Ano 5 • Número 205
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Sem mudar a economia, PAC não funciona
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DizzyMay01
São Paulo • De 1º a 7 de fevereiro de 2007
R$ 2,00
Programa de Aceleração do Crescimento esbarra nos limites da macroeconomia; juros da dívida consomem o dobro da previsão de investimentos
O
presidente Lula realizou um grande ato político para lançar o que pode ser o diferencial de seu segundo mandato: o investimento público como indutor de desenvolvimento. Essa é a principal novidade do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado em 22 de janeiro. Os novos investimentos ainda são bastante tímidos, cerca de R$ 14,1 bilhões ao ano. Porém, economistas do campo da esquerda receberam
com otimismo a iniciativa. Esperam que inicie uma ruptura com o modelo neoliberal, marcado pela retirada do Estado da economia e pela queda do crescimento e dos índices sociais. Isso dependerá de mudanças nos rumos da macroeconomia, como a queda da taxa de juros e do superavit primário. Mas, em 2006, o serviço da dívida pública consumiu R$ 275 bilhões – mais da metade do que o PAC deverá investir em quatro anos. Pág. 3
Trabalhadores alagoanos em greve por reajuste Há mais de quinze dias em greve, servidores da saúde, educação e segurança de Alagoas reivindicam a revogação do decreto do governador Teotonio Vilela Filho (PSDB) que suspende reajustes salariais, conce-
didos pela gestão anterior. Para os grevistas, o chamado “choque de gestão”, implementado pelo atual governo, penaliza os trabalhadores e reduz os investimentos nas áreas públicas. Pág. 5
Em frente ao Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, manifestantes pedem o impeachment de seu presidente com uma rima que em português significa: “Bush mentiu, milhares morreram”
EDITORIAL
Retomar a luta contra a guerra
E
Dolarização leva a perda da soberania
Mais violência e impunidade no campo
A dolarização da economia adotada em 2000 pelo Equador ou o regime similar estabelecido na Argentina em 1991 podem até acabar com a hiperinflação e garantir credibilidade. Mas os custos são muito altos. Além do desequilíbrio das contas externas devido à sobrevalorização da moeda local, os países perdem a soberania em dois importantes instrumentos da política econômica: as políticas monetárias e as cambiais. “A experiência internacional mostra que muitos países em desenvolvimento conseguem ter inflações baixas com moeda própria”, explica o economista Paulo Nogueira Batista Jr.. Pág. 6
A lentidão da reforma agrária e a impunidade são as principais causas da violência no campo, apontam especialistas. Somente no primeiro mês do ano, trabalhadores rurais e defensores da luta pela terra foram vítimas de agressões no Acre, Ceará, Goiás, Paraná e São Paulo. Também em janeiro, completam-se três anos da chacina dos auditores fiscais em Unaí (MG). Ninguém foi preso pelo crime. Pág. 4
m 19 de março, a invasão do Iraque, orquestrada principalmente pelos governos estadunidense e inglês, completa quatro anos. O saldo: mais de 60 mil civis mortos – 34,4 mil só em 2006 – e uma situação de terror e medo generalizado para a população, de acordo com a Anistia Internacional. O desespero das famílias iraquianas já seria motivo suficiente para mobilizações globais contra a guerra, nessa data. Mas não é o único: Bush está politicamente enfraquecido e abre-se assim uma oportunidade para os movimentos pacifistas mudarem os rumos da invasão do Iraque. Em 15 de fevereiro de 2003, antes mesmo de o presidente dos EUA, George W. Bush, anunciar o envio de tropas ao Iraque, organizações sociais de todo o mundo promoveram protestos contra a guerra, reunindo 12 milhões de pessoas, em 850 mobilizações em 63 países. As mobilizações, as maiores de toda a história, e a oposição veemente de vários governos e da ONU à guerra justificavam dizer que Bush não só atacava o povo iraquiano, mas pessoas e entidades de todo o mundo. Apesar dos protestos, o governo estadunidense manteve a política de guerra – contando com o apoio de muitas forças políticas internas e até de significativa parcela da opinião pública. A decisão foi um primeiro baque para os pacifistas. No entanto, esses conseguiram organizar novas mobilizações. Mas seguiram-se duas novas derrotas políticas dos opositores da guerra: a reeleição de Bush (2004) e a nomeação do ideólogo da intervenção, Paul
Wolfowitz, para presidir o Banco Mundial (2005). Diante desse cenário, as mobilizações em solidariedade ao povo iraquiano, sobretudo na Europa Ocidental e Américas, tiveram cada vez menos participação. Em São Paulo (SP), por exemplo, 40 mil pessoas marcharam contra a guerra em fevereiro de 2003; três anos depois, apenas 2 mil foram às ruas. O cenário de progressiva desmobilização pode estar chegando a seu fim. As manifestações contra a invasão do Iraque em 2007, marcadas para 19 de março, de acordo com calendário tirado no último Fórum Social Mundial, vão se dar em um novo contexto. A resistência iraquiana, inicialmente menosprezada por Bush, desestabilizou as forças estadunidenses – foram 3.081 soldados mortos, desde o início da invasão – e abalou a legitimidade do governo dos EUA. A economista mexicana Ana Esther Ceceña, no artigo “O modo americano de pensar”, veiculado em 29 de janeiro, resume a situação no Iraque: é uma guerra que Bush não perdeu, mas não tem como ganhar. Esse “não ganhar” – resultado dos incessantes ataques às tropas pela resistência dos iraquianos – desgastam o governo estadunidense, obrigando Washington a investir mais recursos e a enviar mais soldados para o país invadido. Bush anunciou um novo plano para o Iraque, afirmando que pretende enviar outros 20 mil militares ao país. A medida, que outrora o presidente estadunidense faria passar sem grandes dificuldades, pode vir a ser barrada pelo Legislativo. Nas últimas eleições para o Congresso, em novembro
de 2006, a maioria das cadeiras foi conquistada pela oposição a Bush, o Partido Democrata, cuja principal bandeira era a oposição à permanência das tropas dos EUA no Iraque. Vários deputados e senadores defendem que a proposta do Executivo deve ser discutida e votada no Legislativo. Bush concentra superpoderes, desde os atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas em Nova York, e seu novo plano para o Iraque não precisa necessariamente passar por votação parlamentar, onde possivelmente seria derrubado. O presidente dos EUA, entretanto, não pode facilmente descartar a participação do Legislativo, pois seria uma decisão impopular aos olhos da opinião pública, e desgastaria ainda mais seu já enfraquecido governo. Bush está em uma sinuca de bico. Além disso, os Estados Unidos também enfrentam uma situação política internacional bem diferente de 2003: vários aliados na invasão do Iraque retiraram suas tropas e, progressivamente, governantes começam a desafiar sua política intervencionista. E essa é uma oportunidade para reforçar os movimentos que lutam pelo fim da invasão do Iraque. Em 27 de janeiro, pelo menos 100 mil pessoas marcharam em Washington, para pressionar os democratas a exigir a votação do novo plano do governo. A mobilização deu novo ânimo aos pacifistas, que aproveitaram o espaço na mídia para discutir os projetos dos parlamentares democratas Dennis Kucinich e Lynn Woolsey para a retirada das tropas e o fim da invasão. Enfim, a paz toma novo fôlego.
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DEBATE
CRÔNICA
Mídia tucana sabota o Mercosul
De Ali até Santos
Altamiro Borges
Luiz Ricardo Leitão
mídia hegemônica brasileira, infiltrada de liberaisconservadores e sempre tão servil aos desejos do Tio Sam, tentou desqualificar de todas as formas a 32ª Reunião de Cúpula do Mercosul, realizada dias 18 e 19 de janeiro, no Rio de Janeiro. A poderosa Organização Globo, através de suas filiadas de televisão, de suas rádios e de seus jornais impressos, evitou informar seus incautos sobre os resultados concretos do evento. Em várias matérias opinativas, ela investiu contra o Mercosul, classificando a reunião de “ideologizada, atrasada, politiqueira” e tantos outros adjetivos, e tentou semear intrigas entre os governantes presentes. Não é para menos que o presidente Hugo Chávez, que não se ilude sobre o papel dos meios privados de comunicação, tenha disparado contra o jornal desta organização, que condenou o Mercosul e fez duras críticas ao processo de nacionalização da economia venezuelana. Durante a solenidade de sua premiação com a Medalha Tiradentes, num ato que lotou a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, ele disparou: “Não tenho dúvidas de que O Globo é um inimigo do povo brasileiro e latino-americano. Os oligarcas da Rede Globo acham que me ofendem. Mas perdem seu tempo. A águia não caça moscas”.
Mohammed Ali fez 65 anos. Já não é nem a sombra do lutador que impressionou o mundo nos anos 70, com seus passos de bailarino e suas esquivas desmoralizantes para os adversários, mas a aura do guerreiro permanece imaculada. Nunca fui um amante do boxe, algo que para mim sequer mereceria a alcunha de esporte, mas sempre cultivei uma admiração ímpar por aquela figura valente e ágil que, mais do que afrontar boxeadores no ringue, combateu sem tréguas a hipocrisia do Estado ianque e a sanha belicista dos seus governantes. Lembro-me como se fosse hoje da declaração dada por Ali quando se recusou a lutar no Vietnã. Disse publicamente, com todas as letras e fonemas, que não iria deslocar-se até a Ásia, a milhas e milhas de sua terra natal, para assassinar um povo que jamais esboçara qualquer agressão contra os Estados Unidos. Não poderia participar daquele festim genocida. E, de fato, não foi. Preferiu a prisão e a perda do dourado cinturão a lutar numa guerra que não era sua – e que, como a história depois nos provou, já nascera fadada à derrota. Que “celebridade”, hoje, possuiria a mesma altivez e desprendimento para contrapor-se à invasão ianque no Iraque?O Papa reza pela paz no planeta, Bono Vox (U2) troca figurinhas com os magnatas de Davos e ‘pede’ o perdão da dívida para os países pobres, enquanto as ONGs se espraiam como plantas rasteiras nos quintais da África e da América Latina, mas quem, no mundo das personalidades midiáticas, se atreve a dizer “Não!” ao grande caubói? Pois Ali disse. Pagou seu preço pela ousadia, mas não perdeu a altivez e a auto-estima que sempre o acompanharam e com a qual intimidou dezenas de oponentes bem antes que o gongo soasse.
