BDF_208

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 208

R$ 2,00

São Paulo • De 22 a 28 de fevereiro de 2007

www.brasildefato.com.br

No Brasil, apenas 13,4% dos meninos e meninas com até 3 anos possuem acesso à educação infantil

Ferdinand Reus/Creative Commons

Onze milhões de crianças sem creche F

amílias de baixa renda vivem um drama ignorado pelos governos: onde deixar meu filho? Apenas 1,7 milhões de crianças têm acesso à educação infantil. Especialistas consideram que o aprendizado na faixa etária de 0 a 3 anos é fundamental para o desenvolvimento intelectual do ser humano. Para o pesquisador Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, crianças que freqüentaram escolas, nessa fase, possuem renda mais alta e menor índice de criminalidade na idade adulta. Enquanto isso, a União (governo federal, Estados e municípios) investe no ensino infantil menos de 0,3% do que gasta com a dívida pública. “O poder público está se furtando de cumprir a sua missão fundamental, que é a educação”, afirma a professora aposentada da PUC-SP, Aldaíza Sposati. Pág. 3

Conferência – Entre os dias 23 e 27, acontecerá no Mali, país africano, o fórum mundial sobre soberania alimentar; na foto, a maior construção em areia feita pelo homem, a mesquita de Djenné, considerada pela UNESCO patrimônio mundial

EDITORIAL

Retomar a luta

Irã, novo alvo para os EUA pode ser descartada. Segundo especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, neoconservadores do governo de George W. Bush e grupos das Forças Armadas

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defendem um ataque como forma de barrar o crescimento do poder iraniano no Oriente Médio. Pág. 7 Eleventh Earl of Mar

Embora uma ação militar estadunidense contra o Irã seja, na atual conjuntura, insensata, como definem muitos estudiosos do assunto, tal alternativa não

Mais uma vez, o presidente estadunidense George W. Bush pode se fazer valer de mentiras, agora para atacar o Irã; num truque de computador, a palavra “mentiroso” aparece tatuada em sua testa

Juro alto é uma opção ideológica do governo Lula Pág. 4

A falácia do risco da falta de energia

Segurança pública deve servir a todos

Pág. 5 Depois do assassinato de um menino de seis anos com a participação de um adolescente, Congresso começa a votar mudanças na legislação, entre elas a redução da maioridade penal. Em entrevista, o pesquisador Marcelo Freixo diz que “não adianta fazer mudança nas leis sem investir na alteração do sistema penitenciário”. Pág. 8

assado o carnaval, as férias de verão e as festas de Natal e Ano Novo, o Brasil entra agora na rotina de 2007 com as pessoas mais atentas aos reais problemas do povo e do país. Nos últimos dias, a mídia hegemônica explorou o drama da violência urbana – uma guerra permanente com milhares de vítimas, principalmente jovens de 15 a 24 anos, fruto da desigualdade gerada pelo capitalismo e da ausência de serviços públicos e do Estado propriamente dito nas concentrações populacionais de baixa renda. Se não houver vontade política dos governos para implementar uma ação ampla contra o narcotráfico, proteger crianças e adolescentes assim como reduzir os bolsões de miséria, a violência continuará assassinando – todos os dias – impiedosamente. Nas escolas, a juventude brasileira sofre com o descaso do ensino e com o processo de privatização. Pesquisas recentes dos órgãos federais comprovam que a qualidade do processo ensinoaprendizagem piorou nos últimos dez anos – com queda no conhecimento das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Mais de dois milhões de jovens que concluíram o ensino médio em 2006 não poderão continuar seus estudos na universidade em 2007, principalmente porque mais de 70% das vagas no ensino superior estão nas mãos de instituições privadas, com cursos pagos, e porque o sistema de bolsas do governo abrange menos de 10% do público potencial e interessado. Agora é tempo de lutar. A Igreja Católica inicia o cotidiano de 2007 com a Campanha da Fraternidade centrada na Amazônia. Sob o lema “Vida e missão neste chão”, a campanha chama a atenção para a destruição ambiental, a invasão estrangeira e a urgência da promoção humana naquela

região do país. A campanha se propõe a mobilizar amplos setores da sociedade para enfrentar os desafios e a promover ações em defesa da biodiversidade e do povo da Amazônia. Agora é tempo de lutar. Os movimentos feministas e as organizações das mulheres do campo e da cidade estão preparando grandes manifestações em várias cidades brasileiras no Dia Internacional da Mulher – 8 de março –, este ano com foco na soberania alimentar, na luta contra os transgênicos e o agronegócio, além das questões mais específicas da discriminação e da violência contra as mulheres trabalhadoras. Nesse dia, deve desembarcar em Brasília o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush – que merece o repúdio do povo brasileiro –, já que até mesmo em seu próprio país vem sendo acusado de ser um dos principais responsáveis pelo terrorismo internacional. O 8 de março é um dia histórico, de reflexão e de luta, instituído para homenagear as 129 operárias de uma fábrica têxtil, de Nova York, que foram assassinadas (carbonizadas dentro da fábrica) durante um protesto por melhores condições de trabalho, em 1857. No Brasil, embora as mulheres tenham conquistado inúmeros direitos ao longo do século 20, existe ainda uma situação de muita desigualdade nas várias atividades privadas e profissionais, na remuneração do trabalho – fruto do preconceito e da exploração capitalista. O Dia Internacional da Mulher é o dia da união de todos – mulheres e homens da cidade e do campo – para a construção de um outro Brasil, mais democrático, mais justo e mais igualitário. É um dia de solidariedade e de luta. É o dia de dizer não ao imperialismo de George W. Bush. Agora começa 2007 pra valer. Viva o ano novo.


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DEBATE

CRÔNICA

Os “benfeitores” da biotecnologia De carnavais e de cinzas e do biocombustível Luiz Ricardo Leitão

Miguel A. Altieri e Eric Holt-Gimenez om grande alarde, a British Petroleum (BP) doou uma enorme quantia para fundos de pesquisa da Universidade da Califórnia (em Berkeley), os Laboratórios Lawrence Livermore e a Universidade de Illinois para que desenvolvam novas fontes de energia, basicamente, biotecnologia para plantações visando biocombustível. A doação chega no aniversário de dez anos do infeliz negócio da Berkeley com a gigante de sementes Novartis. Entretanto, com meio bilhão de dólares, a doação da BP representa dez vezes o investimento da Novartis. A apresentação gráfica do anúncio era inconfundível: o logotipo da corporação BP perfeitamente alinhado com as bandeiras da nação, do Estado e da universidade. O diretor executivo e presidente da BP, Robert A. Malone declarou que corporação estava “se unindo a alguns dos melhores talentos mundiais em ciências e engenharia para responder à demanda por energias de baixo teor de carbono. Estaremos trabalhando para melhorar e expandir a produção de energia limpa e renovável, por meio do desenvolvimento de melhores plantações”. Essa parceria reflete o alinhamento corporativo global, sem fiscalização e sem precedentes, dos maiores do mundo em agronegócio (ADM, Cargill e Bunge), biotecnologia (Monsanto, Syngenta, Bayer e Dupont), petróleo (BP, Total e Shell) e indústrias automotoras (Volkswagen, Peugeot, Citroën, Renault e Saab). Seria um programa que só traz ganhos para a universidade, o público, o meio ambiente e a indústria? Dificilmente. Além de sobrecarregar a programação de pesquisas da universidade, o que os cientistas que estão por trás desse negócio, escancaradamente, privado deixam de mencionar é que a aparente boca-livre de combustível baseado em plantações não pode satisfazer nossa fome de energia – e que não será de graça, nem saudável, do ponto de vista ambiental.

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CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA

Destinar toda a produção de milho e soja dos Estados Unidos para a produção de biocombustíveis só satisfaria 12% da demanda de gasolina e 6% de diesel. O total de área nos EUA para plantações é de 1,05 milhão de quilômetros quadrados (km²). Para substituir o consumo estadunidense de petróleo por biocombustível seriam necessários 2,3 milhões de km² para etanol de milho e 14 milhões de km² de soja para biodiesel. Os métodos industriais de produção de milho e grãos de soja dependem de monoculturas em grande escala. O milho industrial exige altos níveis de fertilizante químico e herbicida. A soja exige quantidades massivas de herbicida não-seletivo Roundup (da Monsanto) que desequilibra a ecologia do solo e produz superervas daninhas. Ambas as monoculturas produzem massiva erosão da camada superficial do solo e poluição da água da superfície e do subsolo. Cada galão de etanol chupa de

três a quatro galões de água na produção de biomassa. Um dos motivos industriais mais sórdidos do programa de biocombustíveis é a oportunidade de transformar, irreversivelmente, a agricultura em plantações geneticamente modificadas. Atualmente, 52% do milho, 89% da soja e 50% da canola nos EUA são transgênicos. A expansão de biocombustíveis pelo milho geneticamente adaptado para o processamento de etanol vai remover todas as barreiras práticas para a permanente contaminação de todas as plantações não geneticamente modificadas.

