Ano 5 • Número 212
Uma visão popular do Brasil e do mundo
R$ 2,00
São Paulo • De 22 a 28 de março de 2007
www.brasildefato.com.br João Zinclar
Entre os dias 12 e 16, foi montado em Brasília um acampamento contra a transposição do rio São Francisco: “foi nossa penúltima tentativa, a última será lá na própria Bacia do rio”, garante o documento final
Bancada ruralista se articula para manter fazendas improdutivas Latifundiários ameaçam boicotar o PAC caso o governo atualize índice que já está defasado há mais de 30 anos
A
bancada ruralista tem uma nova meta: impedir a correção dos índices que determinam se uma propriedade rural é ou não produtiva. Contando com 200 deputados, os ruralistas adotaram uma tática
de apresentar variados projetos de lei sobre o tema. Além disso, ameaçam boicotar o Programa de Aceleração do Crescimento se o governo atualizar o índice, o qual não é corrigido desde 1976. “Os ruralistas dizem que
a agricultura se modernizou, que agora tem tecnologia. Nós estamos com índices do tempo dos militares. Isso é vergonhoso”, protesta o deputado Adão Pretto (PT). Pág. 3
EDITORIAL
Fisiologismo ministerial Imigrantes são vitais para a economia européia Fórum sobre imigração realizado em Lisboa, Portugal, apontou que o fluxo de trabalhadores de países da periferia é fundamental para compensar o enve-
lhecimento da população européia. Mesmo assim, ainda é forte na região o debate sobre leis mais restritas para os imigrantes. Pág. 7
Donos de escolas Projeto de Hélio armam ofensiva Costa favorece contra alunos setor estatal Alunos que atrasarem o pagamento das mensalidades correm o risco de perder suas vagas na universidade. Na Câmara dos Deputados, tramita projeto de lei que prevê a expulsão dos estudantes após atraso de 60 dias no pagamento. De acordo com pesquisas, a inadimplência cresceu 15%, em 2005, ano em que a taxa de evasão no ensino superior foi de 22%. Pág. 4
Após impor o padrão japonês de TV Digital aos brasileiros, o ministro das comunicações, Hélio Costa, tem um novo objetivo para sua gestão na pasta: criar a Rede Nacional de Televisão Pública. Apesar do nome, na verdade, o projeto privilegia o sistema estatal, afirma o professor Laurindo Leal Filho, da USP, em entrevista ao Brasil de Fato. Pág. 5
Guerra é negação da vida, afirma Casaldáliga Pág. 6
9 771678 513307
00212
U
ma linha marcante na reforma ministerial realizada até o momento pelo presidente Lula foi a de atender aos interesses do PMDB, ampliando sua participação no governo. A negociação desta maior participação peemedebista no governo, feita por Lula com o deputado Michel Temer (SP), parlamentar que teve influente participação no governo de Fernando Henrique Cardoso, não se pautou por critérios programáticos, mas fundamentalmente por uma visão fisiológica, no sentido de se construir base parlamentar para aprovação de projetos do interesse do governo. Deixou-se de lado nesta reforma ministerial, até o momento, os grandes temas nacionais como balizadores centrais dos critérios para definir as pessoas a serem indicadas ou convidadas. Por exemplo: um dos temas nacionais de grande impacto, a criação de 10 milhões de empregos – uma promessa da campanha eleitoral de 2002 –, foi posto de lado. A nomeação do deputado federal baiano Geddel de Lima para o Ministério da Integração Nacional, que tem a incumbência de realizar as obras para a transposição das águas do Rio São Francisco, faz temer pela comunidade que vive do rio, pela biodiversidade e pelo futu-
ro desse manancial da natureza. O novo ministro tem uma larga história de pragmatismo político e de enriquecimento vertiginosamente rápido, e toda a sua disputa com a oligarquia carlista na Bahia não se inscreve num embate por questões éticas, mas por uma briga pelo comando dos podres poderes. O novo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, assume de modo rigorosamente convencional, sem que a grande tragédia da saúde do povo brasileiro tenha sido o motivo para uma mudança ministerial, a partir da qual o governo enfrentasse esse desafio, com uma verdadeira revolução nas políticas públicas de saúde, com decisão para nacionalizar a indústria farmacêutica, hoje um setor controlado completamente pelos laboratórios transnacionais. Vale registrar, como tema de preocupação, declarações emitidas pelo deputado peemedebista Eliseu Padilha, ex-ministro de FHC, de que pretende nomear a direção da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão detentor de polpuda verba orçamentária, com grande capacidade de interferência nas eleições municipais de 2008. Também chama a atenção a forma como a ex-prefeita Marta Suplicy foi indicada para uma variedade de ministérios até aceitar, finalmente, o do Turis-
mo. Ou seja, pouco valeu critério técnico ou mesmo a vocação política para assumir uma outra pasta, o fator discutido foi apenas o de dar visibilidade para o PT ter um candidato para as eleições seguintes. Com os condicionantes já lançados pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que reservou recursos para a transposição do Rio São Francisco, para a construção civil, para a implantação da TV digital, sem que coerentemente tivessem sido definidas políticas para uma reforma agrária, uma reforma urbana, ou mesmo a valorização da tecnologia nacional de TV digital já praticamente pronta, esta reforma ministerial muito provavelmente não representará nada mais do que uma maior pressão de interesses fisiológicos de caciques do PMDB. Cabe aos movimentos populares e sociais, aos sindicatos que ainda não se prostraram diante desse pragmatismo insensível aos clamores do povo, relançar constantemente a defesa de um projeto popular para o desenvolvimento do país, fechando a hemorragia de riquezas minerais e financeira que continuam sendo subtraídas, em tenebrosas transações, enquanto a dança das posições políticas revela, irresponsavelmente, total desprezo pela tragédia social da nossa gente.
2
De 22 a 28 de março de 2007
DEBATE
CRÔNICA
A visita do “mister”
O Festival de Cinismo que assola o país
Nildo Ouriques visita do presidente dos EUA a alguns países da América Latina representou mais uma oportunidade para tornar o imperialismo invisível entre os latino-americanos e, especialmente, entre nós, os brasileiros. Mesmo diante de tanto protesto de rua, manifestação de repúdio nos Parlamentos, críticas de certos setores da grande imprensa, proliferaram também artigos e entrevistas em que alguns autores saudavam a “virada” da política externa da principal potência capitalista em relação à América Latina. Na maioria dos casos, se insistiu sobre o fato de que finalmente os Estados Unidos estariam despertando de seu pesadelo propiciado pela invasão no Iraque e estariam se interessando novamente pelos destinos da região. Subjacente a essa hipótese, está a idéia de que os Estados Unidos se desinteressaram pela América Latina nas décadas passadas, como se, premido pelo esforço político e econômico desprendido com a ofensiva imperialista no Oriente Médio, não lhes restasse forças para cuidar de seu tradicional “pátio traseiro”. Segundo essa mesma hipótese, a erupção de governos nacional-populares que terminaram por inclinar o pêndulo latino-americano para a esquerda, especialmente depois da eleição de presidentes como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, foi produto do “descuido” da política externa estadunidense, particularmente desastrosa durante os dois governos republicanos. Mais que uma hipótese, estamos diante de uma impostura intelectual destinada a tornar a ação imperialista no continente praticamente invisível. Acaso os Estados Unidos realmente abandonaram na última década os latino-americanos? A política econômica aplicada sem dó nem piedade na absoluta maioria dos países da região se denominou, segundo a esquerda liberal, de “neoliberalismo”. Esta política, como sabemos, emanava do famoso Consenso de Washington e era inspirada, aplicada e fiscalizada pelo FMI e pelo Banco Mundial, organismos em que os Estados Unidos possuem profunda influência. O resultado dessa orientação de política eco-
A
Luiz Ricardo Leitão
nômica foi o empobrecimento de 62% da população do continente atualmente composta por pobres e miseráveis. A deposição do presidente Aristide, no Haiti, a tentativa de golpe contra o presidente Hugo Chávez, na Venezuela, o apoio incondicional em termos financeiros e militares para manter o terrorismo de Estado, na Colômbia, o bloqueio à Cuba, o exílio dourado a presidentes depostos como Sánchez de Losada, na Bolívia, a pressão em todos os terrenos contra as rebeliões populares da qual o Equador, em 2001, é o maior exemplo, por acaso constituem momentos de uma política de “abandono” do “pátio traseiro”? Poderíamos continuar com uma espécie de pequeno conto das intervenções estadunidenses no terreno da política e agregar outras tantos na cultura, diplomacia etc. É óbvio que a política externa estadunidense chegou a seus limites. Mas é preciso cautela para superar o horizonte liberal na interpretação sobre o ponto, pois, se a política externa da potência em crise já não dá conta de manter a hegemonia em escala global como considero, há uma clara tentativa de mudar a retórica sem, contudo, mudar a essência. Ocorre que a crise de hegemonia é precisamente isto: os Estados Unidos já não podem ganhar a guerra no Iraque e tampouco podem simplesmente sair de lá sem sérias implicações para sua política externa e para o controle mundial que pretendem. Mas é preciso observar que se conservadores da ultra-direita, como Francis Fukuyama, estão abandonando o antigo radicalismo que caracterizou suas preposições na política externa estadunidense, é verdade que não o fazem para entrar em campanha mundial para dar o premio Nobel
