Ano 5 • Número 210
Uma visão popular do Brasil e do mundo
INVASÃO DO IRAQUE
EUA impõem lei para ficar com petróleo
www.brasildefato.com.br
Master Sgt. Andy Dunaway
São Paulo • De 8 a 14 de março de 2007
R$ 2,00
Transnacionais do setor poderão controlar jazidas iraquianas por até 35 anos amplo acesso à exploração, produção, transporte e comercialização do petróleo e do gás natural iraquianos. O controle das companhias sobre as jazidas pode ser estendido para até 35 anos; alguns dos contratos garantirão lucros por até 25 anos. Em troca, as empresas terão que pagar apenas 12,5% de royalties para o Estado. Pág. 7
Soldados estadunidenses, provenientes de um destacamento do Havaí, patrulham vila iraquiana no último dia 27
A luta dos agricultores no Mali Produtores rurais de Sélingué, cidade que sediou o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, relatam suas dificuldades pa-
ra sobreviver no mundo globalizado, que beneficia as grandes transnacionais, em detrimento dos pequenos produtores. Na
declaração final do evento, participantes reforçaram a luta contra o neoliberalismo Pág. 6
Dafne Melo
S
e ainda restava alguma dúvida sobre as motivações da invasão do Iraque pelos EUA, há quatro anos, ela acabou de ser desfeita. No dia 26 de fevereiro, o governo iraquiano aprovou, e apresentou ao Parlamento, o esboço de uma nova lei para o setor petrolífero do país. Se aprovada pelo Legislativo, as novas regras permitirão que empresas estrangeiras tenham
EDITORIAL
Sem acordos com Bush
“D
o ponto de vista estadunidense, o que mais importa dessa viagem é a visita ao Brasil. México e Colômbia têm uma prioridade estabelecida por temas como fronteira, migração, segurança e intercâmbio econômico. Mas o Brasil é visto como uma liderança de esquerda democrática com possibilidade de ter influência moderadora sobre Venezuela e Bolívia”, diz Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, sobre a visita do presidente George Bush ao Brasil, Uruguai, Colômbia, Guatemala e México, entre 8 e 14 de março. Aparentemente, Bush quer mesmo transformar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu principal interlocutor latino-americano, com o objetivo de isolar os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales. Mas há outro aspecto dessa visita, bem mais concreto e possível de ser contabilizado em barris: a questão energética. Bush quer diminuir ao máximo a dependência do petróleo venezuelano, responsável pelo abastecimento de 25% do mercado estadunidense. No médio prazo, o álcool de cana brasileiro poderia substituir o “ouro negro” da Venezuela. Como contrapartida, a Casa Branca exige que: 1) o álcool produzido no Brasil tenha o mesmo padrão tecnológico que o produzido nos Estados Unidos; 2) que o produto seja registrado como um bem energético e não como commodity agrícola, para escapar aos acordos internacionais que, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), regulamentam as negociações desse tipo de produto, e para permitir, eventualmente, que os Estados Unidos suspendam as barreiras protecionistas à importação do álcool; 3) que o Brasil permita que o capital estadunidense controle as usinas, diretamente ou por meio de joint-ventures. À primeira vista, o acordo parece favorecer os usineiros brasileiros, que poderiam ampliar as exportações para o
mercado mais poderoso do planeta. Ilusão. Caso caia mesmo a barreira imposta ao álcool brasileiro – diz o usineiro Maurílio Biagi Filho –, não haverá uma explosão da exportação, mas sim um investimento maciço de capitais estadunidenses em usinas brasileiras. “Ano passado, 3,4% do setor estava desnacionalizado; este ano chegará a 5%. Em dez anos, metade não será mais brasileira”, diz Maurílio, que vendeu, em 2006, a área industrial de sua usina Cevasa, em Patrocínio Paulista, para a transnacional Cargill. O setor espera exportar 4 bilhões de litros de álcool este ano, ante 2,3 bilhões em 2006, que renderam 1,6 bilhão de dólares, o dobro de 2005. Em quatro anos, serão investidos 2,5 bilhões de dólares na produção de álcool e 77 usinas serão construídas até 2012. No Brasil, há 6 milhões de hectares de canaviais, área que cresceu 13% nos últimos três anos. Em São Paulo, só em José Bonifácio, a área plantada triplicou nas duas últimas safras. No Centro-Sul, a área deverá crescer de 4,6 milhões para 5 milhões de hectares. É fácil imaginar as conseqüências que tal expansão terá para o meio ambiente (monocultivo da cana em todo CentroOeste, Amazônia e Cerrado) e para o modelo agrícola brasileiro (maior concentração da propriedade da terra, mais desemprego e êxodo rural). E o pior é que, a julgar pelas notícias divulgadas na mídia, tanto o presidente Lula quanto a ministra Dilma Roussef estão eufóricos com essa possibilidade. Nesse quadro, apenas a mobilização de jovens e trabalhadores podem e devem expressar, nas ruas, a disposição de luta em defesa da soberania nacional e contra o imperialismo. “Fora Bush” – é o grito que traduz os anseios daqueles que não abandonaram o desejo e a esperança de construir um Brasil mais justo, ecologicamente equilibrado e senhor de seu próprio destino.
Mulheres plantam arroz em fazenda na cidade de Sélingué, Mali, país africano que sediou, entre os dias 23 e 27 de fevereiro, o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar
Economia do Brasil permanece vulnerável Pág. 5
Zezé Motta: país tem dívida com os negros Pág. 8
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DEBATE
CRÔNICA
A corte e as nações José Luís Fiori a década de 1980, falou-se da “retomada da hegemonia estadunidense”; nos anos de 1990, falou-se da globalização e da vitória liberal; e depois de 2001, falou-se de império e guerra global ao terrorismo. E durante todo esse tempo, o poder estadunidense cresceu de forma contínua e incontrastável. Mas de repente, tudo mudou, de forma surpreendente, criando um nevoeiro sobre a conjuntura internacional. Mesmo nos Estados Unidos, hoje, existe um sentimento de impasse e perplexidade, porque 15 anos depois do fim da guerra fria, suas intervenções militares não expandiram a democracia nem os mercados livres; suas guerras aéreas não foram suficientes, sem a conquista e ocupação dos territórios bombardeados; e mesmo quando houve vitória militar, não deram conta do controle territorial e da reconstrução nacional dos países derrotados. Hoje, ninguém mais acredita na possibilidade de uma vitória no Iraque, no Afeganistão ou na “guerra global” ao terrorismo. Mas não existe, neste momento, dentro dos Estados Unidos uma alternativa clara de política externa capaz de mudar o rumo da conjuntura internacional, cada vez mais assustadora. Com certeza, não se trata de uma “crise final” do poder estadunidense, nem seu poder militar global está sendo desafiado neste momento. Paradoxalmente, os Estados Unidos estão perdendo capacidade de intervenção unilateral em quase todas as regiões do mundo, aumentando os graus de liberdade dos demais Estados, em particular, das suas velhas e novas potências do sistema mundial. No Oriente Médio, a intervenção militar estadunidense, no Iraque, criou um novo eixo de poder xiita, na região, e deu musculatura à pretensão hegemônica regional do Irã. Mas, além disso, desacreditou o projeto “Grande Médio Oriente”, do segundo governo Bush, e corroeu a credibilidade das ameaças estadunidenses de intervenção no Irã, na Coréia do Norte ou em qualquer outro Estado com alguma força militar e apoio internacional. Os Estados Unidos seguirão tendo grande influência no Oriente Médio, mas perderam sua posição arbitral e terão que compartir interesses e decisões, com a Rússia, a China e outros Estados envolvidos na competição pelos recursos energéticos do Oriente Médio.
