIAS A manifestação seguiu até a prefeitura, onde foi formada uma comissão de 10 pessoas que levou uma representação assinada pelas entidades de direitos humanos, junto ao Ministério Público. A comissão foi recebida pelo grupo da Promotoria de Inclusão Social, que se comprometeu a apurar as novas

Cartilha orienta a população contra abusos da polícia

denúncias e a requisitar os vídeos das câmeras instaladas no centro da cidade. No dia 24, a comissão irá se reunir com o prefeito Gilberto Kassab (PFL) para discutir o caso. Simoni Piragine, coordenadora da Proteção Especial para Adultos em Situação de Rua da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, informou que o Comando da GCM já abriu um processo de sindicância. Além disso, segundo a vereadora Soninha, a prefeitura se comprometeu com outros quatro compromissos: um projeto de lei para

Mais que moradia, direito à cidade Dafne Melo da Redação Divulgação

A cartilha mostra as violações mais comuns dos policiais contra os cidadãos

Não é apenas no centro de São Paulo que a população é vítima de violência policial. Na periferia da cidade, a violação dos direitos humanos por parte da forças de segurança pública faz parte do cotidiano da população. Daniel Augusto da Silva, advogado do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), bairro da zona Leste da capital, conta que quase na totalidade dos casos, a vítima da agressão sequer tem conhecimento de seus direitos. Com objetivo de reverter parte desse quadro, o CDHS, em 10 de dezembro de 2006 – Dia Internacional dos Direitos Humanos – lançou uma cartilha intitulada “Abordagem Policial”. Em seu conteúdo, a cartilha mostra como, de acordo com a lei, um policial deve atuar durante a abordagem de um cidadão. O documento também mostra as violações mais comuns por parte dos policiais e quais os

caminhos para se denunciar a irregularidade. Daniel Augusto Silva conta que a idéia de se fazer a cartilha nasceu ainda em 2004, quando os índices de violações cresceram muito na região. “Nosso desejo é que não fosse necessário esse documento. A cartilha mostra como as pessoas podem se defender e manter sua dignidade. Faz com que as pessoas tomem conhecimento de que a lei também pode ser usada a seu favor”, continua o advogado.

CONHECIMENTO E AÇÃO Na apresentação do material, a juíza da 16º Vara Criminal de São Paulo e integrante da Associação de Juízes para a Democracia, Kenarik Boujikian Felippe, também destaca o papel do acesso a esse tipo de informação por parte da população. “As leis são importantes, mas não são suficientes. É necessário que façamos valer os direitos

tornar mais rápida a exclusão da GCM de acusados de má conduta; aceleramento do processo de identificação de guardas no uniforme; e formação continuada para evitar novos casos de agressões. No entanto, os suspeitos do massacre ocorrido no dia 19 de agosto de 2004 – lembrado durante toda a manifestação – permanecem impunes. “O Ministério Público entrou [com denúncia criminal], mas infelizmente o Tribunal de Justiça se mostrou omisso”, explica Ariel Castro Alves do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

que elas pretendem assegurar e isso só será possível se por primeiro tivermos plena ciência de quais são eles e nos unirmos para que saiam do papel e ganhem vida”. Na avaliação do advogado, o resultado da iniciativa tem sido excelente. “Não tivemos nenhuma manifestação negativa. Entidades de todos os Estados, lideranças de comunidades ou pessoas comuns nos ligam para pedir o material. A idéia é imprimilo e distribuí-lo livremente”. A elaboração da cartilha contou também com a participação da polícia, já que um de seus objetivos é promover e melhorar o diálogo entre as forças de segurança pública e a população. “Levamos ao Batalhão da Polícia Militar aqui da região e eles sugeriram mudanças, das quais acatamos algumas”, conta Silva. A cartilha pode ser baixada gratuitamente na página: h t t p : / / w w w. o v p - s p . o rg / cartilha_abordagem_ policial.htm (DM)