TRAVESTIDOS DE ARTICULISTAS
No mesmo rumo, outros órgãos da imprensa alardearam que a reunião do Mercosul foi um fiasco, que os governos da região estão divididos e que o encontro serviu apenas de palanque para “o discurso atrasado do populismo radical”. A TV Cultura, sob o controle do governo de São Paulo e que hoje é um ninho de tucanos, descumpriu o seu papel de emissora pública de informar os telespectadores. O “comentarista” Alexandre Machado, ex-secretário de comunicação do governador Mário Covas e ex-superintendente de comunicação da Petrobras na gestão de FHC, foi o mais corrosivo nas críticas – talvez saudoso da política de “alinhamento automático” com os EUA e de negociação subalterna do tratado neocolonial da Alca! Já Eliane Cantanhêde, “articulista” da direitista Folha de S.Paulo e casada com Gilnei Rampazzo, um dos donos da GW, agência de publicidade que fez as campanhas de Geraldo Alckmin e José Serra, destilou o seu veneno. Mesmo reconhecendo as “preocupações sociais” dos novos governos da região, concluiu que “os resultados da 32ª Reunião de Cúpula do Mercosul foram objetivamente pobres”. O problema, teoriza, é que os novos governantes “ajustaram tom e prioridades aos de Chávez, o que equivale dizer: à esquerda. E ambicionam ampliar as fronteiras e os propósitos do Mercosul. Criado com um fim em si mesmo, hoje o bloco é um trampolim para a união de toda a América do Sul, quiçá da própria América Latina”. INTEGRAÇÃO SEGUE ADIANTE
No geral, a mídia hegemônica preferiu esculhambar a Cúpula do Mercosul e esqueceu-se de cumprir seu papel constitucional de informar o público sobre os resultados concretos do evento, que teve um grande significado político, econômico e social. Num
Márcio Baraldi
A
artigo elucidativo, intitulado “Mercosul dá novo passo à frente”, o sociólogo Ronaldo Carmona, integrante da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB, desmascarou essa vergonhosa manipulação. “Enquanto os cães ladram, a caravana da integração segue adiante. No entanto, essa reação colérica e uníssona da grande mídia coloca, diuturnamente, a premente necessidade de uma imprensa plural, democrática, que não reflita apenas um ponto de vista, como hoje.” Para ele, ao contrário do alardeado pela mídia neoliberal, “a edição de Copacabana da reunião semestral dos chefes de Estado do Mercosul foi positiva: deu novos e concretos passos no sentido de seguir aprofundando as múltiplas dimensões em que consistem as tarefas da integração sul-americana. Novos passos na integração efetiva da Venezuela e agora da Bolívia; amplo acordo Petrobras-PDVSA; primeiros projetos do fundo contra as assimetrias; financiamento do desenvolvimento, dentre outras discussões e decisões, marcaram o fim da presidência semestral brasileira”. Ele cita ainda os avanços na institucionalização do bloco, com a criação do Parlamento do Mercosul e do Instituto Social do Mercosul.
MERCOSUL PERTENCE AO POVO Numa longa entrevista ao jornal Valor Econômico, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, também avaliou como positiva a reunião. No campo estritamente comercial, ele lembrou que o Mercosul começou movimentando US$ 4 bilhões e hoje supera os US$ 30 bilhões. Já no campo político, ele reconheceu que existem dificuldades, mas reafirmou seu otimismo com a integração. “O Mercosul não pertence mais aos governos e aos burocratas, é propriedade dos povos da região. Acho que foi a reunião mais importante de que já participei do Mercosul e da América do Sul. Nunca houve uma reunião operativa, não meramente celebratória, com onze chefes de Estado e de governo presentes, com discussões tão francas, tão abertas, tão reais. É claro que, justamente por ser um ambiente franco e real, você tem a percepção do que está acontecendo, percebe as diferenças. Acho que o Mercosul saiu fortalecido.” Celso Amorim também rejeitou a leitura feita por uma parte da
mídia, de que a declaração conjunta dos governantes presentes à reunião referente à democracia no continente foi uma condenação ao presidente Hugo Chávez. “Não interpreto dessa maneira. Como é que o presidente Chávez iria subscrever uma declaração que tivesse esse objetivo? Ele é parte da declaração. Há, sim, um sentimento forte na região de apego à democracia, inclusive do presidente Chávez, que assinou esse documento. O apego à democracia é de todos, independentemente de ter mais ou menos participação do Estado, mais ou menos setor privado, mais ou menos investimento estrangeiro. A democracia é um elemento indispensável da integração sul-americana. O povo venezuelano, numa ação promovida por Chávez, colocou na constituição uma cláusula que não existe em outros países, o chamado referendo revocatório, a possibilidade de destituir o presidente no meio do mandato. Ele enfrentou esse referendo e foi confirmado no cargo. Como Chávez vai conduzir a política interna é uma questão do povo venezuelano. Eu posso ter minha opinião, mas isso não interessa, interessa a do povo venezuelano. A gente não pode querer ao mesmo tempo ser democrata, isto é, querer que o povo tenha liberdade de escolher, e depois dizer que ele deveria ter escolhido não como ele queria, mas como a gente queria. Isso é uma contradição.” Altamiro Borges é jornalista, editor da revista Debate Sindical
Infelizmente, os dois príncipes, cada qual por um motivo, já não podem compartilhar conosco a mesma trincheira da secular luta contra a exploração do homem e a contra a sanha genocida do imperialismo Era um rei negro fugido da África que se reencontrou com sua gente no curso da vida e que até abraçou a religião muçulmana como forma de consolidar a sua própria identidade. A exemplo de Ali, embora em outro campo de luta, lembra-me igualmente a nobreza daquele neto de Zumbi que, egresso do sertão baiano, viria a tornarse um dos maiores pensadores deste país. Falo, é claro, do singular Milton Santos, o geógrafo que, como poucos, ajudou-nos a desvendar os dilemas espaciais da nossa querida e sofrida Pindorama. Ainda outro dia, ao ler um artigo de Eduardo Galeano em que o uruguaio comentava ironicamente que a explosão do consumo atual “faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais”, pude aquilatar com maior precisão a clarividência e tirocínio do saudoso Milton. Muito antes de o novo milênio aterrissar, disse ele, com enorme propriedade, que “o consumo é o grande fundamentalismo da nossa era”. Ainda que a imagem de Galeano seja preciosa (inclusive pela observação final de que a cultura do consumo é igual a um tambor porque é vazia por dentro...), o precoce diagnóstico do brasileiro – acompanhado, aliás, de uma incisiva digressão sobre o fetiche do dinheiro (já bem distante do conceito original que lhe atribuíram os iluministas) – possui uma contundência que o nosso espírito não consegue abrandar. Infelizmente, os dois príncipes, cada qual por um motivo, já não podem compartilhar conosco a mesma trincheira da secular luta contra a exploração do homem e a contra a sanha genocida do imperialismo. De onde estamos, enviamos nosso axé para ti, Ali; por onde estiveres, lembra-te de teus irmãos, Santos. Pindorama e Palmares hão de reverenciá-los eternamente. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em literatura latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, João Alexandre Peschanski, Marcelo Netto Rodrigues • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • César Sanson • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Pedro Ivo Batista • Ricardo Gebrim
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NACIONAL CRESCIMENTO Marcello Casal Jr./ABr
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante anúncio do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), que pretende investir mais de R$ 500 bilhões em infra-estrutura até 2010
Por enquanto, o PAC não muda nada Programa mostra disposição para ampliar investimento público, mas sem alterar macroeconomia Luís Brasilino da Redação
O
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) trouxe um grande ponto positivo, a retomada da idéia de que os investimentos públicos são essenciais para promover o crescimento. Essa concepção viveu no ostracismo desde que o Brasil adotou, na década de 1990, o modelo econômico neoliberal, baseado na progressiva redução da intervenção estatal e na transferência de poder para o setor privado. “O PAC representa uma tentativa do governo Lula de mostrar que já ultrapassou a era de conformidade absoluta com o neoliberalismo capitalista”, analisa o jurista Fábio Konder Comparato. No entanto, a obsessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em encontrar soluções negociadas para agradar a todos pode acabar sendo a ruína do novo plano. Isso porque não houve nenhum indicativo de que a política macroeconômica – neoliberal – será alterada. Segundo economistas, sem essa mudança, é impossível esperar por “aceleração do crescimento”. O lançamento do PAC, em 22 de janeiro, foi, contudo, um ato mais político do que o anúncio de alguma reviravolta. Com ele, o governo Lula incorporou um novo elemento às características de sua gestão. Agora, soma-se à condução conservadora da macroeconomia e aos programas sociais de transferência de renda, um certo grau de desenvolvimentismo. Na prática, porém, a primeira ainda Desenvolvimentismo – Ideologia é a prioridade. que prioriza a inEm 2006, os judustrialização acelerada, o aumento ros consumiram da renda per capita R$ 275 bilhões, e a elevação das frente a R$ 8,2 taxas de crescimento. bilhões do Bolsa Família. Para o PAC, estão previstos cerca de R$ 14,1 bilhões anuais de investimentos públicos novos. Estes são os recursos que o programa irá destinar para o Projeto Piloto de Investimentos (PPI) até 2010. Até lá, o Projeto Piloto de Investimentos governo estima (PPI) – Criado em que o total de acordo com o FMI, em 2004, trata-se investimentos de um fundo cuja chegue a R$ finalidade é garan503,9 bilhões, tir que os recursos nele aplicados não sendo que, dessejam drenados tes, R$ 217 bipara fazer superávit primário; e sim lhões viriam da investimento. iniciativa privada, R$ 219 bilhões de estatais e R$ 68 bilhões do orçamento da União, incluído, aqui, os recursos do PPI.