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Em todo esse complicado xadrez mundial, chama atenção a rapidez com que foi soterrada a utopia da globalização e do fim das fronteiras nacionais, que mobilizou tantas inteligências ao redor do mundo, na década de 1990 Na Europa, a situação é menos conflitiva, mas é indisfarçável o aumento da resistência ao unilateralismo estadunidense e ao poder militar da Otan. Além disso, a reunificação da Alemanha e o refortalecimento da Rússia atingiram o processo da unificação européia. A Alemanha tornou-se a maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa autônoma, centrada nos seus próprios interesses nacionais. Nessa direção, vem aprofundando suas relações econômico-financeiras com a Europa Central e com a Rússia, assumindo a luta pela hegemonia dentro da União Européia, sem fechar a possibilidade de uma aliança mais estreita com a Rússia, que acabaria de entornar de vez a relação do velho continente com os Estados Unidos. Na América Latina, o cenário é um pouco diferente, porque se trata do único continente onde nunca existiu uma disputa hegemônica entre os seus próprios Estados nacionais. Os Estados e as economias latino-americanas sempre foram periféricos e estiveram sob a égide da Grã-Bretanha, no século 19, e dos Estados Unidos, no século 20. Assim mesmo, neste início do século 21, está em curso uma mudança no relacionamento da América do Sul com os Estados Unidos. Sobretudo, depois da moratória da Argentina, em 2001, do fracasso do golpe de Estado na Venezuela, em 2002, e da rejeição do projeto estadunidense da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca), na reunião de Punta del Este, em 2005. Um distanciamento que deve se manter, mesmo com o recente esforço dos Estados Unidos de reafirmação do Brasil como seu “sócio menor”, para assuntos do Sul do hemisfério. Quanto à África, a preocupação dos Estados Unidos se restringe hoje, quase exclusivamente, à disputa das regiões petrolíferas e ao controle e repressão dos grupos terroristas do Nordeste do continente. Apesar de os gestos de boa vontade do G-8, tudo indica que a velha Europa não tem mais “fôlego” e os Estados Unidos, disposição, ou “capacidade instalada”, para cuidarem do “renascimento africano”, proposto pelo presidente sul-africano Nelson Mandela, ainda na década de 1990. Nesse quadro, o mais provável é que a África
negra acabe se transformando na nova e grande fronteira de expansão econômica e política da China e da Índia. Por fim, o Leste asiático é, neste momento, a região do sistema mundial onde existe a maior competição explícita pela hegemonia regional, envolvendo a China, o Japão e a Coréia, mas também a Rússia, e os Estados Unidos. A crescente obsessão dos Estados Unidos com o Oriente Médio, e com a sua “guerra global” com o terrorismo, diminuiu sua capacidade de intervenção direta nos assuntos militares asiáticos. E abriu espaço para o ressurgimento do nacionalismo japonês e da corrida armamentista dentro da região que mais compra armas em todo mundo. Por isso, mesmo que a Coréia do Norte interrompa transitoriamente suas experiências atômicas, não é improvável que a competição armamentista induza o Japão a ter o seu próprio arsenal atômico, criando uma tensão insuportável com a China, e da China com os Estados Unidos. Em todo esse complicado xadrez mundial, chama atenção a rapidez com que foi soterrada a utopia da globalização e do fim das fronteiras nacionais, que mobilizou tantas inteligências ao redor do mundo, na década de 1990. E a rapidez ainda maior com que o sistema mundial retornou à sua velha “geopolítica das nações”, com o fortalecimento das fronteiras nacionais e da competição econômica mercantilista, e com o aumento da luta pelas hegemonias regionais. Pode-se ou não gostar do que está acontecendo, mas convém reconhecer os fatos, para não fazer o papel de eterno bobo da corte. José Luís Fiori é professor de Economia Política Internacional, no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
A comunhão de destino entre a Mulher e a Terra Marcelo Barros Provocados pelo 8 de março, Dia Internacional da Mulher, muitos tentarão avaliar sua caminhada. A tarefa não é simples e a trajetória de emancipação das mulheres, cheia de contradições. Se houve grandes avanços – mulheres ocupam espaço de poder cobiçados como Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, e a chanceler alemã Ângela Merkel – a opressão sobrevive em todo o mundo. Mulheres afegãs são proibidas de estudar e ao lado delas as de etnia razara, talvez as mais discriminadas, sobrevivem ao massacre talibã enfrentando viuvez e orfandade, fustigadas pela escassez de água, comida e assistência médica. Na África, mulheres carregam com altivez e intrigante sorriso o peso de gerar e criar filhos em meio à guerra, a escassez e a exploração. Na China e na Índia, bebês do sexo feminino são vítimas de aborto seletivo. Mesmo antes de existir o “Dia internacional da Mulher”, muitas sociedades tinham ritos para equilibrar ou mascarar o machismo e a opressão sofrida pela mulher na sociedade. Eram como sinais de compensação. Por exemplo, em regiões do Norte da Espanha, a festa do ano novo permitia a inversão do papel das mulheres, do mesmo modo que, em diversas regiões do Brasil, durante o carnaval, há blocos em que os homens (machões e não homossexuais) se fantasiam de mulheres e estas, menos frequentemente, se vestem de homens.
Na África, mulheres carregam com altivez e intrigante sorriso o peso de gerar e criar filhos em meio à guerra, a escassez e a exploração Em outras regiões, até pouco tempo, no dia 5 de fevereiro, dedicado a Santa Águeda, as mulheres tomavam o poder em casa e nas ruas, desfilando com danças e cânticos. Na Grécia era no dia 8 de janeiro que as mulheres acorriam à casa da mais velha parteira, vestidas com as suas mais belas roupas. Embaladas por músicas, confeccionavam um sexo masculino com legumes e, travestidas de homens, iam às ruas onde “perseguiam” e chegavam a bater nos homens que encontrassem na rua. Para terminar, um banquete celebrava as concepções e partos do novo ano. A própria subversão do sistema cotidiano não tem outra função que reforçar os papéis codificados pela tradição para cada gênero. Há mais de 20 anos, algumas antropólogas e teólogas feministas perceberam que a destruição ecológica é perpetrada pelo mesmo sistema patriarcal que oprime a mulher. Ao reverenciar a Terra como mãe (Pacha-mama, por exemplo), algumas culturas indígenas e tradicionais falam da Terra como mãe e outras honram a terra como esposa da comunidade. Nos Andes, há tempos proibidos para o plantio porque são dias em que se considera que a Terra está “em seus dias” e não deve ser tocada. O ecofeminismo que daí nasceu tem raízes indígenas e negras, mas, hoje, é importante bandeira do movimento feminista internacional. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006
* 28/12/1953 † 26/02/2007 Ao lado, indígena da etnia chipaya, do oeste da Bolívia, fotografado por Cannalonga
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo de Sales Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary
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NACIONAL ENERGIA Ricardo Stuckert/PR
Agrocombustível, o Brasil na agenda global Meio ambiente e camponeses podem ser prejudicados caso governo procure focar a produção no agronegócio
A
s atuais incertezas envolvendo a matriz energética global aumentam a expectativa com a produção da biomassa e, por conseqüência, a disputa por terras e usinas no Brasil. Numa estratégia para obter maior independência com relação à Venezuela e aos países do Oriente Médio, George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, tenta Biomassa – É o tipo de material estimular emorgânico utilizado presas agrona produção de combustível. Este energéticas recebe o nome de Ade seu país. agrocombustível. Dados do peEtanol – Tipo de agrocombustível riódico inglês obtido a partir da ferThe Economist mentação de açucares provenientes, por revelam que os exemplo, do milho, estadunidenses da batata doce e da mandioca, além da investiram quacana-de-açucar. se 30 bilhões de dólares no setor, só em 2006. Igualmente interessada na produção de energia alternativa, a União Européia (UE) acredita que o principal problema dos agrocombustíveis é o fato de serem caros. Mas a ironia é que isso acontece em decorrência dos próprios subsídios agrícolas europeus. Na Inglaterra, por exemplo, um litro de diesel custa 0,39 dólar, mas as empresas de agrocombustível são obrigadas a vender o mesmo litro com um acréscimo de 20% em seu valor. Entretanto, tanto a UE, quanto os Estados Unidos, sabem que o Brasil é o parceiro-chave para o desenvolvimento do agrocombustível. Por isso, o investimento por aqui promete ser grande. Segundo Edivan Pinto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) regional Nordeste, os Estados Unidos querem 100 usinas instaladas no país nos próximos anos. “Pessoas fortes do governo estadunidense acreditam que o país apresenta todas as condições de implementar essa expansão estratégica”, coloca. Mas ele pondera, ao afirmar que a intenção dos Estados Unidos não é substituir a atual matriz energética mundial. “Eles têm uma grande quantidade de reservas de petróleo e querem dobrar isso nas próximas duas décadas, passando dos atuais 750 milhões de barris para 1,5 bilhão. Para substituir a matriz de combustíveis fósseis pela de agroenergéticos, eles precisariam de 121% de suas terras”, aponta Edivan.
BOLA DA VEZ Ainda no primeiro semestre deste ano, o Brasil deverá produzir mais de 800 milhões de litros de biodiesel. Foi o que afirmou Arnoldo de Campos, coordenador do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel. Esse número é superior a 60% da demanda anual de produção – que é de 1,3 bilhão de litros – que surgiu com a lei que obriga misturar 2% do agrocombustível ao diesel comum, a partir de 2008, em todo o país. No Brasil, Biodiesel – Tipo de agrocombustível existem 11 usiproduzido a partir de nas de biodiesel cultivos como soja, mamona, girassol e em operação e palma, além de goroutras 13 em duras animais. construção. Até 2013, o governo estabeleceu a meta de adicionar 5% do produto ao diesel comum. Quanto ao etanol, hoje são
produzidos 17 milhões de litros por ano, mas, para Edivan, seria necessário, só para atender a demanda interna, chegar a 25 milhões. “Entretanto, os EUA querem que o Brasil atenda a 10% da demanda global, o que significa 220 milhões de litros por ano. O Brasil diz que pode chegar a 50% dessa pretensão, mas que, para isso, precisaria incorporar algo em torno de 90 milhões de hectares de terras na sua produção. Eles querem 50 milhões na Amazônia, 20 milhões no Cerrado e um outro montante no Nordeste”, adverte.
AMEAÇAS Com esse boom do agrocombustível e do etanol, frei Sérgio Görgen, dirigente da Via Campesina, destaca a necessidade de criar mecanismos legais e políticos que impeçam a dominação estrangeira sobre a terra e sobre a indústria de transformação da biomassa. Para ele, empresa nacional deveria coordenar todo o processo da produção de agrocombustível. “A energia do futuro vai partir do campo e ela deve estar na mão de quem nele trabalha e não na de quem explora os camponeses”, diz Frei Sérgio. Edivan Pinto alerta que, com a possibilidade de o etanol se transformar em commodity, os países ricos podem querer “driblar” algumas regras estabelecidas pela própria Organização Mundial do Comércio (OMC). “O problema é que as condições reais para isso não estão colocadas, nem em nível latino-americano, muito menos em nível global”, explica Edivan.
Barra do Bugres (MT) – O Presidente Lula durante inauguração da unidade de biodiesel da Usina Barralcool, a primeira do mundo a produzir biodiesel, açúcar e álcool de forma integrada
Produzir energia ou alimentos?
