Ano 5 • Número 209
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 1º a 7 de março de 2007
www.brasildefato.com.br
Dafne Melo
Transnacionais causam fome na África No Mali, o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar denuncia os impactos do neoliberalismo na alimentação
A
s grandes corporações são a verdadeira causa da fome na África, não as condições naturais e as guerras, como sugere o senso comum. A denúncia foi feita pelos 600 participantes do Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, realizado entre os dias 23 e 27 de fevereiro em Sélingué (Mali). No encontro, acompanhado por reportagem do Brasil de Fato, o modelo neoliberal foi responsabilizado por agravar essa perda da soberania alimentar – entendida como o direito humano dos povos definirem suas políticas agrícolas e alimentares –, uma vez que destrói as economias locais, privatiza a natureza e estimula o livre-comércio, transferindo poder para as mãos das transnacionais. Pág. 6
Com a barragem do rio Níger ao fundo, a partir da esquerda, ativista dos EUA, Irã e País Basco participam da abertura do fórum no Mali
O etanol na mira de Bush Cansado de depender do petróleo da Venezuela e do Oriente Médio, o presidente dos EUA, George W. Bush, chega ao Brasil, no dia 8, com
o objetivo de estabelecer parcerias para a produção de etanol (álcool combustível) na América Latina. A vinda da comitiva estadunidense está animando
o setor do agronegócio, que pode obter grandes lucros com a expansão da monocultura da cana-de-açúcar. Pág. 7
EDITORIAL
Os riscos do acordo com os EUA
A
mídia capitalista tem anunciado com satisfação as negociações que precedem a vinda do presidente dos EUA, George W. Bush, ao Brasil, prevista para o dia 8 de março. O destaque tem sido um possível acordo com Lula para a implantação de um projeto de produção em grande escala de álcool combustível (etanol) para exportação aos EUA. O que não se informa é o perigo que esse projeto traz ao povo brasileiro, tornando ainda mais vulnerável a sua precária soberania, pelo fortalecimento da presença do capital externo, agravando a destruição do meio ambiente, pela expansão da monocultura da cana, e dificultando ainda mais o processo da reforma agrária, já que fortalece o agronegócio e mantém os trabalhadores rurais em condição sub-humana. O acordo proposto pelos EUA ao Brasil deve ser analisado no contexto da crise mundial energética, no qual o imperialismo estadunidense se encontra em iminente dificuldade para suprir suas necessidades, sobretudo de petróleo, e não hesitou em tomar ações extremadas para garantir o abastecimento interno, como a ocupação militar do Iraque e do Afeganistão. Os EUA produzem, hoje, menos da metade do petróleo que consomem e, por isso, buscam alternativas de combustíveis, sem descartar, evidentemente, a alternativa militar, já que é intrínseca à natureza do imperialismo. Mas não é só. Os estadunidenses procuram também uma
sintonia com a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), projeto que não avançou, em boa medida pela resistência feita pelo próprio governo Lula, já que o Brasil tem uma posição determinante para que um projeto desta natureza avance ou fracasse. E, por isso, é extremamente grave que o governo Lula se disponha agora a firmar este acordo com os EUA. O que está em jogo é a soberania nacional sobre uma alternativa energética estratégica, num momento em que já se detecta uma tendência declinante da era do petróleo, bem como uma caótica situação ambiental em decorrência de seu uso descontrolado e abusivo. A vantagem comparativa que o Brasil possui – território, água, clima e mão-de-obra precisando de trabalho – poderia ser eficientemente utilizada em favor da elevação das condições de vida do povo brasileiro, interligada a uma indispensável reforma agrária e a uma inclusão de milhões de brasileiros no mundo dos direitos trabalhistas. Mas o acordo com os EUA torna ainda mais grave o vertiginoso processo de desnacionalização da propriedade da terra já em curso no Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Chile, prenunciando uma situação de crise da verdadeira segurança nacional, sem atentarmos para o fato que os EUA continuam expandindo sua presença militar por meio de 22 bases instaladas por toda a América Latina. Quando o mundo estava prestes a mergulhar na Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas
tomou as primeiras medidas para a nacionalização do subsolo e da produção do petróleo, mais tarde concretizada na criação da Petrobras. Hoje, quando o mundo já está sendo sacudido por várias tensões e guerras em função da rapina imperial às fontes energéticas, o Brasil, possuidor de um gigantesco potencial de energia renovável, tem aberta uma janela de possibilidades. O país possui todas as razões para nacionalizar este setor por meio da criação de uma Empresa Brasileira de Bioenergia, com capacidade de defender os interesses nacionais, a exemplo do que vêm fazendo países como a Venezuela, a Bolívia e até a Argentina, em certa medida, fortalecendo o papel do Estado. Sem isso, todo o potencial de energia renovável brasileiro poderá ser controlado pelo capital estrangeiro, a exemplo do que já ocorre com a soja, nas mãos de um cartel de empresas transnacionais. O acordo energético entre EUA e Brasil poderá, indiretamente, efetivar a Alca, anexando um setor produtivo à economia imperialista. Irá, ainda, transferir para o imperialismo o controle do que poderia ser uma solução energética tipicamente nacional, se fosse inserida em um projeto popular para o Brasil. Este acordo deve motivar uma intensa discussão entre movimentos sociais, sindicatos, universidades, intelectuais e também entre os nacionalistas, civis e militares, convocados a uma ação pública, a exemplo da campanha “O Petróleo é Nosso”, que resultou na criação da Petrobras.
Grilagem e latifundiários criam tensão no Pontal A região do Pontal do Paranapanema, São Paulo, testemunha conflitos agrários há quase um século. Enquanto os latifundiários querem aumentar a produção de cana-de-açúcar, a mídia corporativa destaca as
“invasões” dos sem-terra, omitindo que a maior parte dessas fazendas são oriundas de terras griladas. Para especialista, MST luta para desentranhar tais grilos. Pág. 3
Na Amazônia, Mulheres lutam pelo fim da povos sofrem com agronegócio desigualdade Pág. 4 Em todo o país, manifestantes saem às ruas no Dia Internacional da Mulher para lutar contra o agronegócio, a violência sexista, a desigualdade de gênero e por soberania alimentar. Pág. 5
2
De 1º a 7 de março de 2007
DEBATE
CRÔNICA
O Mito dos Biocombustíveis
O desafio amazônico
Edivan Pinto, Marluce Melo e Maria Luísa Mendonça ecentes estudos sobre os impactos causados pelos combustíveis fósseis contribuíram para colocar o tema dos biocombustíveis na ordem do dia. A aceleração do aquecimento global é um fato que coloca em risco a vida do planeta. Porém, é preciso desmistificar a principal solução apontada atualmente, difundida através da propaganda sobre os supostos benefícios dos biocombustíveis. Em contraponto a essa idéia, a professora Mãe-Wan-Ho, da Universidade de Hong Kong, explica que “Os biocombustíveis têm sido considerados erroneamente como ‘neutros em carbono´. Ignoram-se assim os custos das emissões de CO2 e de energia de fertilizantes e pesticidas utilizados nas colheitas”. Um estudo do Gabinete Belga de Assuntos Científicos mostra resultados semelhantes. “O biodiesel provoca mais problemas de saúde e ambientais porque cria uma poluição mais pulverizada e libera mais poluentes que promovem a destruição da camada de ozônio.” A soja tem sido apresentada pelo governo brasileiro como principal cultivo para biodiesel. “A cultura da soja desponta como a jóia da coroa do agronegócio brasileiro”, afirmam pesquisadores da Embrapa. Neste contexto, o papel do Brasil seria fornecer energia barata para países ricos, o que representa uma nova fase da colonização. As atuais políticas para o setor são sustentadas nos mesmos elementos que marcaram a colonização brasileira: apropriação de território, de bens naturais e de trabalho, o que representa maior concentração de terra, água, renda e poder. Estima-se que mais de 90 milhões de hectares de terras poderiam ser utilizados para produzir biocombustíveis. Além disso, a “eficiência” de nossa produção se deve à disponibilidade de mão-de-obra barata e até mesmo escrava. Essas características são difundidas por órgãos governamentais e por alguns intelectuais, que criam a idéia de que a produção de agroenergia traria grandes benefícios. “Nosso país possui a maior extensão de terra do mundo que ainda pode ser incorporada ao processo produtivo”, dizem pesquisadores da Embrapa. Eles estimam que a produção de biomassa “poderá ser o mais importante componente do agronegócio brasileiro”. Em relação à expansão da produção de etanol, concluem que há a “possibilidade de expansão da cana-de-açúcar em quase todo o território nacional”. O Brasil produz atualmente 17 bilhões de litros de álcool por ano. Segundo o BNDES, seriam necessários mais 8 bilhões de litros somente para atender o mercado interno. Portanto, o banco prevê que o Brasil deve expandir sua produção para outros países. Com a pretensão de controlar 50% do mercado mundial de etanol, o BNDES estima que o país deve chegar a produzir 110 bilhões de litros por ano. “Apenas na região do cerrado, podem ser disponibilizados nos próximos anos para plantio de grãos mais de 20 milhões de hectares”, revela relatório da Embrapa. No Nordeste, segundo
Leonardo Boff
Márcio Baraldi
R