INFRA-ESTRUTURA Mesmo otimista, o economista José Carlos de Assis, editor da página na internet Desemprego Zero, reconhece que o volume de novos investimentos é baixo. “Quero apoiar o programa porque é um começo, pelo menos muda o sinal. É
muito pouco, mas esse pouco está na direção correta”, afirma. Guilherme Delgado, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concorda que essa é a direção mais correta a seguir. “O plano tem esse mérito, relançar a idéia de que é o investimento do Estado que alavanca o crescimento. Assumir a infra-estrutura de bens públicos como
uma esfera que deve ser priorizada e, por aí, as metas de crescimento da energia e da logística estão bem dimensionadas”, garante. O PAC prevê, até 2010, R$ 274,8 bilhões para a área energética (petróleo, gás natural, combustíveis renováveis e hidrelétricas), R$ 170,8 bilhões para o setor social e urbano (saneamento, universalização do
Programa Luz para Todos, habitação, metrô, trens urbanos e infraestrutura hídrica) e R$ 58,3 bilhões para a logística, isto é, construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, hidrovias e aeroportos. Porém, para Delgado, o PAC pode acabar esbarrando na capacidade hidrelétrica do Brasil. “Ela demanda investimentos com muita
Valter Campanato/ABr
Programa encara os trabalhadores como gasto O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) possui três medidas que são diretamente dirigidas à classe trabalhadora. O reajuste do salário mínimo passa a ser calculado de acordo com a inflação mais um aumento real equivalente ao crescimento da economia de dois anos atrás. Já os gastos com os servidores podem ser elevados até um máximo de 1,5% anual, além da inflação. Por fim, transfere recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para um fundo que será destinado a investimentos privados em infra-estrutura. Com relação ao salário mínimo, Guilherme Delgado, do Ipea, acredita ser importante a regra ter garantido um aumento real. “Não me parece que as contas previdenciárias suportem um reajuste muito acima dessa proporção”, justifica. Entretanto, o limitador aos gastos do funcionalismo, segundo Delgado, vai na contramão do próprio PAC. Ao prever aceleração
Maria Negreiros na 3ª Marcha Nacional pela Valorização do Salário Mínimo
do crescimento, o programa gera demanda por um maior aparelhamento da administração pública. Além disso, o economista Rodrigo Ávila, da Campanha Auditoria Cidadã, ressalta que a medida elimina a possibilidade de recuperação de perdas salariais passadas e que a progressão na carreira dos servidores já deve consumir a maior parte dos 1,5% de aumento real previsto.
Em dois anos, juros da dívida consomem mais que todo o PAC A direita brasileira – grandes empresários, banqueiros e a mídia corporativa – é unânime na crítica ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), afirmando que o desenvolvimento será perseguido com o uso de recursos públicos. Assim, critica a “pequena” isenção fiscal (ainda que até 2008, o PAC preveja que esta acumule R$ 18 bilhões) e a “tímida” redução dos gastos correntes (apesar dos limites impostos ao reajuste dos servidores públicos). A crítica ao emprego de verba pública para financiar o investimento esconde uma ideologia perversa. A fórmula da direita para impulsionar o crescimento tem como primeiro passo o corte de gastos sociais. Isso daria à União a folga orçamentária suficiente pa-
ra reduzir a carga tributária. Dessa forma, os empresários seriam estimulados a investir e, conseqüentemente, o Produto Interno Bruto (PIB) seria expandido. O raciocínio é ideológico, pois atende a interesses do segmento da sociedade ligado ao mercado. O corte nos gastos sociais prejudica a camada mais fragilizada da população, aquela que depende dos serviços públicos de saúde, educação, moradia, transporte. Já a redução dos tributos destinada a incentivar a produção favorece os empresariados. Além disso, a fórmula protege os lucros do capital financeiro, destinatário da maior parcela de recursos públicos. Para esconder isso, a Previdência social é apontada como a grande vilã das contas públicas.
Já a transferência de recursos do FGTS é nefasta, segundo Ricardo Antunes, da Unicamp. “O mecanismo tira dinheiro do fundo dos trabalhadores e, com esses recursos, beneficia grandes empreiteiras. Essa verba deveria ser destinada à valorização da força de trabalho, para interesses que são prioritários para os trabalhadores”, protesta. (LB)
Entretanto, em 2006, ela recebeu cerca de R$ 193 bilhões, os quais foram distribuídos a 24,2 milhões de beneficiários, além de um milhão de servidores públicos federais inativos e pensionistas. Por outro lado, estudo do economista Rodrigo Ávila mostra que “os gastos federais com juros e amortizações das dívidas interna e externa atingiram nada menos que R$ 275 bilhões, valor equivalente a 37% do orçamento de 2006”. Segundo o economista Marcio Pochmann, da Unicamp, não passa de 20 mil o número de famílias que recebem esse dinheiro. É por isso que a esquerda defende que a política econômica deve mudar para estimular o crescimento. Com a redução do superavit primário (economia de recursos para o pagamento dos juros da dívida), seria possível utilizar a sobra de recursos para induzir o crescimento; e com distribuição de renda. (LB)
defasagem temporal em relação ao crescimento da demanda e com sobrecapacidade. Como o país está atrasado há pelo menos dez anos, as metas de expansão do setor elétrico podem ser atropeladas se a procura crescer acima de 6% ou 7% ao ano. Energia elétrica é estoque de capital, provisão que se não estiver instalada você fica sem. No curtíssimo prazo, isso depende mais de São Pedro que de qualquer outra coisa”, anuncia.
MACROECONOMIA Segundo o pesquisador do Ipea, o outro ponto que pode acabar atravancando o programa é a gestão financeira. Ele explica que o plano trabalha com a hipótese de uma redução significativa da taxa de juros até o patamar de 5% anuais. “É uma hipótese boa, mas isso foi combinado com o Banco Central (BC)? Ele incorporou essas metas na sua política macroeconômica ou vai emperrar o sistema a qualquer tensão inflacionária? Por enquanto, ele não incorporou a meta de crescimento, só tem a meta de inflação para cumprir”, critica, lembrando que, em reunião no dia 24 de janeiro, o Comitê de Política Monetária (Copom) reduziu o ritmo de queda da taxa Selic. Desde maio de 2006, os juros vinham caindo 0,5 ponto percentual a cada mês. Na última reunião, porém, a Selic passou de 13,25% para 13%. O sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que essa decisão do BC é o primeiro sinal de que o PAC não vai mudar substancialmente coisa alguma. Para ele, o PAC não passa de “um verniz desenvolvimentista numa política financista”, de um governo em sintonia com o mercado. “Não questiona o modelo neoliberal, não toca na essência. Mas é evidente que o Lula percebeu que entrou numa tragédia no primeiro mandato e que uma saída é retomar, um pouquinho, a dimensão estatal. Mas a tentativa é pífia e em consonância com o que aceitam os capitais. O empresariado também quer o Estado financiando”, afirma.
PILARES Essa essência, para Antunes, constitui-se de cinco pilares responsáveis pela miséria no Brasil, os quais permaneceram intocados durante o governo petista. “O primeiro é o endividamento externo, os juros da dívida interna e a remuneração dos bancos. Segundo, os altos lucros do grande capital produtivo – siderurgia, petroquímico etc – que foi privatizado no governo Fernando Henrique Cardoso e o Lula não fez sequer uma revisão. Terceiro pilar é a estrutura concentradora e predatória da terra. O quarto é a propriedade intelectual. E quinto, a política de superexploração do trabalho estampada no nosso baixo salário mínimo”, critica.
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De 1º a 7 de fevereiro de 2007
NACIONAL VIOLÊNCIA NO CAMPO
Hamilton Octavio de Souza Negócios privados - 1 Em Brasília ou na Suíça, o presidente da República do Brasil dedicou boa parte de sua agenda de janeiro para atender executivos de empresas transnacionais, a maioria com propostas de negócios do interesse deles. No Fórum Econômico de Davos, o presidente conversou reservadamente com, entre outros, os diretores da Merck, Google, Citibank e CocaCola, todos dos Estados Unidos. Negócios privados – 2 O jornal O Estado de S. Paulo (25/01/2007) informou que o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, manteve encontros com empresários da HP, Google e UPS, todas dos Estados Unidos. “Na pauta do encontro com a UPS estava a desburocratização da alfândega brasileira para os serviços privados de entregas.” Agora é só prestar atenção nas medidas adotadas pelo governo. Estafeta fiel Comentário do presidente do Citibank, William Rhodes, sobre o presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles: “Ele é homem de confiança do sistema financeiro internacional e acredito que também dos banqueiros brasileiros”. Mais um indício de quem é o verdadeiro patrão de Meirelles e quais interesses ele defende para a fixação das taxas de juros vigentes no Brasil. Ódio ideológico A imprensa empresarial brasileira praticamente ignorou o 7º Fórum Social Mundial, realizado em Nairóbi, no Quênia, que reuniu mais de 40 mil participantes e deu grande contribuição para mobilizar os movimentos sociais da África contra as políticas neoliberais. Os “principais” jornais não enviaram repórteres para lá, mas publicaram editoriais raivosos sobre o evento. O mesmo de sempre. Paraíso operário Em entrevista para o jornal Folha de S.Paulo, o tesoureiro da CUT, Jacy Afonso Melo, defendeu a política trabalhista do governo do PT, que, para ele “criou em quatro anos muito mais emprego do que o PSDB em oito anos e também elevou a renda do trabalhador”. Isso deve explicar por que os trabalhadores vivem felizes e não fazem mais movimentos reivindicatórios e greves. Paraíso empresarial As empresas estrangeiras que operam no Brasil enviaram para suas matrizes, em 2006, mais de 16,3 bilhões de dólares de lucros e dividendos, 29% a mais do que em 2005. A remessa é espetacular, um recorde histórico, e superior aos investimentos públicos nos programas sociais. Graças a esses lucros, obtidos no Brasil, algumas empresas equilibraram seus déficits nos Estados Unidos. Turismo negativo De acordo com o Banco Central, em 2006 os turistas brasileiros deixaram no exterior 5,7 bilhões de dólares, enquanto que os turistas estrangeiros trouxeram para o Brasil apenas 4,3 bilhões de dólares. Os dados revelam, de um lado, que a violência afasta o Brasil do roteiro do turismo internacional e, de outro, que os mais ricos e setores da classe média brasileira preferem viajar para o exterior. Lição argentina A Argentina foi violentamente combatida pelos economistas brasileiros e pela mídia neoliberal depois que declarou a moratória, em 2001, mas acabou com a dívida externa e tem conseguido crescer acima dos 8% ao ano. Para contrariar a ortodoxia adotada pelos críticos brasileiros, na semana passada a taxa de risco para investimentos na Argentina foi menor do que a do Brasil. Democratização já Mais de 40 entidades, movimentos e veículos alternativos e populares estão participando da organização de um grande encontro paulista pela democratização da comunicação, no mês de maio, em São Paulo. O objetivo é fortalecer a luta contra os oligopólios da mídia, pela redistribuição das concessões públicas de rádio e TV e pelo acesso democrático de todos aos meios de comunicação.