da Paz a Madre Tereza de Calcutá. Estão apenas tentando outra modalidade de controle, de dominação. Buscam recomposição com ex-aliados e especialmente a construção de contrapesos ao nacionalismo revolucionário em curso no continente. Como anunciou o general James Hill, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, a ameaça aos interesses nacionais estadunidenses na região está ameaçado pela erupção do “populismo radical”. Uma nova versão do velho fenômeno político latino-americano, encabeçado por líderes mais decididos e fiéis aos interesses populares que navegam na onda propiciada pelo fracasso da modernização capitalista, a mesma que prometeu mundos e fundos às maiorias e criou a maior taxa de desemprego de nossa história recente, uma impressionante onda migratória e o superendividamento do Estado, pela via interna e externa. Enfim, a criação de uma economia exportadora cuja tendência não é outra que o agravamento da crise social e a perpetuação da dependência. O roteiro do presidente dos Estados Unidos foi, não obstante, bem escolhido. Nestas circunstâncias, foi um grave erro da diplomacia brasileira recebê-lo. A impossibilidade de uma política externa efetivamente independente e soberana é produto da política econômica em curso, razão pela qual nos resta apenas o triste papel do exercício da subserviência e da boa vizinhança com o algoz das experiências populares que apenas começam em outros países da América Latina. Nildo Ouriques é presidente do Instituto de Estudos LatinoAmericanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA- UFSC)
Se, em homenagem ao saudoso e genial Stanislaw Ponte Preta, pensássemos em promover um novo Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), decerto não haveria espaço para tantos concorrentes. Embora, para desgosto de todos eles, a cobiçada honraria não venha a render-lhes nenhum faturamento extra, as autoridades de Pindorama têm se empenhado bastante em busca do badalado título. Ainda há pouco, na Vila Belmiro, o Santos recebia o São Paulo, no famoso clássico Sansão, e um torcedor local, sabe-se lá por que (des)carga d’água, resolveu arremessar um vaso sanitário (!) contra a torcida adversária, fato absolutamente insólito, que as câmeras de tv mostraram para todo o Brasil. Pois o mais absurdo estava por vir... Consultado sobre o “incidente”, o comando da PM na cidade declarou que não era possível identificar o alucinado torcedor, mas decidiu adotar uma medida sui generis: recomendou à direção do clube que retirasse todas as privadas do estádio. Pelo visto, quem estiver com dor de barriga deverá esperar o jogo de volta no Morumbi... Essa e outras histórias tão corriqueiras em plagas tupiniquins, dignas de um Febeapá 2007, soam até ingênuas ou folclóricas diante do Festival de Cinismo que a era neoliberal patrocina, desde a década de 1990, nesta pátria-mãe gentil. A desfaçatez das elites e dos seus valorosos alcaides já ultrapassou todos os limites possíveis. Agora mesmo, no Rio, às vésperas do Pan 2007, vemos e ouvimos coisas de que até Deus duvida. Enquanto a Saúde e a Educação da província seguem no fundo do poço (dados oficiais acabam de atestar a falência da rede de ensino médio, desmantelada pela criminosa inação de sucessivos governos estaduais), Lulinha Paz & Amor veio ao Maracanã bater pênaltis contra (ou a favor de?) Sérgio Cabral e liberar, em clima apoteótico, mais R$ 100 milhões para a conclusão das obras do evento. Estas, obviamente, segundo reza a tradição de Bruzundanga, estão bastante atrasadas e, por isso, reclamam, com urgência e alarido, mais verbas do exaurido Tesouro Público. Embora o próprio TCU já tenha ligado o sinal vermelho e denunciado que o orçamento final dos Jogos superou em mais de oito vezes a soma originalmente prevista, Dom Inácio ignorou o alerta do Tribunal e abriu os cofres da União para as empreiteiras de plantão, cujos operários, aliás, entraram em greve para obter assistência médica e 15% de reajuste salarial. É um torneio acirrado, não resta dúvida. O alcaide virtual da cidade, o Sr. César Maia, que vive a redigir um diário eletrônico na Internet, é outro forte candidato ao título. Há poucos dias, com o cinismo patológico que caracteriza os insanos mentais, declarou à imprensa local que a Vila Panamericana, destinada a abrigar os atletas do Pan, dificilmente estará pronta no dia 13 de julho, data de abertura dos Jogos. Face à escassez (?) de recursos, itens como a estação de tratamento de esgoto não serão concluídos a tempo, disse o bufão aos microfones. O mais curioso é que os apartamentos da Vila já foram postos à venda pelas imobiliárias, sem que ninguém se pergunte por que esse dinheiro não veio a ser investido na execução do projeto... Tamanha ladroeira, em outras paragens, causaria até prisão perpétua para os larápios. Contudo, como vivemos em uma sólida democracia neoliberal, repasse-se a conta à população e empurrese o resto com a barriga, pois o show não pode parar. O Festival, porém, não ficaria completo sem a presença da Rede Globo, essa campeã de audiência e hipocrisia. Fátima e Bonner só faltam chorar, consternados com a “onda de violência” que nos submerge, e clamam pela redução da maioridade penal e mais educação para a plebe. Muito instrutiva a Vênus platinada! Preocupa-se tanto com as massas, que toda noite ela presenteia o público com o terrível BBB, a generosa porção de estupidez, alienação e consumismo que nos cabe neste latifúndio de desinformação que a ditadura legou ao clã Marinho. John Lennon, de fato, tinha razão: quanto mais reais nos tornamos, mais irreais ficam as coisas... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
3
De 22 a 28 de março de 2007
NACIONAL QUESTÃO AGRÁRIA
Murphy
A ofensiva da bancada ruralista Deputados ligados aos latifundiários tentam aprovar medidas para impossibilitar o governo federal de atualizar os índices de produtividade da terra, defasados há 32 anos Mayrá Lima de Brasília (DF) A nova legislatura federal iniciou há mais de um mês e, como era de se esperar, a bancada ruralista não perdeu tempo em apresentar sua pauta. Com o objetivo de ganhar força no Congresso, os parlamentares que defendem a União Democrática Ruralista (UDR) selecionaram pelo menos 35 projetos prioritários. A tentativa de impedir a atualização dos índices de produtividade agropecuários é um dos principais objetivos dos representantes do latifúndio em Brasília. A medida é considerada como um ato “terrorista” e, para contê-la, fazem chantagem com o governo federal e ameaçam boicotar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com os votos de seus 200 deputados. No Senado, por exemplo, a bancada pretende fazer uma emenda ao relatório do senador Osmar Dias (PDT-PR) já apresentado à Comissão
Compromisso esquecido Em abril de 2005, após uma série de atividades ocorridas no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e no Incra, elaborou-se uma proposta inicial que foi apresentada para o Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MAPA). Quase um ano depois, os dois ministérios chegaram a uma proposta técnica conjunta, apresentada em fevereiro de 2006 por meio de uma portaria interministerial. A portaria ajusta os índices de produtividade, ou rendimento, para os 38 produtos vegetais que constam na Instrução Normativa de n° 11, de 2003, do Incra, além de contemplar a pecuária. “Esses valores não foram desejados. Refletem o que foi o desempenho da agricultura brasileira nesses últimos anos. Para cada Estado, ou região, esses novos índices correspondem ao que foi o comportamento médio daquele produto nesse período naquela região”, explica Caio França, técnico do MDA. A metodologia utilizada no projeto é baseada em dados de estatísticas oficias. Para os produtos vegetais, foram utilizadas as pesquisas agrícolas municipais, dentro de uma série histórica de cinco anos (2000 a 2004). Já para a pecuária, a produtividade é avaliada por meio do índice de lotação, ou seja, o número de cabeças por hectare. Nesse caso, somente o censo agropecuário permite os cálculos do índice de lotação.
de Agricultura da Casa para substituir os graus de uso da terra por laudos técnicos da Embrapa. A atualização dos índices é um compromisso do governo federal, expresso no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Desde 1975, os números não são revisados. Em fevereiro de 2006, um ato administrativo foi concluído, após estudos de órgãos do governo e da Unicamp, para efetuar a atualização, mas não saiu do papel porque os ministros do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) não sancionaram a medida.
LUCRATIVIDADE MAIOR De acordo com Caio França, integrante da equipe técnica da elaboração da proposta de atualização pelo MDA, não há mais nada que impeça a assinatura dos dois ministros. “Quando concluímos a proposta, a agricultura estava em momento de crise, com dificuldades nos preços.
“As pesquisa anuais do IBGE só trazem uma informação que é a evolução do número de cabeças. Então, para a proposta de atualização, coerente com o critério de estatísticas oficiais, nós tivemos que trabalhar com o Censo Agropecuário de 1995/96. Passamos de cinco zonas de pecuária para oito. Cada zona pecuária é composta por microrregiões geográficas do Brasil”, complementa França. Ainda de acordo com o técnico, a atualização dos índices é indispensável, diante da necessidade de se expressar o desenvolvimento científico e tecnológico da atividade agropecuária no país. O professor Pedro Ramos, da Unicamp, afirma que a postergação da atualização se configura num desrespeito constitucional. “Para mim, essa demora se deve à pressão de políticos interessados no atraso do campo brasileiro. Eles possuem uma equivocada compreensão do direito de propriedade e desrespeitam a questão da função social da terra”. De acordo com Marina dos Santos, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a decisão já passou do tempo de ser promulgada. “Mesmo que (o governo) tome a medida de atualizar, não vamos ficar com um índice defasado em dez anos. Se tecnicamente o governo tem todos os elementos para tomar essa decisão, imagino que a questão agora é de caráter político. Em vez de cumprir o que promete, o governo está optando em ficar de bem com os ruralistas”, reclama. (ML)
Se os índices forem aprovados, 100 mil propriedades seriam desapropriadas para fins de reforma agrária
Agora, vive um bom momento e aquele argumento apresentado no ano passado, das dificuldades do setor, não pode ser mais utilizado diante dos números do agronegócio apresentados”, afirma Caio. Os agricultores estão sendo beneficiados pela elevação das cotações internacionais, o que acaba refletindo nos preços aqui no país. No mês passado, os preços estavam, em média, 20% maiores em relação aos de fevereiro de 2006, segundo o índice da MS Consult. Entre os produtos que tiveram maiores altas estão frango (47%), milho (37%) e trigo (30%).
“Eu acho uma contradição a bancada ruralista se opor à atualização, porque é uma obediência legal e ninguém vai desapropriar com base no índice. A desapropriação só é feita depois de uma vistoria”, critica o professor da Unicamp Pedro Ramos, que participou de três dos quatro estudos utilizados no projeto do MDA/MAPA.