aliadas a transnacionais de petróleo como Shell, TOTAL e British Petroleum, e também a automotoras como Volkswagen, Peugeot, Citroen, Renault e SAAB, formam uma parceria inédita visando grandes lucros com biocombustíveis. Experiências como a plantação da mamona por pequenos agricultores no Nordeste demonstraram o risco de dependência das grandes empresas agrícolas, que controlam os preços, o processamento e a distribuição da produção. Os camponeses são utilizados para dar legitimidade ao agronegócio, através da distribuição de certificados de “combustível social”. A expansão da produção de biocombustíveis coloca em risco a soberania alimentar e pode agravar profundamente o problema da fome no mundo. No México, por exemplo, o aumento das exportações de milho para abastecer o mercado de etanol nos Estados Unidos causou um aumento de 400% no preço do produto, que é a principal fonte de alimento da população. Discutir novas fontes de energia implica, em primeiro lugar, refletir a serviço de quem estará esta nova matriz. A construção de uma nova matriz energética deve levar em conta quem se beneficiará ou qual propósito servirá. Edivan Pinto e Marluce Melo são membros da Comissão Pastoral da Terra Regional Nordeste – CPT NE. Maria Luísa Mendonça é membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Índio e floresta, portanto, se condicionam mutuamente. As relações não são naturais mas culturais, numa teia intrincada de reciprocidades A idéia de que o índio é genuinamente natural representa uma ecologização errônea dele, fruto do imaginário urbano, fatigado pela artificialização da vida. Ele é um ser cultural. Como atesta o antropólogo Viveiros de Castro: “A Amazônia que vemos hoje é a que resultou de séculos de intervenção social, assim como as sociedades que ali vivem são resultado de séculos de convivência com a Amazônia”. O mesmo diz em seu instrutivo livro E. E. Moraes Quando o Amazonas Corria para o Pacífico (Vozes, 2007): “Resta pouca natureza intocada e não alterada pelos humanos na Amazônia”. Por 1.100 anos os tupis-guaranis dominaram vastíssimo território que ia dos contrafortes andinos do rio Amazonas até as bacias do Paraguai e do Paraná. Índio e floresta, portanto, se condicionam mutuamente. As relações não são naturais mas culturais, numa teia intrincada de reciprocidades. Eles sentem e vêem a natureza como parte de sua sociedade e cultura, como prolongamento de seu corpo pessoal e social. Para eles a natureza é um sujeito vivo e carregado de intencionalidades. Não é como para nós modernos, algo objetal, mudo e sem espírito. A natureza fala e o indígena entende sua voz e mensagem. Por isso ele está sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de interretro-relações. Encontraram um sutil equilíbrio sócio-cósmico e uma integração dinâmica, embora houvesse também guerras e verdadeiros extermínios, como aqueles dos sambaquieiros e de outras tribos. Mas há sábias lições que precisamos aprender deles face às atuais ameaças ambientais. Importa entender a Terra não como algo inerte, com recursos ilimitados, disponíveis ao nosso bel-prazer. Mas como algo vivo, a Mãe do índio a ser respeitada em sua integridade. Se uma árvore é derrubada, faz-se um rito de desculpa para resgatar a aliança de amizade. Precisamos de uma relação sinfônica com a comunidade de vida, pois como foi comprovado, Gaia já ultrapassou seu limite de suportabilidade. Se deixarmos as coisas correrem e não fizermos nada, as ameaças se tornarão devastadora realidade. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística.
HOMENAGEM Flávio Cannalonga/Arcapress
os pesquisadores, “somente para a mamona há uma área de 3 milhões de hectares apta ao cultivo”. Eles afirmam ainda que “a Amazônia brasileira possui o maior potencial para plantio de dendê no mundo, com área estimada de 70 milhões de hectares”. Todavia, esse produto é conhecido como “diesel do desmatamento”. A produção em massa do óleo de palma (como é conhecido em outros países) já causou a devastação de grandes extensões de florestas na Colômbia, Equador e Indonésia. Na Malásia, maior produtor mundial de óleo de palma, 87% das florestas foram devastadas. O Brasil pode também cumprir a missão de legitimar a política externa do governo estadunidense. Em visita ao Brasil, em fevereiro de 2007, o subsecretário de Estado, Nicholas Burns, afirmou que “A pesquisa e o desenvolvimento de biocombustíveis podem ser o eixo simbólico de uma parceria nova e mais forte entre Brasil e Estados Unidos”. Os dois países controlam 70% da produção mundial de etanol. Recentemente, em resposta ao impacto desse tema na sociedade, o governo Bush anunciou que pretende reduzir o consumo de petróleo em 20%. Segundo Burns, “A energia tende a distorcer o poder de alguns Estados que nós achamos que têm um peso negativo no mundo, como a Venezuela e o Irã”. (Folha de S.Paulo, 7 de fevereiro de 2007). A expansão da produção de bioenergia é de grande interesse para empresas de organismos geneticamente modificados, que esperam obter maior aceitação do público se difundirem os produtos transgênicos como fontes de energia “limpa”. “Todas as empresas que produzem cultivos transgênicos – Syngenta, Monsanto, Dupont, Dow, Bayer, BASF – têm investimentos em cultivos concebidos para a produção de biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel. Têm, além disso, acordos de colaboração com transnacionais como a Cargill, Archer, Daniel Midland, Bunge, que dominam o comércio mundial de cereais, explica Silvia Ribeiro, investigadora do Grupo ETC do México. Segundo Eric Holt-Gimenez, coordenador da organização Food First, “Três grandes empresas (ADM, Cargill e Monsanto) estão forjando seu império: engenharia genética, processamento e transporte – uma aliança que vai amarrar a produção e a venda de etanol. E acrescenta que outras empresas do agronegócio como Bunge, Syngenta, Bayer e Dupont,
O tema da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica do Brasil desta Quaresma é a Amazônia. Milhões de fiéis durante as quatro semanas irão refletir sobre sua importância para nós e para o futuro da Terra. A Amazônia abriga o maior patrimônio hídrico e genético do planeta. De um de nossos melhores estudiosos, Eneas Salati, sabemos: “Em poucos hectares da floresta amzônica existe um número de espécies de plantas e de insetos maior que em toda a flora e fauna da Europa”. Mas essa floresta luxuriante é extremamente frágil, pois se ergue sobre um dos solos mais pobres e lixiviados da Terra. Se não controlarmos o desmatamento, em dezenas de anos, a Amazônia pode se transformar numa imensa savana. Ela não é terra virgem e intocada. Em milhares de anos, dezenas de povos indígenas, que ali viveram e vivem, atuaram como verdadeiros ecologistas. Grande parte de toda floresta amazônica, especialmente de várzea, foi manejada pelos índios, promovendo “ilhas de recursos”, criando condições favoráveis para o desenvolvimento de espécies vegetais úteis como o babaçu, a palmeira, o bambu, os bosques de castanheiras e frutas de toda espécie, plantadas ou cuidadas para si e para aqueles que, por ventura, por lá passassem. As famosas “terras pretas de índios” remetem a esse manejo.
“Depois de 20 anos, deixei a mídia impressa para trabalhar com documentação. Tive de fazer todo um novo aprendizado – a gente (fotógrafos) fica meio preguiçoso quando trabalha em jornais e revistas, há sempre um repórter para conseguir contatos e personagens. Comecei então documentando as festas religiosas no Brasil, e daí ocasionalmente passava por acampamentos e assentamentos do MST, primeiramente no Nordeste, depois de norte a sul. A vida, a força dessas pessoas sempre me emocionou muito, e passei a fotografar e, na medida do possível, viver um pouquinho dessa luta.” (Depoimento dado à revista Caros Amigos em dezembro de 2002) Flávio Cannalonga, fotógrafo profissional desde 1977, colaborador do Brasil de Fato desde a sua gestação, nos deixou no último dia 26 de fevereiro.
* 28/12/1953 † 26/02/2007 Ao lado, indígena da etnia chipaya, do oeste da Bolívia, fotografado por Cannalonga
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
3
De 1º a 7 de março de 2007
NACIONAL QUESTÃO AGRÁRIA
A verdade grilada no Pontal Eduardo Sales de Lima Da Redação
Elza Fiúza/ABr
Palco de conflitos há quase um século, áreas da região oeste paulista foram tomadas do Poder Público
A ameaça da cana-de-açúcar
E
nquanto os fazendeiros da região do Pontal do Paranapanema, oeste do Estado de São Paulo, estão ansiosos pelo aumento da produção de cana-deaçúcar, a mídia corporativa alardeia as “invasões” em algumas áreas da região, omitindo que a maior parte dessas fazendas são oriundas de terras griladas. Desde o início do ano, os sem-terra realizaram 12 ocupações na região e pressionam o governo estadual para negociar uma solução para as famílias. Já o secretário da Justiça do Estado de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, respondeu que não vai dialogar com nenhuma organização que realizar ocupações e jogou a responsabilidade para o governo federal. Embora as ocupações não tenham sido realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Zelitro Luz da Silva, coordenador estadual da região do Pontal do Paranapanema, revela que Marrey já integrou um grupo de procuradores que tinha por objetivo oferecer denúncias contra os trabalhadores semterra. Segundo o MST, a agenda de lutas do movimento começa somente em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. “A grilagem no Pontal começa no final do século 19. A fazenda Pirapó-Santo Anastácio é o grilomãe. Há também a Boa Esperança do Aguapeí. As duas somam mais de 1 milhão de hectares. Desde o final do século 20, por meio das ocupações de terra, o MST começou a pressionar o governo estadual para o desentranhamento dos grilos”, relata Bernardo Mançano Fernandes, geógrafo e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Presidente Prudente). Nos últimos 15 anos, foram desapropriados mais de 100 mil hectares, todavia os grileiros receberam uma boa quantia em dinheiro pelas fazendas que foram transformadas em assentamentos. “As terras do Pontal, em grande parte, pertencem ao governo do Estado de São Paulo. O Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), responsável pela regularização fundiária, atuou fortemente na segunda metade da década de 1990, quando o MST intensificou as ocupações. Hoje, há cerca de 6 mil famílias assentadas na região”, informa Mançano. Para o geógrafo, o governo não está comprometido em recuperar esse patrimônio público e tem se limitado a propor medidas paliativas, como a lei dos 500 hectares, que visava regularizar essa pequena quantidade de terra, mas não encontrou interessados por parte dos trabalhadores rurais. “A elite agrária do Pontal está na base de apoio dos governos estadual e federal. Por outro lado, o Poder Judiciário, parte importante do processo, está ‘empurrando com a barriga’ (os processos de desapropriação) há mais de um século”, completa Mançano. Segundo Zelitro Luz da Silva, o governo paulista, na época da substituição de Mário Covas por Geraldo Alckmin – ambos do PSDB –, colocou Alexandre de Moraes à frente do Itesp para, junto com as idéias do agrônomo Xico Graziano (atual secretário de Meio Ambiente), implementar uma estratégia que neutralizasse o avanço da luta pela terra no Estado. “A primeira medida foi criminalizar os movimentos, principalmente o MST e suas lideranças. A segunda foi desmoralizá-lo. O Itesp, que tinha até então um papel de ser um aporte técnico para os assentamentos, vem sendo totalmente desmantelado para exercer outra função, que é somente a regularização fundiária”, conta Zelitro.