Mais perseguição a sem-terra Atuando impunemente, milícias privadas agem contra movimentos sociais Elza Fiúza-ABr
Dafne Melo da Redação
M
al começou e 2007 já registrou em seu primeiro mês diversos casos de violência contra trabalhadores rurais sem terra e os defensores da reforma agrária. Além de milícias privadas de latifundiários, a Polícia Militar e o Judiciário aparecem novamente como agentes da perseguição aos movimentos sociais. “A criminalização continua persistindo como estratégia para impedir as camadas populares de acessarem seus direitos”, avalia Darci Frigo, advogado da ONG Terra de Direitos. Cerca de 80 policiais militares, no dia 26, chegaram atirando e invadiram o acampamento da fazenda Sete Rios, no município de Flores de Goiás (GO). De acordo com o MST, o Batalhão da Polícia Militar não tinha mandato judicial para efetuar o despejo das 600 famílias. As lideranças presentes na ocupação foram isoladas, amarradas e espancadas. Os sem-terra só foram soltos após a chegada da Ouvidoria Agrária, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de advogados do MST. As famílias deixaram a área, mas não interromperam a luta: ocuparam a fazenda Toca da Raposa, em Planaltina (DF), cuja documentação está irregular, segundo o movimento. Dia 19, dois membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sofreram uma tentativa de assassinato na rodovia que liga os municípios de Cruzeiro do Sul (AC) e Guajará (AM). Rob Kler Melo e Leandro Rogério iam de carro a um projeto de assentamento quando foram parados por policiais militares. Um deles, Oscar de Souza Dias, reconheceu Melo, vereador de Guajará, que meses antes apresentou denúncias de que o policial estava lhe ameaçando de morte. O policial apontou uma arma para a cabeça de Melo e ordenou que deixasse o carro. Com medo de ser executado, o agente da CPT se recusou a descer e disse que iria
Sem-terra ligados ao MST bloqueiam entrada da fazenda Toca da Raposa, em Planatina (DF)
até à delegacia do município. Ao acelerar o carro, foi perseguido pelos policiais, que atiraram contra o carro dos integrantes da CPT, que transportava ainda uma amiga e duas crianças. A perseguição só parou quando Melo conseguiu chegar à casa do prefeito de Guajará. Em declaração à página na internet da CPT, o vereador declarou que acredita ter sido vítima de uma emboscada. “Não fizeram na primeira abordagem pelo fato de não contarem com presença de crianças dentro do carro”, disse o vereador. Os casos de violência não acabam por aí. No Ceará, 150 famílias saíram de uma fazenda de criação de camarões acusada de irregularidades ambientais, após receberem ameaças de jagunços contratados pelos proprietários, dia 24. No Estado, há famílias acampadas a mais de cinco anos. Segundo o MST, a meta do Incra de 2006 era assentar 2 mil famílias, mas apenas 206 receberam um lote de terra. No Paraná, dia 19, membros de uma milícia armada, que disseram estar a mando do deputado José Janene (PP-PR), despejaram as 200 famílias que ocupavam uma fazenda de propriedade do deputado. José Batista Afonso, da CPT,
acredita que a ação das milícias – muitas vezes em conjunto com a polícia – é uma das maiores causas de atos de violência contra os trabalhadores sem terra. “A Polícia Federal precisa ter uma ação mais incisiva, investigando essas milícias que muitas vezes se apresentam como empresas de segurança”, opina. Ao seu ver, o aumento da repressão aos movimentos sempre ocorrerá quando as mobilizações forem retomadas. A solução para o conflito, para Darci Frigo, é uma ação combinada entre a realização da reforma agrária e um combate à violência que passe pela sensibilização das autoridades policiais e do Judiciário. “Salvo honrosas exceções, o Judiciário tem sido um instrumento para reprimir os movimentos sociais e não efetuar seus direitos. As autoridades têm dificuldade de entender que os Direitos Humanos integram a ordem jurídica”, opina. Outro caso foi a prisão do professor universitário e militante do MST, Marcelo Buzetto, dia 19, em São Caetano do Sul (SP). Buzetto, que estava em regime de prisão domiciliar, foi detido ao ir ao fórum local prestar contas à Justiça.
Em 1999, o professor foi condenado a seis anos e quatro meses de prisão em regime semi-aberto, após participar de uma ação em Porto Feliz (SP). Durante o ato em que os sem-terra exigiam a liberação de cestas básicas, um caminhão de alimentos foi saqueado. A Justiça condenou Buzetto, mas como não havia vagas no regime semi-aberto, ele permaneceu em regime de prisão domiciliar. Porém, com a abertura de uma vaga, Buzetto foi encaminhado para a penitenciária de São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo. Aton Fon Filho, advogado da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), afirma que Marcelo, durante o ocorrido, estava no acampamento e não participou desta ação. Os advogados de defesa do militante entraram com pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), mas o ministro Joaquim Barbosa não concedeu a liminar. O advogado relata que foi negada ao réu a prerrogativa de que, quando condenado à prisão em regime semiaberto, tem o direito constitucional de aguardar o julgamento de todos os recursos em liberdade. (Com informações da Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br)
TRABALHO ESCRAVO
Chacina em Unaí segue sem julgamento Gisele Barbieri, de Brasília (DF) Em janeiro de 2004, três auditores fiscais e um motorista foram assassinados quando investigavam denúncias de trabalho escravo em Unaí, noroeste de Minas Gerais. Três anos depois, a impunidade prevalece. Até o momento, as investigações levantaram nove suspeitos, entre executores e mandantes, nomes conhecidos em Unaí, como o atual prefeito da cidade, na época candidato Antério Mânica (PSDB). A família do político é conhecida como a maior produtora de feijão do país e, além de terras em Minas Gerais, acumula propriedades também no Paraná. Em 2003, estas fazendas passaram por freqüentes fiscalizações para combate ao trabalho escravo e muitos foram libertados dessas terras. Nos dias 27 e 28, protestos em Unaí e na capital Belo Horizonte cobraram agilidade da Justiça para o caso. Familiares das vítimas, integrantes dos sindicatos e associações dos auditores fiscais, além de organizações de defesa aos direitos humanos e ligadas à luta contra o trabalho escravo, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), com faixas e cartazes exigiram o fim da impunidade. Entre os apontados como mandantes estão os irmãos Norberto e Antério Mânica. Os acusados de planejar o assassinato conseguiram um habeas corpus e aguardam o julgamento em liberdade. O Ministério Público levantou provas de que
Fábio Pozzebom/ABr
Fatos em foco
Principal acusado é o atual prefeito de Unaí, do PSDB, que na época era candidato
Norberto teria pressionado e tentado subornar testemunhas. Já Antério terá direito a julgamento no Tribunal Regional Federal, em Brasília. Os outros acusados executores e mandantes vão a júri popular. O trabalho escravo no país é uma prática freqüente, devido a fatores como a falta de fiscalização das políticas implementadas pelo Estado. Apesar de Minas Gerais ocupar a sétima posição no ranking de Estados onde o trabalho escravo é identificado regularmente, os dados são preocupantes. Segundo o relatório “Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI”, divulgado em 2006 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), 7,85% dos trabalhadores escravizados entre 2003 e 2004 no país são de 68 municípios mineiros. Só em 2006, já são 24 denúncias de trabalhadores mantidos em regime de escravidão no Pará, onde o índice de violência
no campo é altíssimo, e 12 no Mato Grosso. Entre 2000 e 2005, 6.120 pessoas foram libertadas no Pará. A pena prevista em lei para quem mantém trabalhadores nestas condições precárias pode chegar a oito anos de prisão. Mas a dificuldade em fiscalizar e punir os culpados faz com que os fazendeiros se fortaleçam e as fiscalizações diminuam, pela falta de segurança que os auditores fiscais têm a cada investigação. Representantes do agronegócio na região de Unaí, a família Mânica tem influência política em todo o Estado e exerce uma relação de poder sobre a população. “O nosso clamor é julgamento já! Esse não é um caso isolado, isto está se tornando uma regra na nossa região. Tudo ditado pelo poder econômico. Nosso município está se tornando um pilar do agronegócio”, diz Frei Gilvander Moreira, secretário da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG).