PROJETOS CONTRÁRIOS Bastou a possibilidade da atualização dos índices de produtividade agropecuários para chover no Congresso propostas contrárias ao projeto. Segundo relatório da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), se os
Campo polarizado
índices forem aprovados, 100 mil propriedades seriam desapropriadas para fins de reforma agrária. Esse dado mobilizou os pedidos que vão desde a revogação do ato administrativo – que ainda não foi assinado – até um período de adequação dos produtores rurais ao novo índice. Há o PL 202/05, da senadora Lúcia Vânia (PSDBGO) que estabelece a mudança de critérios de cálculo dos índices de produtividade. Já o deputado federal Elieseu Padilha (PSDB-RS) propõe uma comissão tripartite entre entidades para a modificação dos índices. Há ainda o PL 5.422/05 do deputado federal Lael Varela (PFL-MG) e
já aprovado pela Comissão de Agricultura e Abastecimento da Câmara que aprova um prazo de 15 anos para a atualização dos índices. Por outro lado, o deputado Adão Pretto (PT/RS) apresentou o PL 5.946/05, desarquivado, que estabelece um período menor para atualização dos índices: não superior a 5 anos. “Os ruralistas dizem que a agricultura se modernizou, que agora tem tecnologia. Nós estamos com índices do tempo dos militares. Isso é vergonhoso. O Lula está com o projeto pronto”, diz o petista (Leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
Os argumentos dos trabalhadores e dos ruralistas sobre a atualização dos índices
RURALISTAS
TRABALHADORES
As Pesquisas Agropecuárias Municipais (PAMs) do IBGE não têm caráter de censo
Toda previsão de safra brasileira, todas as estatísticas oficiais utilizada pelo Ministério da Agricultura (Mapa) e pelos sistemas financeiros nacionais se baseiam nas estatísticas do IBGE
O índice considera só o aspecto físico da terra
As Ciências Agrárias ainda não estabeleceram nenhum outro critério de análise; mesmo que existisse, com certeza, os índices seriam mais exigentes
100 mil imóveis seriam desapropriados
Os 100 mil é o universo de grandes propriedades que podem ser vistoriadas pelo Incra
A Unicamp não é uma instituição competente, mas sim a Embrapa
A Embrapa acompanhou as reuniões de estudos da Unicamp
A atualização prejudica o setor produtivo do campo
Muito ao contrário. As propriedades irregulares passarão de uma situação de improdutividade para serem produtivas, alavancando ainda mais o campo brasileiro
O Incra não é um órgão competente para afixar os índices.
O artigo 6, da Lei de nº 8.629/93, dá ao Executivo o poder de afixar os índices; este delegou ao Incra a responsabilidade; a Justiça brasileira não mais questiona isso
A crítica conveniente aos estudos técnicos Desde que a proposta interministerial dos índices de produtividade agropecuários foi apresentada, a bancada ruralista promove uma verdadeira choradeira em prol da revogação da proposta, pois teme a perda de dos latifúndios de terra. Ainda na primeira versão do projeto apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), eles se apóiam em relatórios e análises feitas pela Confederação Nacional de Agricultura (CNA). De acordo com a entidade, os números do IBGE – as Pesquisas Agropecuárias Municipais (PAMs) –, utilizados pelo MDA, não conferem confiabilidade aos índices propostos. Além disso, os ruralistas pedem a não consideração das pesquisas da Unicamp e argumentam que a Em-
brapa seria o órgão oficial mais adequado para opinar sobre a questão. Para a Confederação, “o produtor é quem deve decidir sobre o quê, quando e quanto plantar diante dos fatores de produção (trabalho, tecnologia, capital e terra)”, mesmo que isso contrarie o conceito da função social da terra. Para o professor do Instituto de Economia da Unicamp, Pedro Ramos, a importância da atualização é inegável. Significa a obediência ao preceito constitucional da reforma agrária. “Essa atualização, aplicada aos dados cadastrais, indicará um número de propriedades que não atingem os parâmetros mínimos de eficiência e produtividade. A medida indica o número de latifúndios que possivelmente não atingem os ín-
dices mínimos do Grau de Utilização da Terra (GUT) e o do Grau de Eficiência da Exploração (GEE). Os números não dizem quem vai ser desapropriado, porque esse processo depende de uma vistoria”, explica. Ramos participou de três dos quatro estudos promovidos pela Unicamp que são utilizados no projeto do MDA/MAPA. O professor diz lamentar a posição da CNA de não considerar as pesquisas da universidade paulista. “A CNA está desqualificando uma das mais importantes universidades brasileiras e CNA manifesta uma ignorância, pois a Unicamp faz um estudo que foi discutido com técnicos da Embrapa. Além disso, a confederação não apresenta uma proposta factível”, declara.
Ramos explica que o trabalho foi feito em cima do censo agropecuário de 95/96, ou seja, em cima de dados relatados pelos próprios empresários do campo. “Se esses dados não são confiáveis, então a atitude de quem os declara também não é confiável”, opina o pesquisador. Outra reclamação dos ruralistas é a de que as Pesquisas Agropecuárias Municipais (PAMs) são uma informação frágil, França diz encontrar uma grande contradição. “Toda previsão de safra brasileira, todas as estatísticas oficiais utilizada pelo Mapa e pelos sistemas financeiros nacionais baseiam-se nas estatísticas do IBGE, as PAMs. É uma tentativa de desqualificar a proposta através de argumentos inconsistentes”. (ML)
4
De 22 a 28 de março de 2007
NACIONAL EDUCAÇÃO
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Revisão histórica Adversário do atual presidente da República na eleição de 1989, o senador Collor de Mello, de Alagoas, agora é filiado ao PTB e faz parte da base parlamentar governista. Em 1992, foi deposto da Presidência por ter montado um esquema pessoal de corrupção. Agora, de volta ao cenário político, afirma que o impeachment não passou de uma farsa. Só falta virar herói nacional.
Lucros sobem com precarização Empresários miram na inadimplência, motivo de ataque e humilhações aos estudantes Arquivo Brasil de Fato
Elites resistentes Depois que José Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Collor de Mello e Paulo Maluf se recuperaram da má fama e foram eleitos ou reeleitos para o Congresso Nacional, junto com outros notórios bandidos e picaretas, fica cada vez mais evidente que o Brasil só vai mudar de verdade quando o jogo político deixar de ser uma grande confraternização de criminosos “perdoados” pelo corporativismo. Proteção federal Convidado e descartado para o Ministério da Agricultura, o deputado federal Odílio Balbinotti, do PMDBPR, têm no currículo dois projetos de lei arquivados e 16 discursos em 12 anos de mandato. Tudo indica que só é deputado para utilizar a imunidade parlamentar e o foro especial nos vários processos em que é réu. O mandato parlamentar funciona como habeas corpus de longo prazo. Confraria nacional Apenas para ficar registrado: o deputado estadual Vaz de Lima, do PSDB, foi eleito presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo com 90 votos de um total de 94 deputados. Confirmou-se assim o acordo entre PT e PSDB que envolveu a eleição de petista para a Câmara Federal em troca de apoio em alguns Estados. Acordos assim nivelam partidos e políticos – e confundem a população. Abandono geral A empresa espanhola Telefonica, concessionária do serviço público de telefonia, bateu todos os recordes de reclamações no Procon, por total desrespeito aos direitos dos cidadãos. A empresa costuma humilhar os usuários através de demorados sistemas automáticos de atendimento – diante da omissão da Anatel e dos governos, que deveriam fiscalizar e exigir melhoria nos serviços prestados. Entrega garantida Uma simples resolução da Superintendência de Seguros Privados, órgão do Ministério da Fazenda, determinando a elevação do capital das empresas de seguros a partir de 2008, provocará maior concentração do setor nas mãos de grandes bancos privados e do capital estrangeiro. É assim que o Brasil, aos poucos, atende o pedido de Bush, do Banco Mundial e da OMC, para liberar os serviços. Ataque covarde Mais uma vez a revista Veja, da Editora Abril, pratica ataques contra membros da Igreja católica. Agora, ofendeu, em nota, a memória do expresidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheider, falecido no dia 5, dizendo que ele “politizou o Evangelho” e “apoiou a criação de bandos armados” que deram origem ao MST. A CNBB repudiou mais essa molecagem da revista Veja. Direita organizada Não só ministros e parlamentares da Colômbia vinham colaborando com grupos paramilitares de direita responsáveis por torturas e milhares de assassinatos nos últimos anos. Sabe-se agora que muitas empresas estadunidenses localizadas naquele país deram contribuições financeiras para tais grupos, inclusive os representantes da Coca-Cola. É assim que funciona a democracia neoliberal. Vitória popular Acaba de ser inaugurado no subúrbio de Buenos Aires, na Argentina, o conjunto habitacional do grupo piquetero Movimento Territorial Liberação, que, em 30 meses, construiu na forma de mutirão 326 apartamentos, quatro praças, uma escola maternal, um espaço de lazer e uma emissora de rádio. O projeto foi iniciado em 2003, depois de muitas manifestações para a obtenção de crédito bancário.
Projeto de lei prevê expulsão do aluno após um atraso de 60 dias no pagamento da mensalidade
Juliano Domingues de São Paulo (SP)
A
discussão sobre a obrigação de os estudantes honrarem seus compromissos esconde a busca de lucros exorbitantes por parte das instituições privadas de ensino, expondo uma visão mercantilista que trata a educação como mercadoria e não como direito. Como a expansão de vagas dentro das universidades públicas é insuficiente, desde a metade da década de 1990, as instituições particulares vêm crescendo para captar esses alunos “excedentes”. Porém, além da baixa qualidade de ensino oferecida, elas cobram um alto preço pelos cursos, motivo que tem elevado as taxas de evasão e inadimplência. Na Câmara dos Deputados tramita, com o apoio do lobby das instituições privadas de ensino, o Projeto de Lei nº 341/03. Apresentado pelo deputado federal Paes Ladin (PTB/ PE), o projeto prevê, dentre outros pontos, a expulsão do aluno após um atraso de 60 dias no pagamento da mensalidade. As instituições privadas alegam que a Lei Federal nº 9.870/99, taxada por elas como a “lei do calote”, é um dos principais fatores que estimulam a inadimplência. O sexto artigo da legislação garante que “são proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares (inclusive o diploma) ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento...”. O aluno também pode pedir transferência para outra faculdade particular ou pública. A única impossibilidade é matricular-se no ano seguinte na mesma instituição onde é devedor. São com essas garantias que o empresariado quer acabar.