Embora essencial, somente a destinação de verbas públicas não garantem uma solução para a questão de moradia no Brasil. Ainda são necessárias políticas públicas que tenham como norte a inclusão social, econômica e territorial. Essa é a opinião da urbanista Patrícia Cardoso, pesquisadora do Instituto Polis. Na área de financiamento, Patrícia acredita que o montante dos recursos têm sido satisfatórios. Em janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva divulgou uma série de números e recordes de investimento no setor. Em 2006, foram destinados, entre recursos oriundos ou geridos pelo governo federal, R$ 14,1 bilhões, quantia que supera em 53% os R$ 9,2 bilhões contratados no ano anterior. Até 2010, o objetivo é destinar outros R$ 106,3 bilhões, atingindo 4 milhões de famílias. Parte desses investimentos será feita por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) anunciado pela presidência no dia 22. Dentre outras medidas está a concessão de um crédito de R$ 5,2 bilhões para a Caixa Econômica Federal (CEF) financiar habitações populares. A preocupação, aponta a pesquisadora, é como e onde o governo irá escolher investir. “Historicamente, o foco das políticas de habitação tem sido a classe média. A população de baixa

renda, que ganha até três salários mínimos (R$ 1.050) tem ficado de fora, entretanto, eles representam 84% do deficit habitacional no país”, explica. Desse total, os mais atingidos são afrodescendentes e mulheres.

CASAS VAZIAS De acordo com dados da Fundação João Pinheiro, o deficit habitacional no Brasil é de 7,89 milhões de unidades domiciliares em 2004. Desde 1993 até 2004, dado mais recente, o aumento foi de 26%. No Estado de São Paulo, o crescimento no mesmo período foi de 50%, ou seja, maior do que a média do país. Ao lado dessas estatísticas, Patrícia Cardoso lembra que o número de habitações vazias no país é igualmente alto. No Censo de 2000, o IBGE contabilizou 5 milhões de moradias abandonadas. No cidade de São Paulo, essa contradição é gritante. De acordo com Patrícia, o deficit na cidade é inferior ao número de moradias ociosas, que se concentram majoritariamente no centro. “Na maior parte dos casos, o proprietário parou de pagar impostos, é o chamado ‘mau proprietário’. No imóvel ocupado pelos sem-teto na Avenida Prestes Maia, por exemplo, a dívida do proprietário é quase o mesmo valor do imóvel”. A urbanista conta que esse não é um problema apenas das grandes cidades brasileiras. “Nas cidades pequenas e médias, também se verifica o que vemos em

São Paulo: número de imóveis vazios superior ao deficit habitacional”.

AVALIAÇÃO Se por um lado a inclusão do financiamento de construção de moradias populares no PAC seja positiva por gerar mais recursos, por outro lado, Patrícia aponta que esse setor não pode ser visto como mais um motor da economia. “Visto assim, pode até gerar crescimento, mas não desenvolvimento e inclusão”. Na opinião da pesquisadora, apenas com o governo Lula começou a se pensar de fato uma política pública habitacional para as camadas mais pobres. Anteriormente, só havia ações pontuais, com construção de moradias populares nas regiões periféricas das cidades. O resultado dessas políticas anteriores, ressalta Patrícia, pode ser verificado na cidade de São Paulo, “onde a periferia é maior que o centro. A cidade informal é maior que a legalizada. Apenas alguns se beneficiam desses equipamentos urbanos”. Dessa forma, uma política habitacional não pode desvincular-se da garantia de outros direitos como saúde, emprego, transporte e moradia. “Não podemos repetir esse erro. Moradia deve ser construída como um componente do direito à cidade. Não adianta nada construir habitação precária com dinheiro público na periferia e aumentar os bolsões de pobreza”, argumenta.


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AMÉRICA LATINA INTEGRAÇÃO

Um novo rumo para o Mercosul? Maurício Scerni

As adesões da Bolívia e da Venezuela podem significar um viés mais social para o bloco econômico Igor Ojeda da Redação

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A alternativa à dependência externa Eduardo Sales de Lima da Redação Após a criação do Parlamento do Mercosul e a aprovação do Fundo de Convergência Estrutural (Focem), o Banco do Sul se apresenta como a próxima etapa de uma integração social e econômica do Mercosul. A carta de propostas sobre financiamento, assinada em dezembro pelos movimentos sociais, na última Cumbre Social em Cochabamba (Bolívia), destacava a necessidade de superar a vulnerabilidade e a dependência da América do Sul em relação aos mecanismos financeiros tradicionais da globalização (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial etc). “O Banco Solidário do Sul se constituirá na ruptura com os paradigmas dominantes de desenvolvimento controlado pelas Instituições Financeiras Internacionais (IFIs)”, aponta o documento. “Os bancos centrais de nossos países guardam seu dinheiro nos bancos dos Estados Unidos, com juros de 2%, que depois eles nos emprestam a juros bem mais altos”, argumentou o presidente venezuelano, Hugo Chávez, quando foi homenageado pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 19. O governo brasileiro estuda apresentar uma proposta, até abril, para criar um banco de fomento da América do Sul, com a intenção de financiar projetos de desenvolvimento e diminuir a disparidade socioeconômica entre os países do continente. Para a assessora política sobre instituições financeiras multilaterais da Rede Brasil, Fabrina Furtado, o Banco do Sul é um passo importante para a região, porém deve ser gerido de modo bastante diferente dos bancos tradicionais, para não reproduzir as políticas de endividamento exercidas por tais instituições. Além disso, segundo Fabrina, o Banco do Sul deve ter uma perspectiva política muito forte.