Com as intimidações e a falta de punição dos culpados, as fiscalizações foram reduzidas e a população garante que o trabalho escravo segue sendo utilizado pelos fazendeiros em Unaí. Em fevereiro do ano passado, um adolescente de 17 anos que trabalhava de forma irregular em uma fazenda localizada no município foi encontrado morto. O jovem estava há menos de três meses na propriedade de Celso Mânica (outro irmão) e foi sugado num processo de armazenamento de grãos de soja em um silo da fazenda Vale Verde. “Essa impunidade tem trazido insegurança e faz com que maus empregadores tirem proveito disto. No ano passado sofremos dois atentados. Um no Mato Grosso e outro no Pará. O nível de insegurança que causa a impunidade dá guarita para quem pratica este ato ilícito”, denuncia a presidente do Sinait, Rosa Maria Campos Jorge. O assassinato dos auditores e do motorista não é o único caso a mostrar a força do agronegócio na região. Perto de Unaí, em Felisburgo, o fazendeiro Adriano Chafic Luedy é apontado como mandante da chacina que matou cinco trabalhadores rurais sem terra, deixando outros doze gravemente feridos, em novembro de 2004. Ele continua em liberdade e segue ameaçando os sem-terra que já conquistaram um assentamento. O fazendeiro teve sua prisão decretada por duas vezes, mas conseguiu a liberdade no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
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NACIONAL GREVE GERAL EM ALAGOAS
Contra o “choque de gestão” tucano Alagoas 24 horas
Policiais civis, professores e servidores da saúde reivindicam revogação de decreto que suspende pagamento de reajuste de salários Tatiana Merlino da Redação
E
m protesto contra o decreto 3555/2007 publicado pelo governador de Alagoas, Teotonio Vilela Filho (PSDB), que suspendeu o reajuste salarial de servidores públicos do Estado, mais de 30 mil trabalhadores da saúde, educação e segurança estão em greve, desde o dia 16. A medida, de acordo com o governo, foi adotada para cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita os gastos com a folha de pagaLei de Responsabilidade Fiscal mento em 49% – Promulgada em da receita. Os 2000, estabelece normas de finanças servidores, popúblicas voltadas rém, rechaçam para a responsao argumento de bilidade na gestão fiscal. É o código de Vilela e promeconduta para os administradores públi- tem manter a cos que passarão a paralisação até estabelecer normas o governador e limites para administrar finanças, aceitar a instituiprestando contas ção de planos de de quanto e como gastam os recursos cargos e salários da sociedade. para o funcionalismo estadual, já aprovada pela gestão anterior e que ele revogou. Durante uma semana, os manifestantes ocuparam o prédio da Secretaria da Fazenda em Maceió, e contaram com o apoio de trabalhadores municipais e movimentos sociais. Pressionado, o governo concordou em repor os reajustes suspensos, por meio de uma folha suplementar, a não ser dos professores, que tiveram um reajuste de apenas 20%. De acordo com o governador, reajustar o salário dos professores no mesmo nível dos outros servidores gera um impacto de R$ 12 milhões na folha do Estado. Ele propôs liberar mais 5% e pagar o restante (75%) à medida que a arrecadação do Estado for melhorando. De acordo com o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em Alagoas, Isac Jacson, essa proposta de pagamento “a perder
Durante uma semana, manifestantes ocuparam o prédio da Secretaria da Fazenda em Maceió, e contaram com o apoio de trabalhadores municipais e movimentos sociais
de vista” não será aceita pelos servidores e só a revogação do decreto acaba com a greve geral. O corte dos reajustes atingiu cerca de 80% do funcionalismo, segundo a Secretaria de Administração. Alagoas tem 51 mil servidores na ativa e 17 mil aposentados e pensionistas. Os salários de dezembro de 2006, que começaram a ser pagos no meio de janeiro, já sofreram cortes. Segundo o governo, os reajustes concedidos no ano passado desequilibraram as contas do Estado. No entanto, os ex-governadores Ronaldo Lessa (1999 a 2006) e Luís Abílio (2006) negaram que os reajustes aos servidores tenham ultrapassado os limites da LRF.
TODOS MOBILIZADOS Os servidores da saúde (exceto os médicos, que voltaram à ativa) e os policiais civis também resolveram manter a paralisação até o governador revogar o decreto. De acordo com eles, mesmo tendo voltado atrás quanto aos pagamentos dos servidores da saúde e segurança, com o decreto em vigor o governador teria autonomia para suspender os pagamentos a qualquer
momento. “Com a manutenção do decreto ele pode alegar a falta de orçamento mais uma vez”, aponta Mário Jorge dos Santos, presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Estado de Alagoas. Apesar de ter devolvido o salário dos servidores da saúde, diz, ficou faltando fazer a devolução do pagamento de 30% das férias dos trabalhadores. De acordo com o presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Alagoas (Sindpol), Carlos Jorge da Rocha, os profissionais da área decidiram mover uma ação civil pública contra o Estado. O objetivo é que a categoria seja ressarcida por danos morais e prejuízo financeiro. O Ministério Público Estadual de Alagoas também entrou com uma ação civil pedindo a nulidade do decreto, alegando que ele é inconstitucional “por exorbitar o poder e os limites que a Constituição Estadual confere ao representante do Poder Executivo”.
CHOQUE DE GESTÃO Segundo os grevistas, o modelo de gestão que está sendo implementado pelo governador Vilela segue
os mesmos moldes dos também tucanos governadores Aécio Neves, de Minas Gerais, e Yeda Crusius, do Rio Grande do Sul – onde diversas categorias de servidores públicos gaúchos começam a se mobilizar contra a política de arrocho fiscal do novo governo. De acordo com os governos tucanos, o chamado “choque de gestão” tem como objetivo equilibrar as contas do Estado, mas é duramente criticado pelos servidores, que afirmam que esse modelo reduz os investimentos nas áreas públicas, penaliza os servidores públicos estaduais, a pequena e média indústria e a agricultura. “O que há é um projeto do governos do PSDB para desmontar os serviços públicos. Mas as causas da dívida pública e desacertos na economia, reconhecidas por todos, não foram originadas pelo aumento dos servidores públicos, como pretende induzir o governo. São fruto, em parte, das políticas públicas de arrocho fiscal impostas aos Estados da federação”, aponta Mário Jorge dos Santos. “Que choque de gestão é esse que diz que ignora a Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal, não cobra os inadimplentes e, assim, acaba não investindo na educação e nem no trabalhador?”, questiona Girlene Lázaro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Educação de Alagoas (Sinteal), que afirma que os recursos da educação não estão sendo aplicados como deveriam.
BOLSA ESCOLA Outra medida polêmica tomada pelo governador de Alagoas foi a suspensão, por decreto, do programa de transferência de renda para famílias carentes. O projeto Bolsa Escola Cidadã, criado em 2000, repassava R$ 75,50 para famílias carentes com a contrapartida de manterem os filhos de até 14 anos na escola. Nove mil famílias recebiam o benefício. Segundo a secretária-adjunta da Educação, Márcia Valéria Santana, a atual administração detectou que cerca de 20% das famílias atendidas pelo projeto eram beneficiadas também pelo Bolsa Família, programa de transferência de renda do Governo Federal. No início do ano letivo, disse Santana, será feito o recadastramento de famílias.
DIREITO SOCIAL
Renato Godoy de Toledo da Redação O Governo Federal deve anunciar, no dia 12 de fevereiro, uma alteração metodológica nas contas previdenciárias. Por meio de uma medida provisória, o Tesouro Nacional terá que destinar R$ 18 bilhões anuais à Previdência Social, para arcar com o custo das isenções de entidades filantrópicas, pequenas empresas e do pagamento de aposentadoria rural, entre outros. A medida pode ajudar a desconstruir o mito da “Previdência deficitária”, propagado pela mídia corporativa e pelo mercado financeiro, já que, por exemplo, os gastos com a aposentadoria de trabalhadores rurais – um direito social conquistado – não serão mais considerados déficit, mas, sim, uma política pública, como previsto na Constituição de 1988. Para o economista Rodrigo Ávila, membro da Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, a alteração atende apenas parcialmente a deman-
da dos movimentos sociais, já que não representa nenhuma mudança na estrutura orçamentária e nenhum aumento no investimento social. “A medida é um reconhecimento tardio das reivindicações dos movimentos sociais, que exigiam que as despesas com os setores não contributivos fossem reconhecidas como seguridade social, não déficit. Porém, não há nenhuma mudança significativa”, afirma. Apesar de apontar pequenos avanços, Ávila questiona a coerência do governo: “Se não há déficit, por que fizeram a reforma da Previdência (em 2003)? Por que estão formando um fórum, com banqueiros e empresários, que defendem a instituição de idade mínima?”.
FALSO DÉFICIT Já para Guilherme Delgado, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a nova metodologia tem caráter bastante positivo. “O principal ponto dessa medida é o esclarecimento da opinião pública, que é bombardeada pela grande
João Zinclar
A contradição do governo na Previdência Planalto anuncia que mudará cálculo, reconhecendo como direito gasto com a aposentadoria de trabalhador rural; mas segue desviando recursos da Previdência para pagar a dívida
imprensa com a idéia do déficit, que agora chamam até de ‘rombo’”, avalia o pesquisador. “Essa medida vai clarear as contas públicas. É um absurdo considerar déficit o benefício mínimo concedido a um trabalhador sem capacidade contributiva. Essa idéia é um preconceito alimentado por economistas conservadores”, completa Delgado. A tese do déficit previdenciário, segundo Rodrigo Ávila, se baseia em um cál-
culo em que a única receita da Previdência é oriunda dos descontos das folhas de pagamento, de empregadores e empregados, o que contradiz a Constituição. “Este cálculo é falso, já que a Previdência está inserida na Seguridade Social, que também abrange saúde e assistência social. A Constituição prevê que a Seguridade Social deve ser financiada pelos descontos nas folhas salariais e também por impostos, como a Contri-
buição para Financiamento de Seguridade (Cofins) e a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL)”, contesta. Dados do próprio Tesouro Nacional corroboram a argumentação de Ávila. No ano de 2006, a receita total destinada à Seguridade Social superou em R$ 4,4 bilhões a despesa. No entanto, a mídia corporativa anunciou um “rombo” de R$ 42 bilhões na Previdência.
Ocorre que parte do dinheiro que deveria ser destinado à Seguridade Social pode ser desviado para outras áreas, devido a um mecanismo criado durante o governo Itamar Franco, pelo então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso. Esse mecanismo, hoje chamado de Desvinculação dos Recursos da União (DRU), foi aprovado em votação no Congresso, em 1994, com oposição do Partido dos Trabalhadores (PT). No entanto, o governo Lula manteve esse mecanismo e, no orçamento de 2007, está previsto um desvio de R$ 12 bilhões da Seguridade Social, via DRU. Para Ávila, esse dinheiro, majoritariamente, será utilizado no pagamento de juros e amortização da dívida pública federal. Em 2006, o governo destinou R$ 275 bilhões para o pagamento de juros e amortizações da dívida, enquanto a Previdência recebeu R$ 193 bilhões. “A imprensa sempre aponta a Previdência como o problema para o orçamento, da dívida ninguém fala”, conclui Ávila.