AS CAUSAS REAIS O Brasil tem mais de 3,5 milhões de estudantes universitários, sendo que 85% estão matriculados no ensino privado. De acordo com o IBGE, em janeiro de 2007, São Paulo possuía o maior rendimento médio real recebido pela população ocupada (R$ 1.208). Já no Recife, o pior, a média é R$ 768,60. Hoje, 50% dos que freqüentam o ensino superior no Brasil pertencem às classes C e D. Diante de tal quadro, torna-se insustentável para esses jovens gastar de R$ 500 a R$ 1000 com a mensalidade e ainda conciliar outros gastos essenciais. Sendo assim, segundos dados do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), depois de um recuo em 2003 e 2004, a taxa de inadimplência voltou a crescer
15% em 2005, mantendo-se em alto patamar em 2006. O Estado São Paulo lidera o ranking com um índice de 23,2%. Além da inadimplência, dados da consultoria Lobos & Associados mostram que a taxa de evasão no ensino superior em 2005 foi de 22%. “Qual é a verdadeira razão para esta evasão? O curso não tem nível ou o aluno que não consegue pagar? E se o aluno não consegue pagar, porque as mensalidades estão tão caras?”, questiona José Salvador Faro, diretor do Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro).
De acordo com Thadeu de Almeida, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), não só não existe transparência financeira, como falta um processo democrático dentro das instituições privadas. “Não há autonomia das universidades em relação às instituições mantenedoras, ou seja, em relação aos seus donos, o que prejudica o investimento em pesquisa, assim como o Estado, ou seja, o Ministério da Educação se omite, o que gera essa política de aumento de mensalidades sem razão”, critica.
CORTINA DE FUMAÇA Ele afirma que é difícil discutir inadimplência porque os percentuais não são claros. “Isso é muito mais um instrumento de barganha. Quando a escola tem lucro, é porque a inadimplência diminui; e quando a escola tem prejuízo, a inadimplência aumentou. Trata-se de um fator político e não econômico usado para legitimar um aumento da mensalidade ou para não dar reajuste para um professor”, afirma. Faro enfatiza que não existe uma contabilidade explícita que comprove os números apresentados pelas instituições particulares. “Isso é um biombo que impede a transparência financeira e ficamos de mão atadas porque a lei permite a autonomia econômica dessas faculdades.”
Thadeu de Almeida afirma que as instituições têm feito reajustes até cinco pontos acima da inflação. Dados do IBGE apontam que os preços da educação aumentaram 10,25%, em 2003, e 10,44%, em 2004, ao passo que a inflação foi de 9,3% e 7,6%, respectivamente. “Eles mesmos criaram um monstro chamado inadimplência que camufla todo esse processo. Essas faculdades absorvem um perfil social que não tem condição de pagar, daí que, dos que entram para fazer um curso superior, apenas 30% saem”, afirma.
PRECARIZAÇÃO DIREITO OU MERCADORIA Cecília das Dores de Souza Silva, formanda do curso de Serviço Social da Universidade Católica de Salvador, conta que cerca de mil alunos estão entrando com liminar contra a instituição na qual estuda. São pessoas carentes, que moram em periferia e ganham de um a dois salários mínimos, e não têm condições de pagar a mensalidade. Porém, a universidade diz que tem um rombo de R$ 36 milhões devido à inadimplência. “Isso é mentira pois os alunos dos cursos mais caros, como direito, pagam os custos dos alunos dos cursos mais baratos. Tanto que a universidade hoje enfrenta um processo por corrupção ativa”, afirma.
No entanto, a própria infra-estrutura das universidades privadas é adequada para isso. Elas conseguem manter o aluno nos quatro primeiros semestres e, a partir daí, já prevêem a evasão. “Do contrário, elas não se agüentariam pois não estão preparadas para oferecer um ensino marcado pela qualidade do início ao fim”, critica Thadeu. O professor Roberto Leher, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enfatiza que “essas faculdades não têm como objetivo formar alguém, de modo que para elas não há problema nenhum um curso de direito começar com dez turmas e terminar com três. Elas inflacionam o número inicial de vagas de modo que até pessoas analfabetas podem cursar”.
Em 2005, estadunidenses compraram faculdade por US$ 69 milhões A faculdade Anhembi Morumbi, de São Paulo, foi comprada, em dezembro de 2005, pelo grupo estadunidense Laureate Education por 69 milhões de dólares, sendo 54 milhões à vista e o restante financiado. “Se a situação dessas instituições é tão ruim assim, porque o interesse de grupos estrangeiros em adquiri-las? Verdade é que a educação privada mexe com 3% do PIB do país. Isso afeta não só a produção tecnológica e de pesquisa, como
Os usos e abusos As instituições particulares de ensino têm sido alvo de inúmeras reclamações por parte de órgãos que defedem o aluno. A ouvidoria da União Nacional dos Estudantes (UNE) é um dos principais canais para queixas de estudantes em relação ao serviço prestados pelas universidades. A cobrança de taxas ou multas indevidas e a má qualidade de ensino e atendimento destacam-se entre as queixas recebidas pelo órgão. No registro do ouvidoria,
a identidade nacional. Qual o prisma ideológico dessas corporações?”, indaga Thadeu de Almeida, da Contee. O presidente da União Nacional dos Estudantes, Gustavo Petta, afirma que o que mais lhe preocupa é a desnacionalização da educação. “Muitas corporações de fora investem em educação porque isso virou um grande e lucrativo mercado”, alerta. Para Petta, as corporações olham o ensino apenas como um espaço para aumentar seus lucros. (JD)
constam relatos como uma queixa contra a faculdade Uninove, onde é preciso enfrentar oito horas de espera para ser atendido na secretaria. Destacam-se também as dificuldades para o processo de transferência. “A pessoa vai para outra faculdade e tem que refazer matérias, então, muitas vezes, um aluno para o qual faltavam dois anos para se formar, transfere seu curso para outra instituição e acaba se formando em três”, declara a advogada da ouvidoria que não quis se indentificar. A técnica do Procon, Márcia Cristina Oliveira, cita que é comum reclamações sobre a multa por atraso. De acordo com ela, a
taxação nunca pode ser acima dos 2%; entretanto, muitas universidades cobram 10%, o que é um abuso do código de defesa do consumidor. Márcia afirma que outra prática comum é estabelecer um bônus para quem paga a mensalidade em dia, o que na verdade é uma multa disfarçada. Constam, no Procon, queixas sobre cobranças indevidas não explicitamente estipuladas em contrato. Taxa-se a emissão de declarações, fotocópias e certificados, o que é indevido. A lei estadual 12.248 de fevereiro de 2006 estabelece a cobrança apenas do diploma, para o qual o valor máximo cobrado é R$ 72,00. (JD)
5
De 22 a 28 de março de 2007
NACIONAL COMUNICAÇÃO
Onde está o sistema público? Apesar de nome, projeto de Hélio Costa privilegia sistema estatal, diz o pesquisador Laurindo Leal Filho James Bailey
James Bailey
Dafne Melo da Redação
N
Brasil de Fato – A Constituição prevê a existência e a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação. Há uma definição legal de cada um? Laurindo Leal Filho – Não, mas existe uma prática consagrada em vários países, em que fica muito claro o que é cada um desses sistemas. Aqui no Brasil, talvez como uma forma de protelar a implementação do sistema público, há quem diga que não há clareza. Mas não é difícil definir cada um deles. Os artigos referentes à comunicação da Constituição praticamente não tiveram regulamentação. É fundamental que se defina isso em lei, mas pelo o que eu conheço dos projetos que tramitam no Congresso na área de comunicação, não me lembro de ter visto nenhum projeto nesse sentido.
Para evitar que surja uma rede pública de qualidade, capaz de competir em audiência com as emissoras comerciais, o Hélio Costa se antecipou do que poderia surgir desse debate com a sociedade no Fórum das TVs públicas BF – De acordo com o que se observa na maior parte dos países, como se definiria cada um desses sistemas? Lalo – Quando se trata de radiodifusão, todos são concessões públicas, apenas institucionalmente operados de forma diferente. O privado é aquele em que as ondas são outorgadas a grupos particulares que prestam esse serviço. É o modelo hegemônico no Brasil, o modelo comercial. São empresas que se candidatam e recebem do Estado o direito de operar essa concessão por um período de 15 anos, no caso das TVs, e de 10 anos, no caso das rádios. São períodos que no Brasil, infelizmente, são renovados sem muita discussão. O modelo estatal é aquele em que o Estado não abre mão da outorga, mas opera diretamente
chiefmoamba
Tim Loudon/Creative Common
o início de março, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, trouxe à tona a criação de uma Rede Nacional de Televisão Pública. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já teria dado carta branca ao projeto que, estimase, deve custar R$ 250 milhões ao governo em quatro anos. Agora, só faltaria acertar algumas questões com outros ministérios, para a elaboração de um anteprojeto. Além de emissoras estatais de rádio e TV, o ministro afirma, sem entrar em maiores detalhes, que haverá canais destinados à cultura, educação e às comunidades. A proposta de Costa – que permanecerá com a pasta – foi feita ainda em janeiro. Já naquela época, militantes pela democratização da comunicação alertavam para a “confusão” feita pelo Ministério das Comunicações (Minicom). Apesar do nome, a proposta não contempla a criação de um sistema verdadeiramente público. Mas, afinal, o que define um sistema como público, privado ou estatal? Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor da USP, Laurindo Leal Filho, o Lalo, explica os conceitos, analisa experiências em outros países e comenta o projeto do Minicom.