Hugo Chávez foi condecorado com a medalha Tiradentes pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro

Brasil, Celso Amorim, a adesão do país andino exigirá um tratamento diferenciado nas relações comerciais entre este e os demais países. “A América do Sul, em especial o Brasil, tem que procurar, sim, oferecer possibilidades alternativas à Bolívia, sem estar fazendo exigências que sejam desnecessárias. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita da Bolívia equivale a um quinto do brasileiro. É um país que depende, exclusivamente, de recursos naturais”, afirmou.

A entrada da Bolívia, somada ao processo de adesão da Venezuela, abre a possibilidade de uma mudança de pauta no Mercosul. Muito criticado por organizações sociais do continente por ser na essência um mero acordo comercial, o bloco econômico poderia, com a influência de Hugo Chávez e Evo Morales, abranger uma maior dimensão social e cultural – um pouco na direção dos princípios da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), proposta do

presidente venezuelano que tem como objetivo privilegiar relações complementares entre os países latino-americanos, em contraposição à proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e reúne também Cuba, além da Venezuela e da Bolívia.

GASODUTO DO SUL De fato, no documento final, os presidentes dos países-membros do Mercosul destacaram a importância das decisões tomadas durante a

MERCOSUL

Correa: inicia-se uma nova era na América Latina Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)

muitas vezes se confunde liberdade de imprensa com liberdade de empresa, pois são empresas privadas, que têm certos interesses, as que nos informam. Vai se permitir que tais empresas continuem funcionando, mas as pessoas devem ter uma verdadeira informação e para isso vamos criar um canal do Estado.

Divulgação

erminada a 32ª edição de sua Reunião de Cúpula, o Mercosul dá sinais, pelo menos nas intenções, de que poderá alterar seu caráter majoritariamente comercial e passar a privilegiar também a integração com base em outros âmbitos, como o social e o energético. No comunicado conjunto divulgado no final do encontro, realizado nos dias 18 e 19 no Rio de Janeiro, os presidentes reafirmaram o compromisso com o “aperfeiçoamento e aprofundamento do processo de integração, elemento fundamental para a promoção do desenvolvimento econômico com justiça social e para a construção de uma união cada vez mais estreita entre seus povos”. De acordo com estudos da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), o Mercosul – estabelecido em 1991 pelo Tratado de Assunção – começou a investir mais na integração entre seus componentes principalmente a partir de 2003. Durante a reunião, um grupo de trabalho foi criado para examinar e preparar a entrada da Bolívia como membro-pleno do bloco. Segundo o ministro das Relações Exteriores do

Reunião de Cúpula dos Países SulAmericanos realizada em Cochabamba, na Bolívia, nos dias 8 e 9 de dezembro de 2006, “em prol de uma união sul-americana assentada em uma concepção de integração que leva em conta a diversidade e diferenças entre os países da região e acrescenta ao comércio e à articulação econômica e produtiva as múltiplas dimensões da cooperação política, social e cultural”. Em declaração conjunta no dia 18, Hugo Chávez e o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmaram que decidiram acelerar os estudos de viabilidade técnica, ambiental e econômica do primeiro trecho do Gasoduto do Sul, entre Güiria e Recife. Segundo o documento, uma vez cumprido tais requisitos, a construção da obra será iniciada, e poderá ser concluída em quatro anos, “ratificando o compromisso social nas áreas de influência do projeto”. Ainda de acordo com o texto, “a concretização do Grande Gasoduto do Sul constitui um compromisso estratégico entre Venezuela e Brasil que representa um passo decisivo rumo à integração energética, econômica e social da América do Sul”. Além dos presidentes dos países-membros (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela), participaram da reunião de cúpula do Mercosul os presidentes da Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Suriname, além do chanceler do Peru e do primeiro-ministro da Guiana. (Colaborou Eduardo Sales de Lima – da redação)