BOAS INTENÇÕES Edna Carmélio, coordenadora de agrocombustíveis do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), garante que a produção do etanol é concentradora de renda; já a de biodiesel, mesmo não sendo exclusiva da agricultura familiar, tem um forte componente social. Já o gerente executivo de Desenvolvimento Energético da Petrobras, Mozart Schmitt de Queiroz, explica que a estatal comprará somente o óleo dos agricultores e não as sementes. “Assim, estamos incentivando as cooperativas a montarem as suas esmagadoras”, afirma. Para ele, os pequenos agricultores estão interessados em retomar o cultivo de algodão, girassol, amendoim, gergelim e outras oleaginosas. “Eles não cairão na arapuca da monocultura. Se o governo tivesse lançado um programa de biodiesel sem esse incentivo à agricultura familiar, por certo que ele seria produzido unicamente da soja, que é a grande oleaginosa brasileira”, afirma Mozart. No entanto, Marluce Melo, também da CPT regional Nordeste, enfatiza que não haverá subsídios para os pequenos produtores e, se houver, o subsídio entrará em vigor só no momento de implantação desse projeto. “Se eles não dão subsídio para o arroz, o feijão e o milho, como é que vão dar subsídio para mamona, gergelim? Quem vai sair ganhando é sempre quem domina o agronegócio”, afirma Melo. (Com informações da Agência Chasque de Notícias – www.agenciachasque.com.br)
Uma conversa por telefone no dia 27 de fevereiro entre Hugo Chávez, presidente da Venezuela, e Fidel Castro, presidente de Cuba, publicada pela BBC Brasil, demonstra a indignação de ambos diante da utilização de alimentos para produção de combustíveis. “Bom, a idéia de usar alimentos para produzir combustíveis é trágica, é dramática. Ninguém tem garantia até onde vão chegar os preços dos alimentos”, afirma Fidel. Para reforçar o pensamento do cubano, Chávez disse em entrevista coletiva que é “imoral” destinar alimentos para a produção de combustível para carros. “Um hectare de milho corresponde a 18,8 litros de etanol. Milhões de famílias poderiam se alimentar com esse milho que está sendo convertido em etanol”, criticou, para depois concluir: “Os Estados Unidos precisam reduzir o consumo de energia, essa é a solução”. Fabio Pozzebom/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação
Tanto para os dois presidentes quanto para alguns movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a expansão da produção de agrocombustíveis coloca em risco a soberania alimentar e pode agravar profundamente o problema da fome no mundo. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que, no México, por exemplo, o aumento das exportações de milho para abastecer o mercado de etanol nos Estados Unidos causou uma elevação de 400% no preço do produto, a principal fonte de alimento da população. “Veja o preço do quilo do açúcar que era de R$ 0,55 e agora já está em R$ 1,15. O governo faz o que os usineiros de São Paulo querem. Quando interessa, o preço da álcool vai lá pra cima; quando o preço do açúcar está em alta, diminui o álcool, é essa dança”, protesta Marluce Melo, da CPT. Para ela, o grande obstáculo a ser enfrentado será a intensificação da manipulação do agronegócio diante dos preços dos alimentos. “Eles farão a mesma coisa com o girassol quando o óleo de co-
zinha estiver em alta, é só uma questão de capital, de lucro”, completa.
USO DA TERRA O gerente executivo de Desenvolvimento Energético da Petrobras, Mozart Schmitt de Queiroz, aponta, que o uso prioritário da terra é para produzir alimento, além da própria preservação do meio ambiente. “Sem dúvida, é preciso muito cuidado. Mas, ainda que toda a superfície da Terra fosse utilizada para produzir agrocombustíveis, isso não conseguiria manter o consumo no patamar atual”, explica Schmitt. Frei Sérgio Görgen, da Via Campesina, pondera que o risco do aumento do plantio visando os agrocombustíveis em detrimento da produção de alimentos só se tornará realidade com a ampliação do modelo do agronegócio. “Os sistemas camponeses de produção dariam conta de fazer uma produção integrada entre alimento e energia”, afirma. Ele explica que com a agricultura camponesa é possível produzir uma planta oleaginosa que serve para energia de forma consorciada com o feijão ou o milho, por exemplo. “As plantas perenes têm alta produtividade, possibilitam inúmeros consórcios, têm baixo custo de produção e requerem trabalho manual. O dendê, a oiticica, o pinhão-manso e o tungue deveriam ser os carros-chefes dos sistemas camponeses de produção de óleo para biodiesel”, ressalta frei Sérgio. No entanto, ele acredita que o governo federal está acenando de maneira confusa, pois lança mão do Selo Combustível Social para ampliar a participação da agricultura familiar na produção de agrocombustíveis, mas não garante que ela ocorra em todo o processo industrial. (Com informações da Agência Chasque de Notícias – www.agenciachasque.com.br) (ESL)
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NACIONAL ECONOMIA
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Quintal americano Enquanto os países escolhidos a dedo pela diplomacia dos Estados Unidos se desmancham em mesuras (governos, empresariado e imprensa burguesa) para receber o presidente George W. Bush, os países mais resistentes ao neoliberalismo tratam de promover uma agenda de auto-afirmação. Néstor Kirchner e Hugo Chávez organizaram encontros e manifestações populares na Argentina. Reação nacional As manifestações na América do Sul contra o genocida internacional George W. Bush, responsável direto pelo assassinato de mais de 50 mil cidadãos iraquianos, refletem pesquisas realizadas em vários países que comprovaram a existência de forte sentimento antiimperialista e antiestadunidense. No Brasil é de 57%; e na Argentina de 64%. Fora Bush! Independência financeira Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela devem concluir em três ou quatro meses a montagem do Banco do Sul, que será constituído com 10% das reservas de cada país. O objetivo é financiar projetos de desenvolvimento e empresas dos países envolvidos. É uma forma de se livrar do Bird, do Banco Mundial e dos bancos privados dos países ricos. O Brasil se recusa a participar Projeto Ma-Ma Fotografia publicada na capa do jornal O Estado de S. Paulo (2/3) mostra os deputados federais Paulo Maluf, do PP, e Cândido Vaccarezza, do PT, brindando, em restaurante de Brasília (com vinho francês de R$ 255,00 a garrafa), nova aliança política para a Prefeitura de São Paulo em 2008. Pelo acordo, Maluf indicaria o candidato à vice na chapa de Martha Suplicy. É o projeto Ma-Ma. Ônibus restaurado Desde que chegou à Presidência da República em 1985, com José Sarney, que tinha sido líder da Arena e do PDS, o PMDB nunca mais conseguiu atuar como partido-ônibus, apenas como federação de interesses regionais. Existe agora o movimento para fazer do PMDB o principal bloco de sustentação do atual governo. Muitos caciques peemedebistas acreditam que esse é o caminho mais fácil para a sucessão em 2010. Revisão biográfica Ex-metalúrgico e ex-sindicalista, o atual presidente da República tem defendido abertamente a proibição do direito de greve para diversas categorias públicas. No mesmo estilo de seu antecessor, que pediu ao povo para esquecer o que escreveu, o atual mandatário pede ao povo que esqueça o “abuso” grevista de seu tempo de trabalhador. Assim fica cada dia mais difícil fazer biografias no Brasil. Leilão ministerial Reduto tradicional dos empresários do campo, o Ministério da Agricultura voltou a ser palco de acirrada disputa. Desde que o representante do agronegócio (Roberto Rodrigues) abandonou o governo, em 2006, o que se dizia é que a pasta seria do PMDB. Mais recentemente entraram na disputa o PTB, o PP e o PDT, todos com candidatos da bancada ruralista, além do novo guru do Planalto, Delfim Netto. O PT tem pouca chance. Plataforma primária A nova onda do biocombustível – cantada em prosa e verso pelo governo e pela imprensa burguesa – tende a consolidar no Brasil o projeto neocolonial de apropriação do território, destruição dos recursos naturais e exploração da mãode-obra barata para três grandes culturas de exportação: a soja, o eucalipto e a cana-de-açúcar. Se a sociedade não reagir, a exclusão e a miséria vão aumentar.
A juventude sem emprego
Marcello Casal Jr/ABr
Pesquisa aponta que um em cada dois desempregados tem idade entre 15 e 24 anos Tatiana Merlino da Redação
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magine uma sala de um processo seletivo com cem jovens entre 15 e 24 anos buscando um emprego para sobreviver. Agora apenas 45 deles conseguirão. Essa é a situação de dificuldade em que se encontram os jovens brasileiros que tentam ingressar no mercado de trabalho. Em 2005, dos 8,9 milhões de desempregados no país, 4,4 milhões tinham entre 15 e 24 anos. Em dez anos, o número de brasileiros desempregados dessa faixa etária mais que dobrou, subiu de 2,1 milhões para 4,4 milhões de pessoas. Em 2005, 49,6% dos desempregados eram jovens, sendo que em 1995 totalizavam 47,6%. Pesquisa realizada pelo economista e professor da Unicamp, Márcio Pochmann, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao período 1995 – 2005, aponta que um em cada dois brasileiros desempregados tem entre 15 e 24 anos e que a redução de postos de trabalho afeta mais os jovens do que as outras faixas etárias.