Uma área devastada pelo latifúndio O Pontal do Paranapanema é uma das regiões mais devastadas do Brasil e abriga, hoje, apenas 1,85% da cobertura original da mata atlântica. Em seu artigo “Reforma Agrária com Reforma Ecológica”, o engenheiro florestal Laury Cullen Jr. conta que em 1942, o então governador Fernando Costa decretou que toda a área oeste do Pontal, de 350 mil hectares, passaria a ser uma grande reserva de fauna e flora. Porém, nos anos 1950, o governador da época distribuiu as terras da reserva entre alguns amigos e correligionários, que iniciaram um processo voraz de ocupação. Segundo Cullen Jr., a maior parte da mata original que restou está pre-
servada pelo Parque Estadual do Morro do Diabo, com seus 35 mil hectares de florestas contínuas. A preocupação do MST é produzir entre os assentados e suprir as necessidades básicas na busca de uma reforma agrária paralela acompanhada de uma reforma agroecológica na região, refletida, atualmente, na parceria entre a Cooperativa do Movimento Sem Terra do Pontal (Cocamp/MST), o Instituto Florestal de São Paulo (IF) e a Universidade de São Paulo (Esalq-USP). “Se a cana chegar aqui nas proporções que estão falando, isso vai ser um caos no meio ambiente, na devastação da terra. A cana em grandes extensões vem com maquinário. O deserto verde vai ser uma realidade, a menos que o governo use outros métodos e outras atitudes diante da questão agrária”, afirma dom José Maria Libório, bispo de Presidente Prudente. (ESL)
A grilagem no Pontal começou no final do século 19; estima-se que mais de 1 milhão de hectares foram tomados ilegalmente
Nos últimos anos, a luta dos movimentos sociais pela recuperação das áreas do Pontal do Paranapanema estão enfrentando um grande obstáculo: a expansão do agronegócio. “De 2004 a 2006, a soja tentou se expandir pelas terras do Pontal, mas fracassou. A cana já está na região há décadas e, agora, vai tentar ampliar seu território. Isto tudo acontece, em grande parte, em terras griladas. Apenas uma parte foi recuperada por causa das ocupações”, aponta Bernardo Mançano Fernandes, geógrafo e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Presidente Prudente). Para o especialista, hoje mais do que nunca, o agronegócio vai tentar se apropriar das terras dos assentados fazendo com que eles plantem cana-de-açúcar para as usinas. “É uma forma de tentar esconder o problema da grilagem. Os latifundiários poderão argumentar que, com a cana, haverá uma ‘maior produtividade’ da terra”, explica o geógrafo. Mas bem diferente do cenário das décadas de 1970 e 1980, quando essa cultura se territorializou sem encontrar dificuldades, hoje sua expansão terá de enfrentar a sociedade organizada, a reforma agrária e os assentados. “É preciso criar espaços de debate para que a cana não seja vista como uma totalidade. A reforma agrária e a territorialização dos assentamentos é outra forma de desenvolvimento”, completa o coordenador do Nera. Para viabilizar a expansão da cana, os fazendeiros e forças políticas locais têm lançado mão de artifícios para barrar a reforma agrária e legitimar o agronegócio. Segundo Valmir Rodrigues Chaves, coordenador estadual do MST do Pontal do Paranapanema, os latifundiários abaixam o preço da cana e do arrendamento para as usinas virem para a região. Uma conseqüência é que isso pode prolongar o julgamento das terras devolutas, com a pressão do poder econômico pelo uso das terras. “É um negócio bem combinado porque lá, em Ribeirão Preto (SP), a tonelada de cana é R$ 45; aqui é R$ 27. Enquanto que o arrendamento daqui de cana é R$ 700, lá em São José do Rio Preto (SP) é R$ 2 mil por alqueire”, explica Valmir. (ESL)
A transformação pela democratização do acesso à terra A presença dos trabalhadores rurais que vivem nos mais de cem assentamentos do Pontal do Paranapanema está impulsionando o desenvolvimento de cidades da região, principalmente Teodoro Sampaio, com 1.211 famílias assentadas, e Mirante do Paranapanema, com 1.157, segundo dados do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). “Os assentamentos promoveram o desenvolvimento do Pontal, que aconteceu de forma bastante distribuída em diversos setores do comércio e da indústria. É uma expansão econômica que não concentra tudo em uma ou duas empresas, como acontece com a cana-de-açúcar ou com a soja. Todavia, esse desenvolvimento é ainda, em parte, ignorado. É impressionante constatar que o comércio local não tem conhecimento de que grande parte de seus clientes são assentados. Isso já não acontece com as usinas de leite, em que a maior parte dos fornecedores é assentada. Além disso, houve crescimento da população rural e da população total de grande parte dos municípios do Pontal, que na década de 1980 sofreram com o êxodo rural”, diz
o geógrafo da Unesp Bernardo Mançano Fernandes.
MISSÃO DO PONTAL O pároco Mauro Laércio Magro, da igreja São Lucas, periferia de Presidente Prudente, faz parte do projeto chamado “Missão do Pontal”. “Fui jantar em uma casa muito simples. Tinha quatro tipos de legumes, verduras, arroz, feijão, macarrão; três tipos de carne, uma mesa farta. Eu perguntei para o Édson, dono do lote do assentamento ‘Iancá’, ‘De tudo isso, o que é que saiu do seu lote?’, ele falou, ‘A única coisa que não saiu do meu lote foi só o arroz, o restante é tudo produzido aqui’”, narra o religioso. Segundo Mauro, a cidade de Presidente Prudente é reacionária. “Se você pensar a cidade a partir do centro até a periferia, acho que 99% são radicalmente contra os assentamentos. Na paróquia onde estou, a população não ouvia falar muito da questão agrária. Agora já existe uma reflexão diferenciada”, conta. Segundo Valmir Rodrigues, a elite comandante de Presidente Prudente está ligada aos partidos de direita. (ESL)
4
De 1º a 7 de março de 2007
NACIONAL CAMPANHA DA FRATERNIDADE
Fatos em foco
Wilson Dias/ABr
Hamilton Octavio de Souza Jornadas Anti-Bush A Frente Jovem Humanista está mobilizando as pessoas para participar das Jornadas Anti-Bush, uma série de atividades de protesto contra a presença do presidente dos Estados Unidos em São Paulo, nos dias 8 e 9 de março. O “Fora Bush” também está sendo ensaiado por vários movimentos sociais e partidos de esquerda, e será um bom divisor de águas para ver quem está com o imperialismo. Trambique histórico Passa o tempo, muda governo e os métodos de distribuição de canais de rádio e TV, no Brasil, continuam os mesmos de 50 anos atrás, na base do toma-lá-dá-cá entre políticos e puxasacos dos poderosos de plantão. A concessão da TV Pantanal, de Cuiabá, dada em 1997, deveria ter sido cassada há muito tempo, mas virou um grande negócio entre grupos privados e acabou nas mãos de Gugu Liberato. Mais uma obra nefasta do ministro Hélio Costa (Comunicações). Reflexão rápida E ainda tem muita gente ingênua ou cínica que acha o momento atual do Brasil o mais democrático. Basta pegar a situação na área da comunicação social: Quais categorias de operários e quais grupos de esquerda controlam emissoras de rádio e televisão? Quais militantes socialistas têm espaço e podem expressar livremente o que pensam nos veículos de comunicação? Democracia não é conviver com a diversidade ampla? Democracia onde? O Comitê em Defesa da Democracia e pela Liberdade dos Presos Políticos deve realizar em março um ato público na PUC-SP, onde faz doutorado um dos presos políticos do MST, o cientista social e professor Marcelo Buzetto. Outro preso de São Paulo, Ismael Alves Cardoso, o Magrão, enfrentou uma barra duríssima no Cadeião de Pinheiros, onde as condições prisionais atentam contra a condição humana. Reprodução bárbara Uma das coisas que garante a perpetuação das elites dominantes no Brasil é que elas criam os filhos para sucedê-las no controle do capital, do patrimônio, das empresas, dos latifúndios e também no jogo político. Basta ver que o Congresso Nacional está cheio de herdeiros (filhos, sobrinhos, netos) das velhas oligarquias responsáveis pela desigualdade, preconceito e corrupção existentes por aí. A maioria está na base parlamentar do governo. Tratamento diferenciado O ministro da Fazenda, Guido Mantega, ficou refém de assaltantes na semana do Carnaval, numa chácara em Ibiúna, SP. Estranhamente, ele não prestou queixa e o boletim de ocorrência não foi liberado pela polícia logo após o fato, como ocorre normalmente. Não se sabe qual a justificativa para o tratamento diferenciado, mas reforça a prática de que alguns podem mais que outros – um péssimo exemplo para a cidadania. Modelo independente Economistas e jornalistas neoliberais do Brasil criticam diariamente o processo venezuelano, especialmente as medidas adotadas pelo governo Hugo Chávez para nacionalizar e controlar os recursos naturais e os serviços públicos. No entanto, a Venezuela aumentou em 10,3% seu PIB em 2006, enquanto o Brasil, que segue servilmente as políticas do FMI e do Banco Mundial, aumentou apenas 2,9%. O que está errado? Controle nacional Lançada dia 21 de fevereiro, a Campanha da Fraternidade da CNBB, sobre a Amazônia, chegou em boa hora, especialmente porque empresas madeireiras e mineradoras estrangeiras estão em franca destruição da floresta. É o caso da mineradora anglo-australiana Rio Tinto, que está tentando desbloquear uma área de reserva ecológica nas margens do rio Curuá para a exploração de bauxita. É preciso barrar a devastação da Amazônia. Mobilização geral Toda força para as manifestações do Dia Internacional da Mulher. Viva o 8 de Março!