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AMÉRICA LATINA DOLARIZAÇÃO
O extremo da subordinação econômica Impactos da dolarização Em termos gerais, a dolarização plena ou outras variáveis similares – como aconteceu na Argentina (veja matéria abaixo) – implica basicamente a adoção de quatro medidas:
Maringoni
Embora tenha levado à diminuição da inflação, a troca da moeda local pelo dólar tornou países latino-americanos ainda mais dependentes dos EUA
• ancoragem cambial: a taxa de câmbio varia de acordo com a moeda escolhida como garantia; • conversibilidade: a moeda local pode ser trocada por uma estrangeira sem restrições. • subordinação da base monetária às reservas internacionais: a emissão de moeda fica condicionada ao nível de reservas no Banco Central do país; • uso interno do dólar: eliminação de restrições à circulação, depósitos, criação de créditos, uso em contratos do dólar. (IO)
Igor Ojeda da Redação
E
leito em 26 de novembro do ano passado, o novo presidente do Equador, Rafael Correa, recebe forte apoio popular para seu mandato, iniciado em 15 de janeiro. Ele promete profundas reformas sociais, aliando-se a Hugo Chávez, da Venezuela, rumo ao socialismo do século 21. No entanto, o novo mandatário resiste a uma das reivindicações dos movimentos sociais: a retomada da soberania econômica por meio da desdolarização da economia. O processo de dolarização (veja definição ao lado) no Equador teve início em janeiro de 2000, com Jamil Mahuad na Presidência. O país passava por um período de inflação elevada, atingindo 60,7% em 1999 (no ano seguinte, chegou a 91%). Assim, a Superintendência de Bancos do Equador anunciou que os bancos deveriam realizar todas suas transações em dólar a partir de 13 de junho. Em abril, o governo começou a pagar o salário do funcionalismo público na moeda estrangeira e, em 13 de setembro, utilizando suas reservas de dólares, tirou o sucre de circulação. “Geralmente, quem faz isso são países com uma crise inflacionária muito grande. Você importa a credibilidade da moeda adotada e com isso baixa a inflação mais rapidamente. No entanto, a experiência internacional mostra que muitos países em desenvolvimento conseguem ter inflações baixas com moeda própria. Não é necessário dolarizar”, explica o economista Paulo Nogueira Batista Jr.. No ano seguinte à dolarização, em 2001, a inflação no Equador baixou para 22,4%. A avaliação dos que são favoráveis a esse tipo de medida é que a hiperinflação afeta a credibilidade internacional do país e da moeda que este emite. A única maneira
de enfrentar tal situação seria a adoção de algum tipo de garantia, conhecida como âncora. Ou seja, subordinar ou substituir a moeda local por outra “confiável”. Com isso, a credibilidade do país seria restituída.
PROBLEMAS Segundo Batista Jr., há uma vantagem adicional da adoção do dólar como moeda de garantia para os países que têm os EUA como grande parceiro econômico, pois a medida reduz consideravelmente os custos das transações entre as duas nações. Além disso, fica facilitada a remessa de recursos por parte dos que trabalham nos EUA. No entanto, os impactos negativos são significativos. Como o valor da moeda ancorada acompanha a flutuação da moeda âncora nos mercados internacionais de câmbio, a economia do país que
adota a dolarização depende das decisões tomadas pelo governo do país emissor da moeda escolhida. “O país fica sem política monetária e cambial, dois instrumentos fundamentais de política econômica, que são interligados. O país se torna uma província monetária da nação emissora da moeda adotada. As decisões que esta toma nada têm a ver com a situação da economia dolarizada, e sim com a própria conjuntura econômica”, alerta Batista Jr.. Além disso, o governo do país dolarizado perde também uma fonte de financiamento chamada receita de senhoriagem, que são os recursos obtidos com a emissão de moeda a custo financeiro muito baixo. Tal receita é transferida para o país emissor da moeda âncora. Na opinião do economista, “o país fica, do ponto de vista do financiamento do governo como uma província ou um município.
Como um município ou uma província de um país se financiam? Com dívida interna ou externa. O governo federal de um país que tem moeda própria tem uma terceira fonte, que é a emissão de base monetária”, ou seja, o conjunto de moeda em circulação no país mais os depósitos à vista junto às autoridades monetárias. Para completar, como essa emissão fica condicionada às reservas internacionais, outro problema decorrente da dolarização apontado por seus críticos é a perda da condição de credor de última instância do Estado, recurso em que o país lança mão da emissão monetária para socorrer o sistema financeiro em caso de crise sistêmica.
SEM COMPETITIVIDADE Apesar do ambiente externo favorável, a economia do Equador sofre algumas conseqüências ne-
Equador – dados econômicos 1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
PIB(1)
4,1
2,1
- 6,3
2,8
5,3
4,2
3,6
7,6
3,9
Inflação(1)
30,6
43,4
60,7
91
22,4
9,3
6,1
1,9
3,1
Desemprego (1)
9,3
11,5
15,1
14,1
10,4
8,6
9,8
11
10,7
Transações correntes (2)
- 0,45
-2
0,91
0,92
- 0,69
- 1,4
- 0,34
- 0,15
- 0,13
Dívida externa bruta (2)
15
16,4
16,3
13,5
14,4
16,3
16,6
17
18,9
Fonte: Cepal (1) em porcentagem (2) em bilhões de dólares
gativas da dolarização. A convergência entre a inflação equatoriana e a estadunidense não foi imediata: só em 2004 é que isso aconteceu. Por causa disso, o valor externo da moeda local aumentou entre 2000 e o ano da convergência. O resultado foi a perda de competitividade internacional, ocasionando seguidos déficits no balanço de pagamentos em transações correntes (movimento de mercadorias e serviços entre um país e o resto do mundo). Segundo dados da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 2000, ano da dolarização, o Equador apresentou saldo positivo de 921 milhões de dólares em transações correntes. No ano seguinte, ocorreu um déficit de 695 milhões de dólares; em 2002, teve um saldo negativo de 1,4 bilhão de dólares. A partir de 2003, beneficiado pelos preços internacionais do petróleo, os déficits foram diminuindo (em 2005, fechou em 136 milhões de dólares). Em 2005, por exemplo, as exportações do país cresceram 30,3% em relação ao ano anterior. De acordo com a Cepal, a expansão da exportação de petróleo (38,4%) é responsável por 64% da diminuição. Mas, tendo o déficit das transações correntes como uma das causas, a dívida externa, que era de 13,5 bilhões de dólares em 2000, saltou para 18,9 bilhões em 2005. Já as condições de vida da população pouco se alteraram. Entre 2000 e 2005, o crescimento econômico foi modesto. No último ano, o PIB do país cresceu 3,9%. A taxa de desemprego permaneceu estável. Em 2001, após uma queda de 3,7%, estava em 10,4%. Em 2005, 10,7%. Segundo Batista Jr., como o cenário externo é amplamente favorável à economia equatoriana, os problemas mais graves decorrentes da dolarização não aparecem agora, mas podem estourar no futuro. “Quando começam a ocorrer circunstâncias internas ou externas adversas, aí o regime de dolarização tem pouca flexibilidade, e o país fica imobilizado, sem instrumentos face a choques”, explica. Hoje, na América Latina, apenas Equador, El Salvador (desde 2001) e Panamá (desde 1904) adotam a dolarização plena.
Reprodução
O desastre argentino
O desastre brasileiro
A Argentina, apesar de não ter adotado uma dolarização plena, estabeleceu quase todos seus elementos com a lei de conversibilidade de 1991, ou Plano Cavallo, uma referência ao ministro da Economia na época do governo de Carlos Menem (1989-1999), Domingo Cavallo. O projeto de lei de conversibilidade entrou em vigor no dia 1º de abril, menos de duas semanas depois do seu envio ao Congresso. O peso argentino foi declarado conversível em dólares a uma taxa de câmbio nominal fixa. Outro ponto adotado foi a subordinação da base monetária argentina às reservas internacionais disponíveis no Banco Central. Segundo a lei, elas deveriam ser no mínimo equivalentes. Além disso, o novo plano deu respaldo jurídico para o uso interno da moeda estadunidense. Assim, a maior parte dos empréstimos e depósitos no país era feita em dólar, da mesma forma que tarifas públicas e contratos, como os aluguéis. Por dez anos consecutivos, o modelo obteve sucesso no combate à inflação e a economia cresceu a taxas significativas até 1997, quando atingiu uma expansão de 8,1%. No entanto, com as crises no leste asiático no mesmo ano, na
No Brasil, embora o Plano Real tenha atrelado a nova moeda ao dólar, a medida não pode ser caracterizada como dolarização. Estabelecido com a meta de acabar com a hiperinflação em 1994, durante o governo Itamar Franco, o novo plano tinha três objetivos fundamentais, que foram postos em prática gradualmente. Primeiro, o equilíbrio das contas nacionais, com o aumento de impostos e corte nos gastos públicos. Depois, foi implantada a
Rússia em 1998, no Brasil em 1999 e a desaceleração da economia dos EUA, a vulnerabilidade do país a choques internacionais causada pela rigidez da lei de conversibilidade ficou evidente. Em 2001, a economia argentina entrou em profunda crise, causando a renúncia de Fernando de la Rúa, que insistia em modificar a situação, mas manter o regime. As taxas de desemprego e pobreza dispararam, assim como a taxa de juros. Com a sobrevalorização do peso, o déficit do balanço de pagamentos em transações correntes continuava elevado, aumentando a dependência em relação ao financiamento externo. Em janeiro de 2002, o presidente Eduardo Duhalde iniciou a revisão do sistema monetário do país, estabelecendo a pesificação
compulsória. Abandonou o atrelamento do câmbio ao dólar, decretou a desvalorização do peso e desvinculou a emissão monetária das reservas internacionais. Além disso, desdolarizou a economia doméstica (empréstimos, depósitos, contratos) e suspendeu o pagamento de boa parte da dívida externa, anunciando sua intenção de reestruturá-la. Menos de cinco anos depois, os resultados já puderam ser medidos. Em 2002, o PIB argentino recuou 10,9% em relação ao ano anterior. Em 2005, cresceu 9,2%. O déficit de 3,3 bilhões de dólares em 2001 no balanço de pagamentos em transações correntes se transformou em um superávit de 5,4 bilhões de dólares quatro anos depois. Já o desemprego caiu de 17,4% para 11,6% entre 2001 e 2005. (IO)
Unidade Real de Valor (URV), dispositivo que fazia com que todos os produtos ficassem desvinculados da moeda vigente, o cruzeiro real. Ficou determinado que a URV correspondia a um dólar e, após um período de vigência, ela teve seu nome trocado para real. Tais medidas, em conjunto com a desregulamentação e desnacionalização da economia feita pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), fizeram aumentar a desigualdade social e a dependência externa. Tal vulnerabilidade estourou em 1999, quando o câmbio passou de fixo para flutuante e o real desvalorizou mais de 40%. (IO) Reprodução
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De 1º a 7 de fevereiro de 2007
INTERNACIONAL OUTRO MUNDO POSSÍVEL NA ÁFRICA Fotos: Valter Campanato/ABr
Mulheres da Via Campesina, organização internacional da qual o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) faz parte, durante oficina no 7º Fórum Social Mundial
Novos temas no Fórum Realizado pela primeira vez inteiramente no continente africano, o encontro priorizou discussões sobre igualdade de gênero e melhores condições de saúde Daniel Merli de Nairóbi (Quênia)
S
ão africanos os 25 países com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nove em cada dez mortos por malária vivem na África. São 300 milhões de vítimas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Também é no continente que vive um terço das pessoas portadoras de aids em todo o mundo. Nesse continente, aterrissou a sétima edição do Fórum Social Mundial, principal encontro dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, realizado em Nairóbi, capital do Quênia, entre 20 e 25 de janeiro. Foi a primeira vez que o encontro aconteceu inteiramente em solo africano. No ano passado, a versão descentralizada do Fórum Social aconteceu
na Venezuela, Mali e Paquistão. O deslocamento do Fórum Social para a África fez com que muitas pessoas fossem ao encontro pela primeira vez. E reforçou temas que costumam não ter tanta força nos debates do Fórum.