BAIXO CRESCIMENTO De acordo como pesquisador, o quadro vem se agravando porque o baixo crescimento do país não gera ocupação no ritmo necessário para incorporar todos os que chegam ao mercado de trabalho. Entre 1995 e 2005, o Produto Interno Bruto (PIB, soma de todas as riquezas produzidas no país) teve crescimento médio de 2,6% ao ano . “O jovem é o principal afetado por essa situação, porque, além de o país crescer pouco, até mesmo vagas que tradicionalmente são ocupadas por jovens passam a ser disputadas por profissionais experientes que se encontram desempregados. Há milhares de pessoas prontas para aceitar qualquer condição para ter uma nova ocupação”, diz o economista. Segundo ele, a situação do Brasil nos últimos 10 anos é “dramática” já que a taxa de desemprego cresceu 70% e a cada ano 2 milhões de pessoas ingressam no mercado de trabalho. “Isso indica que o país não está crescendo como deveria. Para absorvermos essa quantidade de gente, precisamos crescer pelo menos 5% ao ano”, analisa.
Atualmente, no Brasil, de cada grupo de cem jovens que procuram emprego, 55 continuam desempregados
Dados do estudo mostram também que entre a baixa renda, como a necessidade do trabalho é ainda maior, a dificuldade dos jovens é proporcional. Nas famílias com até meio salário mínimo por pessoa, a cada 100 pessoas com idade entre 18 e 24 anos, 74 estão ativos no mercado, sendo 20 desses desempregados. “Tem uma questão de classe que interfere na juventude: os filhos dos ricos podem financiar a inatividade para que ele entre no mercado de trabalho mais tardiamente. Eles também são menos afetados pelo desemprego e pela precariedade do trabalho do que os pobres”, analisa o autor da pesquisa. Segundo dados da pesquisa, apenas 10,4% das vagas criadas entre 1995 e 2005 foram ocupadas por jovens, em geral. Nesse período, foram abertos 17,5 milhões de postos de trabalho em todo o país. Desse total, 1,8 milhão foram para pessoas de 15 a 24 anos de idade. Nesse mesmo período, 4,1 milhões de jovens passaram a disputar uma vaga no mercado de trabalho.
Na opinião de Pochmann, há um descompasso entre política econômica e políticas públicas, já que a primeira não está comprometida com a geração de empregos. “A política econômica que temos é antiemprego. O emprego é um resultado secundário porque o objetivo da política econômica é combater a inflação”, avalia o economista.
POLÍTICAS EQUIVOCADAS Além disso, o pesquisador acredita que as políticas públicas voltadas a geração de emprego para jovens são equivocadas “porque partem do pressuposto de que têm que estimular ainda mais a entrada do jovem no mercado de trabalho, seja subsidiando a contratação por parte de empresas, seja através de programas de qualificação para o trabalho. Isso é inadequado porque nós já temos muitos jovens no mercado de trabalho”. A pesquisa mostra que no Brasil, de cada 10 jovens, 7 estão no mercado de trabalho, enquanto nos países desenvolvidos, de cada
10, apenas 3 trabalham. De acordo com os dados, houve aumento da escolaridade de 14,4% dos jovens de 1995 a 2005, chegando a 46,8%. A alta se observa, principalmente, entre os homens, como o índice de escolaridade passando de 38,9% para 46,4%. Entre as mulheres, subiu de 42,8% para 47,6%. “Nos países desenvolvidos, há financiamento público e aqui não, por isso eles podem postergar a entrada no mercado. No Brasil; há jovens que trabalham e estudam. Eles vão trabalhar porque não tem outra alternativa de sobrevivência”. É nesse aspecto que as políticas de geração de emprego pecam, acredita Pochmann. “Em vez de estimularem a postergação da entrada do jovem no mercado de trabalho para que ele possa se preparar para ir trabalhar mais tardiamente e mais preparado, elas fazem o contrário. Não é por outra razão que no Brasil a cada dois jovens apenas um estuda; e os que estudam, na maioria das vezes são jovens que trabalham porque precisam financiar o estudo”.
O drama dos jovens De 1995 a 2005, o desemprego cresceu 106,9% entre os jovens de até 24 anos e 90,5% nos demais grupos.
A taxa de desemprego subiu mais para as mulheres do que para os homens: 77,3% e 57,7%, respectivamente.
No país, de cada grupo de 100 que procuram emprego, 55 jovens não encontram. Apenas 10,4% das vagas criadas entre 1995 e 2005 foram ocupadas por jovens de 15 a 24 anos.
Entre a baixa renda (famílias com até meio salário mínimo por pessoa), a cada 100 jovens, 74 fazem parte da população economicamente ativa, sendo que 20 desses estão desempregados.
De 1995 a 2005, o Brasil criou 17,5 milhões de postos, sendo 1,8 milhão para jovens. Nesse mesmo período, 4,2 milhões de jovens tentaram um vaga no mercado de trabalho.
Entre as famílias com maior nível de renda (acima de três salários mínimos por pessoa), a cada 100 jovens, há 65 na população economicamente ativa e somente nove desempregados.
Em 2005, 49,6% dos desempregados no Brasil eram jovens.
wFonte: pesquisa do professor Márcio Pochmann
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NACIONAL ECONOMIA
A crise nas bolsas e o mito da estabilidade Reprodução
Luís Brasilino da Redação
Danpea
Queda da bolsa chinesa derruba mercados pelo mundo e levanta discussão sobre a vulnerabilidade externa brasileira
Brasil de Fato – Nos últimos anos, o Banco Central conseguiu acumular mais de 100 bilhões de dólares em reservas internacionais. Ainda assim, a queda da bolsa chinesa acabou piorando todos os indicadores brasileiros do mercado financeiro. Afinal, a política econômica atual reduziu ou não a vulnerabilidade externa do Brasil? Reinaldo Gonçalves – Na realidade, o Brasil continua com elevado grau de vulnerabilidade. Houve uma melhora nas reservas, mas, ao mesmo tempo, as importações aumentaram muito (segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, entre 2003 e 2006, as compras externas subiram 93,5%). O indicador de vulnerabilidade externa financeira, que é a relação entre as reservas e as importações, ainda está num nível crítico. Um dos indicadores dessa vulnerabilidade do Brasil é que, por exemplo, o país continua com um dos maiores spreads do mundo. A Argentina, que saiu da moratória recentemente, está com um spread de cerca de 2,3%. O Brasil, 2,1%. O país continua com uma das maiores taxas de risco do mundo. Spread – Taxa Houve uma meadicional de retorno lhora na situacobrada por quem ção das contas empresta dinheiro, principalmente no externas, com mercado financeiro. redução da díEla varia de acordo com o prazo do res- vida e aumento gate, a liquidez e das reservas, as garantias oferecidas pelo tomador mas a situação do empréstimo. de vulnerabilidade continua muito elevada. BF – O Brasil não fez o que deveria fazer para reduzir essa vulnerabilidade? Gonçalves – Uma das diretrizes estratégicas do programa econômico do governo Lula, em 2002, era a redução da vulnerabilidade externa de forma estrutural. Lula fez exatamente o contrário. Aprofundou a abertura da economia não só na esfera comercial, mas também na produtiva real, tecnológica e financeira. Nunca se mandou tanto dinheiro para fora do Brasil quanto neste governo (segundo o Banco Central, a remessa de lucros ao exterior foi de 5,1 bilhões de dólares, em 2002, e de 16,4 bilhões de dólares, em 2006, a maior da história). A vulnerabilidade na área comercial torna-se mais grave pelo foco no agronegócio. Isso aumenta muito
Reprodução
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o dia 27 de fevereiro, a Bolsa de Xangai (China) caiu 8,9%, gerando um efeito em cadeia que derrubou os indicadores globais do mercado financeiro. No Brasil, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) teve uma queda de 6,6%. Um abalo tão forte não ocorria desde os atentados do 11 de setembro de 2001. Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, serviu-se do fato para justificar a “prudência” na condução da política econômica. Para ele, se o país tivesse juros mais baixos, os efeitos da crise chinesa seriam mais devastadores. No entanto, os acontecimentos do outro lado do mundo deixaram patente a vulnerabilidade externa do país. De que valeria todo o arrocho fiscal dos últimos anos, se uma crise internacional pode jogar por terra a estabilidade econômica do país? Segundo o economista Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o caminho para diminuir a vulnerabilidade brasileira passa pelo fortalecimento do mercado interno e pela redução da liberdade dos mercados. “Lula faz exatamente o contrário”, critica.
Mao Tse-tung (1893-1976),“grande timoneiro” da China comunista, observa Wall Street, símbolo do capitalismo mundial
a vulnerabilidade comercial porque as contas externas ficam dependentes de commodities que têm um preço muito volátil. Com relação à vulnerabilidade tecnológica, o país anda para trás com o enfraquecimento do sistema nacional de inovações. E a vulnerabilidade na área produtiva real piora porque o aparelho produtivo doméstico encolhe. O melhor indicador disso é o aumento das importações. O que houve de redução na esfera financeira se deveu a uma conjuntura internacional favorável, do ponto de vista de comércio e liquidez internacional, e não a uma política de governo.