As conseqüências potenciais para o meio ambiente e a sociedade do financiamento da BP são profundamente perturbadoras DEVASTAÇÃO AMBIENTAL

Obviamente, os EUA não podem satisfazer seu apetite por energia com biocombustíveis. Em vez disso, culturas para combustíveis serão produzidas nos países em desenvolvimento por plantações em grande escala de cana-de-açúcar, soja e palmeiras que produzem óleo. Estas já estão substituindo florestas tropicais e pastos na Argentina, Brasil, Colômbia, Equador e Malásia. A soja já causou a destruição de mais de 368 mil km² de florestas e pastos no Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia. Para satisfazer à demanda do mercado mundial, só o Brasil teria que derrubar 599 mil km² a mais de floresta. A redução de gases que produzem o efeito estufa se perde, quando florestas que captam gás carbônico (CO²) são derrubadas para dar lugar a plantações que produzem biocombustível. Enquanto isso, centenas de milhares de pequenos agricultores estão sendo deslocados pela expansão da soja. Muitos mais perderão suas terras com a corrida por biocombustíveis. A expansão de terras de cultivo com plantações de milho amarelo para etanol já reduziu o suprimento de milho branco para tortilhas no México, fazendo os preços aumentarem 400%. Isso fez com que os líderes campone-

ses presentes no 7º Fórum Social Mundial exigissem: “Nada de tanques cheios quando ainda há barrigas vazias!”. SISTEMA INTEGRADO

Com a promoção em larga escala de monoculturas mecanizadas, que exigem a introdução de agroquímicos e máquinas e conforme florestas que captam carbono são derrubadas para dar lugar a plantações visando biocombustíveis, as emissões de CO² irão aumentar e não diminuir. A única maneira de parar o aquecimento global é promover agricultura orgânica em pequena escala e reduzir o uso de todos os combustíveis, o que requer grandes reduções nos padrões de consumo e o desenvolvimento de sistemas massivos de transporte público, áreas que a Universidade da Califórnia deveria estar ativamente pesquisando e nas quais BP e outros parceiros no biocombustível nunca irão investir um centavo sequer. As conseqüências potenciais para o meio ambiente e a sociedade do financiamento da BP são profundamente perturbadoras. A universidade foi levada a uma parceria corporativa que pode transformar irreversivelmente os sistemas de alimentos e combustíveis do planeta e concentrar enorme poder nas mãos de uns poucos parceiros corporativos. (Traduzido do inglês por Lília Azevedo) Miguel A. Altieri é professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e Eric Holt-Gimenez é diretor executivo do Food First, Oakland.

O carnaval é uma festa pagã de raízes populares, originária da Idade Média, por meio da qual os servos se convertiam em nobres e estes, até jocosos, apenas se divertiam com a insólita reviravolta de papéis na vida cotidiana – cientes, é claro, de que após o breve reinado de Momo tudo voltaria à implacável ‘normalidade’ da ordem feudal. Nos dias de folia, não era apenas a hierarquia social que se via revirada pelo avesso. Na verdade, o mundo parecia ficar de cabeça para baixo: conforme escreveu o ensaísta russo Mikhail Bakhtin, o celestial se rebaixava ao terreno, o espiritual cedia vez ao corporal e as ponderações frias da mente sucumbiam aos ardentes impulsos do baixo ventre. No Brasil, terra de secular opressão colonial e infinita iniqüidade social, os escravos faziam do carnaval um evento popularíssimo e de inusitada dimensão. As brincadeiras do “entrudo”, no século XIX, raiavam a brutalidade: os despossuídos vingavam-se violentamente de suas mazelas atirando urina e fezes em quantos lhes cruzassem os caminhos nos dias em que (quase) tudo era permitido pelos prepotentes senhores e seus cruéis capatazes. A escravidão foi abolida, a República foi proclamada, mas pouca coisa mudou entre a casa-grande e a senzala – e Pindorama, assim, acabou carnavalizada dos pés à cabeça, estilizando seus absurdos em meio ao exotismo tropical. A opulência do nosso carnaval até os dias de hoje significa, pois, que tudo continua ao revés aqui ao sul do Equador. Terra de poderosos latifúndios e paraíso das multinacionais e corporações financeiras, o Brasil é a pátria de Brás Cubas, Macunaíma & cia., regidos pelo velho princípio de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Por isso, embora o editor me tenha sugerido uma crônica sobre o ‘tríduo momesco’, como este texto é filho de Chronos, o temível deus do tempo, não posso me furtar a tratar, em pleno carnaval 2007, dos motes que afligem a bela e crédula Tupinicópolis. Afinal de contas, se o carnaval é o mundo de pernas pro ar, vejamos se a festa de Pindorama não está mesmo completa...

Cuidemos de semear a igualdade nesta pátria mãe-gentil: a felicidade do povo deve ir além da grande ilusão do carnaval e das cinzas de uma triste quarta-feira. Valeu, Zumbi: é hora de um outro grito forte em Palmares Entre mais de 500 deputados, o impávido Paulo Maluf e a dupla José Mentor e João Paulo Cunha (ambos figurinhas carimbadas do escândalo do “mensalão”) compõem a Comissão de Justiça (!?) da Câmara, decerto a mais importante da Casa. De quebra, ela será presidida por Bernardo Picciani, jovem herdeiro político de um clã cujo chefe é o deputado estadual Jorge Picciani (PMDB-RJ), famoso por manter 39 trabalhadores em regime de escravidão numa fazenda do Araguaia. Seria isso o nosso “carnaval”? Por sua vez, no Senado Federal, o velho coronel ACM, entrevistado sobre o hediondo crime contra o menino João, no Rio de Janeiro, declara, com total desfaçatez, que “bandidos de qualquer idade, seja 16 ou 60 anos, devem estar na cadeia”... Mesmo sem esquecer que a imunidade parlamentar o deixa à vontade para perpetrar este e outros atentados contra a paciência humana, tornamos a indagar: é ou não é puro carnaval? Enfim, antes que a Vila Isabel entre na avenida e nos conte como se deu a metamorfose da espécie humana, trato de auspiciar meus votos de que, sacudidos por tanto surrealismo, tratemos de renascer das cinzas para começar a “descarnavalizar” um pouco esta terra e torná-la mais justa e digna para seus filhos tão pródigos, quanto desamparados. Diz o enredo que “samba não tem preconceito / brancos, negros, iguais...” Se é assim, cuidemos de semear a igualdade nesta pátria mãe-gentil: a felicidade do povo deve ir além da grande ilusão do carnaval e das cinzas de uma triste quarta-feira. Valeu, Zumbi: é hora de um outro grito forte em Palmares... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815


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NACIONAL EDUCAÇÃO

Brasil, descaso com a educação infantil Divulgação

Governo investe pouco para atender a meninos e meninas com até 3 anos de idade; faixa etária é considerada fundamental para o desenvolvimento intelectual Marjorie Ribeiro de São Paulo (SP)

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omo todo começo de ano, Sirlene da Silva foi a todas as creches da região para saber se o filho de cinco anos conseguiria finalmente freqüentar uma escolinha. Como já previa, a resposta foi a mesma: não tem vaga. Sirlene conta que essa dificuldade é ainda mais antiga. Apenas dois dos seus cinco filhos conseguiram estudar antes dos sete anos de idade. Daiane Bernardine, mãe de dois meninos, passa por uma situação semelhante. Há mais de quatro anos, colocou o nome de Ferdinand, de cinco, na lista de todas as creches próximas e até hoje não conseguiu. “Desisti de colocá-lo na creche”, reclama. Como não tem onde deixar os filhos e o salário mínimo do marido não lhe permite contratar uma babá, não consegue arranjar um emprego fixo. “Não vale nem a pena fazer ‘bico’. O dinheiro que receberia só daria para pagar alguém para olhar as crianças”, ressalta. Sem conseguir a vaga para este ano, seu filho, já com a idade limite, não continuará na lista de espera das creches no próximo ano. Assim como Sirlene, Daiane mora na favela de Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, região que apresenta dificuldades em assegurar o ensino da educação infantil. São apenas duas creches para uma população

Creches conveniadas: contradições A aparência do prédio grande amarelo, reformado, com janelas altas em seus corredores, chama a atenção até mesmo de quem passa apressado. Dificilmente se percebe que ali fica uma creche gratuita. Localizada próxima à Estrada de Taipas, na periferia de São Paulo, o Centro Infantil Fé e Alegria possui um espaço amplo e é referência pela boa infraestrutura e qualidade do seu ensino. Um sonho para toda mãe, concretizado por 30 das 500 que procuram preencher alguma das vagas abertas anualmente. “Coloquei o nome do meu filho na lista quando ele tinha seis meses. Estou esperando há seis anos.”, conta Maria das

Números da omissão Gastos da União (Governo Federal, Estados e municípios) em 2005 (R$)

Ensino infantil (de 0 a 6 anos) _______________ 21,6 milhões Ensino fundamental _________________________ 49,2 milhões Ensino médio ___________________________ 230,8 milhões Ensino superior _______________________ 9.150,0 milhões Juros e amortizações da Dívida Pública _ 93.500,0 milhões Fonte: Ministério da Educação/ Orçamento da União