Brasília – O secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Odilo Pedro Scherer, fala sobre a Campanha da Fraternidade
A Amazônia é de quem nela vive Modelo de exploração da região voltado para a exportação provoca desmatamento e concentra terra Pedro Carrano de Curitiba (PR)
N
a região conhecida como Amazônia legal – um território que corresponde a 49% do Brasil –, mais de 160 etnias indígenas, e ainda ribeirinhos, caboclos e quilombolas, buscam no meio ambiente o essencial para viver. Porém, a concepção de mundo local é afetada por um modelo caracterizado pela produção de mercadorias para a exportação – ou seria melhor dizer, para a pilhagem? Longe do discurso de que a Amazônia é uma terra de ninguém, na verdade, existe uma variada população local, prejudicada pela economia do agronegócio. Ademais, os projetos de extração mineral e de produção de energia seguem a lógica da exportação: os trens que partem da mina de Carajás, no Pará, levando o minério ao porto de Itaqui, no Maranhão, retornam carregados de gente em busca de emprego. E esse povo todo não é absorvido pela economia. No dia 21 de fevereiro, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou a Amazônia como tema da Campanha da Fraternidade 2007. De acordo com coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – entidade que ajudou a elaborar o texto para o estudo das comunidades de base –, a idéia é pensar sobre o que o modelo de vida dos povos amazônicos tem a ensinar. “Os valores criados na Amazônia podem construir alternativas: é uma via de mão dupla, para não olharmos os povos apenas como exóticos, mas, na verdade, como uma crítica à sociedade de mercado”, declara Rogério Nunes, da CPT de Curitiba (PR).
QUESTÃO AGRÁRIA Uma das demandas da campanha da CNBB é o envolvimento das comunidades nas decisões sobre a exploração da floresta. Sandro Gallazzi, coordenador da CPT no Amapá, afirma que as organizações dialogam apenas com os governos estaduais, o que é pouco. “O governo do Estado do Amapá possui jurisdição sobre apenas 13% da floresta”, diz, enquanto órgãos federais como o Incra e o Ibama atuam na região sem buscar a participação popular. “Fazer consulta pública é algo muito bonito, mas qual é o espaço onde o povo decide? No âmbito federal isso não existe, a participação não é deliberativa”, comenta Gallazzi.
16% – Áreas de proteção
área de 400 mil hectares adquirida pelo grupo Marubeni Corporation, de capital japonês, que vai se dedicar à exploração de eucaliptos no cerrado do Amapá, região onde nascem os rios que nutrem os povos tradicionais. Para ele, o Brasil já não exerce o controle da região, como se a Amazônia estivesse internacionalizada.
9% – Terras sem demarcação
FLUXO DE PESSOAS
Ocupação do território amazônico 30% – População indígena, ribeirinhos, quilombolas, caboclos, posseiros, imigrantes etc. 45% – Capital nacional ou internacional.
Fonte: CPT–Amapá
Outro foco da campanha é a condenação da grilagem. O assessor da CPT amapaense aponta que a concentração fundiária na região é encarnada pelo agronegócio da soja, pelas madeireiras e pela especulação de transnacionais. Esse capital, nacional ou internacional, detém 45% das áreas da Amazônia, ao passo que o restante da poGrileiros – Pessoas ou grupos pulação possui econômicos que apenas 30%. O demarcam áreas, beneficiados pelo Judiciário tarda Judiciário e por em punir a gricartórios. Com isso, lagem, mas não elas então emitem a reintegração de titubeia ao conposse da terra, denar os pequeexpulsando as famílias das suas nos agricultores regiões originárias. que, nos últimos anos, engrossaram um batalhão de 31 mil pessoas despejadas, sem que a contraparte fosse ouvida. Gallazzi narra a história de uma
O sociólogo e jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto comenta que os 17% da área da Amazônia legal já desmatados, em parcos 40 anos, representou a maior devastação florestal da história da humanidade. Para ele, um dos motivos é a aquisição de terras e a sua queima, de modo a não transparecer que a propriedade é improdutiva. Outra razão seria o uso do bioma para efeito especulativo. Hoje, a reserva de valor se dá por meio de políticas Seqüestro de Carbono – Áreas como o seqüesde proteção compradas por transna- tro de carbono. cionais em países Para ele, o capibiodiversos como o tal estrangeiro já Brasil, na forma de não atua territocréditos, que lhes garantem a marialmente devido nutenção de altos índices de poluição à dificuldade de nas suas plantas demarcação de de produção. terras. “Os grupos preferem comprar a madeira ao invés de extraí-la”, descreve. Ao refletir sobre o Pará, o soció-
logo descreve os fluxos migratórios gerados pela economia de mercado. “A Companhia Vale do Rio Doce prevê que, até o fim da década, irá investir na região 8 bilhões de dólares, mas isso não atende nem de longe ao fluxo de pessoas que não são absorvidas pela economia. De cada dez pessoas que chegam ao Pará, apenas uma é absorvida”, analisa. O estado possui o 11º Produto Interno Bruto (PIB) do país, mas apenas o 21º PIB per capita. Por sua vez, a política do governo de promover assentamentos obedece a uma lógica de “assentar sem desapropriar” os madeireiros do agronegócio, como explica José Batista Afonso, da coordenação da CPT em Marabá (PA). A União é proprietária de um considerável número de terras na Amazônia. Então, as famílias recebem um pedaço de chão, porém não têm condições de interagir com a natureza de um modo racional, pois a lógica de produção por ali é diferente: a agricultura teria que ser substituída pela agroecologia, pesca ou outra atividade sustentável. “O governo assenta em terras públicas, mas sem comprar briga com o agronegócio. É um problema que engorda os números oficiais de assentados, mas não há outra alternativa: as famílias, sob pressão das madeireiras, abandonam os lotes”, comenta.
Construção de hidrelétricas Sandro Gallazzi, da CPT do Amapá, conecta duas realidades com relação aos planos do governo federal para a construção de novas hidrelétricas na Amazônia. A obra implica no deslocamento de comunidades indígenas, com indenizações precárias, e está diretamente ligada ao fornecimento de energia para mineradoras. Um exemplo são as empresas produtoras de alumínio, como a Alubras e Alunorte, ambas com foco no
No Pará, a Vale patrocina o lançamento Mesmo que venha em boa hora a denúncia de mercantilização dos recursos naturais na principal floresta tropical do mundo, o lançamento da campanha da CNBB ganhou duras críticas, até mesmo das entidades que a compõem. O motivo foi a estampa da Companhia Vale do Rio Doce como patrocinadora do lançamento. Não é para menos. O complexo mina-ferrovia-porto que tem início na mina de Carajás, no município de Parauapebas (PA), abriga nada menos que 14 siderúrgicas no seu entorno. De acordo com coordenadores da CPT, as siderúrgicas neces-
mercado externo, que são alimentadas pela hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. O fornecimento de energia se dá a baixos preços, menores do que pagaria o consumidor pelo mesmo serviço de abastecimento. Além disso, parte da energia vai para os estados ao sul, enquanto comunidades amazônicas sobrevivem com luminárias à base de querosene. E olha que a região amazônica é uma das maiores produtoras de energia do país. (PC)
sitam de carvão mineral para a composição química do ferro-gusa (minério de ferro transformado). “No Pará e no Maranhão, 300 mil hectares de mata nativa foram transformados em carvão, o que fomenta um setor marcado pelo trabalho escravo e infantil. Isso sem contar o dióxido de carbono emitido no meio ambiente”, critica Sandro Gallazzi, da CPT do Amapá, para quem o apoio recebido da Vale para o festejo de lançamento da Campanha da Fraternidade deste ano foi uma incoerência. É sabido que a companhia, dez anos depois da privatização, adotou uma política de distribuição de dividendos para os acionistas na bolsa de valores. Na opinião de José Batista Afonso, coordenador da CPT em Marabá (PA), a empresa deveria voltar às mãos do poder público, focando-se nos interesses
da população. A pesquisadora Andrea Zhouri, da Universidade Federal de Minas Gerais, acredita que o fato de a empresa voltar às mãos do poder público forneceria mecanismos de reivindicação popular frente às políticas da empresa, ainda que, para ela, a estatização não signifique que a companhia deixe de destruir o meio ambiente. “Abre-se um canal de negociação em relação aos fazeres dessa empresa; os cidadãos poderiam ter mais acesso ao diálogo. Uma empresa estatal está mais sujeita a constrangimentos éticos e ambientais que uma empresa privada, mas, devido à opção dos últimos governos, de inserção do país no mercado global via exportação, há dúvidas de quais melhorias uma estatal apresenta em relação a uma empresa privada”, questiona. (PC)
5
De 1º a 7 de março de 2007
NACIONAL CONQUISTA DE DIREITOS
No Dia Internacional da Mulher, brasileiras lutam pelo fim da desigualdade de gênero e por soberania alimentar
Anderson Barbosa
Mulheres exigem o fim da violência Confira a programação do 8 de Março nos Estados Mato Grosso do Sul – Em Campo Grande o eixo do ato está se construindo em torno da luta contra a violência e pela aplicabilidade da Lei Maria da Penha.