A britânica BBC é um dos exemplos de empresa de comunicação pública; sua dotação orçamentária vem da própria população, por meio de um taxa cobrada anualmente
o canal de rádio ou TV. No caso brasileiro, no nível federal, temos a Radiobras, empresa estatal que possui emissoras de rádio e TV. Temos a TV Educativa (TVE), do Rio de Janeiro, que não é vinculada diretamente à Radiobrás, mas à Presidência da República, mais precisamente, à Secretaria de Comunicação. Esses são dois exemplos no nível federal. Depois, nos Estados, você tem uma série de emissoras dirigidas diretamente pelo governo de cada Estado, por secretarias de Educação, Comunicação, Cultura e, às vezes, até pelo próprio gabinete do governador. BF – E a pública? Lalo – É aquela gerida por organizações e conselhos formados pela própria sociedade e não podem ter ingerência da publicidade e nem do Estado. Esse modelo deve ter uma autonomia em relação ao Estado e à iniciativa privada. Na Europa, talvez o modelo mais bem acabado é a (inglesa) BBC. Ela é mantida pela própria população. Todos que possuem uma TV em casa pagam uma cota anual, obrigatória, e é esse dinheiro que a mantém. Seu controle é exercido por um conselho curador eleito e indicado por organizações sociais e, depois, aprovado pelo Parlamento. Em outros países da Europa, você tem emissoras públicas de TV funcionando mais ou menos da mesma forma, como na Alemanha, França e Portugal. Nos EUA, há a PBS e, no Japão, a NHK. BF – Essa falta de regulamentação para definir o que é público, privado e estatal gera algumas confusões. O atual projeto do Mincom, apesar do Hélio Costa usar a palavra “público”, é uma emissora estatal, certo? Lalo – Ele chama de Rede Pública do Executivo, o que é uma contradição em termos. É uma rede estatal. É uma redundância do ponto de vista prático, já que o governo já tem sua TV estatal que é a NBR, transmitida pela TV a cabo, cujo slogan é “a emissora do governo federal”. Ou acaba com a NBR e cria outra, ou investe na que já existe para que ela se torne mais abrangente. É uma ação um pouco precipitada do Minicom. BF – Em suas declarações na imprensa, Hélio Costa sempre diz que também estão previstos canais universitários e comunitários... Lalo – Isso é uma coisa falada muito por cima um pouco para
adoçar a boca daqueles que querem esses canais. O que há de concreto nesse sentido é o Fórum de TVs Públicas, pelo Ministério da Cultura, que começou em novembro e termina agora em abril. Agora, pelo Minicom não há nada de concreto em relação à criação de emissoras comunitárias.
Acho perfeitamente possível ter uma emissora de Estado sem fazer proselitismo político. Há uma série de informações que não cabem numa emissora pública ou privada, por não serem fatos jornalísticos, mas interessam a setores específicos da sociedade BF – O que estaria por trás desse investimento no setor estatal de comunicação? Lalo – Há uma série de demandas em relação à radiodifusão, demandas que são legais. A rádio pública, por exemplo, é um dever constitucional. A minha especulação é que, para evitar que surja uma rede pública de qualidade, capaz de competir em audiência com as emissoras comerciais, o Hélio Costa se antecipou do que poderia surgir desse debate com a sociedade (no Fórum das TVs públicas) e criou essa rede que será grande, mas de pouca audiência. |Tanto é que a Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (Abert) – que representa as emissoras comerciais e que, geralmente, é sempre contra a qualquer tipo de concorrência – endossou e aprovou a proposta do Hélio Costa. Isso é estranho ou mostra que é uma rede que responde à demanda sem abalar o poder que essas grandes redes têm e que uma rede pública, nos moldes da BBC, poderia abalar. BF – Em relação às estatais, elas acabam ficando à mercê dos governos. É inegável, por exemplo, que a Radiobrás apresentou uma melhora no governo Lula. Entretanto, nada garante que permanecerá assim num próximo governo. Como resolver isso? Lalo – No caso brasileiro, a Radiobrás, por exemplo, surgiu
como uma agência de notícias do governo e depois foi criando outros mecanismos de divulgação. Acho perfeitamente possível ter uma emissora de Estado sem fazer proselitismo político. Há uma série de informações que não cabem numa emissora pública ou privada, por não serem fatos jornalísticos, mas interessam a setores específicos da sociedade. Então, acho que é um dos papéis da emissora. O Eugênio Bucci [presidente da Radiobras] está tentando deixar como herança algumas regras de conduta. Ele criou um código de conduta interessante que avança nessa direção. Mas não está juridicamente formalizado. O próximo governo pode não aceitar. O que se precisaria era que esse trabalho realizado nessa gestão da Radiobras se tornasse institucionalizado, para garantir uma informação de qualidade e não partidária. BF – Por falta do sistema público, as estatais acabam tendo importância maior no Brasil? Lalo – Não se pode generalizar ao falar das estatais porque elas são muito diferenciadas. Elas têm níveis diferentes de relação com os governos, umas mais e outras menos independentes, algumas sofrem de uma dotação orçamentária muito restrita. Agora, quando elas têm verba para arregimentar profissionais de qualidade, conseguem fazer programas de melhor qualidade do que as comerciais. Um bom exemplo disso hoje são as TVs legislativas federais, a TV Senado e a TV Câmara. Elas conseguem fazer programas de música, entrevistas, debates e documentários com qualidade. A TV Cultura, quando teve uma independência política maior e tinha recursos maiores, conseguiu fazer programas infantis que até hoje são reprisados e que inclusive ganhavam de emissoras comerciais na faixa infantil. BF – No Brasil, há emissoras públicas? Lalo – Aqui, talvez a que mais se aproxime da BBC seja a Fundação Padre Anchieta que mantém a Rádio e TV Cultura, no Estado de São Paulo. Ela foi criada como uma fundação de direito privado. Essa implicação legal faz com que o Estado não tenha poder para intervir sobre ela. Institucionalmente, não tem nenhum vínculo com o Estado. O conselho curador, como na BBC, é o órgão máximo e é quem elege a diretoria e dá – ou deveria dar – a linha editorial. Há também a Fundação
Piratini, mantenedora das emissoras de TV e rádio educativas do Rio Grande do Sul e a TV Ponta Grossa, uma emissora de direito privado ligada ao município. Agora, na prática, essa independência acaba não acontecendo porque o poder público é geralmente o principal – e às vezes único – financiador da emissora, e impõe certas condições: manobra as eleições dos dirigentes, consegue estabelecer maiorias nos conselhos, enfim, interfere e faz com que essas emissoras deixem de ser públicas e se tornem quase estatais, ou totalmente estatais. No caso da TV do RS, por exemplo, o mandato dos dirigentes coincide com o mandato do governador. Então, quando muda o governo, muda a direção. Na Padre Anchieta a coisa é um pouco mais sutil, o mandato dos dirigentes não coincide com o mandato dos governadores, justamente para evitar essa pressão. De qualquer forma, quando muda o governo, os governantes sempre acham maneiras de, através de seus representantes no conselho, fazerem alterações. Os modelos são claros, o problema é que o modelo público no Brasil não deu certo porque os governantes nunca admitiram que essas emissoras, mesmo que financiadas pelo governo, devam ter gestões independentes. BF – É o conselho curador da BBC que escolhe o presidente da empresa? Lalo – Sim, é mais ou menos como na Fundação Padre Anchieta, o conselho indica o presidente. Lá ainda há um mecanismo mais democrático: qualquer um pode se candidatar à presidência. Ele apresenta seu currículo e passa por uma série de exames e provas. É um cargo executivo, tem que ser um bom executivo na área de comunicação, não precisa ter relações políticas. A escolha é feita entre todos candidatos.
Quem é
Laurindo Leal Filho é formado em Ciências Sociais pela USP, mestre em Sociologia pela PUC-SP e doutor e livre-docente em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, com pós-doutorado no Goldsmiths College, da Universidade de Londres. É autor dos livros Atrás das câmeras: relações entre Estado, cultura e televisão, sobre a TV Cultura de São Paulo e A melhor TV do mundo, o modelo britânico de televisão, sobre a BBC de Londres
6
De 22 a 28 de março de 2007
NACIONAL ENTREVISTA
“Tudo é relativo, menos Deus e a fome”
Divulgação
Divulgação
história humana. Porque “terceiro mundo” por definição significa um mundo proibido, marginalizado, explorado, inferior. “Primeiro mundo”? Dom Pedro – A prepotência, o lucro, o egoísmo, o consumismo, o imperialismo. Liberdade? Dom Pedro – A possibilidade de vencer o medo, a possibilidade de ser o que se é, a possibilidade de ajudar todos que vivem sem liberdade.