Casos como os encontrados em Paraisópolis não são uma exceção no Brasil. De acordo com o Ministério da Educação, apenas 13% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos de idade estão matriculadas em creches. Isso significa que cerca de 11,3 milhões de crianças nessa faixa etária não freqüentam uma escolinha. A alta demanda e a quantidade insuficiente de vagas em creches gratuitas são ainda o principal motivo do alarmante dado. Paradoxalmente, essa fase é considerada por muitos estudos como fundamental para o desenvolvimento humano. A psicóloga Ângela Barreto, do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), explica durante esse período é formada a maioria das sinapses, ligações neurológicas essenciais para a de-

terminação da inteligência. Segundo ela, uma educação pedagógica adequada e o convívio com outras crianças são indispensáveis para o bom desenvolvimento. “É ainda mais importante às famílias que moram em condições precárias porque a creche acaba aparecendo como um ambiente compensatório, onde a criança pode se expressar e se sentir mais segura”, ressalta Ângela. Para as mães de baixa renda, há também um aspecto financeiro que vai além da necessidade de deixar seus filhos em um lugar enquanto trabalham. Casos como o de Jaqueline Pereira, que sustenta os cinco filhos com seus “bicos” e o salário de 600 reais do marido. São as cinco refeições diárias oferecidas na creche do filho caçula que “aliviam” o seu orçamento. “Eu só vou ter que dar uma refeição quando ele chegar em casa.”, explica. Sem essa ajuda na alimentação, seus gastos seriam maiores. “No período de férias, pesou muito o Igor (o filho) o tempo todo em casa”, conta Jaqueline. O investimento público em educação infantil apre-

Lurdes Jesus, desempregada, mãe de três filhos. Apenas um conseguiu freqüentar a creche. O Fé e Alegria faz parte do grupo de creches conveniadas com a Prefeitura de São Paulo. Toda a infraestrutura “se mantém, efetivamente, com doações de filantropias e parcerias privadas”. A algumas quadras dali, é possível encontrar outra creche, a CEI São Pedrinho, que também possui convênio com a prefeitura, mas que não dispõe da mesma infraestrutura da Fé e Alegria. Um espaço extremamente menor atende a 175 crianças – 55 a mais que a outra. Numa sala aberta improvisada, onde circula desde o bebê descalço que chora pela mãe e o cachorro que insiste em passar mais uma vez pelos corredores, a diretora Marli Geralda explica que a creche tem que se sustentar com um recurso mensal re-

passado pela Secretaria Municipal da Educação. “Não temos nenhuma parceria. De vez em quando a gente recebe doações da igreja aqui do lado, mas só”, conta. A discrepância entre as duas creches mostra o reflexo de uma política de responsabilidade do Estado transferida para o privado, que deixa essas escolinhas dependentes de incentivos da iniciativa privada ou do terceiro setor. Para Verena Wiggers, professora da Universidade de São Paulo, a política de conveniamento é uma “alternativa de baixo custo para a prefeitura, que surge para ampliar o atendimento, mas que não tem assegurado a sua qualidade”. A pesquisadora aponta outro problema: “as condições mais adversas dos trabalhadores”, muitas vezes são submetidos a salários mais baixos e a carga horária bem superior aos da rede municipal.(MR)

que já passa dos 80 mil, segundo Jilson Rodrigues, vice-presidente da Associação de Moradores da comunidade. “Existem cerca de 9 mil crianças entre 0 e 6 anos que não conseguem vaga”, explica.

FALTA DE VAGAS

Paula Mendes

À esquerda, CEI São Pedrinho; à direita, Centro Infantil Fé e Alegria

Divulgação

senta também maior retorno social. De acordo com Marcelo Neri, coordenador da pesquisa sobre importância da educação na primeira infância realizada pela Fundação Getúlio Vargas, crianças pobres que tiveram oportu-

nidade de freqüentar escolas, durante essa fase, possuem renda mais alta e menor índice de criminalidade na idade adulta. “De fato, a educação infantil de 0 a 3 anos tem um custo maior que a educação do ensino fundamental, mas

o custo de um detento no sistema infanto-juvenil é 25 vezes maior”, explica. “Se fosse investido mais na educação dessa faixa etária, a necessidade de programas sociais seria bem menor”, complementa Neri.

Investimento da União é insuficiente

bém contemple um suporte às creches comunitárias conveniadas, que atendem a cerca de 1,2 milhões de crianças no Brasil. Essas instituições surgiram como solução emergencial para o problema e recebem um valor per capita mensal da prefeitura (equivalente ao número de alunos). São administradas por Organizações Não Governamentais (ONGs); algumas possuem parcerias com a iniciativa privada; a maioria sobrevive apenas com a verba da poder público. “Nós não vamos da noite para o dia construir uma quantidade significativa e necessária de instituições públicas pra atender à educação infantil”, justifica Rita Coelho, representante do comitê gestor do Mieib. Ela defende ainda que, como as políticas governamentais em educação infantil sempre foram apoiadas num modelo de parceria com a sociedade civil, é obrigação do governo assegurar esse atendimento. “As crianças atendidas nessas redes conveniadas têm direito a uma assistência. Se não é o Fundeb, é um programa que precisa ser criado no âmbito do Ministério da Educação de apoio aos municípios” afirma Rita. O Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib) e de outras entidades sociais de defesa da educação infantil defendem também que as creches conveniadas tenham acompanhamento

pedagógico para atender aos critérios de qualidade regulamentados pelo MEC.

O descaso com a educação infantil por parte do poder público é facilmente constatado. Em 2005, por exemplo, enquanto foram investidos pela União mais de R$ 230 milhões no Ensino Médio, apenas R$ 21,6 milhões ficaram com a educação infantil. A disparidade é ainda maior se forem comparados os recursos destinados ao Ensino Superior: cerca de R$ 9 bilhões. Para efeito de comparação, a União gastou com pagamento de juros e serviços da dívida R$ 93,5 bilhões. Entretanto, o governo federal lançou um programa para tentar amenizar essa situação por meio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que está previsto para entrar em vigor em março. Diferente do antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), que transferia recursos do governo federal aos municípios para o ensino médio e fundamental, o Fundeb irá contemplar também a pré-escola e o ensino para as crianças de 0 a 3 anos (as creches). O Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib) reivindica que o governo federal tam-

OMISSÃO Para a professora aposentada da PUC-SP e exsecretária de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Aldaíza Sposati, essa situação demonstra a deficiência das políticas públicas na área da educação. “O poder público está se furtando de cumprir a sua missão fundamental, que é a educação, e colocando isso para as organizações sociais”, afirma. “Você não pode descartar simplesmente as iniciativas que estão instaladas, porque há uma demanda efetiva. Agora você também não pode fazer dessas iniciativas a maior fatia”, complementa. Aldaíza acredita que o ideal seria a transferência gradual dessas creches para a administração da prefeitura – para um controle efetivo do ensino – concomitantemente à construção de instituições de educação infantil de caráter totalmente público. “Precisa ainda de muita creche em São Paulo. No meu último cálculo, nós precisávamos de mais de 1.200”, explica. A equipe do Brasil de Fato procurou o Ministério da Educação, que declarou, pela sua assessoria de imprensa, que ainda estão sendo definidos os parâmetros do Fundeb e que o MEC só irá se pronunciar quando o fundo entrar em vigor. (MR)


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NACIONAL ECONOMIA

Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza

E se Henrique Meirelles cair? Elza Fiúza/ABr

Piada pronta Conhecido como o político mais processado do Brasil, por lavagem de dinheiro, evasão de divisas, improbidade administrativa e formação de quadrilha, o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), integrante da base parlamentar do governo, defendeu, em discurso na Câmara, penalidades severas para os sonegadores fiscais. Por essas e outras que o Legislativo está totalmente desmoralizado. Eldorado nordestino A transposição do Rio São Francisco, cujas obras consumirão mais de dois bilhões de reais em 2007, deve provocar grande agitação entre latifundiários, empresários, usineiros e as elites regionais acostumadas a tirar proveito das verbas federais destinadas à região. Se não houver rígida fiscalização, os novos canais vão irrigar as ondas de corrupção que sempre dominaram o Nordeste. Lentidão deliberada Aquilo que o povo brasileiro conhece por experiência própria, agora tem comprovação oficial: o Conselho Nacional de Justiça divulgou o levantamento de queixas contra juízes e funcionários do Judiciário no último ano, no total de 1.517, das quais 774 trataram da morosidade das decisões e 720 sobre acusações de corrupção e negligência. Como se sabe, é um Poder altamente suspeito. Lobista empresarial O Ministério das Comunicações anunciou a liberação de R$ 1 bilhão do BNDES para implementar a digitalização da TV na indústria de componentes, redes de radiodifusão e produtoras de programas. Em nenhum momento o pacote governamental estabelece exigências trabalhistas e fiscais ou determina a democratização dos meios de comunicação. É o Hélio Costa de costas para o Brasil. Sonegação consentida As principais empresas de comunicação, entre elas a TV Globo e o jornal Folha de S. Paulo, há anos utilizam manobras ilegais e imorais para sonegar impostos e contribuições sociais. Os empregados com os maiores salários foram transformados em Pessoa Jurídica e perderam o vínculo empregatício. Assim eles recolhem em torno de 15% aos cofres públicos, quando deveriam recolher acima de 26%. O Ministério do Trabalho finge que não vê nada. Energia barata A imprensa empresarial brasileira continua tratando os novos preços do gás cobrado pela Bolívia como sendo uma medida de força de Evo Morales em relação ao Brasil. No entanto, as grandes empresas consumidoras do gás boliviano sabem que o produto está mais barato do que o preço do mercado internacional e altamente favorável na composição do custo dos produtos de exportação. Relação promíscua Acordo entre PT e PSDB deve assegurar que a Assembléia Legislativa de São Paulo seja presidida por um tucano aliado ao governador José Serra. Trata-se de reprodução de acordo anterior, de 2002 a 2004, quando os dois partidos acertaram o bloqueio de comissões de inquérito para investigar a gestão de Marta Suplicy, na Prefeitura, e de Geraldo Alckmin, no Estado. Um pacto de reciprocidade contra o povo. Lembrança necessária Não custa nada perguntar. Por onde anda o “velho” processo do Banestado e a verificação de milhares de contas bancárias no exterior que receberam remessas ilegais de milhões de dólares? O que aconteceu com a operação recente da Polícia Federal que identificou a existência de dezenas de empresas de fachada usadas por grandes indústrias para sonegar impostos de importação? Os poderes da República estão na moita!