A América Latina entra em uma nova era, descartando a experiência neoliberal. A mensagem sela a participação de Rafel Correa, presidente do Equador, na Cúpula do Mercosul, realizada no Rio de Janeiro (RJ), entre os dias 18 e 19. Correa aproveitou a estadia no Brasil para se encontrar com representantes de movimentos sociais, como João Pedro Stedile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e intelectuais, como Frei Betto. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o presidente equatoriano questionou a supervalorização dos economistas em governos latino-americanos, sobretudo os ortodoxos, e afirmou que pretende enfrentar os grandes conglomerados da mídia conservadora, que o atacaram durante sua campanha, em 2005. Para ele, muitas vezes se confunde liberdade de imprensa com liberdade de empresa. Brasil de Fato – O que exatamente o senhor quis dizer ao afirmar que a América Latina inicia uma nova época? Rafael Correa – Que o neoliberalismo ficou para trás! Esse papo-furado de que o individualismo é o motor da sociedade, depreciando tudo o que é ação coletiva, o papo de que a competição deveria ser um modo de vida subestimando a cooperação, de que a sociedade teria que se submeter aos mercados, e não os mercados à sociedade, de que não se necessitava do Estado, de planificação etc. Isso foi definitivamente para o lixo da história. Estamos em uma nova era com novas políticas, talvez nos falte racionalizar essas políticas, mas, felizmente, está-se rejeitando a antiga e buscando algo novo. BF – O senhor, como economista, disse também que não se pode confiar nos economistas...

Hebe de Bonafini entrega a Correa lenço tradicional das Mães da Praça de Maio

Correa – Eu disse para que não se dê muita bola para os economistas, porque uma das características desse vendaval neoliberal é que tudo se reduziu a dimensões mercantilistas-economicistas, tudo se resolvia com a oferta e a procura. Isso é uma grande falácia. Os economistas foram galgados à condição de sumo sacerdotes, e mais ainda, os economistas ortodoxos, os tais que acreditam que tudo se resolve com a lei do mercado, desde as batatas, a educação, saúde, dignidade, soberania etc. Os processos históricos da sociedade devem ser dirigidos por políticos. A integração latino-americana deve ser dirigida por seres políticos, com visão integral e histórica, não pelos economistas, ainda mais os ortodoxos, que acreditam que tudo é mercadoria.

A integração latinoamericana deve ser dirigida por seres políticos, com visão integral e histórica, não pelos economistas, ainda mais os ortodoxos, que acreditam que tudo é mercadoria BF – O senhor tem algum plano para enfrentar o poder dos grandes conglomerados midiáticos, que são um ponto de apoio ao neoliberalismo? Correa – Vamos fortalecer a Rádio Nacional do Equador, que já existe. Vamos criar a televisão nacional. É verdade, deve haver liberdade de imprensa e

BF – Qual sua avaliação da Cúpula do Mercosul? Correa – Há muitas coisas que podem ser feitas em nível sulamericano. O problema é que sempre caímos em armadilhas na parte comercial. É que ainda existe a lógica da competição. Inclusive isso pode avançar mais rapidamente se superarmos definitivamente a lógica da competição e a substituirmos por uma lógica de complementação, coordenação e cooperação. Mas em todo o caso, aí estão os grandes problemas e muitas vezes temos interesses excludentes. No Mercosul, temos interesses comuns, a integração energética, financeira, a infra-estrutura, a comunicação. Avancemos em nível sul-americano. Essa foi a proposta apresentada pelo Equador. É isso que vamos defender também na Comunidade Andina. Na parte em que temos interesses comuns, como a complementaridade energética que propõe o presidente Hugo Chávez, podemos criar laços rápidos.

Quem é

Rafael Vicente Correa Delgado, presidente equatoriano desde o dia 15, foi assessor econômico e ministro da Economia e Finanças de Alfredo Palacio, que governou o Equador de 2005 à posse de Correa. Ele é formado em Economia, com mestrado na Universidade Católica de Louvain (Bélgica) e doutorado na Universidade de Illinois (Estados Unidos).