CAMISINHA E RELIGIÃO Entre as principais preocupações dos participantes do Fórum Social, não estavam temas tradicionais de outras edições do encontro. Não foi a guerra, apesar de Somália e Etiópia travarem uma batalha do outro lado da fronteira queniana, com participação dos Estados Unidos. Nem foi a dívida externa, apesar de serem africanos a maior parte dos chamados Países Altamente Endividados. Das cerca de mil atividades inscritas, 300 eram para debater a luta pela igualdade de gênero entre homens e mulheres. Dentro dessa área, o principal assunto era o planejamento familiar e a luta contra a aids. “Temos uma cultura, na África, em que a mulher é monogâmica e o homem, poligâmico. As mulheres não usam preservativos e acabam infectadas em sua própria cama”, afirmou a ginecologista católica Catherine Lalobo Lore, que fechou sua clínica após 20 anos de trabalho, para se dedicar à educação sexual de mulheres.
A luta contra a aids despertou outro tema na África, além da igualdade de gênero. É a batalha por um sistema público e universal de saúde. “Mesmo com todos os problemas que imagino que tenha, o SUS (Sistema Único de Saúde) ainda é, na teoria, o sistema que defendemos’’, afirma o médico Nicola Delusso, especializado em saúde do trabalhador, que representa a Associação de Trabalhadores na Saúde da Itália. “Lógico que na Itália temos uma situação de saúde melhor, mas, com a privatização dos hospitais públicos que começou na Espanha e na Grécia, vamos perder o que o SUS garante, que é um sistema de atendimento universal’’, afirmou Delusso. Koneh Solange Sanogo, coordenadora de um trabalho comunitário na Costa do Marfim, concordou. ‘’Pelos relatos dos brasileiros, a situação dos pobres de lá é tão ruim quanto a dos pobres daqui. Mas é totalmente diferente poder contar com um atendimento público, por pior que seja”. De olho nesse exemplo, os participantes do 2º Fórum Social Mundial de Saúde agendaram o próximo encontro para julho de 2008, data de 20 anos de aniversário do SUS. (Agência Brasil)
Reforma agrária no continente dos camponeses Um ano após seu lançamento, a Campanha Mundial pela Reforma Agrária chega ao continente em que a agricultura tem maior peso. Seis em cada dez trabalhadores africanos vivem no campo. Destes, 60% produzem apenas para subsistência. Uma atividade no 7º Fórum Social Mundial, em Nairóbi, marcou o lançamento na África da campanha, iniciada ano passado, em Porto Alegre, durante a Conferência sobre Reforma Agrária da Organização da Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO). Por essa situação, Geraldo Fontes, do coletivo de relações exteriores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), considera importante a chegada da campanha à África. “Já havíamos lançado mundialmente a campanha em Porto Alegre, mas ela envolvia mais latino-americanos e asiáticos, agora chega finalmente à África”, explica. A inserção dos africanos na campanha mundial é considerada positiva por Oduor Ong’wen, do Instituto de Informação sobre Negociações Comerciais, que integra o Comitê Organizador do encontro. “Nós, africanos, vivemos tão inseridos em nossos problemas que perdemos a dimensão mundial que eles têm. O maior ensi-
namento do Fórum Social para nós foi ver que os problemas que vivemos na África são os mesmos dos pobres latino-americanos e asiáticos”, afirma. A campanha consiste em manifestações pela desapropriação
de terras, em cada país, no dia 17 de abril, aniversário do massacre de Eldorado de Carajás, escolhido como dia mundial de luta pela reforma agrária, e denúncias para acabar com a violência contra camponeses. (DM)
Com boné da rede latino-americana de tevê Telesur, o ator estadunidense e também diretor da organização Transafrica Forum, Danny Glover, conhecido por suas atuações em Máquina Mortífera e Manderlay, participou de reunião com movimentos sociais brasileiros, como quilombolas, grupos de defesa da mulher e MST; Glover tem planos de levar ao cinema a história de Toussaint L`Ouverture, líder da revolução haitiana.
Financiamento para o FSM? O patrocínio ou apoio ao Fórum Social Mundial por governos, entidades religiosas e organizações privadas, como a Fundação Ford, geram, desde 2001, discussões sobre qual influência o financiamento pode ter sobre os debates do encontro. Mas, na 7ª edição, que ocorreu no Quênia, na África, esse debate aumentou. “Não queremos patrocínio de empresas privadas”, critica Mamy Tladi, do Fórum Anti-Privatização, principal coalizão de movimentos sociais da África do Sul. A organização do Fórum nega que haja financiamento. O principal motivo de discussão são dois outdoors em Nairóbi que dão boas-vindas aos participantes, com o logotipo da Celtel, empresa privada de telefonia celular do Quênia, que teve estandes no encontro. A organização do FSM confirmou que houve um acordo para que a empresa fizesse publicidade do encontro, em troca de associar seu logotipo ao evento. A Celtel também ofereceu 100 mil linhas gratuitas para quem apresentasse um crachá de participante do Fórum Social. O usuário deve pagar as ligações. A parceria com a Celtel é con-
Borel e Cidade de Deus na maior favela do Quênia As pálpebras de Glória Cristina dos Santos seguram as lágrimas quando conta as impressões de sua primeira viagem para fora do Brasil. A catadora de papel partiu do Jardim Gramacho, favela que surgiu em volta de um aterro sanitário, em Duque de Caxias (RJ). O destino foi Nairóbi, capital queniana, na África, onde participou do 7º Fórum Social Mundial. O trabalho de catadora de papel não dá a Glória Cristina os cerca de 2 mil dólares necessários para ir e voltar de Nairóbi para o Rio de Janeiro. Nem a Associação dos Catadores do Aterro Jardim Gramacho, em que milita, tem recursos para enviar uma representante. Sua viagem foi bancada pelos funcionários do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que colaboram mensalmente com um “Fundo de Solidariedade” para levar cinco militantes até o Fórum Social Mundial. Uma dessas cinco pessoas, Mônica Santos, da Favela do Borel, ficou impressionada com Kibera, a maior favela queniana, com um milhão de habitantes. A marcha de abertura do 7º Fórum começou no local, que abriga um em cada quatro habitantes de Nairóbi. “Chocante”, afirma. “Não que a gente não tenha essa realidade no Brasil, mas aqui eles ainda estão
siderada útil por Oduor Ong’wen, do Instituto de Informação sobre Negociações Comerciais, uma das 44 organizações quenianas que formam o Comitê Organizador do encontro. “Também fizemos acordo com a Kenyan Airlines, para dar desconto de tarifa aos participantes do Fórum Social’’, disse. Oduor considera que esses apoios são laterais, já que não envolvem patrocínio e os principais financiadores do encontro continuam sendo organizações civis sediadas na Europa. Este ano, segundo ele, o grupo cristão Oxfam, com sede na Inglaterra, e o protestante Novib, com sede na Holanda, doaram mais de 400 mil dólares para a realização do Fórum. Candido Grybowski, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e representante da organização no Conselho Internacional do Fórum Social, defendeu que cada participante do encontro doe à organização o valor correspondente a um dia de trabalho no ano. E que as organizações sociais criem um fundo internacional para cobrir os gastos do encontro. Com o dinheiro, além do evento, poderia ser aumentado o Fundo de Solidariedade, que traz militantes de base de países pobres para o FSM. “Isso é importante também para que quem financie não possa impor sua agenda de debates”, afirmou. (DM)
buscando o que a gente já batalha há 30 ou 40 anos, que é esgoto, saneamento básico.” Ela lembra que o Borel possui uma história “muito particular” de luta por seus direitos. “Começou com o envolvimento das lideranças da favela com o Partido Comunista nos anos 50, e depois foi criada a primeira associação, a União dos Trabalhadores Favelados do Rio de Janeiro”, conta. “As coisas mais básicas a gente tem, que é a luz, o saneamento e o transporte.” Glória Cristina estranhou as mansões em que os participantes do Fórum Social ficaram alojados, em um bairro próximo ao evento. “Hospedaram-me em um lugar totalmente diferente de onde eu moro, mas passando de carro eu vi lugares muito parecidos com o Jardim Gramacho.” “Minha África está lá no Brasil”, compara. “E antes de sugerir propostas para a África, tenho de propor soluções para a minha África.” A professora Cleonice Dias, do Comitê Comunitário de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, também ainda não conhecia Kibera, mas fez uma visita ao local. Em seu bairro, Cleonice luta pelo desenvolvimento local, o que fez a comunidade abrir algumas associações de produtores. E já estuda a abertura de uma usina de biodiesel. Na África, viu que a luta diária contra a miséria não é exclusividade da Cidade de Deus. “Que luta é essa que temos de fazer para que todos os povos possam enfrentar a desigualdade e a pobreza? É isso que a África está motivando.” (DM)
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CULTURA
De 1º a 7 de fevereiro de 2007 Divulgação
AUDIOVISUAL
A periferia, como convém Pesquisadora analisa a contradição dos discursos das emissoras de TV sobre a periferia: ou pobre é violento ou é o pacífico criativo Dafne Melo da Redação
A