Dados objetivos mostram que a estabilidade não seria afetada por uma mudança na política econômica Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

I

magine por um momento, caro leitor, que os boatos sobre a possível queda de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central (BC), e de toda sua diretoria se tornassem realidade, como num conto da carochinha. Imagine, portanto, que o fato poderia representar uma mudança na política econômica, com queda mais acelerada das taxas de juros, menor arrocho ao crédito e folga para crescer mais e criar mais empregos. Analisando pela ótica do mercado, essa entidade invisível, mas de garras longas e afiadas, a virada representaria um salto no escuro, com grandes chances de reproduzir um desastre econômico. Mas, na realidade, a saída de Meirelles e de sua trupe não traria qualquer conseqüência drástica, a não ser para setores manjados da economia, estreitamente vinculados à especulação financeira internacional. Raciocine e conclua, por você mesmo, que a economia não enfrenta, neste momento, qualquer tipo de ameaça que possa colocar em risco sua estabilidade – mesmo que o governo abandonasse o cardápio receitado pelo mercado, movido a juros ainda exorbitantes (apesar da redução operada nos últimos meses). Por motivos práticos e objetivos, ressalve-se que uma mudança na política de aperto ao crédito não parece fazer parte dos planos do Palácio do Planalto, até aqui, e que uma mudança no comando do BC não passa, aparentemente, de uma aposta de altíssimo risco. Aos fatos, então. A mais recente reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), formado pela alta cúpula do BC, sacramentou a desaceleração no ritmo de redução da taxa básica de juros no país, com corte de 0,25 ponto percentual, para 13% ao ano. Nas reuniões anteriores, a redução havia sido de meio ponto percentual, sugerindo que a direção do BC antevia

Capacidade de pagamento do país é maior Até alguns anos atrás, a dívida externa significava um obstáculo real às possibilidades de crescimento da economia, drenando recursos que o país não tinha, desviados para o pagamento de juros e das prestações devidas aos credores internacionais. A situação externa, debilitada pelo elevado endividamento, exigia a adoção de juros exorbitantes, aqui dentro, para atrair os dólares de que o país necessitava. Números apurados e divulgados pelo Banco Central (BC) mostram que a dívida deixou de ser um problema, em mais um indicador de que a queda mais acelerada dos juros não trará problemas para a economia brasileira. Em 2006, a dívida externa total do país, incluindo compromissos de curto, médio e longo prazo dos setores público e privado, caiu para 168,867 bilhões de dólares, significando um recuo de 21,4% em relação a 2003, quando o país devia lá fora 214,93 bilhões de dólares. Até 2002, a dívida repre-

Eventual saída do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e de sua trupe não traria qualquer conseqüência drástica

bons ventos à frente em relação ao comportamento dos preços em geral. Uma modesta aceleração da atividade econômica no último trimestre de 2006 bastou para alterar os prognósticos e colocar diante do BC a “obrigação” de conter a queda dos juros porque a taxa de inflação poderia subir. Agora? Não, em 2008. Isso mesmo. Daqui a quase dois anos. Mas não se trata de previdência, como se poderia imaginar, mas de excessiva ortodoxia e uma visão distorcida do momento por que atravessa a economia no país e no mundo.

A inflação pode mesmo disparar em 2008? Por enquanto, só os deuses do BC e do mercado podem dizer. O fato concreto é que não há dados que corroborem os prognósticos desenhados por parte da diretoria do Banco Central. Os primeiros números da inflação de janeiro vieram abaixo do que o mercado (sempre ele...) esperava. Embora as previsões indiquem melhorias nos preços agrícolas, especialmente nos casos do milho e da soja, o país colherá uma safra recorde, bastante próxima de 128 milhões de toneladas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que prenuncia menor pressão sobre os preços ao longo do ano.

Adicionalmente, com algumas exceções destacadas pela imprensa recentemente (casos da Venezuela, Bolívia e alguns outros), os preços têm apresentado bom comportamento em todo o mundo, numa onda alimentada especialmente pela tendência observada recentemente para os preços do petróleo e pela China, que continua inundando os maiores mercados consumidores do planeta com bens duráveis de baixo custo. Além desses fatores, a produtividade voltou a crescer na economia dos Estados Unidos no final de 2006, afastando os temores de uma recaída inflacionária, o que poderá estimular o Federal Reserve (o banco central estadunidense) a manter ou mesmo reduzir as taxas de juros. Quando poucos esperavam alguma novidade positiva num terreno politicamente complicado, os preços do petróleo entraram em baixa em pleno inverno estadunidense e europeu. Mesmo que as cotações do óleo bruto voltem a subir, em função de problemas no Oriente Médio (crise no Irã, agravamento do conflito no Iraque etc.), não é plausível que isso signifique pressões inflacionárias imediatas. Vale lembrar que a inflação mundial não iniciou uma escalada mesmo quando os preços do petróleo começaram a disparar há mais de dois anos. A alta dos combustíveis foi absorvida pelos indicadores de inflação e compen-

sentava quase 46% do Produto Interno Bruto (PIB), soma de todas as riquezas produzidas pelo país em determinado período. Essa participação murchou para 17,6% no ano passado. A relação entre dívida e exportações baixou de 3,5 para 1,2, o que significa dizer que o país devia três vezes e meia mais do que exportava, até 2002, e passou a dever apenas 20% mais do que toda a exportação realizada em 2006. O serviço da dívida (juros e pagamentos sobre o principal

devido), que consumiu 83% das exportações de mercadorias em 2002, representou 41,4% das vendas externas no ano passado. O valor das reservas em dezembro de 2006, num total de 85,839 bilhões de dólares (hoje já superam 92 bilhões de dólares), superava em mais de duas vezes a dívida de curto prazo. Há quatro anos, a dívida de curto prazo superava o valor das reservas em 55%. Descontadas as reservas em dólar, o valor da dívida líquida correspondeu à metade das exportações

INFLAÇÃO

sada por quedas em outras áreas (como alimentos, por exemplo).

HAJA PACIÊNCIA Aqui dentro, pode-se esperar por mais um ano sem mudanças significativas nos preços dos combustíveis. Da mesma forma, o restante dos preços, ditos administrados ou controlados pelo governo (energia, água, esgoto, telefones e outros) tende a subir modestamente, com perspectiva concreta de elevações menores principalmente para a energia (graças, entre outros fatores, à redução do subsídio destinado às termelétricas do Norte e Nordeste do país, que consomem óleo combustível). Para completar, a indústria encerrou o ano passado com um índice de utilização da capacidade instalada ao redor de 82%, sem alterações em relação a 2005, embora a produção do setor tenha crescido (timidamente, claro). Isso mostra que o setor ainda dispõe de folga para crescer sem pressionar os preços e gerar, portanto, mais inflação. Em síntese, não há pressões relevantes no horizonte, aqui dentro ou lá fora, que justifiquem previsões catastróficas em relação à inflação. Assim como não há razões concretas para dar suporte à mais recente decisão do Copom, que parece disposto a administrar a queda dos juros em doses homeopáticas até o final do ano, em mais um teste imposto à paciência do país.

realizadas em 2006. Em 2002, a dívida líquida era quase três vezes maior que o total das exportações. A coleção de bons indicadores apenas reforça o dado central: o país tem reservas suficientes, hoje, para honrar com sobras todos os seus compromissos relacionados à dívida externa e precisará, em 2007, de muito menos dólares para cumprir os pagamentos previstos. Resultado: os juros poderiam cair mais depressa sem comprometer a capacidade de pagamento do país no exterior. (LVF)

Dívida externa deixa de ser problema real para a economia (Indicadores de endividamento externo, dados em milhões de dólares) Variáveis

2002

2003

2004

2005

2006

Serviço da dívida¹

49.893

52.988

51.800

66.048

56.858

Dívida total

210.711

214.930

201.374

169.450

168.867

Reservas internacionais

37.823

49.296

52.935

53.799

85.839

Dívida líquida total

164.999

150.993

135.702

101.082

68.771

Exportações (bens)

60.362

73.084

96.475

118.308

137.470

Serviço dívida / exportações

82,7%

72,5%

53,7%

55,8%

41,4%

Juros / exportações

23,6%

19,4%

14,8%

12,2%

10,8%

Reservas / dívida total

18,0%

22,9%

26,3%

31,7%

50,8%

Dívida total / exportações (razão)

3,5

2,9

2,1

1,4

1,2

Dívida líquida total / exportações (razão)

2,7

2,1

1,4

0,9

(¹) Juros brutos mais amortizações sobre o principal da dívida

0,5 Fonte: Banco Central


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De 22 a 28 de fevereiro de 2007

NACIONAL Ojo de Vidrio

ENERGIA

Eletricidade garantida Especialista e movimentos sociais rebatem alarmismo da mídia corporativa, governo e investidores de que faltará energia Silvia Álvares Cardoso de Brasília (DF)