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INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

A África exige um outro mundo Kai Kronfield

A diversidade e a solidariedade são valores mais lembrados em atividades do encontro em Nairóbi, capital do Quênia, que reuniu cerca de 50 mil pessoas Camille Bauer de Nairóbi (Quênia)

“V

ocê tem o contato desse movimento indiano?” Um líder comunitário de uma favela de Nairóbi, capital do Quênia, vestindo roupas rasgadas, pede a informação a um indonésio, calça e camisa brancas, impecáveis, que acaba de lhe explicar como a luta dos sem-teto da Índia forçou o Parlamento desse país a iniciar um debate sobre o direito à moradia. A cena resume o espírito no qual decorreu, entre os dias 20 e 25, o 7º Fórum Social Mundial, em Nairóbi. No início do encontro, os cerca de 50 mil participantes caminharam oito quilômetros, da favela de Kibera, uma das maiores da África, ao parque Uhu (liberdade, em kiswahili, idioma queniano). Num ambiente de festa, os lenços violetas da Marcha Mundial das Mulheres cruzaram com a procissão branca dos movimentos religiosos, muito poderosos no Quênia, as camisetas vermelhas dos

O continente africano reúne os povos mais atingidos pelo neoliberalismo; a África não é pobre, foi empobrecida

estadunidenses que lutam por justiça global entraram no bloco dos bonés verdes da Via Campesina, organização mundial de camponeses, enquanto militantes do movimento independentista do Saara Ocidental, ocupado pelo governo marroquino, agitavam suas bandeiras. Nesse turbilhão de cores e discursos, os ativistas de todo o mundo se encontraram e conversaram. Criaram contatos – de uma luta por vir. Solidariedade é termo recorrente. “Todos querem fazer conhecer sua luta”, como explica Htoo Chit, oposicionista à ditadura da Birmânia, “e conhecer a das outras pessoas”. Sophie Acan Odeng

considera que narrar sua experiência na coordenação de uma entidade de mulheres soropositivas em Uganda e ouvir sugestões são meios para reforçar sua luta. Direito à terra, direito à água, soberania alimentar, luta contra a dívida, Estado pa-

lestino, direito das mulheres, luta por moradia, direitos trabalhistas, direitos humanos. Todos os participantes vieram com seu combate. Mas encontram no Fórum “um espaço de diálogo, troca e aprendizado mútuo”, afirma o brasileiro Francisco Whitaker, um dos

Raio X do continente Área total: 30.272.922 de quilômetros quadrados População: 783,7 milhões de habitantes (2000) População urbana: 289,9 milhões de habitantes (37%) Crescimento demográfico (1995-2000): 2,4% ao ano Analfabetismo: 40,3% (2000) PIB per capita: 693 dólares (2000) Média de idade da popu lação: 18,3 anos (1998) Expectativa de vida: 42 anos (homens) e 45 anos (mulheres)

idealizadores do encontro. O movimento altermundiaslita (como é conhecido o conjunto de organizações que participam do Fórum) não mudou o mundo ainda, mas conseguiu, como resume o prêmio Nobel da Paz sul-africano Desmond Tutu, “pôr os temas sociais no centro dos debates mundiais”.

DESIGUALDADES A África que acolhe o Fórum pela segunda vez (o ano passado um evento descentralizado ocorreu no Mali) ocupa um lugar especial na luta por um mundo mais justo. “O sistema que combatemos não dá oportunidades para pessoas do continente africano”, lem-

brou Cândido Grzybowski, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). A África reúne os povos mais atingidos pelo neoliberalismo – e seus efeitos: miséria e fome. “Esse continente não é pobre, foi tornado pobre”, explica um militante do Bangladesh. Nas falas, durante as atividades do Fórum, muitos identificam o altermundialismo a uma continuidade das lutas de descolonização e contra o apartheid racial. O desafio da sociedade civil africana, no encontro, é conseguir unir as lutas do continente. Em Nairóbi, os ativistas descobrem, muitas vezes, que não estão sós. “Quando olho a multidão, encontro amigos com quem nunca conversei e talvez nunca converse. E isso me dá força para continuar”, afirma Budi Tjahjono, do movimento indonésio Pax Romana. A energia e o entusiasmo gerados no Fórum são um motor para as lutas por vir, continua. A nova cultura política – a luta contra as desigualdades e por direitos sociais – faz convergir lutas outrora fragmentadas. Esse caldo é base para a prioridade do Fórum deste ano: agir. Nesse sentido, o encontro estabelece um calendário unificado de mobilizações. “É preciso entender como os fenômenos globais afetam todos nós”, diz um militante estadunidense. Cita como exemplo a luta contra as corporações e a política belicista do governo dos Estados Unidos. (L’Humanité – www.humanite.fr)

Fonte: Organização das Nações Unidas (ONU)