Em conversa franca, dom Pedro Casaldáliga discorre sobre suas motivações, o que faria se fosse papa e opina sobre figuras e temas atuais Eduardo Lallana e Charo Garcia de la Rosa de São Félix do Araguaia (MT)
M
uitas já foram as entrevistas feitas com dom Pedro Casaldáliga. Umas abordam a sua tomada de postura ante a situação mundial, outras, sua verve ante os problemas e desafios da Igreja. Mas a entrevista a seguir busca uma peculiaridade: alcançar o coração da pessoa, do pastor, do místico, do poeta – duas vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, bispo emérito de São Félix, um dos líderes da teologia da libertação, figura internacional na defesa dos direitos humanos. Qual seria o lema da tua vida? Dom Pedro Casaldáliga – Relativizar o que é relativo e absolutizar o que é absoluto. E para você, o que é absoluto? Dom Pedro – Tenho um poeminha que diz “que tudo é relativo, menos Deus e a fome”. Que passagens do Evangelho são as que mais têm influenciado sua vida, as que mais têm guiado sua ação pastoral? Dom Pedro – “Deus é amor” e “Deus amou o mundo de tal modo que enviou seu Filho não para condenar o mundo, mas para salvá-lo”. Falemos de seus guias, mestres espirituais, aquelas pessoas que iluminaram seu caminho além desta fonte evangélica. Dom Pedro – Evidentemente Jesus de Nazaré, Francisco de Assis, Teresa de Lisieux, Charles de Foucault, companheiros de episcopado, aqui na América Latina. Você é conhecido por sua alma de poeta. Se tivesse que eleger dentro da literatura universal, quais seriam seus poetas preferidos? Dom Pedro – San Juan de la Cruz, Antonio Machado. Se tivesse que eleger algum poema? Dom Pedro – O próprio “Auto-retrato” de Antonio Machado, “A seqüência de Páscoa” e outro poema imortal para mim, o “Canto Espiritual de Joan Maragal”. Somos humanos, somos feitos de virtudes e defeitos. Qual seu maior defeito? Dom Pedro – A impaciência. E a maior virtude? Dom Pedro – A esperança. Qual é o grande pecado do mundo de hoje? Dom Pedro – O capitalismo neoliberal. E um dos pecados importantes da Igreja santa e pecadora? Dom Pedro – A falta de capacidade para unir-se às igrejas, absolutizando o que não é absoluto, e não respondendo ao testamento de Jesus, “que todos sejam um”. Entrando mais em aspectos pessoais de sua vida, qual é o momento mais triste de sua vida? Dom Pedro – Não saberia dizer em virtude de relativizar o que é relativo, o momento da morte de meu pai, de minha mãe, a morte
de líderes, militantes, agentes de pastoral. São momentos tristes, mas como a esperança continua não chega a ser um drama, uma tragédia. Não creio que possa dizer que tenho vivido tristezas maiores. Relativizar porque a esperança continua dando garantia posterior a todos os fracassos, a todas as decepções. Eu digo em algum lugar de um diário meu: “Deus é amor, nós somos amor, traição e medo, mas também esperança”. E essa esperança resolve todas as decepções e todas as tristezas, todos os fracassos. Por contraste, quais os momentos mais felizes de sua vida? Dom Pedro – Cada vez que vejo que uma comunidade, um líder que assume sua missão, assume suas causas, cada vez que vejo que há comunidades, pessoas, capazes de solidaridade, arriscando inclusive a própria vida. O testemunho de nossos mártires. Sabemos que foi perseguido, ameaçado de morte em várias ocasiões. Quando realmente temeu por sua vida? Dom Pedro – Durante a ditadura militar, houve bastantes momentos. Na ocasião da morte do padre Juan Bosco Penido Burnier: a bala era para mim. Eu tenho o poder de esquecer o mal e quando olho para trás nunca posso dizer que estou olhando para trás com raiva. Não. Esse absoluto que é Deus resolve todos esses problemas e todas as tristezas e decepções. Falando de decepções, qual foi a maior decepção de sua vida? Dom Pedro – Maior nenhuma, porque seria uma decepção maior chegar a um túnel sem saída, mas a saída está sempre adiante. Não posso falar de decepções maiores: políticos amigos que falharam, projetos militantes ou pastorais que falharam, mas eu os relativizo. Quais são os seus três maiores desejos? Dom Pedro – Que se acabe a fome no mundo, que se acabe a fabricação de armas, a carreira armamentista, que se acabe a guerra sobretudo essa guerra religiosa ou respaldada por religiões. E as três maiores preocupações? Dom Pedro – Que as igrejas não se unam, que não sejamos capazes de administrar este mundo que daria para todos e tenhamos que seguir vivendo em meio a uma humanidade em que dois terços não têm o direito de viver. E no cotidiano, os erros, sobretudo os nossos e dos agentes de pastoral. Olhando para trás, qual seu maior erro? Dom Pedro – Não ter sido compreensivo o bastante em muitas ocasiões. Do que se arrepende? Dom Pedro – De muitas coisas. De tudo um pouco. Podia ter feito melhor, com mais esperança, com mais simplicidade, com maior generosidade. Eu recordo sempre a frase daquele santo que dizia que quando se apresentasse diante de Deus lhe pediria: “esqueça-se das
Movimento dos Sem Terra? Dom Pedro – Hoje em dia, o maior movimento popular social da América Latina. Latifúndio? Dom Pedro – Uma ineqüidade, o abuso da terra de todos, o egoísmo estrutural no campo.
Quem é
Missionário da Ordem dos Claretianos, o catalão dom Pedro Casaldáliga, 79 anos, esteve à frente da prelazia de São Félix do Araguaia (MT) por mais de 30 anos. Atualmente, é seu bispo emérito. Foi o primeiro a denunciar a existência de trabalho escravo no Brasil, em 1971. No mesmo ano divulgou a primeira carta pastoral, “Uma Igreja da Amazônia”, em conflito com o latifúndio e a marginalização social. A partir dessas denúncias, a prelazia tornou-se referência para os movimentos de oposição à ditadura, mas também foi alvo de ataques pelo fato de ser encarada como foco da guerrilha. Dom Casaldáliga foi preso e torturado pelos militares.
minhas boas obras, vamos falar somente dos meus fracassos, dos meus pecados, que isso sabes resolver muito bem”. Uma de suas características mais destacadas tem sido a relação com os povos indígenas. O que tem aprendido nesta experiência com eles? Dom Pedro – A convivência com a natureza, um certo sentido de comunidade, relativizar também muitas coisas que nossa civilização considera como absolutas.
do poder episcopal. Qual é a motivação última e profunda, de que nunca tenha usado a mitra e o cajado? Qual é a raiz dessas suas decisões? Dom Pedro – Com todo respeito aos irmãos que os usam, creio que não são símbolos nem gestos evangélicos. Estão vinculados a um status e seria o mais lógico prescindir de escudo, prescindir de mitra, de cajado, e celebrar as eucaristias com simplicidade. Não creio que essas simbologias façam nenhum bem à Igreja.
Globalização? Dom Pedro – A transformação da humanidade em mercado. Solidaridade? Dom Pedro – Como disse a poeta nicaragüense: “a ternura dos povos“. A caridade estruturada de povo para povo. Guerra? Dom Pedro – A negação da vida. Bem. Agora, também com algumas palavras, sugiro que evoque seu pensamento, seu sentimento sobre alguns personagens. Lula? Dom Pedro – Uma experiência, operária, política, importante para a América Latina. Uma certa decepção, quiçá porque exigimos o que no momento não se pode exigir, mas em todo caso, na história do Brasil, na história da América Latina, haverá sido um passo político importante.
Poderia recordar quando, como e se houve algum momento especial no qual fez essa opção pelos pobres que tem guiado e marcado sua existência? Dom Pedro – Em minha infância ouvi muitas vezes de meu pai e minha mãe: “Nós somos pobres”. Já firmado na infância, pouco depois com contatos, com análises, convivências religiosas passei a sentir que a opção pelos pobres tem que ser a opção fundamental da Igreja. Uma opção que defina a Igreja recordando aquela frase de Van-der Meerch: “A verdade, Pilatos, é estar do lado dos pobres“. Para a Igreja também.
Para você, qual é a virtude humana que mais valoriza? Dom Pedro – A coerência.
Bush? Dom Pedro – Uma epidemia mundial.
E a virtude evangélica? Dom Pedro – A esperança.
Fidel Castro? Dom Pedro – Um grande estadista, um pai da pátria latino-americana, mas ao mesmo tempo, autoritário, imperialista, que talvez não tenha sabido abrir os espaços que deveria ter aberto para democratizar mais as conquistas de saúde, de educação que Cuba fez, que seria um testemunho mais acessível aos outros povos.
Quais são, para você, os três grandes desafios para a Igreja do terceiro milênio? Dom Pedro – O ecumenismo e o macroecumenismo. A pobreza estrutural de suas instituições. A profecia contra sistemas, estruturas que matam, que excluem, que proíbem. Então seria, a união das próprias igrejas, a profecia diária, uma profecia que denuncia, anuncia e consola.
Agora vou lhe dizer algumas palavras soltas e lhe pediria que respondesse com o fogo de sua mente e de seu coração. Algunas relativas à geografia.
Se fosse nomeado papa, quais seriam as três primeiras decisiões mais importantes que tomaria? Dom Pedro – Estamos brincando, não? A primeira seria suprimir o Estado Pontifício e que o papa deixasse de ser chefe de Estado. A segunda, suspender a Cúria Romana e, a terceira, convocar um encontro chamado Concílio verdadeiramente ecumênico, para refazer totalmente a Cúria Romana, para redefinir o ministério de Pedro e para propor com seriedade a integração dos diferentes povos e a relativização do que é relativo, que pode ser o próprio celibato sacerdotal. Chama atenção em sua vida o fato de que sendo bispo não tenha empregado os símbolos
Como gostaria de ser recordado? Dom Pedro – Como alguém que crê que Deus salva todos e tudo. Para você, ser um homem ou uma mulher espiritual é...? Dom Pedro – Viver em profundidade, assumir opções dignas de uma vida humana. Ser coerente, abrir-se às necessidades do próximo. Celebrar a vida.