(Lula) Aprofundou a abertura da economia não só na esfera comercial, mas também na produtiva real, tecnológica e financeira. Nunca se mandou tanto dinheiro para fora do Brasil quanto neste governo BF – Logo, a não redução da vulnerabilidade externa aconteceu por motivos políticos, no sentido de atender a setores econômicos determinados? Gonçalves – O Lula fez um pacto com setores dominantes, fundamentalmente, o setor financeiro e, em segundo lugar, o agronegócio. Esse pacto significa dar uma alta rentabilidade a esses segmentos. O sistema financeiro tem tido lucros anormais. E o agronegócio também se beneficia, pois se por um lado perde com o câmbio valorizado, por outro ele ganha com a liberalização. Um exemplo é essa medida de os exportadores poderem deixar uma parte expressiva da receita em dólar no exterior (30%, segundo determinação do Conselho Monetário Nacional de agosto de 2006). A questão central é essa. O Lula abriu mão das diretrizes estratégicas fundamentais de reduzir a vul-
nerabilidade externa para manter um pacto político com banqueiros e latifundiários. BF – Quais as medidas a serem adotadas de modo a reduzir estruturalmente a vulnerabilidade? Gonçalves – Na esfera interna, o governo precisava fazer um reforço do mercado de consumo de massas, aproveitando ganho de escala – que é uma das vantagens que o Brasil tem devido ao seu grande mercado interno. Para uma agenda mais de intervenção, seria necessário um conjunto de medidas nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e financeira. Para ilustrar, na área financeira, controle de capitais. A imensa fuga de capitais que temos hoje significa vazamento de renda, enfraquecimento da base material do país. Na área produtiva real, seria necessário exigir critérios de desempenho das empresas estrangeiras no país e inibir a entrada em determinados setores. Na área comercial, o Brasil está voltando para trás com essa vocação primário-exportadora. O Itamaraty foca as negociações no acesso aos mercados de produtos agrícolas e minerais e o padrão de vantagem comparativa do país vai ficando cada vez mais subdesenvolvido. BF – O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) aponta para alguma mudança de direção do governo no sentido de reforçar o mercado interno? Gonçalves – O que o PAC tem de macroeconômico, ou seja, o que poderia fortalecer o mercado interno de consumo de massas, é até negativo: a regra de reajuste de salário mínimo, a redução ou o congelamento dos gastos com a Previdência... Nenhuma medida clara com relação a um aperto monetário, a manutenção de um aperto fiscal rigoroso, ou seja, um dreno que tira renda da população e encolhe o mercado interno de consumo de massa. Na realidade, o PAC tende a estimular muito a criação de logística para favorecer o agronegócio e consolidar estruturas de produção retrógradas; estruturas do latifúndio orientadas para a exportação.
BF – Como a queda nas bolsas de valores afeta a vida das pessoas? Gonçalves – As pessoas gastam em função de duas variáveis importantes: renda e riqueza. Quanto mais têm, mais gastam. O que vem acontecendo nos últimos anos na China e, principalmente, nos Estados Unidos? O preço das ações subiu muito, então, as pessoas ficaram mais ricas. Assim, passaram a gastar mais; quando gastam mais, consomem mais e uma das coisas que vão consumir são bens e serviços do resto do mundo. Isso significa mais exportação para países como o Brasil. Exportando, aumenta a renda, tem mais arrecadação fiscal, mais emprego e mais crescimento. Com a crise nas bolsas de valores, as pessoas ficam mais pobres. Ou seja, daqui para a frente, tendem a gastar menos, consumir menos e importar menos. Logo, menos exportação de países como o Brasil. Se exporta menos, gera menos renda e vai ter mais problemas de finanças públicas. E, a partir daí, problemas sociais graves. Essa é a mecânica. BF – Um dos motivos apontados como estopim da crise atual é o possível início de um ciclo de desaceleração da economia mundial. Isso pode vir a acontecer? Gonçalves – A economia mundial é puxada por duas locomotivas, a China e os Estados Unidos. Nos últimos quatro anos, ambas estavam aceleradas. Mas, atualmente, a economia mundial já está num processo de desaceleração puxado, principalmente, pelos Estados Unidos. Se houver uma desaceleração da segunda locomotiva, a economia mundial sofrerá ainda mais. Mas não está muito evidente qual o tamanho da desaceleração. BF – E quais os impactos dessa desaceleração para a economia como um todo? Gonçalves – Menos exportação, os preços das commodities caem. O saldo da balança comercial brasileira será menor, voltarão os problemas de balanço de pagamentos. Países como a Venezuela, que dependem muito das
exportações para gerar receitas tributárias, terão sérios problemas de finanças públicas. O contexto internacional se tornando menos favorável provoca desequilíbrio nas contas externas, no aparelho produtivo. O agronegócio brasileiro pode começar a quebrar, assim sendo, ele vai dar calote nos bancos, no Banco do Brasil, por exemplo. Então o governo terá que dar dinheiro para o BB cobrir o buraco do latifúndio exportador. Isso debilita as finanças públicas e o governo aumenta o arrocho. Logo, a economia tem menos investiCommodities mento público, – Mercadorias em estado bruto destipenalizando o nadas, em geral, cidadão que já ao comércio exvai estar sofrenterior. Exemplos: petróleo, minério do com a falta de ferro e soja. de renda. BF – Essa desaceleração da economia é natural do capitalismo ou acontece por decisão das lideranças políticas? Gonçalves – No caso da economia estadunidense, o principal fator é a instabilidade intrínseca do capitalismo. Ela tem grandes flutuações porque as decisões de investimentos dos empresários, que é o combustível da locomotiva, depende da subjetividade dos homens de negócio a respeito da expectativa de retorno que têm do seu investimento. E essas expectativas variam ciclicamente. Na China, a coisa é menos complicada porque tem muito de decisão política de governo. Não sabemos o que vai acontecer por lá num horizonte de curto e médio prazo porque ela cresce muito desde 1978. Entretanto, esse crescimento tem provocado vários efeitos negativos sobre a sociedade chinesa. Problemas ambientais, desigualdades sociais e regionais. A migração na China é um problema social sério. Isso cria uma tensão social e política que tem possibilidade de provocar uma desaceleração da economia. BF – A economia chinesa pode vir a se equiparar à estadunidense? Gonçalves – Sim. O cenário mais provável é que ela também siga a linha de menor resistência. Ou seja, manter a continuidade do que vem funcionando, apesar dos efeitos colaterais. Estes sim sofreriam ajustes, deixando a estrutura intocada. Portanto, o cenário mais provável é que não haja uma redução significativa da economia chinesa no horizonte de curto e médio prazo. Para países em desenvolvimento, isso é algo positivo. Os chineses estão tomando medidas de médio e longo prazo que certamente vão alterar condições do sistema econômico internacional. Por exemplo, estão introduzindo medidas para aumentar muito a eficácia do uso de recursos naturais, então, a demanda futura de petróleo, produtos agrícolas e minérios tende a diminuir. Eles vão economizar mais, portanto, a exportação do Brasil para a China tende a ter um menor dinamismo estrutural no longo prazo.
Quem é
Ganhador do Prêmio Jabuti 2001, Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é autor de mais de duas centenas de trabalhos publicados em 19 países, dentre eles: Empresas transnacionais e internacionalização da produção (Vozes, 1992); Globalização e desnacionalização (Paz e Terra, 1999); e O Brasil e o comércio internacional - transformações e perspectivas (Contexto, 2000).
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SOBERANIA ALIMENTAR
INTERNACIONAL Dafne Melo
Mulheres fazem o plantio de arroz em fazenda de terras estatais, compartilhadas por cerca de 3 mil famílias, em Sélingué, cidade localizada cerca de duas horas da capital do Mali, Bamako
Sobrevivendo no mercado global No Mali, pequenos produtores de leite e arroz resistem diante das pressões do comércio globalizado Dafne Melo enviada especial a Sélingué (Mali)
A
dez minutos a pé da vila de Nyéléni, pela rodovia que corta a pequena cidade de Sélingué – ligando-a à capital do Mali, Bamako –, o conjunto de pequenas casinhas construídas com pedaços de madeira, aglomeradas na beira da estrada, dão espaço a uma placa que avisa a entrada para uma pequena fazenda de produção de leite. À primeira vista, nenhum sinal de gado. No horizonte, apenas a paisagem marrom da vegetação de savana, presente nas áreas próximas ao rio Níger, onde estão as terras mais férteis do Mali. Antes de explicar o paradeiro dos animais, Sama Sow – um dos produtores que recebeu uma equipe de pouco mais de dez jornalistas, fotógrafos e tradutores – segue os costumes da região e faz uma saudação. “Estamos honrados em receber esta visita. Vocês deixaram a casa de vocês, mas aqui também estão em casa. Ninguém é estrangeiro no Mali”, diz em bambara, a língua mais falada no país, já que o francês é utilizado pela população apenas nas principais cidades ou por aqueles que tiveram acesso ao estudo.
Há poucos anos, o preço de 5 kg de ração ficava entre 750 e 1.750 CFA. Hoje, custa 4.500 francos. “Por tudo isso, o preço fica alto e a população recorre ao leite em pó, mais barato, porém menos nutritivo também”, diz o produtor para quem o governo maliense – que assinou uma lei no ano passado definindo a soberania alimentar como princípio – “não está fazendo sua parte em dar suporte aos produtores”.
UNIÃO EUROPÉIA Thierry Kesteloot, representante da Oxfam na Bélgica, explica que a União Européia (UE) produz muito mais leite do que consome, gerando um excedente que é comercializado para a África a um baixo custo. “O leite europeu chega aqui com um preço fixo, garantido pelo acordo, o que é possível porque a produção
é subsidiada”, elucida. Quem ganha com isso, entretanto, não são os pequenos produtores europeus, mas as transnacionais que conseguiram abaixar ainda mais o preço do leite nos últimos anos graças à entrada da soja brasileira a preços baixíssimos, usada para alimentar o gado. Para Kesteloot, uma saída seria a UE limitar sua produção, “impedindo que jogue todo seu excedente em outros mercados desprotegidos. Da forma atual, em cinco anos, a produção de leite da UE vai aumentar ainda mais e o preço diminuir. Como conseqüência, os pequenos e médios fazendeiros vão quebrar”, alerta.