Tatiana Merlino da Redação
Minas Gerais – Será realizado um ato estadual, em Belo Horizonte. A previsão é que estejam presentes mulheres de 23 municípios do estado. Entre as pautas está a luta por soberania alimentar. A concentração será às 13h, na Praça da Estação. Será um ato unificado e o trajeto passará por pontos que representam a reprodução da opressão das mulheres.
C
ombate à mercantilização do corpo e da vida das mulheres, denúncia à violência sexista, valorização do salário mínimo, luta pela legalização do aborto e contra a precarização do trabalho da mulher são algumas das reivindicações das mulheres que sairão às ruas neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher. A Marcha Mundial das Mulheres está organizando manifestações em todos os estados e, em São Paulo, o tema do ato será “Feministas em luta para mudar o mundo: por igualdade, autonomia e liberdade” e são esperadas 10 mil participantes. Como em anos anteriores, o ato irá se solidarizar com as mulheres que são vítimas da violência das guerras no Iraque, na Palestina e em conflitos produzidos pelo imperialismo. Assim, as manifestantes também irão protestar contra a visita ao Brasil do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que chega ao país no dia 8 (veja matéria na página 7). “Dizemos não a esse modelo de sociedade que concentra riqueza nas mãos de poucos e promove a guerra e a militarização no mundo. Nesse dia as mulheres gritarão: ‘Fora Bush do Brasil e da América Latina”, afirma Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres.
Rio de Janeiro – A concentração para a manifestação será às 16h na Candelária, de onde sairá a passeata com destino à Cinelândia, ponto do qual será realizado o ato final. Antes e depois do 8 de Março serão realizadas ações descentralizadas, como em Santa Cruz, no dia 7. Rio Grande do Norte – Os municípios irão realizar jornadas de luta preparatórias ao 8 de Março. Durante o Dia Internacional da Mulher, em Mossoró, serão armados dois circos no centro comercial, próximos à catedral. De manhã, haverá um debate sobre a pobreza e violência sexista. A passeata vai acontecer à tarde e grupos espalhados em pontos da cidade irão se unir à passeata durante o trajeto.
LEGALIZAÇÃO DO ABORTO A questão da legalização do aborto continua sendo destaque nas reivindicações, já que todos os anos milhares de mulheres morrem em decorrência da realização de abortos clandestinos em condições inseguras. De acordo com documento divulgado pela Sempreviva Organização Feminista (SOF) por ocasião do 8 de Março, a criminalização do aborto não diminui sua realização, mas põe em risco a vida de milhares de mulheres. “A cada oito minutos uma mulher no mundo morre em conseqüência dessa hipocrisia”, protesta a SOF. Outro tema que estará presente nas manifestações ao redor do país é a luta contra a violência e pela aplicação da Lei Maria da Penha, instituída em agosto de 2006 e que cria mecanismos para coibir a vio-
O ato deste ano coincidirá com a visita de George W. Bush ao Brasil; como em anos anteriores, as manifestantes irão se solidarizar com mulheres vítimas da violência das guerras no Iraque, Palestina e em conflitos produzidos pelo imperialismo
lência doméstica e familiar contra a mulher.
SOBERANIA ALIMENTAR A luta pela soberania alimentare contra o agronegócio continua sendo bandeira das mulheres da Via Campesina e da Marcha Mundial das Mulheres. No dia 8, o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC) irá lançar a campanha nacional pela produção de alimentos saudáveis, cujo lema é “produzir alimentos saudáveis, cuidar da vida e da natureza”. De acordo com Vanderléia Daron, da coordenação do movimento, o objetivo da campanha é “avançar na luta pela soberania
alimentar, dar visibilidade ao potencial de produção de alimentos da agricultura camponesa, sensibilizar a sociedade para a situação
de degradação da natureza e o reconhecimento e a valorização do trabalho da mulher”.
A vida das mulheres A cada 15 segundos uma mulher é vítima de violência no Brasil. Quase um terço das mulheres ocupadas é trabalhadora doméstica ou exerce atividade sem remuneração. Segundo o IBGE, 91% das mulheres fazem serviços domésticos enquanto apenas 46% dos homens o fazem. Entre todos os países, o Brasil é o 82º em termos de participação das mulheres na política. O tráfico de mulheres é a terceira máfia mais lucrativa do mundo. Fonte: Sempreviva Organização Feminista (SOF).
São Paulo – Manifestação na avenida Paulista, com a expectativa de reunir 10 mil mulheres. Será um ato estadual que tem como eixos a valorização do salário mínimo e do trabalho das mulheres, o combate à violência sexista, a crítica à sociedade de mercado e ao imperialismo e a luta das mulheres por autonomia, igualdade e liberdade. A concentração da manifestação será às 15h na praça Oswaldo Cruz. Sergipe – A preparação para o 8 de Março em Sergipe envolve panfletagem, no dia 3, no mercado Tales Feraz, às 9h. No dia 4, as mulheres farão um “arrastão” na praia de Atalaia contra a imposição dos padrões de beleza. No dia 7, haverá um ato às 9h na porta da Secretaria de Segurança Pública. A manifestação do 8 de Março sairá da Colina do Bairro Santo Antonio e a passeata irá até a praça Fausto Cardoso.
6
De 1º a 7 de março de 2007
INTERNACIONAL FÓRUM MUNDIAL PELA SOBERANIA ALIMENTAR Fotos: Dafne Melo
O direito à alimentação Movimentos sociais dos cinco continentes defendem, em Mali, que a produção agrícola não seja tratada como mercadoria Dafne Melo Enviada especial a Sélingué A mensagem que os 600 delegados de movimentos sociais de todo o mundo mandaram durante o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar foi clara: é preciso dar um basta às políticas neoliberais para a produção agrícola mundial, barrando as ações das transnacionais na produção de alimentos. “O maior inimigo da soberania alimentar é o neoliberalismo, um modelo ideológico capitalista que destrói as economias locais, privatiza os recursos naturais e globaliza o comércio, colocando todas as economias locais nas mãos das transnacionais”, resumiu Paul Nicholson, representante da Via Campesina no País Basco, em entrevista ao Brasil de Fato. Como alternativa, as organizações sociais propõem o modelo da soberania alimentar, no qual a alimentação nao é vista como uma forma de obter lucro, mas como um direito humano. “Antes de tudo, é um direito político, um direito dos povos de definirem suas políticas alimentares e agrícolas”, resume Nicholson.
RESPEITO À NATUREZA O encontro ocorreu entre os dias 23 e 27 de fevereiro na pequena cidade rural de Sélinguè, localizada a cerca de duas horas da capital do Mali, Bamako. Na abertura, agricultores, pescadores, camponeses, pastoralistas, indígenas e ativistas deram seus depoimentos. “Todos nós somos produtores de alimentos e as coisas que produzimos com nossas mãos revelam uma história de amor e respeito à natureza. Agora, temos que construir um movimento global com pessoas que produzem com suas mãos e com o coração”, declarou o pescador estadunidense Jeremy Fisher, da Federação dos Pescadores da Costa Oeste (PCFAA).
O palestino Alidarwish Greenline também falou sobre a situação de seu povo. “Há 15 anos, 50% dos palestinos foram expulsos de suas terras, e suas casas e pertences foram queimados. Desde 2002, Israel tem feito um grande esforço para expulsar os outros 50% que restaram. Quando tiram os palestinos de suas terras, destroem tudo para que não voltem. E quando os palestinos respondem a isso, são chamados de terroristas”, protestou.