África? Dom Pedro – A maior dívida da humanidade. América Latina? Dom Pedro – Minha segunda pátria. Cataluña? Dom Pedro – A família, a língua, a paisagem. Brasil? Dom Pedro – Uma casa de última hora e definitiva. Araguaia? Dom Pedro – Nosso rio. Soria? Dom Pedro – Antonio Machado, “Tierra Sin Males“, solidariedade. Injustiça? Dom Pedro – A negação do amor. O chamado “terceiro mundo”? Dom Pedro – Um escândalo na
Evo Morales? Dom Pedro – Uma vitória dos povos indígenas depois de 500 anos de proibição, de exclusão. E para terminar, o que lhe dizem estas palavras? Vida Eterna? Dom Pedro – A convivência plena com Deus vivo, e com todos os filhos e filhas de Deus. Vida Plena? Dom Pedro – A partir da palavra de Jesus: “que todos tenham vida e a tenham em abundância”, vida plena, aqui do lado de cá da morte, sempre é uma vida relativa, mas em esperança: vamos à vida eterna plena. E a última pergunta; o que tem dado sentido a sua vida? Dom Pedro – A Boa Nova do Evangelho. Eduardo Lallana e Charo Garcia de la Rosa, fundadores da ONG “Tierra Sin Males”, entrevistaram Dom Pedro, em janeiro deste ano, durante visita a São Félix do Araguaia, local onde estão desenvolvendo um projeto, financiado pela Província de Soria (Espanha), para reduzir a desnutrição e a mortalidade infantil
7
De 22 a 28 de março de 2007
INTERNACIONAL EUROPA Arquivo Brasil de Fato
Imigrantes africanos após conseguirem aportar em terras espanholas; no mundo, aproximadamente 180 milhões de pessoas – a população do Brasil – vivem fora de seu país de origem
Imigrantes sustentam a economia européia Fórum destaca que trabalhadores de países pobres são essenciais para compensar o envelhecimento populacional Renato Mendes de Lisboa (Portugal)
N
os dias de hoje, aproximadamente, 3% da população mundial vive fora de seu país de origem. É na Europa que a imigração repercute de forma estridente e impõem sua dicotomia em assuntos sociais, políticos e econômicos. Atualmente, a União Européia (UE) vive uma realidade de se constituir ela própria em uma fortaleza. Debates e escritos infindáveis sobre a discriminação racial, imigração clandestina e leis cada vez mais restritivas fazem desse tema global dos mais importantes do século 21. Para discutir essa questão, foi realizado, nos dias 6 e 7, em Lisboa (Portugal), o Fórum Gulbekian Imigração, sob o lema “Imigração: Oportunidade ou Ameaça?”. A conferência internacional é o culminar de um programa integrado de intervenções, com início em março de 2006, que, sob diversos ângulos, abordou o tema da imigração e que coincide com as comemorações do cinqüentenário da Gulbekian, a terceira maior fundação filantrópica na Europa. Na abertura do Fórum, o primeiro-ministro português, José Sócrates, fez um discurso oficial. Defendeu o controle rigoroso de fronteiras para que os dispositivos de acolhimento do Estado possam funcionar com eficácia e afirmou que “é inegável a importância da imigração para a sustentabilidade da economia européia”. A poucos meses de assumir a presidência rotativa da União Européia, Sócrates declarou que não partilha da visão de uma Europa fechada: “Não podemos concordar com a idéia de ver a Europa como uma fortaleza”.
FLUXOS MIGRATÓRIOS O rápido declínio da população economicamente ativa é um problema comum a todos os países da UE. Sendo assim, a imigração passa a ser uma resposta natural para o preenchimento dessa lacuna no mercado de trabalho. Um caso especialmente problemático é o da Finlândia, que possui baixos per-
centuais de imigrantes entre sua população, menos de 2%, e que sofre do maior e mais acelerado envelhecimento populacional. A primeira justificativa para esse caso atípico é o difícil aprendizado do idioma finlandês e não o clima frio, como todos imaginariam. John P. Martin, diretor para o emprego e questões sociais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), afirma que “algumas pessoas dizem que o Canadá é o país com
as piores condições climáticas no mundo e, mesmo assim, ele recebe um grande número de imigrantes, já a Finlândia possui uma das mais difíceis línguas no mundo”. Recentemente, o governo finlandês produziu seu primeiro programa sobre política de imigração, para atrair imigrantes para o seu mercado de trabalho.
POLÍTICA PÚBLICA Na opinião de Jack Hanning, diretor das relações multilaterais
do Conselho Europeu, é necessário ter atenção a três pontos que determinam uma política consistente de controle do fluxo migratório. O primeiro deles é a construção de uma genuína cooperação entre os países de origem e acolhimento, para equilibrar as vantagens que a imigração gera; o segundo ponto é o desenvolvimento de uma abordagem baseada nos direitos humanos sobre a gestão do fluxo imigratório, para salvaguardar os direitos e interesses dos imigran-
A integração como fator de sucesso Projetos para o desenvolvimento de relações comerciais entre países de acolhimento e origem foram soluções encontradas para integrar imigrantes de Gana que vivem na cidade de Módena (Itália). A estratégia utilizada para o desenvolvimento das relações de comércio foi apoiar os produtores locais de abacaxi com a criação de programas de financiamento (promoção de microcrédito), concomitantemente à importação desses mesmos produtos vindos de Gana, como informou Mônica Goracci, chefe da Organização Internacional para Migração (OIM). O projeto GhanaCoop conta com a participação
Desigualdade é o principal problema O discurso contundente de Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique e presidente da Fundação que leva seu nome, trouxe questões humanitárias importantes para o debate. “Estima-se que o tráfico humano é um negócio que vitima cerca de 2 milhões de seres humanos, em particular mulheres e crianças, e movimenta 10 bilhões de dólares por ano”, informa. Embora acredite que a imigração possui efeitos negativos, Chissana destaca que ela tem conseqüências positivas assinaláveis, tanto para os países que enviam os imigrantes quanto para os que os recebem. Ele baseia sua afirmação
de três atores principais, a Associação de Imigrantes Ganeses na Itália, a Associação de Cooperativas Italianas, a\ Vila de Gomoa Simbrofo e outras instituições ganesas. A responsável enumera alguns dos benefícios alcançados, como “a criação de um empreendimento transnacional comunitário; a aquisição, transferência e circulação de conhecimento dentro das comunidades ganesas; a participação das bases que constituem as comunidades nos processos de negociação de interesses; a salvaguarda da segurança, salários e dignidade dos trabalhadores; e o investimento em ações de desenvolvimento local”. (RM)
em exemplos como o dos Estados Unidos, dow Canadá e da Europa Ocidental, que foram edificados por imigrantes. “Países como a Irlanda, a Itália, a Grécia e Portugal, entre outros, têm se beneficiado bastante dos investimentos e remessas financeiras das suas diásporas, que muito têm contribuído para o desenvolvimento dos respectivos povos”, acrescenta. Sobre seu país, Moçambique, Chissano destaca que ele também tem tido benefícios financeiros assinaláveis provenientes das remessas dos imigrantes que trabalham na indústria mineira e no campo na África do Sul.
AIDS Chissano toca em uma ferida aberta da África Austral, a Aids. A pandemia está devastando países como África do Sul, Zâmbia e Malawi. Para piorar a situação, o
brain drain tem feito com que médicos e enfermeiros desses países migrem para a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá e para países árabes, atraídos por melhores salário e condições de vida. Ele lembrou do colonialismo exploratório, quando holandeses e ingleses imigraram e se fixaram na África do Sul, criando um país que se pretendia desenvolvido como muitos países da Europa, para justificar o estado de desequilíbrio social observado no país. “Vemos lá grandes cidades, muita tecnologia e muita vida luxuosa. Mas, ao mesmo tempo, temos as horríveis favelas de Soweto, Guguleto e Nyanga”, conclui. Na sua opinião, somente com o desenvolvimento socioeconômico sustentado e eqüitativo do planeta é que soluções equilibradas para a problemática da imigração, e em particular da imigração ilegal, serão encontradas. (RM)
tes; e, por último, imprimir uma gestão holística sobre a imigração, pois é um fenômeno que envolve questões políticas e econômicas dos países envolvidos. Em discurso, Hanning informou que, no sentido de implementar estratégias delineadas em importantes encontros organizados pelo Conselho Europeu em 2005, foram assinados diversos acordos bilaterais para estabelecer, com as regiões vizinhas, vias de diálogo sobre a questão imigratória e a integração cultural, envolvendo regiões da costa sul do Mediterrâneo, Oriente Médio e Ásia Central.
FUGA DE CÉREBROS Atualmente existe uma equação complexa sobre a imigração, que está longe de ser solucionada, que é a cooperação entre países envolvidos, sejam eles de origem, acolhimento ou transitórios. Paul de Guchteneire, chefe do Programa de Migração Internacional e Integração Social da Unesco, acredita que a imigração internacional é caracterizada por um paradoxo. “É por natureza um processo internacional, entretanto, é amplamente baseada e gerida por políticas nacionais e muitas vezes unilaterais”, diz. Outra questão urgente colocada pelo especialista é o fenômeno brain drain (drenagem de cérebros), que pode ser desastroso em países pequenos e com tradição de imigração, como o Gâmbia. Cerca de 80% dos médicos do país africano vivem fora de suas fronteiras. Esse é o efeito negativo e transversal de iniciativas que objetivam a contratação de profissionais especializados de países pobres. No sentido de aprimorar conceitos e ilações sobre os temas derivados da imigração, Paul de Guchteneire comenta: “Ainda em março haverá a promoção de diálogos para o estabelecimento de uma rede de museus de imigração e a Unesco irá abrir e manter universidades com cadeiras sobre Imigração, Políticas Multiculturais e Direitos Humanos e Imigrantes”.