A

escassez de energia é apontada pela mídia corporativa, governo e investidores como entrave ao desenvolvimento do país. Em coerência com essa idéia, a maior parte do orçamento (R$ 274,8 bilhões) do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, divulgado pelo governo em janeiro, foi destinada para a rubrica “investimento em infra-estrutura energética”. Porém, especialista e movimentos sociais refutam essa tese com base nos próprios dados divulgados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O Ministério de Minas e Energia (MME) definiu que, entre os objetivos do PAC, está o desafio de “garantir a segurança do suprimento de energia elétrica” contando com a “participação efetiva do setor privado”. Para isso, está prevista a construção de mais hidrelétricas até 2010 capazes de gerar 12.386 MW, e a implementação de alguns instrumentos de incentivo ao investimento privado. Além disso, um Grupo Gestor (GGPAC/ MME) do Ministério foi formado no dia 6 para acompanhar e assegurar as ações previstas no programa. Todas essas medidas foram feitas em nome do “desenvolvimento” e do “crescimento econômico”. No entanto, Dorival Gonçalves Júnior, professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), desconstrói a tese do risco de falta de energia. Para isso, ele examina, inicialmente, a capacidade de fornecimento médio de eletricidade durante todo o ano, que é denominada de

Energia para quem? O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que junto com outras organizações está realizando a campanha “O preço da luz é um roubo”, considera a tese da falta de energia uma chantagem do setor elétrico. “Isso é uma especulação na comercialização de energia elétrica. O que eles querem é que tenha energia sobrando para comprá-la cada vez mais barata e em forma de subsídio do governo”, alerta Marco Antonio Trieveiller, da coordenação do movimento. Isso acontece, por exemplo, no Pará com a Albrás e no Maranhão com a Alumar. Apesar de defender que o país precisa de mais fontes de energia, o professor Luiz Pinguelli Rosa, Coordenador do Programa de Planejamento Energético COPPE/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás, acredita que o que deveria ser feito é usar a energia dos produtores de alumínio

“energia assegurada” pela Aneel. Segundo o banco de dados da Agência, a capacidade de geração na atualidade é de 57.500 megawatts (MW) médios. Comparando agora com a demanda requerida durante o ano de 2006 (que foi de 47.500 MW), de acordo com os dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico Interligado (ONS), conclui-se que sobraram 10.000 MW de energia em 2006 – pouco menos de um quinto da capacidade. Para reforçar esse argumento, Gonçalves Júnior dá um exemplo mais recente, de janeiro de 2007, quanto o consumo de energia foi de 49.183 MW médios, sobrando, assim, 8.317 MW médios de energia. O pesquisador conclui: “esse volume de excedente é, praticamente, a energia assegurada da Itaipu; podemos dizer que hoje o sistema elétrico interligado nacional opera com uma Itaipu em stand by”. Já o professor Luiz Pinguelli Rosa, Coordenador do Programa de Planejamento Energético COPPE/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás, afirma que não tem dúvidas sobre a “necessidade de expansão da geração”, para garantir crescimento econômico e novos empregos. Ele acrescenta, ainda, que a energia per capita do Brasil é muito pequena. “Se comparar com os EUA ou Europa é uma disparidade. Mesmo na América Latina, é muito menor em relação à Argentina ou ao Chile”, avalia.

DEMANDA FUTURA O principal argumento dos defensores da “tese da escassez” é que o crescimento econômico do Brasil nos próximos anos deve fazer

(eletrointensivos) para a população. “Existe um grupo de privilegiados chamados de consumidores livres, que consomem 30% da energia do Brasil a um preço baratinho; quem paga é o pobre”. Para Dorival Gonçalves Júnior, professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sob o discurso da escassez iminente de eletricidade, “está submersa uma matriz de interesses que de modo algum expressam qualquer interesse dos trabalhadores”. Segundo ele, desde a privatização do setor o preço da tarifa residencial subiu. A eletricidade saiu da faixa dos US$ 70

com que a atual energia assegurada (57.500 MW) não seja suficiente. Contrariando essa opinião, o Gonçalves Jr. mostra que, seguindo a previsão do Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 2006-2015 (PDEE), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), não teremos problemas no abastecimento nos próximos anos.

O plano aponta três cenários de crescimento da demanda. O primeiro, denominado “trajetória alta”, estima o crescimento anual da carga de energia para os próximos quatro anos de 5,1%. O segundo, chamado de “trajetória de referência”, prevê o crescimento anual até 2010 de 4,9% ao ano. E o terceiro, “trajetória baixa”,

admite a variação da carga em 3,9% ao ano no período. A partir desses números (ver tabela) levando em conta a oferta e o consumo, Gonçalves Jr. conclui que o único cenário no qual a demanda ultrapassa a energia assegurada de hoje em 2010 é o de trajetória alta – consumo de cerca de 58 mil MW em 2010. “Ultrapassa em somen-

Quadro de carga nacional estimado: 2007-2010 (Mwmédios) 2007

2008

2009

2010

“Trajetória alta”

49.922,5

52.468,5

55.144,44

57.956,8

“Trajetória de referência”

49.827,5

52.269,1

54.830,2

57.516,9

“Trajetória baixa”

49.352,5

51.277,24

53.277,1

55.354,8

Fonte: Empresa de Pesquisa Energética (EPE)

dólares o MW para mais de US$ 130, mantendo-se no nível dos US$ 100. Mecanismos de sustentação desse modelo foram inclusos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). No caso dos financiamentos do BNDES, as vantagens para o capital privado ficaram ainda maiores, já que o banco financiará até 80% do empreendimento e o prazo de pagamento aumentou de 14 para 20 anos. Além disso, está sendo criado o Fundo de Investimento em Infra-estrutura com o uso do FGTS. “O PAC veio para aperfeiçoar esse modelo energético lucrativo”, conclui Gonçalves Jr. (SAC)

Hidrelétricas na Amazônia As hidrelétricas do Rio Madeira (RO) e de Belo Monte (PA) são dois polêmicos projetos que constam do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Empreendimentos polêmicos, são alvos de críticas e protestos por parte de movimentos sociais e ambientais.

Fonte: Balanço Energético Nacional

O complexo do Rio Madeira prevê a construção das usinas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau que, juntas, poderão gerar cerca de 7,5 mil MW. A licitação do projeto deve sair ainda em 2007. Segundo Wesley Ferreira Lopes, do MAB, esses empreendimentos não foram planejados para atender aos trabalhadores, mas sim ao capital, já que a energia produzida abastecerá sobretudo as empresas, e não o povo.

Além disso, “as obras vão elevar o nível do rio em mais de 4 metros em algumas regiões, desabrigando mais de 3 mil famílias”, denuncia Lopes. Belo Monte, com geração prevista de 11 mil MW, teve sua autorização de estudo ambiental questionada pelo Ministério Público Federal do Pará, que exige consulta aos indígenas da região pelo Congresso Nacional, além de discutir possíveis alternativas à obra. (SAC)

O principal corte foi no Ministério da Saúde, que contava com orçamento de R$ 40,638 bilhões pelo orçamento aprovado no Congresso Nacional. Teve corte de R$ 6,452 bilhões. Considerando o total de verba empenhada pelo Ministério da Saúde no ano passado, o orçamento liberado para este ano também é menor. Em 2005, a pasta empenhou R$ 35,45 bilhões. Este ano está autorizada a gastar R$ 34,876 bilhões. Mesmo com os cortes, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, garante que as políticas sociais foram preservadas. Segundo Bernardo, foram cortados apenas investimentos administrativos, como aquisição de carros novos, compra de

computadores ou móveis, por exemplo. Já o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), responsável pela reforma agrária, ficou com R$ 478 milhões a menos que em 2006. “Isso apenas deixa explícita a falta de prioridade que a reforma agrária e a agricultura familiar têm no governo federal”, critica Marina dos Santos, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Procurado pela Agência Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Agrário informou por assessoria que não iria se pronunciar sobre o bloqueio de recursos (Leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)

ORÇAMENTO

Governo corta verba da saúde e da reforma Edla Lula e Daniel Merli de Brasília (DF)

Quem consome a energia produzida

te 456,8 MW médios, mas, na semana passada, começaram a construir a hidrelétrica de Estreito, em Tocantins, que vai produzir mais de 1 mil MW de energia, ou seja, muito acima do necessário”, afirma o professor. Gonçalves Jr. pondera ainda que essa hipótese de crescimento de 5,1% para a demanda é improvável de se concretizar, pois os dados registrados pelo ONS nos anos 2005 e 2006 foram, respectivamente, de 4,5% e 3,9%. Para este ano, o ONS estima um aumento de 3,6%. “Então é difícil acontecer esse cenário de trajetória alta. No entanto, mesmo que não seja adicionado nem uma nova fonte até 2010, não faltará energia”, argumenta o professor da UFMT.

O Ministério do Planejamento anunciou no dia 15 o bloqueio de R$ 16,4 bilhões que estavam previstos no Orçamento Geral da União para serem gastos ao longo do ano. Dessa verba contingenciada, 46% corresponde à área social. As despesas para as políticas sociais estavam previstas em R$ 65,069 bilhões e passaram a ser de R$ 57,376 bilhões.