OBJETIVOS Além de buscar articular e integrar movimentos sociais, estabelecendo alianças estratégicas, Nicholson explica que, diferentemente do Fórum Social Mundial, os participantes do Fórum pela Soberania Alimentar – batizado de Nyéléni – têm como objetivo definir uma agenda de mobilizações em todos os continentes. “Desde 1995 e 1996 começamos a desenvolver esse princípio, não só de forma conceitual, mas também por meio de uma estratégia de ação, tanto camponesas como com outros movimentos sociais. Em Nyéléni, temos uma visão de longo prazo, de novos horizontes, de construir objetivos e agenda de ação para os anos seguintes. Aqui somos mais específicos, elaborando uma agenda política”, explica Nicholson. A metodologia do evento reuniu pequenos grupos de discussão divididos em sete temas: as políticas do comércio internacional e os mercados locais, conhecimento local e tecnologias, acesso e controle sobre os recursos naturais, o compartilhamento de recursos e direitos dos pescadores, conflitos e desastres, condições sociais e migração forçada e, por fim, modelos de produção. Todos foram discutidos levando-se em conta três questões básicas: pelo o que lutamos?, contra quem lutamos? e o que podemos fazer a respeito?
Mulheres de Sélingué preparam almoço para participantes do fórum
Dois modelos distintos para o campo QUESTÃO
MODELO DOMINANTE NEOLIBERAL
MODELO DA SOBERANIA ALIMENTAR
Comércio
Livre comércio por meio de acordos bilaterais ou multilaterais arbitrados por organizações como a OMC
Alimentação e agricultura devem ser protegidos dos acordos comerciais
Prioridade da produção
Agroexportação
Alimentos apenas para os mercados locais e de acordo com a demanda
Preços
Aqueles ditados pelo mercado
Preços justos que cubram o custo da produção e que permitam aos agricultores viverem dignamente
Acesso aos mercados
Mercados externos
Mercados locais
Subsídios
São proibidos nos países subdesenvolvidos e permitidos nos EUA e União Européia
Aqueles que não prejudicam outros países (via dumping) são permitidos
Ser capaz de produzir
Uma opção para os que são economicamente eficientes
Um direito das comunidades rurais
Fome (explicação)
Devido à baixa produtividade
Um problema decorrente da falta de acesso e má distribuição das riquezas
Alimento
Uma commodity. Na prática, isso significa comida contaminada (transgênicos), processada com muita gordura, açúcar e resíduos tóxicos (agrotóxicos, por exemplo)
Alimentar-se é um direito humano. O alimento deve ser saudável, nutritivo, culturalmente apropriado, produzido localmente e ter um preço acessível
Segurança alimentar
Alcançada pela importação de comida o mais barata possível
Um pressuposto, uso da agroecologia para a produção de alimentos
Controle sobre as fontes naturais
Passam para a mão da iniciativa privada
Deve pertencer às comunidades locais
Acesso à terra
Apenas por meio do mercado
Por meio de uma verdadeira reforma agrária. Sem acesso justo à terra, o resto não pode se concretizar
Sementes
Uma commodity em potencial
Um patrimônio da humanidade desenvolvido por comunidades rurais e diferentes povos
Crédito rural e investimento
Por meio de bancos privados e corporações
Do setor público, para o financiamento da agricultura familiar
Dumping
Não é visto como um problema, algo inerente às regras do mercado
Deve ser proibido
Monopólios
Não são vistos como um problema, algo inerente às regras do mercado
A raiz de muitos problemas. Também devem ser proibidos
Produção excedente
Não existe, por definição
Abaixa os preços e leva agricultores à falência; são necessárias políticas de controle da produção vindas dos EUA e UE
Agricultores
Um anacronismo, algo que irá sumir
Guardiões da cultura, dos recursos naturais e detentores de conhecimento
Um Outro Mundo Possível
Não há interesse em construí-lo
Sua existência é amplamente demonstrável
Transgênicos
A grande tendência
Nocivo para a saúde, logo, uma tecnologia desnecessária
Tecnologias agrícolas
Industriais, monoculturas com uso de química pesada e organismos geneticamente modificados
Agroecológica é sustentável
A África além dos clichês A soberania alimentar na prática Batizada de Nyéléni, a vila que recebeu cerca de 600 delegados de todos os continentes começou a ser construída em Sélingué (Mali) em dezembro de 2006. Foram feitas 121 pequenas instalações, compartilhadas por três a seis pessoas. Na vila, foram feitos banheiros e outras nove instalações onde ocorrem as atividades. Tudo obra do trabalho local e voluntário. Paul Nicholson, representante da Via Campesina no País Basco, explica que 80% de todo o material utilizado na construção foi produzido localmente e, em grande parte, de forma artesanal. “A soberania alimentar deve ser construída a partir da realidade, Mali e Sélingué representam metade do planeta; aqui, se ganha 2 dólares ao dia. Peter Rosset, da ONG Food First
Fonte: Food First, www.foodfirst.org
(Alimento Primeiro, em português), explica que, agora, o espaço ficará à disposição dos movimentos sociais: “A idéia é que as organizações do Mali e de outros países africanos possam usá-lo como um centro de capacitação e formação, como é a Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil”. Toda a comida consumida pelos participantes foi cultivada e elaborada pela população local, mas levando em conta características alimentares dos participantes, o que obrigou as cozinheiras a deixarem de lado o característico sabor apimentado da cozinha maliense. Para os vegetarianos – como os indianos –, também foram feitos pratos sem o uso de proteína animal. (DM)
Diz o senso comum que guerras e condições naturais adversas explicam o porquê de tanta fome no continente africano. Para o pesquisador Peter Rosset, essa interpretação dá conta apenas das exceções. A regra é que a ação das transnacionais é o maior empecilho para os africanos conquistarem sua soberania alimentar. “A África é um continente com fartos recursos naturais de água, com biodiversidade, gente trabalhadora e cultivos locais. O problema real são as políticas, e isso está claro”, avalia Rosset. Mamadou Goïta, integrante do Instituto de Pesquisa e Promoção de Alternativas de Desenvolvimento (Irpad) e um dos organizadores do evento, explica o caso de seu país. “No caso de Mali, como várias nações do continente, temos o terceiro maior rio da África, o Niger, e um potencial de produção de arroz, por exemplo, de mais de 1,2 milhão de
hectares. Isso apenas utilizando pequenas tecnologias que as pessoas aqui já manuseiam. Com isso, já abasteceríamos 50% da demanda da África Ocidental”, estima.
GUERRA DE CORPORAÇÕES Rosset dá outro argumento que joga por terra a crença de que os africanos são guerreadores por natureza. “Isso é pura mentira. Se você estuda as guerras existentes hoje no continente, em quase todos os casos, algum dos dois lados em conflito é financiado por uma corporação estrangeira e o outro grupo financiado por outra. Elas disputam os recursos, como bosques de madeira fina, minérios, petróleo ou diamantes”, diz o pesquisador. Na maior parte dos casos, as corporações instrumentalizam exércitos mercenários para iniciar esses conflitos. Rosset conta que, devido aos altos índices de exploração e pobreza, o tema da soberania alimentar tem ganhado ressonância no continente e essa foi uma das razões da escolha da África para sediar o fórum. “Em termos mais amplos, aqui foi onde
o conceito da soberania alimentar mais teve ressonância, impacto e maior resposta. Talvez por ser o continente mais distante da soberania alimentar e também muito atingido por dumpings, pelo livre comércio e pelas privatizações, ou seja, políticas neoliberais que têm tido impacto muito negativo na produção de alimentos.” A resposta não tem vindo apenas dos movimentos sociais, mas também de governos. No Mali, o presidente Amadou Toumani Touré assinou em agosto de 2006 uma lei que determina a busca pela soberania alimentar como um princípio para o país. Mamadou Goïta ressalta que a medida foi fruto da reivindicação dos movimentos populares e espera que essa mudança gere repercussão na África. “Essa lei é muito importante porque foi a primeira vez que a questão da soberania alimentar foi reconhecida por um governo, que a incorporou em sua legislação. Pressionando em um nível regional, talvez possamos levar essa demanda para um nível continental”, finaliza. (DM)
7
De 1º a 7 de março de 2007
INTERNACIONAL VISITA DE BUSH
Igor Ojeda da Redação
O
presidente George W. Bush e sua comitiva desembarcarão em São Paulo, dia 8, dispostos a impulsionar, de uma vez por todas, a independência energética estadunidense. Para isso, a América Latina – em especial o Brasil – exerceriam um papel fundamental. Em discurso em janeiro, Bush propôs que os EUA reduzissem em 20% o consumo de gasolina até 2017. No seu lugar, entraria o etanol, também chamado de álcool combustível. Só que as terras estadunidenses não estariam em condições de abrigar os cultivos para suprir tamanha demanda. A solução, portanto, passa por garantir um fornecimento estável do produto para o futuro. EUA e Brasil já são responsáveis por 70% do mercado mundial de etanol. A diferença é que lá o álcool é produzido a partir do milho, enquanto que aqui a matéria-prima é a cana-de-açúcar. “Acredito que os EUA queiram diversificar sua matriz energética para não depender tanto da Venezuela e do Oriente Médio. Mas, além disso, e isso é muito importante, o Brasil é o líder mundial de etanol. E os EUA buscam uma união entre os dois países em um tema que os beneficiem. Aí, há um projeto estratégico dos ianques, porque pela
primeira vez eles poderiam ser uma potência mundial em combustíveis. Claro que tudo depende que Lula sente para negociar e que se ajoelhe da maneira que eles querem”, opina o uruguaio Raúl Zibechi, editor do semanário Brecha. Na comitiva que vem ao Brasil, estarão, entre outros, a secretária de Estado, Condoleezza Rice, e Gregory Manuel, coordenador do setor de energia do Departamento de Estado estadunidense. Bush se encontrará ainda com as direções da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), com a possibilidade de que ele visite uma usina de cana-de-açúcar. A parceria entre EUA e Brasil nessa área teve um início mais concreto no dia 18 de dezembro, quando foi lançada em Miami a Comissão Interamericana de Etanol (CIE), com a missão de “promover o uso do etanol nos tanques de gasolina nas Américas”. A nova entidade tem como diretores o governador do Estado da Flórida, Jeb Bush, que deverá vir ao Brasil após seu irmão, George W. Bush; Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do Brasil e membro da Fiesp; e Luis Alberto Moreno, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Entre os objetivos da CIE, estão a “integração entre as iniciativas técnicas e científicas de pesquisa realizadas em todo o hemisfério e relacionadas à produção e à distribuição de etanol; determinação das necessidades de investimento tanto em agricultura quanto em infra-estrutura; e proposta de um conjunto de ações a fim de criar um mercado internacional para o etanol”. E, para cumprir com êxito tal “missão”, os EUA têm a intenção de estabelecer cooperação com o Brasil, com a
PROCURADO – George W. Bush, por crimes contra a humanidade e o planeta. Tome cuidado se você encontrar este homem! Ele sofre de delírios de que foi eleito democraticamente presidente do mundo. Não se aproxime dele, ele está armado com dispositivos nucleares e é perigoso. Haja de maneira responsável e contacte a delegacia de polícia mais próxima.
participação da iniciativa privada, em projetos de expansão da produção de etanol na América Central e no Caribe. A CIE está fazendo inclusive um levantamento sobre o atual estágio de produção nos países da América Latina.