ARROZ Vinte minutos de caminhada da fazenda de leite, também pela rodovia, e a paisagem marrom e aparentemente infértil dá lugar a uma
grande área de terras alagadas onde cerca de 3 mil famílias produzem arroz. Mais uma vez, os produtores rurais malinenses mostram a difícil luta para sobreviver em um mercado globalizado. Gaoussou Traoré, agricultor e coordenador da entidade que reúne os produtores locais, agradece a presença dos visitantes e se diz honrado em sediar o evento em sua comunidade. Em seguida, começa a mostrar a área e a explicar como se dá o plantio. “Aqui é como se fosse nossa casa. Passamos o dia aqui”, diz. A área em questão (1.350 hectares), também pertence ao governo malinense. Cada família tem direito a meio hectare (uma família mediana é composta por 16 pessoas, já que homens podem se casar com até quatro mulheres, de acordo com os costumes locais). Se outra
EXPLICAÇÃO
Declaração final reforça luta contra transnacionais “Nyéléni 2007”, o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, realizado em Sélingué, Mali, chegou ao seu fim no dia 27 de fevereiro, mas a expectativa dos mais de 500 delegados vindos de 86 países é que o Fórum marque apenas o início da luta pela soberania alimentar. Um documento final elaborado pelos participantes, além de aprofundar o significado do conceito de soberania alimentar, responde as três questões que nortearam os debates: pelo que lutamos, contra quem lutamos e o que podemos fazer a respeito. “Em Nyéléni, graças aos muitos debates e a intensa interação, estamos aprofundando nosso conceito de soberania alimentar e trocamos experiências acerca da realidade das lutas de nossos respectivos movimentos para con-
servar a autonomia e recuperar nosso poder. Agora, entendemos melhor os instrumentos de que necessitamos para criar um movimento e promover nossa visão coletiva”, diz o documento. As mulheres e as organizações feministas presentes no evento também fizeram sua declaração. “As mulheres, criadoras históricas de conhecimentos em agricultura e na alimentação – que continuam produzindo até 80% dos alimentos nos países mais pobres –, e que, atualmente, são as principais guardiãs da biodiversidade e das sementes de cultivo, são as mais afetadas pelas políticas neoliberais e sexistas.” Para ler os documentos na íntegra visite: www.nyeleni2007.org
OBSTÁCULOS “Os animais estão no pasto e voltam daqui a umas três horas”, explica Sow. Enquanto isso, Sekou Bah, outro produtor, começa a falar sobre a luta dos produtores de leite de Sélingué. Hoje, no Mali, há duas empresas que fabricam o produto a partir de leite em pó importado da União Européia. Enquanto o litro desse produto é vendido por 100 CFA (francos africanos), o produzido em Mali custa 250 CFA, em média. Bah explica que o encarecimento da produção é motivado por inúmeros fatores. “Aqui usamos uma espécie chamada mére que, apesar de resistente, é pequena e produz pouco leite”. O maior problema, entretanto, é a alimentação dos animais. Como as terras, pertencentes ao Estado, são compartilhadas, há dificuldade em utilizar os pastos que, mesmo assim, são escassos. A alternativa é o uso de ração, importada a preços muitos altos, isso quando encontradas no país. E seu preço não pára de subir.
família quiser produzir na área, deve entrar numa lista de espera, e aguardar a liberação de novas áreas pelo governo. Atualmente, explicou Traoré, o governo do Mali importa arroz do Vietnã e da Tailândia, vendido a 200 CFA o quilo. Mais barato do que o produzido localmente, por 210 CFA. “Não entendo como o arroz, apesar de vir de longe, chega aqui com o preço mais baixo do que o nosso”, questiona o agricultor, que recrimina a atitude do governo. “Nós o requisitamos, mas não temos sido atendidos. Essa é uma das grandes lutas do movimento camponês daqui”, diz. Dentre as dificuldades dos produtores, somam-se a falta de materiais apropriados para a produção e o alto preço dos fertilizantes.
Produtores de leite no Canadá só produzem o que consomem para evitar competição desleal Ao invés da concorrência desenfreada no mercado internacional, os produtores de leite do Canadá optaram pela cooperação e produção auto-suficiente. André Beaudoin, um produtor de gado leiteiro do Québec, presente no Fórum, explica que os fazendeiros canadenses ligam a produção de leite ao consumo do país. “Não permitimos que as pessoas produzam mais do que consumimos, não queremos produzir enormes quantidades de leite para termos que nos livrar dela jogando-a em outros países.” De acordo com dados para 2005 da Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO), o Canadá ocupa a posição
de 20º maior produtor mundial de leite, embora tenha capacidade de ocupar um dos lugares no topo da lista, encabeçada por Estados Unidos, Índia, Rússia, Alemanha e França, respectivamente. Ao contrário da União Européia – que fornece os mais altos subsídios para o setor agrícola no mundo –, no Canadá não há intervenção estatal na produção, ou seja, a produção não é subsidiada ou controlada pelo Estado. Tal política começou a ser implementada no início dos anos 1960 e só foi possível, conta Beaudoin, por conta da organização dos produtores. Com essa autonomia, os produtores, organizados em cooperativas e asso-
ciações, viabilizaram a existência e sobrevivência das pequenas propriedades familiares de produção. Como exemplo, o canadense cita que os custos com o transporte do leite são divididos entre todos os produtores, garantindo que o produto tenha o mesmo preço em qualquer ponto do país, independentemente de onde tenha sido produzido. Há também programas para a padronização da qualidade do leite canadense, reconhecido como um dos melhores do mundo. “Os produtores acham vantajoso trabalhar dessa forma conjunta, e não de uma forma competitiva uns com os outros. Nisso também se beneficiam os consumidores”, diz Beaudoin.
A indiana Shalmali Guttal, pesquisadora da organização Focus On The Global South, dá uma explicação para o baixo preço do arroz vietnamita. “Por que é barato? Porque as pessoas estão sendo pagas muito pouco por ele; e não porque estão recebendo subsídios”, diz a ativista, uma das organizadoras do Fórum. “Os agricultores vietnamitas são muito pobres, vivem com quase nada. Então, os comerciantes internacionais podem comprar o arroz a um preço muito baixo”, completa. Outro motivo é a política do governo vietnamita que fixa o preço do arroz num certo patamar e estimula a exportação. “Quase todos os países que estiveram sob governos socialistas ou comunistas, agora, tornaram-se ‘capitalismo de Estado’”, avalia Shalmali. A tragédia do livre mercado, diz a pesquisadora, é que quem ganha com a miséria – tanto dos produtores vietnamitas como dos malienses – é o grande capital. “As transnacionais ganham muito dinheiro com esse comércio, e não os pequenos produtores do Vietnã ou da Tailândia e, definitivamente, muito menos os do Mali”. Citando o exemplo de seu país, a Índia, Shalmali conta que os próprios agricultores que produzem comida passam fome. Para a pesquisadora indiana, a saída para o conflito não passa pelo repúdio a qualquer tipo de comércio, mas apenas pela afirmação de políticas que garantam um comércio justo. “Não estamos dizendo: ‘Não importe’ ou ‘não exporte’. Mas as políticas internacionais para o comércio têm de ser uma ferramenta para o desenvolvimento e não uma maneira de impedi-lo”, finaliza.
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INTERNACIONAL IRAQUE
Caminho aberto para as transnacionais Setor petrolífero ficará à disposição de empresas estrangeiras por meio de contratos de até 35 anos Sgt. Kevin R. Reed, USMC
Igor Ojeda da Redação
À
s vésperas do quarto aniversário da invasão do Iraque, o país prepara-se para garantir às transnacionais estrangeiras amplo acesso ao seu petróleo. Ocupado por tropas dos Estados Unidos desde o dia 19 de março de 2003, o governo iraquiano aprovou, no dia 26 de fevereiro, o esboço de uma nova lei do petróleo, cuja indústria foi nacionalizada em 1972. Desde 2006, a administração estadunidense vinha pressionando as autoridades do Iraque a priorizarem a nova legislação, afirmando que ela seria crucial para o desenvolvimento do país. O esboço, que irá agora para o Parlamento, permite que as empresas estrangeiras tenham acesso a quase todo o setor da indústria iraquiana de gás e petróleo, como, por exemplo, os campos petrolíferos operados pela Empresa Nacional de Petróleo Iraquiana (Inoc, na sigla em inglês). Com relação aos campos já descobertos, mas que ainda não foram desenvolvidos, a nova lei estipula que a Inoc terá que ter uma parceira na futura exploração. Quanto aos campos ainda não descobertos, nem a Inoc e nem empresas privadas iraquianas terão preferência na sua exploração e desenvolvimento, abrindo o caminho para o livre acesso às companhias de fora. Os contratos de exploração, desenvolvimento, produção, transporte e comercialização do petróleo e gás natural concedem o controle exclusivo sobre as jazidas por até 35 anos, incluindo alguns contratos que garantem lucros por 25 anos. A companhia que tiver a concessão de exploração pagará 12,5% de royalties ao Estado. A empresa estrangeira contratada não será obrigada a fazer parcerias com empresas locais, reinvestir na economia do país, admitir trabalhadores iraquianos ou transferir tecnologia. Dos 80 campos de petróleo conhecidos, 65 serão oferecidos para concorrência.