periferia está na moda? A julgar pela produção audiovisual, mais do que nunca. Somente a maior emissora do país, a TV Globo, dedicou quatro produções ao cotidiano dos moradores dos grotões das metrópoles nos últimos dois anos: o programa Cidade dos Homens, a série de Regina Cazé para o Fantástico, Central da Periferia e, para o mesmo programa, a exibição do documentário Falcão, Os Meninos do Tráfico. Mais recentemente, houve a exibição do filme Antônia, em forma de minissérie. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ivana Bentes, professora de comunicação da UFRJ, analisa o discurso “esquizofrênico” das emissoras de TV: se nos programas jornalísticos o jovem negro continua marginalizado, como o criminoso representado por uma sombra na parede e uma voz metálica, esse mesmo jovem é visto como “o favelado legal” na dramaturgia. Brasil de Fato – Ultimamente, a televisão tem mostrado interesse em retratar a periferia não só no jornalismo, mas de forma crescente na dramaturgia. Por quê? Ivana Bentes – As favelas e periferias brasileiras e a pele negra, modeladas por séculos de exclusão e criminalização, vêm se tornando uma “mercadoria quente” na cultura urbana jovem, com a disseminação das expressões urbanas e estilos de vida vindos da pobreza que são um fenômeno global com visibilidade na cena cultural mundial. Como aconteceu com a cultura negra dos guetos nos Estados Unidos, a cultura da pobreza e das favelas no Brasil ganha hoje visibilidade como uma fonte de significado e identidade. A publicidade precisa de “estilos de vida” para se espelhar e vender. Paradoxalmente, comportamentos criminalizados pelo Estado – bailes populares nas favelas, pixação, venda de produtos piratas e apropriação de espaços públicos – se tornam “estilo” de vida passíveis de comercialização. Ao se constituírem como consumidores e produtores, pobres e negros passaram a ser considerados cidadãos, o que tem seu lado evidentemente positivo. Se como “mercadoria nova” ou como consumidores, esses novos sujeitos do discurso, saídos das favelas, aparecem na mídia de forma isolada, não se pode neutralizar a sua real força. Trata-se de um processo cultural saído das periferias que apreende de forma privilegiada a dinâmica da sociedade brasileira, profundamente desigual e, ao mesmo tempo, aberta para as “misturas” multiculturais. BF – Como o morador da periferia está sendo retratado nesses programas? Ivana – De formas distintas. Existe um discurso celebratório da “periferia legal”, como se aquelas produções culturais fossem geração espontânea do nosso povo criativo. Admiro as propostas sempre à frente e ousadas de um Hermano Vianna na Globo, que faz antropologia urbana no Central da Periferia, ou a Tata Ama-
Personagem Dadinho, em cena do filme Cidade de Deus
ral, que vem do cinema dar sua contribuição a uma visão menos estereotipada da vida na periferia paulista, em Antônia. O perigo é a gente transformar pobreza em folclore ou em gênero cultural, naturalizar isso, achar que “puxa, é legal ser pobre”. Aceitar essa domesticação do racismo, do preconceito, da desigualdade e criar o pobre criativo e feliz, mas fora da universidade, sem
morre violentamente no Brasil são os jovens negros pobres. Racismo não é um problema individual, de caráter, um “acidente”, é um dos fundamentos da desigualdade do Estado, da sociedade brasileira. Pobreza não é um acidente, não é uma exceção, não é um problema individual, é um problema da sociedade. Como é que o mesmo jovem negro criminalizado no telejornal – o desordeiro,
O perigo é a gente transformar pobreza em folclore ou em gênero cultural, naturalizar isso, achar que “puxa, é legal ser pobre” disputar emprego com os garotos de classe média. Enfim, o pobre “limpinho” do discurso higienista, pronto para consumo, sem um sobressalto ético, sem perceber a violência física e simbólica a qual esses jovens são submetidos. BF – E no jornalismo? Ivana – Aí caímos nos discursos mais retrógrados de criminalização dos moradores das favelas e periferias, da relação entre essa cultura e a criminalidade, na idéia de que a violência nasce na favela e que os pobres são a causa da violência urbana e da insegurança. Enfim, nos estereótipos, no racismo, em discursos extremamente conservadores. BF – O que está por trás deste discurso ambivalente? Ivana – A bipolaridade esquizofrênica é, por exemplo, apresentar na produção ficcional um mundo folhetinesco, em que os negros e pobres são bons e honestos, em que se faz uma idealização, quase uma santificação da pobreza feliz. Aí, a mesma “emissora da ética e dos bons costumes premiados” faz editorial contra as cotas no Jornal Nacional, ou seja, contribui para barrar os jovens negros na sua entrada urgente e imediata na universidade. Então, será que o pobre bom é esse folclórico, não-problemático, destituído de discurso político, que não reivindica nada socialmente? Racismo na novela é visto como uma exceção, quando sabemos que no Brasil é a regra. Quem
drogado, traficante, arruaceiro, trabalhador ilegal, invasor – vira o pobre legal da novela? Porque alguns são “bons” e outros “maus”? Ou porque alguns têm “força de vontade” e outros não? Definitivamente não é por aí. Essa ambigüidade reflete e, ao mesmo tempo, produz a violência dos discursos no Brasil, quando a questão são os fenômenos ligados à pobreza. BF – Como falar da realidade social brasileira, retratar a periferia, sem fazer “canibalismo dos fracos”? Quais experiências você cita como positivas? Ivana – Canibalismo dos fracos é a gente se comer entre nós. Canibalismo potente é o que se apropria das forças, dos instrumentos, do corpo e das tecnologias “inimigas” para fazer algo diferente. Acho que temos que entender os fenômenos da pobreza, do racismo e da potência cultural que vêm dos territórios da pobreza, dentro de um contexto global. São fenômenos do capitalismo contemporâneo. Então, para entender a periferia paulista em um filme como O Invasor (Beto Brant), nos é mostrado a relação que ela tem com a cultura empresarial, com a falta de limites de certo capitalismo brutal, com os métodos gerenciais dos executivos. Ou ainda, o [documentarista] Eduardo Coutinho vai à favela e encontra discursos sofisticados e complexos, visões de mundo que não têm nada a ver com os clichês que construímos. Ou en-
tão, vemos alguns clipes como os do MV Bill, dos Racionais MC’s, falando de violência policial, tráfico de drogas, da vida cotidiana nos presídios, mas de forma renovada. Ou um documentário como O Prisioneiro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento), que dá uma câmera para os internos do presídio se expressarem, sem demonizá-los. Outro filme excelente é Sou Feia Mas Estou na Moda, (Denise Garcia), um documentário sobre o funk feminino no Rio de Janeiro e sua renovação das questões de sexualidade, direito reprodutivo. BF – Você acha que iniciativas de se retratar a realidade da periferia “de fora” estão fadadas a traçar um perfil equivocado dessa população? Ivana – Não. Se fosse assim, escritores não escreveriam sobre situações que não viveram, cineastas só falariam de seus grupos sociais etc. A questão não é essa, mas sim quão complexa é a visão de mundo possível nesses filmes e programas. Certamente que a entrada de jovens vindos das periferias na TV, na universidade, nas redações de jornal, nos teatros, nas editoras, nos lugares de decisão política e produção cultural muda muita coisa, muda estereótipos, traz discursos que podem disputar e concorrer com o que está aí já dado. BF – Em 2006, a decisão do governo pelo padrão japonês na TV digital decepcionou parcelas organizadas da sociedade civil que viam nessa tecnologia um grande potencial democratizante, podendo dar vazão à produção independente de audiovisual... Ivana – Acho que as cartas ainda estão sobre a mesa e se houver pressão e mobilização política, a TV digital pode se abrir para os movimentos sociais, para o cinema brasileiro, para a produção independente, experimental, universitária, para a produção que vem das periferias. Mas isso não vai acontecer sem pressão. Os interesses são enormes nessa área e vêm de todos os lados. A sociedade tem que intervir e pressionar também, afinal as TVs são concessões públicas. Nada mais natural
que lhe seja restituído o direito de produzir uma comunicação que expresse a sua singularidade e multiplicidade. Se esse governo conseguir mudar a mentalidade corporativa e monopolista dos meios de comunicação, vai ter realizado uma das maiores mudanças na história do país. Mas sem pressão e apoio, nenhum governo faz tamanha mudança. BF – O que muda com o digital? Ivana – Com tantas possibilidades tecnológicas de multiplicar os canais de comunicação com o digital, todos nós nos tornamos potenciais produtores, distribuidores e consumidores de informação, de arte, de linguagem. Isso já está acontecendo com a internet, quebrando consensos, fazendo uma guerrilha semiótica, no campo das idéias. A sociedade tem que estar tecnologicamente equipada para fazer essa que será a grande revolução do capitalismo cognitivo, onde todos nós nos transformamos em unidades móveis de produção e expressão, sem mediadores. Daí a importância hoje de lutar por emissoras de TV públicas – nem privadas e nem estatais –, mas da sociedade. Internet pública e gratuita e telefonia também de graça são as bases da produção contemporânea e da cidadania. Essa cultura da periferia que estamos vendo explodir tem a ver com essa apropriação e subversão da tecnologia. São as tecnologias capazes de criar a “intelectualidade de massas”, como diz Antonio Negri (filósofo italiano) no seu livro Multidão. (Leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
Quem é
Ivana Bentes é professora e pesquisadora de comunicação, cinema e novas mídias e diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisa em que analisa as imagens produzidas nas últimas décadas sobre as periferias, as mudanças tecnológicas e o imaginário da sociedade nesse processo. Participa da Rede Universidade Nômade: www.universidadenomade.org.br