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INTERNACIONAL BOLÍVIA

Evo Morales: entre avanços e trincheiras Movimentos bolivianos reconhecem avanços do governo na nacionalização, mas criticam a falta de expropriações Buenasaires

Pedro Carrano de Curitiba (PR)

P

MILITARIZAÇÃO

Indígenas de El Alto carregam a bandeira azul, branca e preta do Movimento ao Socialismo (MAS); ao lado, o presidente boliviano Evo Morales conversa com Lula

Hoje, como informa Luis Gómes, jornalista mexicano radicado na Bolívia, o Estado recebe das transnacionais 50% de royalties pelo valor dos hidrocarbonetos retirados dos poços grandes e cobra mais 32% de impostos – apesar de haver um histórico de sonegação por parte das companhias. Os poços grandes representam hoje entre 70 e 80% das reservas comprovadas de gás da Bolívia, aponta Gómes. Essa conquista de 82% (50 mais 32) de participação do Estado na exploração do gás (em 2005, recebia-se cerca de 15% diretamente), ainda é vista com olhos críticos, devido à política de Morales de “nacionalizar sem expropriar”. Isso dá ao Estado boliviano um papel de administrador e dificulta a luta pelos preços junto a

empresas como a Petrobrás, as quais definem as regras do jogo. “O preço resulta da combinação de indicadores de preço internacional. A questão é que nunca segue uma curva ascendente. Os preços se fixam fora desse país e não podem se modificar na Bolívia, nem sequer para seguir os preços internacionais porque significaria perder o negócio e as petroleiras não aceitariam”, analisa Gómes.

ENFRENTAMENTOS Existe um atrito e desmobilização habituais nos governos que representam o povo, mas permanecem em constante negociação com as elites. Além desse fator, o MAS ainda se deparou com todo o tipo de adversários no primeiro ano de mandato, a começar pelos já esperados:

Roosewelt Pinheiro/Abr

assado mais de um ano de governo, o presidente Evo Morales e o seu partido Movimento ao Socialismo (MAS) vêm arrebatando conquistas, ainda que a velocidade dos avanços não esteja em sintonia com as grandes expectativas dos movimentos sociais, críticos da política de “nacionalizar sem expropriar” os recursos energéticos da Bolívia. As conquistas de Evo são pontuais, porém seguem a linha cronológica iniciada desde outubro de 2003, quando explodiu a Guerra do Gás. Com a bandeira da nacionalização de um dos últimos recursos que ainda restam ao país andino, ela foi puxada pela região de El Alto, nos arredores de La Paz. A partir de então, a Agenda de Outubro marcou as demandas dos movimentos sociais com os dois temas principais: a nacionalização dos recursos energéticos e a nova Constituição. No dia 15, uma reunião entre Morales e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva garantiu um aumento no preço do gás vendido para a empresa privada TermoCuiabá, de Mato Grosso. Trata-se do menor dos dois contratos que a Bolívia possui com o Brasil, apenas 5% do gás vendido para cá. Ainda assim, a equipe de Morales comemorou o incremento nas vendas de cerca 68 milhões de dólares por ano. O outro contrato é com a Petrobrás e abastece 30% do gás consumido pelo cinturão industrial de São Paulo.

nos recursos produzidos. Esses Departamentos não conseguiram apoio no restante do país, no primeiro referendo pela autonomia, convocado em 2006. No entanto, as elites conseguiram que a Assembléia Constituinte seja votada por dois terços da população para ser aprovada e não apenas um terço.

as oligarquias, cujos atores principais estão nas agroindústrias de Santa Cruz de la Sierra, responsáveis por 60% das exportações do país, por meio da soja. Donos do capital e da palavra dos grandes jornais, as elites se viram ameaçadas pela Lei de Reforma Agrária. Ainda que a lei, até agora, só tenha entregado para os camponeses 11% dos latifúndios prometi-

dos que, no total, equivalem à Áustria e à Suíça juntas. Logo, a convocatória da Assembléia Constituinte tornou-se um cabo de guerra. De um lado, existe a demanda histórica dos povos originários por autonomia e reconhecimento dos usos e costumes. Na outra ponta, as elites de cinco Departamentos reivindicam a autonomia regional para ter preferência

Sem aceitar a luta institucional em igualdade de condições, o capitalismo apela ao militarismo. Paramilitares estão sendo treinados na região de Santa Cruz, na única estratégia possível aos Estados Unidos para promover a divisão no país. Inclusive, o embaixador estadunidense na Bolívia, Philip Goldberg, ocupou cargos importantes na exIuguslávia e no Kosovo, na Europa. Noutro sentido, os enfrentamentos entre as cooperativas mineiras e o governo ganham, nas agências internacionais, tons de política repressora. Na realidade, com a imposição do modelo neoliberal na Bolívia, em 1985, depois do corte de mão-de-obra, os mineiros formaram cooperativas nas pequenas minas que não interessavam ao capitalismo. É um desafio para Morales, que aos poucos vem nacionalizando o setor, trazer os mineiros, que trabalham sobre influência das grandes mineradoras – em condições precárias –, para que voltem a ser empregados pelo Estado, o que aconteceu na mina de Huanuni, quando 5 mil pessoas foram contratadas.

BLOQUEIO

da Redação Navegar pela internet nem sempre é fácil no Caribe. Em Cuba, o acesso à rede é lento, caro e limitado. O bloqueio dos Estados Unidos – imposto à Cuba há 45 anos – impede que a ilha se conecte aos cabos de fibra óptica que passam muito perto de suas costas, informou dia 14 o ministro cubano de Informática e Comunicações, Ramiro Valdés Menéndez. Como alternativa, Cuba utiliza uma ligação via satélite que torna as conexões mais lentas e caras. O governo alega essa condição, assim como sua estratégia de prioridades sociais no uso da rede, para explicar as restrições que aplica ao acesso à internet. Limitações que poderão ser reduzidas em poucos anos por meio de um cabo submarino alternativo de 1.550 quilômetros que conectará Cuba à rede da Venezuela. A internet entra em cheio na geopolítica da região. O canal via satélite que Cuba utiliza, habilitado em 1996, proporciona uma largura de banda muito pequena em comparação com o cabo. Qualquer modificação do canal exige licença do Departamento do Tesouro dos EUA. As leis do bloqueio “não só nos proíbem a aquisição de equipamentos e programas de informática de

companhias estadunidenses, mas também, por seu caráter extraterritorial, perseguem nossas operações com empresas de outros países”, queixou-se o ministro Valdés.

MAIS PROBLEMAS As ações e intervenções estadunidenses nessa batalha incluem, segundo Havana, a proibição de que instituições e cidadãos dos Estados Unidos utilizem a web para transações eletrônicas com instituições cubanas, assim como o bloqueio de downloads de software e informações (inclusive gratuitas). As autoridades do país caribenho acreditam que, além disso, as empresas provedoras de serviços e tecnologias fornecem informação aos órgãos de inteligência estadunidenses, o que torna necessário um “constante aumento dos níveis de segurança” das redes na ilha. O problema dos custos não é menor. Cuba paga mais de 4 milhões de dólares por ano por um link com a internet que, além de ser mais lento e ter menor capacidade, sai de 15% a 25% mais caro que o do cabo. Havana não esconde suas restrições ou “medidas de segurança e controle” no fornecimento de acesso à web, as quais dificultam a contratação de serviços de internet; mas as justifica nessa situação de excepcionalidade criada pelo bloqueio.

Maarten Roeland Reijgersberg/www.fotogravizer.nl

Cuba acusa EUA de impedir seu acesso à internet

Já são 45 anos de uma política de guerra da Redação

Bandeiras de Cuba e Venezuela na porta de uma casa em Havana, com a inscrição “Viva Fidel e Chávez”; cabo submarino de 1.550 quilômetros conectará Cuba à rede de internet da Venezuela

Como o link por satélite é precário, o governo optou pelo que chama de estratégia de “apropriação social das tecnologias da informação”, que dá prioridade às comunidades científicas, educativas e culturais. Diante de relatórios internacionais que situam Cuba nos últimos lugares em penetração da internet,

Havana enfatiza o rendimento social que obtém dessa utilização comunitária. “O cavalo selvagem das novas tecnologias pode e deve ser domado, e as telecomunicações devem ser postas a serviço da paz e do desenvolvimento”, resumiu Valdés. (Com informações de La Vanguardia e Vermelho)

Desde 1962, os Estados Unidos impõem um bloqueio econômico, comercial e financeiro a Cuba. A medida foi decretada oficialmente por John F. Kennedy, em 7 de fevereiro daquele ano, como uma ação a mais para tentar sufocar a revolução em curso na ilha caribenha. Desde então até 2005, o bloqueio provocou perdas estimadas em 82 bilhões de dólares. As restrições do bloqueio desrespeitam o direito internacional e, entre outros pontos, proíbe: empresas sediadas em países terceiros de vender produtos aos Estados Unidos que tenham matéria-prima de origem cubana; empresas de países terceiros de vender a Cuba produtos ou serviços cuja tecnologia estadunidense represente mais de 10% de seu valor; e Cuba de exportar para o mercado estadunidense. A partir de 1992, os Estados Unidos recrudesceram o bloqueio, aprovando novas medidas e se aproveitando do desmoronamento da União Soviética, o antigo parceiro comercial dos cubanos. Uma das novas medidas é a que impede Cuba de comprar produtos de subsdiárias estadunidenses sediadas em outros países – 91% dessas vendas eram de alimentos e medicamentos. O bloqueio já foi condenado em 15 oportunidades na Assembléia Geral das Nações Unidas, mas os Estados Unidos se negam a suspendê-lo. Em 2006, praticamente houve unanimidade no repúdio aos EUA: apenas o próprio país e Israel se opuseram à condenação apoiada por 183 países. A Conferência Nacional de Londres, realizada em 1999, considerou que o “bloqueio é um ato de guerra” e só é utilizado entre países beligerantes. Especialistas em direito internacional avaliam que, de acordo com a Segunda Convenção de Genebra, de 9 de dezembro de 1948, o bloqueio é um ato de genocídio pois é “perpetrados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” e, nesses casos, abrange “o submetimento intencional do grupo a condições de existência que tenham de acarretar a sua destruição física, total ou parcial”.