8
CULTURA
De 22 a 28 de março de 2007
ENTREVISTA
Para o trabalhador conhecer sua história O escritor Vito Giannotti lança livro para quem quer conhecer a história da classe trabalhadora brasileira Lígia Coelho, do Rio de Janeiro (RJ)
D
o primário à universidade, os alunos aprendem que a história se faz por meio dos reis, rainhas, grandes estadistas, , generais, empresários e políticos. O trabalhador humilde, que ergue as construções, forja o ferro e o aço,
lavra os campos, fia e tece, nunca é citado. Para esse personagem, quase sempre esquecido, e para preservar a sua história, nunca lembrada, Vito Gianotti escreveu História das lutas dos trabalhadores no Brasil, resultado de dez anos de trabalho e pesquisa. Editado pela Mauad, o livro será lançado no dia 27
de março, às 18:30 horas, no Sindicato dos Metroviários do Rio de Janeiro (Avenida Rio Branco, 277, sala 410). Trata-se de um documento histórico da maior importância para todos que querem conhecer as lutas, conquistas e derrotas dos trabalhadores brasileiros. Indicado tanto para sindicalistas quanto
para professores, estudantes e pesquisadores, será útil também, e principalmente, para os próprios trabalhadores, que precisam conhecer sua história contada do ponto de vista de sua classe. Com linguagem simples e acessível, o autor traça um panorama de toda a história da classe trabalhadora brasileira, desde suas origens,
no começo da industrialização do país, até o ano de 2002, com a eleição de Lula. Sempre contextualizando o Brasil na conjuntura internacional. Vito é um apaixonado por comunicação popular. Numa sociedade em que a grande mídia, com raras exceções, volta-se inteiramente para a defesa do mercado
e do capital, ele entende que o trabalhador precisa criar a sua própria comunicação, para disputar hegemonia. Nesta entrevista, Vito conta, em detalhes, as motivações que o levaram a escrever História das lutas dos trabalhadores no Brasil e fala de sua grande paixão pela classe que abraçou e pela comunicação popular. Capa do livro
Brasil de Fato – O que o motivou a escrever o livro? Vito Gianotti – Já tinha escrito vários outros livros menores sobre o tema, como Cem anos de luta operária (Editora Vozes) que teve duas edições. A segunda, com dez mil exemplares, rapidamente esgotados. Muitos colegas, companheiros com quem militei e trabalhei, e alunos dos cursos do NPC [Núcleo Piratininga de Comunicação] me pedem o livro, do qual me restou apenas um exemplar. Além disso, constatei que não existe um compêndio que conte a história dos trabalhadores brasileiros. Existem ótimos livros que narram episódios, momentos históricos, mas nenhum que narre a luta dos trabalhadores brasileiros, desde suas origens até os dias de hoje, em linguagem clara, resumida e compreensível. Passei então a pesquisar e o resultado é este livro de 320 páginas. BF – Quais as maiores dificuldades que você encontrou? Vito – Resumir as informações, procurar passar o essencial para quem leu pouquíssimo sobre a história dos trabalhadores ou nunca leu nada. Informações sólidas e suficientes, embora reduzidas, para quem não tem o hábito de ler. BF – Como conseguiu isso? Vito – Primeiro, redigindo frases curtas, com vocabulário o mais simples possível. Frases de, no máximo, 30 palavras. Segundo, evitei citações. Embora tenha pesquisado em mais de 500 livros, fora jornais e outros periódicos, não fiz citações, para não tornar a leitura enfadonha. Finalmente, não utilizei notas de pé de página. Quando terminei o livro, pedi para um amigo, que não terminou o ensino médio, para que lesse e indicasse todas as passagens que não entendeu e as palavras que não conhecia. Ele apontou 850. Foram todas substituídas. Tive que fazer um esforço de “traduzir”, sem empobrecer o texto, muitas palavras como, detentores (para donos), cárcere (prisão), fictício (inventado), taxados de (chamados de), deflagrar (detonar), adulterado (falsificado) e muitas outras.
BF – Quais as curiosidades que você descobriu ao fazer o livro – fatos inéditos ou pouco conhecidos, aspectos interessantes que gostaria de destacar? Vito – Registro alguns fatos muito pouco conhecidos. Por exemplo, descobri que, em 1907, houve uma greve dos trabalhadores que construíam a linha ferroviária Estrada de Ferro Sul, em Cachoeiro do Itapemirim (ES). A greve durou uma semana. No último dia, a polícia reprimiu violentamente o movimento e matou 72 trabalhadores. O fato foi noticiado de forma muito discreta no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, no dia seguinte ao acontecimento. Uma nota pequena, sem o nome de nenhuma das vítimas. O jornal está guardado no Arquivo Nacional. Creio que não existem, hoje, 50 pessoas que conheçam esse fato. Outro fato que merece registro: em 5 de julho de 1962, os sindicatos liderados pelo PCB e pela ala esquerda do PTB convocaram uma greve geral por aumento de salário. Aqui no Rio, na Baixada Fluminense (sobretudo em Duque de Caxias e São João de Meriti), os trabalhadores famintos atacaram supermercados em busca de alimentos. A polícia investiu contra eles, feriu mais de cinco mil pessoas e matou 43. O registro é do jornal Última Hora, publicado em 6 de julho, e também consta do acervo do Arquivo Nacional. BF – Qual foi sua intenção ao relatar esses episódios? Vito – Minha intenção não é fazer um necrológio da classe trabalhadora, ou apontar mártires, mas esses são fatos desconhecidos, pouco conhecidos ou relegados ao esquecimento, que precisamos resgatar. Quero combater a visão predominante nas escolas, na mídia e na sociedade em geral de que o povo brasileiro é pacífico, passivo, despolitizado e que não luta. A idéia de Gilberto Freyre, a da “índole pacífica” do povo brasileiro, é um mito. No livro, quero combater a balela da tal “cordialidade” do nosso povo que só serve para perpetuar a alienação e o desinteresse pela política. Insinua que o brasileiro só quer saber de samba, futebol, carnaval e mulher.
É um mito que rebaixa a auto-estima do brasileiro e o subestima como povo. Em 1968, a repressão da ditadura militar matou sete manifestantes em passeatas e atos públicos. E as pessoas iam às manifestações mesmo sabendo dos riscos que corriam. Divulgação
BF – Todos esses episódios ocorreram há 40 anos ou mais. E hoje, o cenário no Brasil ainda é de violência contra o trabalhador? Vito – Durante o período de explosão das greves no Brasil, no final dos anos 1970, a polícia reprimiu violentamente os movimentos. Somente em 1979, matou seis operários em piquetes. Hoje, a repressão é maior no campo e contra os moradores de favelas e bairros pobres. É só lembrar da chacina dos 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA), no final dos anos 1990, ou dos inocentes chacinados em Nova Iguaçu (RJ), em 2006. Mata-se muito no Brasil. São 55 mil assassinatos por ano contra 119, no Canadá, e 69, no Japão, um país que tem praticamente a mesma população do Brasil, de acordo com dados do livro de Michael Moore, Stupid White Man. BF – O que levou um italiano, exestudante de Filosofia, a trocar a faculdade pela fábrica e a trocar um país desenvolvido por um país do terceiro mundo, em plena ditadura militar? Vito – Nasci por acaso na Itália. Saí de lá porque queria transformar este mundo. Naqueles tempos, as idéias da luta contra
o imperialismo e por um mundo socialista eram muito populares. Influenciados pela Revolução Cultural chinesa, achávamos que os intelectuais tinham que viver um curto período como operário. Então, saí da Itália, percorri vários países trabalhando como marítimo, como pescador, num navio de pesca industrial. Vim para o Brasil para passar poucos meses, mas me apaixonei pelo país no primeiro dia e resolvi ficar, apesar de o Brasil estar em plena ditadura. BF – Como foi a convivência na fábrica com os operários brasileiros? Vito – A minha experiência na fábrica determinou a minha paixão por uma transformação social no sentido do socialismo e especificamente pela comunicação como arma fundamental dessa revolução. Trabalhando na fábrica, meu desespero diário era ver os trabalhadores comentando programas de TV tipo Chacrinha ou Flávio Cavalcanti ou as novelas da Globo, sem nenhuma preocupação com os problemas da classe. Às segundas-feiras de manhã, chegava louco para conversar sobre política, as condições da classe trabalhadora, os crimes da ditadura e encontrava os colegas comentando o “Fantástico”, falando de futebol. Então, percebi a necessidade imperiosa de se fazer veículos de comunicação para informar e formar os trabalhadores. Comecei a colaborar com jornais sindicais, a escrever artigos, a editar boletins e panfletos para os trabalhadores. Militava na oposição sindical em São Paulo, onde fizemos diversos jornais – Luta Operária, Luta Metalúrgica, Luta Sindical. Eles iam mudando de nome conforme eram descobertos e perseguidos pela ditadura. E, talvez por ter passado por uma faculdade e por meu interesse pela comunicação, sempre era escalado para escrever os artigos e colaborar nas publicações. Passei então a ter uma preocupação obsessiva por uma linguagem fácil, cativante, que capturasse o interesse do trabalhador. Buscamos o “operariês”, como contraponto à linguagem distante, rebuscada, típica dos jornais de esquerda,
cheias de “economês” e “juridiquês”. Em 1986, publiquei, pela Brasiliense, O que é jornalismo operário, no qual dediquei um capítulo inteiro ao “operariês”. A partir de 1992, juntei a minha experiência da fábrica com a da jornalista Claudia Santiago, da CUT, e passamos a dar cursos sobre comunicação popular e história dos trabalhadores para todo o Brasil. Escrever em linguagem simples, compreensível, acessível a todos é um dogma para mim. Arquivo Brasil de Fato
Quem é
Ex-estudante de Filosofia, Vito Giannotti, de 64 anos, saiu da Itália na década de 1960, percorreu o mundo e acabou se estabelecendo no Brasil, onde, por 25 anos, trabalhou como metalúrgico. Nos anos 1960 e 1970, Vito lutou contra a ditadura militar e, como tantos que militaram naquela época, foi preso várias vezes. Nas lutas diárias, como metalúrgico forjou a sua militância sindical no Brasil e descobriu a importância de uma comunicação alternativa, popular, voltada para os interesses dos trabalhadores. Dos boletins e jornais sindicais para os livros foi um pulo. Escreveu, entre outros, O que é estrutura sindical (Brasiliense), CUT ontem e hoje (Vozes), Força Sindical – a Central neoliberal (Mauad), Muralhas da lLinguagem (Mauad), O que é jornalismo operário (Brasiliense) e Comunicação sindical – a arte de falar para milhões (Vozes), este último em parceria com a sua mulher, a jornalista Claudia Santiago. No início da década de 1990, cada vez mais envolvido pelo tema da comunicação popular, fundou, com Claudia, o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).