MARCAR PRESENÇA Mas, apesar de uma certa obsessão pela energia alter-
nativa que garanta mais sossego aos EUA em relação às oscilações do mercado mundial de petróleo, a viagem de Bush pela América Latina também pode ser vista como uma forma de brecar a integração do continente e marcar posição na região, “negligenciada” devido à “guerra contra o terror” no Oriente Médio.
“Atolado cada vez mais no problema do Iraque e do Afeganistão, o presidente George W. Bush parece que começou a perceber que a posição dos Estados Unidos na América Latina está a deteriorar-se cada vez mais”, afirma o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Para ele, como o presidente estadu-
Flávio Cannalonga
Principal objetivo da visita do presidente dos EUA ao Brasil será a realização de parcerias para um fornecimento estável do produto
Reprodução
De olho no etanol latino-americano
Quem paga o custo ambiental e social do etanol? Eduardo Sales de Lima da Redação A vinda do presidente Bush ao Brasil, de certa forma, está em sintonia com os esforços do governo brasileiro de ampliar as exportações por meio do agronegócio. Não é de hoje que diplomatas tentam reduzir as barreiras na Organização Mundial do Comércio (OMC) para vender o açúcar e o álcool. Estados Unidos e Brasil possuem as duas maiores empresas produtoras de álcool: ADM e Copersucar, respectivamente. Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato denunciam o custo social e ambiental da expansão da monocultura de cana-de-açúcar – algo que, aliás, remete ao processo colonizatório do país. “O impacto será grande. Estão previstas dezenas de usinas, com destaque para a porção oeste do Estado de São Paulo, especialmente no Pontal do Paranapanema, onde as terras são baratas pelo fato de serem griladas”, avalia o geógrafo e coordenador do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Rural do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), Bernardo Mançano Fernandes. (Veja matéria sobre o Pontal do Paranapanema na página 3). Dados do Instituto Brasileiro
Plantio de cana deve aumentar 50% nos próximos seis anos; até 2012, mais de 70 usinas serão construídas no Brasil
de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, entre os anos 2005 e 2006, a área plantada passou de 5,62 para 7,04 milhões de hectares, e a produção, de 420 para 460 toneladas de cana-de-açúcar. Segundo a União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), a produção da planta aumentará cerca de 50% nos próximos seis anos. Até 2012, devem ser construídas mais de 70 usinas por todo o Brasil, sendo a maioria em São Paulo. Atualmente, existem 363 cadastradas no país. São Paulo aparece com 170, seguido do Paraná, com 29 e
Pernambuco e Alagoas, que contabilizam 26 usinas cada. “Historicamente, a produção de açúcar está associada ao trabalho escravo de indígenas e negros”, afirma Plácido Júnior, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Pernambuco. Segundo dados da Comissão Pastoral do Migrante (CPM), desde 2004, foram 15 óbitos, só no Estado de São Paulo, a maioria de migrantes de Minas Gerais e do Nordeste, mortes quase todas relacionadas ao excesso de trabalho em usinas e canaviais.
A monocultura e a manutenção do poder dos grandes empresários do setor em detrimento da agricultura familiar têm tudo para crescer. “Sem dúvida, com a territorialização da cana, ocorrerá uma intensificação da concentração de terras. Isso vai significar a expropriação de milhares de pequenas propriedades”, aponta o geógrafo. Para Mançano, o poder do agronegócio da cana reúne as vantagens necessárias para sua expansão: cria as regras e controla as políticas da produção. O fato é que a força política
nidense não tem condições de ir aos países onde existe certa radicalização, ele visitará aqueles com os quais ainda pode manter algum diálogo. Outro objetivo da viagem seria o de isolar os governos tidos como radicais de esquerda, como os de Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia. De Lula, poderia ser cobrado, por exemplo, um posicionamento mais firme em relação a Chávez. Embora acredite que Bush não tenha condições de fazer esse tipo de cobrança ao Brasil, Moniz Bandeira crê que os EUA se valem de outros meios para isolá-lo. “Claro que a posição do Brasil, mantendo estreito relacionamento com a Venezuela, incomoda os Estados Unidos. A eles, o que convém é que o Brasil se volte contra Chávez e Morales (Evo Morales, presidente da Bolívia). E daí a guerra psicológica que está em curso contra a política exterior do Itamaraty, acusando-a de anti-americanismo. As agências dos Estados Unidos, a começar pela sub-secretaria de Diplomacia Pública do Departamento de Estado, estão ativas no Brasil, promovendo a guerra psicológica, para fazer avançar seus interesses e isolar a Venezuela e a Bolívia”, diz. O presidente George W. Bush visitará também, até o dia 14, Uruguai, Colômbia, Guatemala e México. O primeiro vinha ameaçando assinar um Tratado de Livre Comércio com os EUA, o que poderia enfraquecer o Mercosul. A Guatemala é um dos candidatos a receber investimentos para a produção de etanol. Já Colômbia e México são considerados os dois principais aliados estadunidenses no continente.
dos empresários sucroalcooleiros influencia os governos. Segundo ele, a expropriação das pequenas propriedades tende a ser interpretada como uma etapa natural das transformações da agricultura. “É preciso repensar esse processo, construir leituras que demonstrem as condições expropriatórias e intensamente destrutivas do agronegócio da cana”, afirma o geógrafo. Já os impactos ao meio ambiente estão sendo ignorados pelos que defendem a substituição do petróleo pelo álcool combustível como medida para reduzir o aquecimento global. Um dos processos de produção mais comuns é a queima da palha do canavial, para facilitar o corte manual e aumentar a produtividade do cortador de cana. Essa prática reduz custos de transporte e aumenta a eficiência das moendas nas usinas. No entanto, a queima libera gás carbônico, ozônio, gases de nitrogênio e de enxofre (responsáveis pelas chuvas ácidas), e provoca perdas significativas de nutrientes para as plantas, além de facilitar o aparecimento de ervas daninhas e da erosão. Como opção às queimadas – responsáveis por boa parte das mortes dos cortadores por meio da inalação de gases cancerígenos –, a mecanização pode ser extremamente prejudicial ao solo, pois o comprime, não permitindo a entrada de oxigênio. Além disso, como toda a monocultura, a plantação de cana em larga escala diminui a diversidade biológica e empobrece o solo.
8
CULTURA
De 1º a 7 de março de 2007
RESENHAS A terra como mera mercadoria Renato Godoy de Toledo da Redação O Modelo de Reforma Agrária de Mercado (MRAM) é destrinchado em Capturando a Terra, uma coletânea de 11 artigos organizada pelo sociólogo Sérgio Sauer e o historiador João Márcio Mendes Pereira. O MRAM passou a ser empregado pelo Banco Mundial (BIRD) a partir de meados dos anos 1990 em países subdesenvolvidos, que apresentavam um histórico de luta pela terra, como forma de se contrapor ao modelo de desapropriações e à reforma agrária redistributiva. A leitura da coletânea afasta a hipótese falaciosa de que o MRAM teria sido uma opção técnica baseada numa “maior eficiência”, já que o acesso à terra não é mais “emperrado pela burocracia estatal”, como argumenta o BIRD. A opção pelo MRAM é sobretudo política, já que é um instrumento inserido na perpetuação do atual estágio do capitalismo, o neoliberalismo. O acesso à terra deixa de ser uma questão social para tornar-se uma questão de mercado, de compra e venda. O Estado deixa de ser responsável pela reforma agrária para mediar e financiar a compra voluntária de terra por agentes privados. Exclusão social e péssima distribuição de renda, características dos países em que o MRAM foi aplicado, não são combatidas por esse modelo, pelo contrário, tendem a se agravar. A partir de uma visão crítica das linhas gerais do MRAM, os artigos debruçam-se em casos específicos de países e regiões brasileiras onde o modelo foi aplicado. Dentro de uma perspectiva dos movimentos sociais, os autores relatam como os programas impostos pelo BIRD – como o Banco da Terra e a Cédula da Terra, no caso brasileiro –, aliados à repressão do aparato estatal, visam controlar as pressões sociais pelo direito à terra. Nesta literatura, torna-se claro que a ação do BIRD almeja a contenção das lutas pela terra – para que não hajam transformações efetivas na estrutura fundiária e social –, ao mesmo tempo que insere o acesso à terra na lógica da economia de mercado, fazendo da terra uma mera mercadoria e não mais um direito social, como prevê, por exemplo, a Constituição.