Valter Campanato/ABr

O capítulo africano da resistência Valter Campanato/ABr

Feministas quenianas contra a infecção de HIV na África

Novos rumos da luta global O Fórum Social Mundial, cuja sétima edição foi realizada no Quênia, em janeiro, alimenta a união africana. É o que revela Wahu Kaara, da organização do encontro. Para ela, o Fórum mostrou ao mundo que a África “não é só desespero, pobreza e doenças”. Qual seu balanço desse Fórum? Wahu Kaaara – Principalmente, mostramos que a África tem um papel determinante no mundo. O continente não é só desespero, pobreza e doenças, mas tem muitas coisas a oferecer ao mundo, no modo como expressa seus valores humanos. Além disso, é o momento para os africanos se conectarem ao

Quem é

movimento mundial que demonstra que há alternativas ao paradigma neoliberal. Movimento este que inclui todos e transforma as fraquezas em poder. O encontro vai permitir ao continente superar suas divisões, como as de etnia e idioma? Wahu – Entre outras coisas, a organização do Fórum colocou isso à prova. Tivemos, por exemplo, que superar a divisão entre francófonos e anglófonos. A língua não foi uma barreira. O encontro provou que o que importa é o estado de espírito. Rejeitamos a lógica da divisão, do Cairo à cidade do Cabo. Em relação a mim, viajei o continente inteiro e, com orgulho, digo que sou Kikuyu, principal comunidade do Quênia, africana e cidadã do mundo. (CB)

Wahu Kaara, 53 anos, integra o comitê organizador do 7º Fórum Social Mundial e será candidata à presidência do Quênia, nas eleições de dezembro. Ela participa da Marcha Mundial das Mulheres do Quênia e foi indicada ao prêmio Nobel da Paz, em 2005.

O 7º Fórum Social Mundial fechou seu terceiro dia de atividades no estádio de Kasarani, nos arredores de Nairóbi, Quênia, onde cerca de 50 mil participantes estão reunidos. O ambiente do lugar vibra com as festivas manifestações – africanas e internacionais – que marcham em círculo ao redor do estádio, ao ritmo de música, danças e lemas. Ainda é cedo para poder fazer um balanço em 23 de janeiro (data de fechamento desta edição), mas os intercâmbios de impressões permitem desenhar um esboço de algumas das facetas mais destacadas do Fórum. Entre os principais acertos desta sétima edição, se destaca a presença africana, em números muito maior que em fóruns anteriores, e a evidente expectativa das organizações africanas de poder socializar suas lutas e, ao mesmo tempo, conhecer as de outros continentes. O fato de as organizações populares do país sede lutarem para entrar sem pagar evidencia que o FSM tem gerado expectativa e esperanças. Ainda assim, muitos participantes lamentam que a presença de organizações quenianas tem sido menos numerosas do que tinham esperado. Para Geraldo Fontes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), o custo da entrada não tem sido o único fator. “Faltou um

Ma Neeks/Creative Commons

Sally Burch, de Nairóbi (Quênia)

Na foto mais ao alto, a camisa da participante anuncia: “É assim que uma feminista parece”; acima, obra do artista dinarmaquês Jens Galschiot contra o “fundamentalismo cristão, protestante e muçulmano que inibe a difusão de informações sobre o planejamento familiar”

maior trabalho de mobilização e preparação prévia com as organizações do país”, afirma. Mesmo assim, o alto custo das entradas e das refeições, inacessível para a população pobre do Quênia tem gerado protestos. O preço de entrada de 500 shillings para os quenianos – mais de US$7, equivalente a um salário mínimo semanal – tem desatado cada dia protestos e inclusive entradas massivas, sem pagar, desde os bairros pobres da cidade, que contam com a simpatia dos demais participantes

Por outro lado, chama a atenção a forte presença das igrejas africanas (católica e protestantes), que têm mobilizado grandes delegações, muitas delas com sua própria agenda de temas e atividades, mas pouca participação e intercâmbio em outros espaços.