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De 22 a 28 de fevereiro de 2007

INTERNACIONAL

Robin Dude

ORIENTE MÉDIO

Chegou a vez do Irã? Embora seja uma opção insensata para muitos, nova ação militar conta com o apoio de pessoas influentes em Washington Igor Ojeda da Redação

A

impressão é de um filme já visto. Só que desta vez, no lugar de armas de destruição em massa e da ligação com a rede terrorista Al-Qaeda, está o financiamento de milícias xiitas iraquianas e a bomba nuclear. A mesma estratégia de propaganda que há quatro anos foi usada para invadir o Iraque de Saddam Hussein, hoje pode servir para uma ação militar no Irã, embora a conjuntura seja bem mais desfavorável e o governo estadunidense negue tal intenção. No entanto, no dia 14, durante entrevista coletiva, o presidente George W. Bush afirmou estar convencido de que o Irã é fornecedor de armas mortais a insurgentes iraquianos e que iria fazer algo em relação a isso. Outro embate entre os dois países se dá na questão nuclear. Os EUA defendem sanções econômicas ao país persa caso este continue se recusando a interromper o enriquecimento de urânio. Já o Irã afirma que o objetivo é apenas a produção de energia. Na edição do dia 10 do diário britânico The Guardian (veja matéria sobre o assunto na Agência Brasil de Fato), fontes estadunidenses afirmaram que os planos para atacar o Irã estão muito avançados, e que poderiam ser levados a cabo em breve. Para o antropólogo Paulo Hilu, da Universidade Federal Fluminense (UFF), o plano para uma ação militar no Irã “evidentemente existe”. No entanto, acha pouco pro-

vável que isso seja, de fato, posto em prática. De acordo com ele, o poderio militar estadunidense está extremamente debilitado com o caos no Iraque e uma invasão ao Irã, um país com população e cidades maiores e com uma geografia mais complexa, teria poucas chances de ser bem-sucedida. “Mas”, pondera, “dada a capacidade dessa administração estadunidense de fazer atos insensatos, nada pode ser descartado”.

BRECAR O IRÃ A mesma ponderação é feita por Ramzy Baroud, jornalista palestino-estadunidense. Ele diz que, em Washington, existem pessoas influentes que encontram boas razões para justificar uma guerra contra o Irã. Tais pessoas estão, segundo Ramzy, divididos em dois grupos: “um é formado pelos neoconservadores com sua agenda ‘Israel em primeiro lugar’; o outro, pelos aliados de Bush no exército, que pensam que os Estados Unidos ainda têm a vocação militar de subjugar os inimigos regionais de Israel”. Para esses grupos, a invasão do Iraque e a conseqüente ascensão ao governo do país árabe – antes dominado por Saddam Hussein e seus aliados sunitas – de elementos xiitas pró-Irã fizeram com que este se tornasse o principal ator regional praticamente da noite para o dia. Além disso, o revés militar de Israel no Líbano, entre julho e agosto de 2006, resultou no aumento da influência dos xiitas na região, fato que pode ameaçar o poder dos EUA e de Israel. Com seu maior poder regional, o Irã poderia de-

A história se repete: “Ontem, o Iraque; hoje, o Irã; amanhã, o mundo?”

senvolver suas capacidades nucleares. Por isso, para os grupos pró-guerra, o país persa “deve ser subjugado através de quaisquer meios necessários, e urgentemente. O elemento tempo aqui é muito importante, pois trabalha em favor do Irã: quanto mais tempo os EUA ficarem atolados no Iraque, mais fraco se tornará seu papel regional, e estarão cada vez menos capazes de se lançarem em outra aventura

militar”, explica Baroud. Segundo Hilu, da UFF, a idéia seria neutralizar o Irã e impor a supremacia de Israel no Oriente Médio, reorganizando a geopolítica da região em favor dos Estados Unidos. “É um delírio absoluto. As lições do Iraque já mostram que as sociedades não são controláveis e manipuláveis dessa forma, e certas ações tomadas unilateralmente e do ponto de vista estritamente militar têm

conseqüências inesperadas”, analisa.

MESMA RECEITA Para Ramzy Baroud, os EUA usariam a mesma receita usada no Iraque para “vender” a idéia da necessidade de uma ação militar contra o Irã, mesmo que hoje a população estadunidense esteja amplamente contrária à guerra e a Bush: “você ficaria surpreso em saber como a poderosa mídia nacional é

Os falsos pretextos, mais uma vez “Evidentemente que o Irã facilita a passagem de armas e de guerrilheiros do seu território para o Iraque”, afirma o antropólogo Paulo Hilu, da Universidade Federal Fluminense (UFF). O apoio aos insurgentes iraquianos foi destacado na ameaça que o presidente estadunidense George W. Bush fez ao país, no dia 14. No entanto, Hilu revela que as milícias que de fato dão mais trabalho às forças militares dos estadunidenses são formadas por sunitas, não tendo, portanto, conexão com o país persa. E mais: “a principal milícia xiita que os Estados Unidos tentam combater, que é a Moqtad al Sadr, é uma das poucas forças xiitas que não têm uma ligação direta com o Irã”. O antropólogo lembra que quem tem as relações mais profundas com esse país são os aliados estadunidenses agora no governo do Iraque. “Tentam jogar toda a culpa no Irã, mas sua influência no caldo iraquiano é muito menor do que se imagina”, explica. O jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud alerta que os Estados Unidos

tinham consciência do poder iraniano sobre as lideranças xiitas iraquianas. No entanto, com o país controlado após a invasão, esperavam que esses grupos se afastassem dessa influência, mas não foi o que aconteceu. “Naturalmente, o Irã quer explorar tal influência e usá-la como vantagem em caso de confrontação com os EUA”, analisa. Com relação à questão nuclear, Baroud ironiza o fato de que “enquanto o regime iraquiano e muito do país foi destruído por não ter armas de destruição em massa, a Coréia do Norte está sendo recompensada por fazer exatamente o oposto, com pacotes de ajuda generosos. Percebeu a lógica?”, indaga. “O Irã está certamente percebendo”. Paulo Hilu elucida: “a invasão do Iraque chamou a atenção para o mundo de que se você tem arma nuclear, não é invadido”. No dia 13, a Coréia do Norte assinou um acordo com EUA, Coréia do Sul, Japão, Rússia e China se comprometendo a suspender seu programa nuclear em troca de uma ajuda de 300 milhões de dólares. (IO)

quando começa a moldar e remoldar a opinião pública”. Apelando novamente para o medo e ansiedade humanos, a propaganda do governo transformará o Irã de “um monstro que está ameaçando o mundo ‘civilizado’ com armas nucleares para um Irã como uma ameaça direta para os soldados estadunidenses no Iraque, usando as formas generalizadas, tradicionais da retórica antiislâmica”. Para o jornalista, o atual domínio do Partido Democrata no Congresso, conquistado nas eleições legislativas de novembro de 2006, tampouco seria um empecilho decisivo. Ele lembra que a maioria dos candidatos democratas do último pleito apoiaram a guerra do Iraque e são “ardentes” entusiastas da chamada guerra ao terror. Segundo ele, a oposição democrata à guerra do Iraque tem razões mais políticas que éticas. O objetivo é ver Bush e o Partido Republicano afundarem ainda mais, para garantir a Presidência nas eleições de 2008. “Mesmo os supostos ícones antiguerra do Partido Democrata, como Hillary Clinton e o senador Barack Obama, vêm afirmando repetidamente que ‘considerariam’ a opção militar contra o Irã, referindo-se à ameaça nuclear”, observa Baroud.


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NACIONAL

De 22 a 28 de fevereiro de 2007

VIOLÊNCIA Anderson Barbosa

Para pesquisador, mudanças na legislação feitas em momento de comoção tendem a ser imediatistas e inconseqüentes

Segurança pública para quem? Tatiana Merlino da Redação

o que supostamente as pessoas pensam que pode resolver.

redução da maioridade penal volta a ser proposta como uma resposta fácil do Estado. Diante da comoção da sociedade decorrente do assassinato do garoto João Hélio Fernandes Vieites, cometido com a participação de um adolescente, no dia 6, no Rio de Janeiro (RJ), o Senado retomou as discussões sobre propostas de redução da responsabilidade penal. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de história Marcelo Freixo critica a proposta do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, de criar um código penal para cada Estado da federação e o projeto para regulamentação da Lei de Crimes Hediondos, que foi aprovado na Câmara dos Deputados, dia 14, e restringe o benefício da liberdade provisória para os presos condenados por esse tipo de delito. “Não vai adiantar qualquer mudança na legislação se não investimos numa alteração do sistema penitenciário”, afirma. O pesquisador condena também a primeira ação conjunta da Força Nacional de Segurança (FNS) com as polícias estaduais do Rio de Janeiro, que acontece no Complexo do Alemão, zona Norte, desde o dia 13. “A FNS não traz nada de novo e reproduz um modo de olhar para a segurança que é ilegal, ineficaz e desumano”. A Força chegou ao Estado no começo de janeiro após onda de violência que deixou 24 mortos.