A América Latina de Milton Santos João Alexandre Peschanski
Capturando a Terra Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira Expressão Popular R$ 15 (345 páginas) www.expressaopopular.com.br
Questões Territoriais na América Latina Amalia Inés Geraiges de Lemos, Maria Laura Silveira e Mónica Arroyo Clacso Livros e Universidade de São Paulo R$ 30 www.clacso.org.ar
A coletânea Questões Territoriais na América Latina traz análises de 18 geógrafos latino-americanos sobre a formação e a compreensão do continente. A proposta segue a perspectiva metodológica e teórica do pensador brasileiro Milton Santos (1926-2001), cujo texto de uma conferência proferida por ele em 1996, “Por uma Epistemologia Existencial”, abre o volume. Neste, Santos afirma que, mais do que entender a própria dinâmica latino-americana, os estadistas tentam adaptá-la aos moldes “modernos” que vêm de fora, sem compreender o que está dentro de si. Denuncia então o que chama de “essa América Latina de abertura, sem crítica, freqüentemente sem crítica, cada vez mais sem crítica, a todas as modernidades”. A proposta de Santos vem acompanhada de uma ruptura em relação ao molde explicativo europeu. No campo da geografia, pretende redefinir, numa leitura latinoamericanizada, conceitos como espaço, marginalidade, industrialização. Os outros 17 autores da coletânea se debruçam sobre a obra do pensador brasileiro para explicar, entre outros temas, a necessidade de uma geografia latino-americana, a questão do território, a identidade do continente, os impactos da globalização e a saúde na América Latina. Os textos tratam de assuntos absolutamente atuais e prementes. Símbolo disso é o texto “A Vulnerabilidade dos Territórios Nacionais Latino-Americanos: O Papel das Finanças”, da geógrafa Mónica Arroyo, uma das três organizadoras do livro, em que expõe a fragilidade dos países do continente diante do fluxo financeiro volátil e apátrida, estimulado pelo Consenso de Washington. O resultado, revela a autora, é a perda da soberania, pois os Estados não têm mais controle sobre sua política econômica. “As fronteiras tornaram-se porosas para o dinheiro global e para certas ordens que acabaram desordenando os territórios, cada vez mais fragilizados e fragmentados”, diz Mónica, antes de expor uma série de iniciativas que podem conter esse processo: o controle da especulação financeira, plebiscitos populares em que são definidos os rumos dos seus países e manifestações para deter e desmoralizar as doutrinas dominantes na globalização.
O serviço social na era do “Estado mínimo” Luís Brasilino da Redação A partir dos anos 1980, a responsabilidade social passou a ser cada vez menos uma obrigação do Estado e cada vez mais daquilo que vem sendo chamado de sociedade civil. Entretanto, esse conceito é ambíguo pois parte de “desenhos organizativos que anulam os espaços de conflito por meio de uma contenção social que acaba servindo de base de legitimação de governos neoliberais”. A avaliação é da professora Silene de Moraes Freire, uma das organizadoras do livro Serviço Social, Política Social e Trabalho, produzido por membros da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Para ela, a explosão de ONGs no Brasil tem gerado um aumento de Políticas pobres para pobres; além de significar uma forma de organização sem caráter contestatório, pois é dependente do status quo. A conseqüência é aquilo que o sociólogo argentino Atílio Boron definiu como harakiri (suicídio) estatal: regressão antidemocrática e debilidade da capacidade de intervenção do poder público. Essa transformação tem sua origem na implantação do modelo neoliberal. Em resposta à crise (que não foi só do petróleo, mas também de toda uma forma de reprodução do capital) da década de 1970, as grandes potências mundiais adotaram e impuseram ao resto do mundo mudanças que implicaram na desregulamentação dos mercados e na redução dos gastos públicos. A liberalização econômica acelerou o processo de concentração e centralização do capital. A isso seguiu-se uma reestruturação produtiva, a qual tem na precarização do trabalho sua marca mais notável, acompanhada da diminuição da capacidade dos governos de assistir às populações cada vez mais empobrecidas. Ou seja, aumenta a demanda por política social ao mesmo tempo em que sua oferta é reprimida pelo compromisso dos Estados com o ajuste fiscal. O livro discute a inserção do serviço social, cujo principal objeto de trabalho são justamente as políticas sociais, nesse contexto adverso. Dentre outros temas, a obra trata da apropriação privada do trabalho intelectual e da organização dentro e fora do local de trabalho.
Serviço Social, Política Social e Trabalho Lúcia M. B. Freire, Silene de Moraes Freire e Alba Tereza Barroso de Castro (org.) Cortez Editora/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) R$ 38 (302 páginas) www.cortezeditora.com.br
Che em quadrinhos Marcelo Netto Rodrigues da Redação Depois de já ter virado estampa de biquíni usado por Gisele Bündchen em desfile, ser alçado ao status de santo cristão por muitos e aparecer como símbolo deturpado de rebeldes sem causa em milhares de camisas espalhadas pelo mundo, Che Guevara acaba de ser transformado em herói de história em quadrinhos. Não que a intenção do sul-coreano Kim Yong-Hwe pareça ter sido essa ao desenhar para seus compatriotas, em 2005, a vida deste revolucionário argentino-cubano. No distante contexto asiático, é justo dizer que o “gibi” cumpre sua função de aprofundar a história por trás do mito. Só que quando lido – agora em português – na própria América, o que fica é o sentimento de que Che mais uma vez foi idealizado. Retratado exatamente como um super-herói perfeito, que de tão espetacular beira o inatingível, a figura de Che novamente corre o risco de ser consumida como algo descartável. O perigo é que leitores “iniciantes em Che” sintam-se incapazes diante de tantos “superpoderes”, ao final de uma leitura voraz, e acabem por se resignar que a tarefa revolucionária não pode ser conduzida por eles, simples mortais. Mas qualquer tentativa é melhor que permitir que pessoas continuem a lembrar de Che apenas como um rosto familiar que viram em algum lugar. No “gibi”, existem algumas incorreções só notadas por aficionados. Diz o livro que Che e Fidel Castro primeiro se encontraram na Guatemala (quando foi no México), que Che encontrou-se com refugiados cubanos na Costa Rica (quando foi na Guatemala) e que ele nasceu em 14 de junho de 1928 (quando desde 1997 sabese que ele nasceu um mês antes). Outra coisa estimulante para este tipo de leitor é o exercício de identificar ao longo do “gibi” os cerca de 70% dos desenhos que foram baseados em fotos existentes. Apesar de o autor, numa espécie de preâmbulo, ter até mesmo feito uma associação entre a morte de Che e a do personagem Neo, do filme Matrix – reproduzindo uma fala do filme e intercalando-a com as últimas palavras de Che –, não dá para negar que Kim Yong-Hwe teve a melhor das intenções. Pena que o velho ditado brasileiro também tenha sentido. E que no intuito de resgatar Che, o “gibi” possa acabar por produzir justamente o contrário na cabeça de algumas pessoas – sepultá-lo mais uma vez, ao se fechar a sua última página. Che, uma Biografia Kim Yong-Hwe Conrad R$ 21 (247 páginas) www.conradeditora.com.br
Vozes Democráticas Jorge Pereira Filho da Redação Entender o Brasil na perspectiva de transformá-lo, a partir da reflexão de que não existe democracia sem comunicação democrática. Esse foi o ponto de partida da concepção do livro Vozes da Democracia, organizado pelo Intervozes, uma articulação de comunicadores que defende o direito à comunicação. A obra traz 28 textos que revelam histórias de iniciativas de comunicação pouco conhecidas, cujo contexto é o da resistência à ditadura militar e a crescente mobilização da sociedade pelas liberdades democráticas. O trabalho se destaca pelo esforço em tratar o Brasil na sua diversidade geográfica e cultural, não se limitando às experiências restritas ao eixo Rio-São Paulo. O livro retrata, por exemplo, a experiência gaúcha do Coojornal, lançado em 1976 por uma cooperativa de jornalistas – o primeiro jornal do país a falar da guerrilha do Araguaia. Aborda também o comprometimento com a causa popular do Grita Povo, publicação que existiu entre 1981 e 1991 impressa em uma paróquia da zona leste de São Paulo. A inovadora experiência do Diário da Manhã, em Brasília, que abriu as portas do Conselho Editorial para os jornalistas da redação, que ganharam direito a voto e veto. A irreverência do Fifó, que circulou entre 1977 e 1978 em Vitória da Conquista, sertão da Bahia, entre outras experiências em Sergipe, Rio Grande do Norte, Pará... E tecendo um painel das experiências da imprensa alternativa nesse período, a obra é “um passo inédito no sentido do registro da história das experiências práticas e propostas da sociedade civil para a democratização da comunicação”, como bem resume o pesquisador Venício Lima no prefácio. Tal desafio ainda está longe de ser conquistado, pois se os militares não exercem mais as censuras nas redações, outros mecanismos prevalecem – como os oligopólios da mídia – cerceando a pluralidade da vida, escondendo a resistência dos povos, emudecendo as alternativas, compactuando com o poder econômico. Vozes da Democracia – Histórias da Comunicação na Redemocratização do Brasil Intervozes/ Imprensa Oficial R$ 20 (375 páginas) www.intervozes.org.br (disponível gratuitamente para download)