DEBATE E REFLEXÃO Em determinados momentos, os encontros têm-se dado em termos mais confrontantes, incluise entre africanos, como certas expressões de homofobia ou antiaborto, nos eventos sobre os direitos sexuais. Para Phumi Mtetwa, do

Diálogo Sul-Sul Gays Lésbicas Bissexuais e Transexuais (GLBT), isso não é necessariamente negativo, pois obriga o debate e a reflexão sobre as respectivas interpretações da própria cultura. De fato, em numerosos eventos, nota-se que o intercâmbio esperado com a África não se produz, com exceção, entre outros, dos espaços de movimentos mundiais, como a Via Campesina ou a Marcha Mundial de Mulheres, que têm mobilizado suas bases principalmente desde o continente, com uma temática centrada na realidade africana. “Talvez pode ser que o formato fórum seja uma idéia muito ocidentalizada – no sentido europeu-latino-americano –, que não coincide com a cultura política e social da África”, reconheceu Gonzalo Berrón, da Aliança Social Continental. Não obstante, ele saúda o fato de que o fórum está permitindo fortalecer alianças Sul-Sul, em torno de temas concretos, como a luta contra o livre comércio e a Organização Mundial do Comércio (OMC), as transnacionais e a militarização. A tenda do Fórum Social das Américas tem sido outro espaço que tem suscitado intercâmbios positivos, muitos deles espontâneamente. Registra-se o especial interesse desde os outros continentes do Sul, por conhecer mais sobre o processo de mudanças políticos na região e suas perspectivas. (Leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)


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CULTURA

De 25 a 31 de janeiro de 2007

ARTE NA PERIFERIA Fotos: Divulgação

Um freio às mazelas da cidade Foto aérea de área da Mata Atlântica na qual a Casa de Cultura Santa Tereza luta para que seja criado um Parque Ecológico; no lugar, o governo tucano pretende construir prédios do CDHU

A atuação da Casa de Cultura Santa Tereza levou à diminuição da criminalidade em Embu (SP)

Além dessa luta, a Casa de Cultura integra a luta pela criação do Parque Ecológico, uma reivindicação antiga da comunidade. Em 2000, a luta mobilizou centenas de pessoas que realizaram um “abraço à Mata”, chamando a atenção para a necessidade de preservação de uma importante área da Mata Atlântica. Essa luta continua, e tem como alvo imediato impedir que o governo do Estado construa prédios da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Anivaldo afirma que o governo e a direita tentam colocar contra o movimento os sem-teto que seriam beneficiados pelo CDHU. Para ele, é preciso lutar por “moradia de qualidade, mas essa luta não pode ser feita às custas da degradação ambiental”.

Rui Kureda de Embu (SP)

M

uitos moradores de Embu (SP) consideravam o bairro de Jardim Santa Tereza um local violento, com elevado índice de criminalidade. No final dos anos de 1980, Anivaldo Ferreira, funcionário da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), desafiou essa realidade. E pôs em prática um sonho: realizar um trabalho cultural voltado a adolescentes e jovens da periferia, para resgatá-los da rota do crime, da violência e das drogas, por meio da valorização da arte, da cultura e da cidadania. Inicialmente, tentou realizar um trabalho a partir dos mecanismos da Febem, mas não teve sucesso. Disposto a levar adiante seu projeto de qualquer maneira, Anivaldo não desistiu. Principalmente, porque percebia que muitos dos internos com os quais trabalhava moravam em Santa Tereza. Em 1992, viu sua oportunidade chegar. Ocupou um terreno ocioso e instalou ali uma barraca de lona e plástico. Trabalhava de noite na Febem e, durante o dia, dedicava-se a colocar em prática suas idéias. Na barraca, começou a realizar atividades de teatro popular com dezenas de meninos das “áreas de risco”, das áreas mais violentas e perigosas. Aos poucos, com seu salário foi erguendo paredes, iniciando a construção do que viria a ser a Casa de Cultura Santa Tereza, com 250 metros quadrados e três andares.

RELAÇÃO COM A COMUNIDADE Até consolidar o trabalho da entidade, muitas dificuldades tiveram que ser enfrentadas. E muitas etapas tiveram que ser cumpridas. A relação com a comunidade local foi uma delas. Inicialmente, houve estranheza por parte dos moradores. Mas à medida que a Casa de Cultura ia se estruturando, a comunidade percebeu a importância do trabalho de Anivaldo. Afinal, as crianças do bairro tinham atividades para

Acima, uma das principais atividades da Casa de Cultura, a Feira de Artes, que ocorre todos os anos; nas fotos ao lado, a fachada da Casa Santa Tereza e parte do seu interior

fazer, assistiam a peças, participavam de oficinas de arte. Antonio Maximino dos Santos, morador do bairro, diz que a Casa de Cultura representou “uma evolução para o bairro”, ajudando crianças e jovens. O trabalho também chamou a atenção de outros setores, inclusive empresas, pequenos comerciantes, que passaram a colaborar e oferecer suporte. A empresa Atotech, que atua no ramo de química e petroquímica, contribuiu para ampliar a Casa de Cultura. Viviane Neres, da diretoria da Casa de Cultura, ressalta a importância dessa relação com a comunidade. Para ela, é essencial para o desenvolvimento do trabalho, pois a participação dos moradores do bairro faz com que deixem de ser apenas beneficiários das atividades.