PRIVATIZAÇÃO O iraquiano Kamil Mahdi, professor de economia do Oriente
Se a nova lei do petróleo for aprovada, ficará provado o que todos já sabiam: a invasão não foi motivada pela suposta existência de armas de destruição em massa
Médio na Universidade de Exeter (Inglaterra), explica ao Brasil de Fato que a principal conseqüência da nova lei será a “tirar a propriedade da maioria dos recursos conhecidos e muitos dos que ainda estão para ser descobertos do setor público e entregá-los para companhias transnacionais em contratos de longo prazo”. Outro ponto controverso da nova lei é o poder conferido às províncias e regiões iraquianas para assinarem contratos de exploração com empresas privadas, tentando equilibrar uma certa autonomia das regiões no controle dos recursos com uma supervisão por parte do governo central. Ou seja, as regiões e empresas regionais podem negociar contratos diretamente com as empresas, mas um novo órgão governamental, chamado Conselho Federal de Petróleo e Gás, terá o poder de evitar que estes sigam adiante caso não cumpram certos requisitos. O Conselho será formado por, entre outros, “consultores independentes”, inclusive estran-
geiros, e diretores de “importantes companhias de petróleo”, abrindo a possibilidade, portanto, para que executivos de empresas estrangeiras participem das decisões. De acordo com Mahdi, a legislação proposta encorajará as regiões a competirem umas com as outras, especialmente porque muitos campos de petróleo ultrapassam os limites regionais. Além disso, o pequeno poder de barganha das empresas locais frente às estrangeiras trará prejuízos ao país com relação aos tipos de contratos fechados. Para ele, a autonomia “não faz nenhum sentido a não ser para dar oportunidades às elites locais de lucrarem sem adequada vigilância pública”. A nova lei permite ainda que o governo distribua os rendimentos obtidos com o petróleo para as províncias ou regiões de acordo com o tamanho de suas populações. Tal medida agradaria aos árabes sunitas, que temem não se beneficiar da repartição da riqueza. Os sunitas, que detinham o poder no Iraque durante o regime de
Saddam Hussein, são minoria no país. A maioria das reservas de petróleo iraquianas estão localizadas no Sul, dominado pelos xiitas, e no Norte, controlado pelos curdos.
DIVISÃO O primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki, afirmou que a nova lei do petróleo, ao promover a autonomia e a distribuição dos recursos, é uma “base sólida para a unidade de todos os iraquianos”. Para outro iraquiano, Raed Jarrar, diretor do Projeto Iraque da organização estadunidense Global Exchange, a tensão sectária irá crescer. “Será um importante passo para a divisão, ao criar uma região no Sul (xiitas) que irá se separar do Iraque da mesma maneira que o Norte (curdos) já se separou”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato. Segundo ele, a nova lei tenta privilegiar ao mesmo tempo os interesses dos Estados Unidos, que preferem ter um Iraque com um forte governo central para que os compromissos assumidos com suas transnacionais sejam cumpri-
dos, e os de seus aliados locais, que querem dividir o país. A expectativa é que o Parlamento iraquiano analise o esboço da lei ainda neste mês. Segundo Kamil Mahdi, existe uma chance dela não ser aprovada, já que um dos blocos principais no Legislativo anunciou sua oposição a ela. “No entanto, esse Parlamento vive sob a proteção dos Estados Unidos, então pode-se esperar que ele se alinhe com os desejos estadunidenses para aprovar a lei. E devem fazê-lo com emendas insignificantes para fazer com que pareça melhor. Se ela passar, deve haver uma campanha por sua rejeição e uma oposição a qualquer contrato de longo-prazo”, afirma. Trabalhadores do setor organizados em torno da Federação Iraquiana dos Sindicatos do Petróleo, por exemplo, já fazem forte oposição desde que a lei começou a ser delineada. “Eles têm muito apoio e respeito. A visão deles irá contar na base mesmo se os políticos não a ouvirem ou entenderem”, explica Mahdi.
ENTREVISTA
América Latina: instrumento da hegemonia estadunidense Engana-se quem pensa que George W. Bush, por causa do caos no Iraque, tem se descuidado da América Latina. Para a socióloga mexicana Ana Esther Ceceña, o continente é fundamental para que os Estados Unidos mantenham sua posição de grande potência mundial. “A América Latina é uma fonte abundante e variada de recursos que, em conjunto, garante a reprodução das relações hegemônicas, uma vez que nenhuma outra região do mundo, e muito menos outra potência, conta com uma situação similar”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato por correio eletrônico. Leia, a seguir, sua opinião a respeito da visita do presidente estadunidense ao continente, entre os dias 8 e 14: Brasil de Fato – O que quer o presidente George W. Bush com seu giro pela América Latina? Ana Esther Ceceña – A América Latina é fundamental para que os Estados Unidos consigam manter a posição de invulnerabilidade relativa que lhes permita seguir atuando como hegemônico. Sua superioridade se assenta na condição de continentalidade que concede aos estadunidenses uma margem de manobra muito ampla em relação ao resto do
mundo. A América Latina é uma fonte abundante e variada de recursos que, em conjunto, garante a reprodução das relações hegemônicas, uma vez que nenhuma outra região do mundo, e muito menos outra potência, conta com uma situação similar. Dessa forma, para os Estados Unidos é indispensável assegurar o controle político, os fluxos comerciais, a permissibilidade para seus investimentos e o livre trânsito pelo continente, onde se encontra a rota comercial de passagem mais importante do mundo: o Canal do Panamá.
para a Integração da Infra-estrutura Sul-americana], que propiciam tanto o saque de recursos quanto a internação nas áreas centrais da massa territorial continental. O outro braço é militar e se desenvolve como capas envolventes, todas elas protetoras das iniciativas econômicas mencionadas, mas cujos propósitos não se restringem a assegurar o acesso aos recursos e também colocam o enfrentamento da insurgência (de qualquer tipo, inclusive a hipotética), como o outro objetivo prioritário declarado dessa estratégia.
BF – Quais são as atuais estratégias estadunidenses para manter sua influência sobre o continente? Ana Esther – A estratégia geral tem dois grandes braços. Um é econômico e tem suas expressão concreta nos tratados de livrecomércio (TLCs) binacionais, regionais ou continentais; na generalização de normas referentes ao tratamento dos investimentos estrangeiros, à privatização de recursos estratégicos e ao manejo das políticas monetárias; e no impulso a projetos de infraestrutura como o oleoduto mesoamericano ou o IIRSA [Iniciativa
BF – Alguns estadunidenses criticam a falta de atenção de Bush com a América Latina. O que você pensa disso? Ana Esther – Existe uma confusão. Muita gente pensa que, desde que Bush embarcou na aventura da Ásia Central, ele descuidou de outras regiões do mundo. É preciso que se saiba que as Forças Armadas dos Estados Unidos vêm se capacitando para poder enfrentar cinco conflitos armados simultâneos em cinco regiões do mundo distantes umas das outras (correspondendo, aproximadamente, aos cinco continentes) e para
enfrentar simultaneamente guerras convencionais, simétricas e assimétricas. BF – Bush visitará também o México. Quais são seus interesses no país? O que poderá resultar dessa visita? Ana Esther – Com o México, há uma fronteira comum de 3 mil quiômetros, muito conflitiva para ambos os países por diferentes razões, e há uma longa história de usurpações (o México perdeu a metade de seu território) e prejuízos, mas, particularmente, desde o ano 2000, quando se iniciam os governos do PAN [Partido da Ação Nacional], os critérios de política exterior e, em especial, os da relação com Estados Unidos, se modificam e a cumplicidade aumenta no terreno da “segurança nacional”, sob a definição estadunidense. Consolidar o Acordo para a Segurança e Prosperidade da América do Norte (Aspan), que permite estender as fronteiras dos Estados Unidos em termos de segurança até a Guatemala, é hoje uma das prioridades da administração Bush porque isso lhe permite fechar o círculo da bacia do Golfo do México,
onde se encontram as maiores jazidas de petróleo da região e ter controlada a outra passagem comercial interoceânica no istmo de Tehuantepec. O Aspan parece significar o avanço desse disciplinamento e da ingerência estadunidense rumo ao campo da segurança, do cuidado do território e dos setores econômicos deixados de lado pelos TLCs. O Aspan inclui, nesse nível, a integração energética, que não se pôde conseguir com o Nafta, e a liberdade para transitar com recursos biológicos pela região, ou seja, o tráfico de espécies, de códigos genéticos e de transgênicos. Uma vez conseguido no México, isso poderia ser o modelo para toda a América Latina. (IO)
Quem é
Investigadora titular do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Autônoma do México (Unam), a mexicana Ana Esther Ceceña é membro do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), coordenadora do Observatório Latino-americano de Geopolítica e integrante da Campanha pela Desmilitarização das Américas (Cada).