BF – Então não há uma relação entre redução da maioridade penal e diminuição da criminalidade? Freixo – É claro que não. Não há referência em nenhum país com relação a isso. E, se o debate de hoje é reduzir a maioridade até 16, amanhã vai ser até 13. Existem muitos relatos de crianças de nove anos que estão em boca de fumo. O que se faz diante disso? Reduzimos a idade penal para nove, oito, sete? O problema é muito mais profundo. A questão requer soluções imediatas, mas elas precisam ser conseqüentes. Na prática, com a redução da maioridade penal teríamos que pegar o sistema penitenciário – que, teoricamente, deveria aplicar a lei de execução penal dos 18 anos em diante – e fazer com que ele passe a cuidar também de pessoas a partir dos 16 anos. Quem, em sã consciência, vai dizer que o sistema penitenciário funciona, cumpre a lei, ressocializa, é responsável por redução de violência? Então, como vamos pegar um sistema falido, inoperante, ilegal, corrupto e dizer que agora ele vai cuidar de mais gente? Precisamos discutir a fundo formas de fazer com que a lei de execução penal seja garantida.

A

Brasil de Fato – Depois do assassinato do menino João Hélio Fernandes, a opinião pública começou a exigir providências do Estado no combate à criminalidade e a redução da maioridade penal voltou a ser discutida como solução. Como o senhor vê essa situação? Marcelo Freixo – Eu acho positivo a sociedade estar reagindo à violência porque esse tem que ser um debate público, da responsabilidade de todos e não um caso de polícia. Porém, quando acontece um fato tão grave como esse, a tendência do debate é caminhar para uma ação imediatista e muitas vezes inconseqüente. Nesses momentos, é comum alguém que é contra a redução da maioridade penal ser associado a uma idéia deturpada de direitos humanos, como se fosse insensível à violência. Esse é um erro grave, pois a luta pelos direitos humanos é por um projeto de segurança pública para todos e eficaz no combate à criminalidade. Eu sou radicalmente contra a redução da maioridade, ela não resolve

BF – O senhor acha que essa é uma resposta reducionista do Estado, que prefere tentar mudar a legislação a tratar as questões de fundo de um problema que já é antigo no país? Freixo – A violência é um problema estrutural. Precisamos discutir políticas públicas, o papel da segurança pública, o sistema de acompanhamento e fiscalização das ações do Estado nas prisões, o planejamento da formação dos policiais civis e militares e integração entre os Estados para garantir que a lei seja cumprida. A redução da idade penal me parece muito mais uma idéia de vingança do que de justiça. Prisão tem que ser para quem oferece perigo concreto à sociedade, e não é o que temos hoje no Brasil. Mais de 98% dos presos são pobres e mais de 50% estão presos por furto e roubo. Temos que mudar o perfil penal do Brasil e fazer com que as leis se aproximem mais de uma idéia de justiça social. BF – Qual a sua avaliação sobre a postura da imprensa e de setores conservadores em relação à maioridade penal? Freixo – É um momento muito favorável para essas propostas conservadoras de maior rigor penal, de endurecimento da polícia,

da ampliação de um processo de criminalização da pobreza. Por isso, defendo uma discussão ampla, pois dificilmente esses argumentos se sustentam em termos práticos de combate à criminalidade. É lógico que, quando se vê as imagens da morte do menino João, surgem propostas como: “temos que endurecer e esse adolescente tem que ir para a prisão”. A princípio, pelo efeito até do sentimento, isso cola. Mas não se sustenta. BF – E como vê essa proposta de criação de um código penal para cada Estado da federação? Freixo – Sou contra. É claro que os Estados são diferentes e podem ter algumas adaptações específicas nas suas políticas públicas. Mas isso já está garantido. Agora, a idéia de leis que podem ser específicas no sistema penal para cada Estado segue o modelo estadunidense. E isso é muito ruim. O modelo penal deles é uma catástrofe. Os Estados Unidos têm mais de dois milhões de presos e são reféns de uma lógica prisional na qual o Estado liberal é de repressão total e penal. Lá, 70% dos presos de prisão perpétua cometeram crimes leves. A população negra é 12% da sociedade e 60% no sistema penitenciário. Isso mostra que as prisões, nos Estados Unidos, refletem um processo de desigualdade social muito profundo. E ter dois milhões de presos (o Brasil tem 360 mil) é péssimo. Eles têm uma indústria penitenciária que, se acabasse hoje, o país falia. Não acho que seja um modelo para seguirmos. Prefiro o europeu que trabalha com penas alternativas e garantias de funcionamento legal para pessoas que realmente têm que ir para a prisão. BF – O Congresso também começou a votar outras mudanças na legislação, como o projeto para regulamentação da lei de crimes hediondos. Qual sua opinião a esse respeito? Freixo – Minha crítica é que essas discussões acabam tendo efeito muito pequeno se a eficácia e implementação dessa lei não for debatida. Não vai adiantar qualquer mudança na legislação sem investirmos numa alteração do sistema penitenciário. Ficar um, cinco, dez anos no sistema prisional leva a um resultado desastroso. É pena de morte social porque elimina a capacidade dessas pessoas voltarem a viver em sociedade. Antes de uma mudança na legislação, temos que ver o que é o sistema penitenciário, qual seu papel, para quem ele serve e para que está servindo.

BF – Outra discussão é em torno do aumento do prazo de internação dos jovens infratores... Freixo – Muitos jovens que foram presos por roubar uma sandália, quando entram numa unidade de medida socioeducativa (que já é uma ironia falar isso), têm que dizer à qual facção pertencem, e entrar para ela. Lá, eles são separados assim. O Estado tem uma contribuição enorme nesse processo de criminalização. Diante disso, como pode se dizer que ele fique lá mais um ano, dois, três... Se não mudarmos o que é o sistema de medidas socioeducativas e não garantirmos que eles sejam cumpridores da lei, acho insano discutir se ele tem que ficar um, dois ou dez anos. BF – Como o senhor avalia a primeira ação conjunta da Força Nacional de Segurança no Rio de Janeiro? Freixo – Na verdade, é um desastre. Nos últimos anos, o Rio de Janeiro tem sido vítima da lógica de segurança pública que insistiu no discurso da guerra contra o crime, contra o tráfico, que muito facilmente se transformava em guerra contra a favela e contra o pobre. Precisamos de mudança no foco da segurança pública, para que ela possa ser pautada na prevenção e na garantia de segurança para todos. A polícia tem que entrar na favela junto com o Estado, garantindo direitos básicos e segurança para quem mora ali. A Força Nacional se soma a uma política de segurança no Rio de Janeiro levando morte, terror e violência para a favela. Ela reproduz um modo de olhar para a segurança que é ilegal, ineficaz e desumano. BF – Qual seria a alternativa para tratar a violência de forma adequada? Freixo – Temos uma experiência concreta no que diz respeito à relação da favela com o policiamento. No Cavalão, em Niterói, onde tinha a maior concentração de tráfico e homicídios, a polícia ocupou o morro junto com a Prefeitura, investindo em creches, aulas de capoeira, de teatro. A associação dos moradores tem reuniões sistemáticas com a polícia para discutir o policiamento. O tráfico sumiu do morro e há três anos não há registro de morte. BF – Qual é a importância da parceria entre governo federal e estadual no combate ao crime? Freixo – É fundamental e está previsto no Plano Nacional de Segurança Pública do governo Lula. A idéia dos gabinetes de gestão integrada para fazer com que

as forças de segurança federal e estadual possam agir integradas e, principalmente, um sistema de informação são importantíssimos. Esses gabinetes que estão sendo criados no Rio de Janeiro- e que já poderiam ter sido criados há quatro anos – são decisivos para mudanças na política de segurança. Mas não adianta o Sérgio Cabral (governador do Rio) vir a público dizer que a política de segurança é diferente e a Força Nacional, junto com as polícias estaduais, fazerem o que estão fazendo no morro do Alemão. BF – Qual sua avaliação do projeto do Sistema Único de Segurança Pública (Susp)? Freixo – Eu tenho esperança porque o Plano Nacional de Segurança Pública do governo Lula foi um dos maiores avanços que nós tivemos no campo teórico da concepção de segurança, mas isso tem que vir para a prática. Até agora, o Susp não saiu do papel. BF – Como está a atuação das milícias no Rio? Freixo – Elas são o grande tema do atual debate da segurança pública no Rio. Trata-se de um braço mafioso formado por agentes de segurança pública, bombeiros, policiais e ex-policiais que utilizam o aparato do Estado, como carros, apoios de batalhão, caveirão e um instrumento político com vereadores, deputados estaduais e federais. Isso é muito perigoso porque traz um novo cenário de violência. Na lacuna da presença do Estado nas favelas e periferias, traficantes e milicianos disputam o controle do território e do lucro sobre a exploração da comunidade. E eu estou falando de 700 favelas só no Rio, e de um percentual que chega a quase um terço da população. É um quadro bastante grave e, além dos discursos, não vejo na política de segurança pública um plano efetivo de combate às milícias. Divulgação

Quem é

Marcelo Freixo é professor, deputado estadual (Psol-RJ) e membro da organização não governamental Justiça Global. De 1993 a 1995, Freixo presidiu o Sindicato dos Professores de São Gonçalo e Niterói.


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