ATIVIDADE PARA A INCLUSÃO Com o passar do tempo, a Casa de Cultura foi se consolidando e colhendo frutos. O número de atividades e eventos oferecidos aumentou gradativamente. E mais pessoas se integraram ao trabalho voluntário. Zeus, outro morador do bairro, relata que, graças à Casa de Cultura, “muitas crianças deixaram as ruas e escaparam do caminho das drogas e do crime”. E, segundo ele, as atividades e eventos foram, aos poucos, despertando um interesse maior da população em relação às artes.

Esses resultados positivos foram aparecendo gradativamente. Professores notavam que meninos e meninas que participavam de oficinas e cursos da Casa de Cultura tinham um rendimento escolar melhor. Muitos jovens conseguiam um lugar no mercado de trabalho graças a cursos oferecidos pela Casa, como o concorrido curso de informática. Para Vanessa Aderaldo de Souza, também diretora da Casa de Cultura, esses resultados são conseqüência da filosofia adotada, que promove simultaneamente inclusão social e cultural, além do despertar de uma consciência crítica. Hoje, mais de 400 crianças e adolescentes participam dos cursos e oficinas oferecidos pela Casa de Cultura. São dezenas de opções, abrangendo atividades como capoeira, arte em madeira, artes plásticas, canto coral, break, fotografia, teatro infantil, redação, corte e costura, informática, ginástica aeróbica, bijuteria, bordado, entre outras.

FEIRA DE ARTES Uma das principais atividades da Casa de Cultura é a Feira de Artes, que ocorre todos os anos. A primeira ocorreu em 2000. Com barracas ocupando várias ruas do bairro, a Feira oferece atividades diversas, com vários palcos onde se alternam grupos de rock, hip hop, música eletrônica, MPB. A 1ª Feira de Arte foi um sucesso, conseguin-

PERSPECTIVAS do atrair mais de dez mil pessoas. Desde então, tornou-se uma tradição. As feiras, com o passar dos anos, tornaram-se mais atrativas, contando com a participação ampla de artistas da região e de outras cidades. E também o público aumentou. Cerca de 70 mil pessoas, segundo dados da Polícia Militar, participaram da 6ª edição.

AÇÕES POLÍTICAS Mas a Casa de Cultura também vai além de atividades artísticas. É o próprio Anivaldo quem conta que, em 2004, preocupados com o desemprego na cidade, os participantes da entidade decidiram promover mobilizações contra o desemprego. Junto com organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Consulta Popular, lançaram o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) na cidade, e iniciaram uma série de mobilizações. Envolvendo centenas de pessoas, reivindicam do poder público local soluções para o desemprego e subsídios para capacitar trabalhadores a se integrar no mercado de trabalho. E Frente de Trabalho – Programa do denunciam a governo do Estado farsa da Frende São Paulo que promove trabalhos te de Trabalho temporários a que, segundo pessoas desempregadas, geralmente Anivaldo, não como complemenpassa de “tratação de mão-debalho semiobra já existente no serviço público. escravo”.

Com tantas conquistas ao longo de anos de luta e sacrifício, Anivaldo Ferreira ainda tem mais planos. Primeiro, pensa que é necessário consolidar a Casa de Cultura, formando e capacitando mais pessoas que levem adiante o trabalho. E acha que é fundamental que iniciativas como a Casa de Cultura proliferem, que sejam criadas mais entidades voltadas para a inclusão social por meio da cultura e da arte. Pretende ainda transformar a Feira de Artes em atividade permanente. A cidade de Embu das Artes é reconhecida pelo artesanato. Para ele é necessário que se crie também na periferia uma Feira de Artes permanente, com a participação dos moradores dos bairros de Embu. E muitos outros sonhos estão na mente de Anivaldo e dos membros da Casa de Cultura. Numa situação marcada pela exclusão social e cultural, em que a desilusão prevalece sobre a esperança, iniciativas como as promovidas pela Casa de Cultura são uma inspiração para outras iniciativas populares. E, principalmente, uma prova viva de que a esperança não morreu.

Casa de cultura Santa Tereza Rua Cerqueira César, 164 Jardim Santa Tereza 06813-000 – Embu-SP (11) 4149-5315 e 4149-2957


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