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CULTURA
De 8 a 14 de março de 2007
MOVIMENTO NEGRO Divulgação
“Sem tempo para lamúrias” Para a atriz e cantora Zezé Motta, é hora de parar de ficar só reclamando e partir para virar o jogo na prática Juliano Domingues de São Paulo (SP)
M
aria José Motta ou apenas Zezé Motta, como é popularmente conhecida. Zezé. Simples assim, como sua personalidade e o seu modo de se relacionar com as pessoas. A atriz e cantora é símbolo do amadurecimento do movimento negro no Brasil, processo que ela acompanhou durante 21 anos de militância. A luta pela fixação da identidade negra está presente em seu discurso e prática. Os seus 39 anos de carreira denunciam tal fato. Hoje, além do trabalho como atriz, Zezé Motta atua dentro do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), instituto do qual é presidente e que faz parte do movimento negro e da luta pela justa representação dos afro-descendentes dentro da TV e do cinema. Maria José, Xica da Silva, a escrava que virou rainha. Brasil de Fato – Este novo cinema brasileiro da fase Ancine (Agência Nacional de Cinema) começa, com filmes como “Madame Satã”, a dar um destaque maior para o negro na medida que faz com que ele interprete personagens complexos e definidores da complexidade do que é ser negro no Brasil? Zezé Motta – Bom, eu acho que o cinema está sempre ressurgindo das cinzas, né? Agoniza, mas não morre. Igual ao samba (risos). Está sempre ameaçado, com dificuldades, mas, de repente, alguma coisa acontece. Já tivemos a censura, a crise da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme). No que diz respeito aos negros, as pessoas ficam perguntando o que eu acho dessa virada e, sinceramente, não só em relação ao cinema, vejo com muita naturalidade. Sempre esperei por essa virada e espero que aconteçam muito mais coisas a favor do artista negro, pois estamos batalhando por isso. Digo isso por causa de uma aula da saudosa (antropóloga) Lélia Gonzalez a que assisti. Ela disse: “Não temos mais tempo para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas e virar o jogo”. Isso nunca saiu da minha cabeça e me deu um alento de que as cartas estavam nas nossas mãos. Não adiantava a gente ficar com nhenhenhém, resmungando, esperando por uma atitude paternalista que não ia mudar nada. Tivemos essa fase. Inclusive no movimento negro a gente teve uma fase de se reunir naquelas datas históricas e reclamar, reclamar, reclamar, denunciar, fazer passeata... Hoje o movimento amadureceu, cada um partiu para virar esse jogo na prática e o resultado está aí. Toda vez que eu vejo algo da Thaís Araújo, ligo e a parabenizo como amiga e presidente do Cidan. Ela diz, “pois é, a minha geração tem que agradecer à sua porque vocês batalharam para essa virada, foram vocês que abriram esse caminho”. Então, vejo com muita naturalidade esse espaço que está sendo dado para o Lázaro Ramos (protagonista de “Madame Satã”). É uma chance de ele mostrar que talento não tem cor. BF – E como fica a questão da representação ainda estereotipada da mulher no cinema brasileiro e na TV, e , muito mais, a da mulher negra?
Zezé – Eu acho delicado falar disso porque a gente pode até não concordar com o que te oferecem para fazer, mas se você não aceita, fica mais complicado ainda a nossa luta. Encaro a questão do estereótipo como outra etapa a ser vencida no futuro. E acho que essa etapa só poderá ser vencida – e nós do Cidan estamos convencidos disso – quando tivermos mais diretores negros, mais produtores... BF – Você acha que há uma incapacidade da mídia em representar não só o brasileiro, como também o negro, ou isso delata a forma como a sociedade ainda vê o negro e principalmente a mulher negra, ou seja, como uma empregada ou mulher objeto? Zezé – Olha, houve uma época em que a gente cobrava e perguntava isso e nos diziam: “é porque estamos reproduzindo a realidade do Brasil”. Bom, a gente sabe que a maioria dos negros tem poder aquisitivo baixo e que, portanto, ocupa posições não privilegiadas na vida, mas há uma má vontade em não reconhecer que existe uma burguesia negra, sim, e queremos nos ver na mídia! Na minha família tem de tudo. Médico, enfermeiro, engenheiro, arquiteto. São guerreiros que foram à luta e conseguiram. Não somos exceção e....(suspiro). É como eu digo, temos muita luta aí pela frente. Uma coisa que está acontecendo é a questão do revezamento. Olha, eu tenho 39 anos de carreira e outro dia estava refletindo sobre isso. Quando a Ruth de Souza está em cena, a Xica Xavier não está. Quando a Neusa Borges está em cena, eu não estou. Entendeu? BF – Há sempre uma cota, é isso? Zezé – Exato. É uma loucura. E aí acontece que a maioria dos atores negros estão desempregados, deprimidos. Você só vê um grande número de atores negros em cena quando o assunto é escravidão.
A maioria dos atores negros estão desempregados, deprimidos. Você só vê um grande número de atores negros em cena quando o assunto é escravidão a BF – O seu trabalho no Cidan tenta mudar isso? Zezé – (risos) O meu, não! Quer dizer, eu, às vezes, me aposso do Cidan, mas ele não é meu. Nós do Cidan, quando o criamos, tínhamos a intenção era cobrar da mídia uma mudança para essa quase invisibilidade do negro. E tinha aquela desculpa esfarrapada de que eles não sabiam onde encontrá-los. Diziam que os atores negros eram muito inseguros, crus, duros e vinham com mil desculpas. Na verdade, sabemos que isso era uma má vontade de um veículo com fins lucrativos para quem o é belo é o que vende. E o negro não é considerado bonito. Nosso padrão de beleza ainda é europeu. O grande exemplo disso é que durante cerca de duas décadas a mulher considerada a
Quem é
Zezé Motta, aos 62 anos, já atuou no teatro, TV e cinema, onde tornou-se conhecida depois do estrondoso sucesso de Xica da Silva (1976), filme dirigido por Cacá Diegues. Hoje, além da ativa participação dentro do movimento negro, a atriz e cantora é presidente do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), uma instituição que luta pela a expansão do mercado de TV e cinema para atores afro-descendentes brasileiros.
mais bonita do Brasil foi a Xuxa. Nada contra ela. É minha amiga, eu a adoro. Olha como você vai colocar isso na matéria! E agora é a Gisele Bündchen. As duas são lindas, sim, mas não é comum. O padrão de beleza é uma coisa mais mesclada. BF – Sobre a Embrafilme. Hoje quando se olha para a produção brasileira no cinema dos anos de 1970 e 1980, principalmente, entre os mais jovens, associa-se muito com a figura da pornografia e do erotismo como chafariz comercial. O que você pensa sobre isso, porque afinal de contas participou disso? Zezé – Não sei quantos anos você tem, mas nós estamos falando de uma época em que enfrentávamos uma ditadura e uma censura. Não se podia falar de nada do que estava acontecendo no Brasil, as perseguições, as torturas, o exílio. Nada disso era permitido. Eu tive música censurada no meu show porque eu a dedicava para um preso político que era meu amigo de infância. Isso atrapalhou todo um processo cultural no Brasil, não só no cinema. O que liberavam eram os filmes eróticos. Eu mesma fiz dois ou três filmes. Um chamado “Banana Mecânica” e outro “Um Varão entre as Mulheres”, que era o que se tinha para fazer em cinema. Há outros lados, mas a minha reflexão passa por aí. BF – Mas e quanto ao cinema enquanto representação histórica e do imaginário social de uma época? Zezé – Olha, quando eu fiz Xica da Silva, o Cáca Diegues foi muito criticado na época, inclusive pelo movimento negro por conta de ter dado destaque à questão
Esse país tem uma dívida com o negro que tem que ser paga. Eu não sei se as cotas vão resolver, mas essa dívida tem que ser paga, seja por cotas na mídia, na universidade ou em todos os espaços da sensualidade e do erotismo do personagem. Enfim, sei que é complicado defender, mas eu vou falar da minha vivência naquele momento. O que aconteceu foi o seguinte. Quando pintou a idéia de contar a história da Xica da Silva, não havia nenhum registro dela no Brasil. Ela passava quase como se tivesse sido uma prostituta que envolveu o João Fernandez, se deu bem e entrou pra história. Outros nem acreditavam que ela existiu. Fomos conseguir um pouco mais de dados sobre a Xica em um romance mineiro e também em Portugal. O roteiro foi baseado em entrevistas com pessoas de 90 a 100 anos que contavam o que tinha sobrevivido via história oral. Processo que, por sinal, é relativo a todo personagem e herói negro que simplesmente não entra na história do Brasil. Essa é uma das maneira de como o cinema daquela época pode ser abordado. Teve sim muitas coisas boas. Mas é verdade também que, não só naquela época, como ainda hoje, os personagens negros não chegaram ao seu ponto ideal. E, na verdade, o ideal é o de igual para igual. É você viver um personagem independente da cor.
BF – Jeferson D e o seu “Dogma Feijoada” e o cinema de negros para negros reascendem uma discussão que também se deu quando discutiram as cotas para negros nas universidades e que acontece sempre que se fala em políticas afirmativas. No caso, um discurso fincado na idéia de que “negros politizados defensores das ações afirmativas e cotas estariam com essa estratégia desenvolvendo um racismo negro, antipardos e antibrancos”. Zezé – Seria incoerente de minha parte, que brigo há 21 anos por cotas para o artista negro, não comungar e defender na universidade. Eu acho o seguinte: este país tem uma dívida com o negro que tem que ser paga. Eu não sei se as cotas vão resolver, mas essa dívida tem que ser paga, seja por cotas na mídia, na universidade ou em todos os espaços. Quanto ao Jeferson D, eu sou suspeita para falar porque já fiz um curta dele, premiadíssimo, que foi “Carolina” e porque estou no seu próximo filme, mas atitudes como essa são sempre válidas. O importante é a gente avançar e não ficar no prejuízo para todo o sempre. GLOSSÁRIO Ancine – Criada em 2001 e vinculada ao Ministério da Cultura em 2003, a Agência é o novo órgão fomentador, regulador e fiscalizador da indústria cinematográfica e videográfica brasileira. A Ancine guia as diretrizes do cinema nacional e veio para substituir a Embrafilme, antiga agência reguladora do setor que funcionou durante a ditadura militar. Jeferson D – O cineasta e autor do manifesto Dogma Feijoada, documento que defende a formação de um cinema realizado e interpretado por negros e no qual esses sejam retratados com justiça, respeito e sem preconceito. O diretor ficou conhecido por sua produção de curtas. Dentre seus filmes, “Carolina” (2003) foi premiado no Festival de Gramado com o título de melhor filme de curta-metragem.