Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 5 • Número 215
São Paulo • De 12 a 18 de abril de 2007
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Marcello Casal Jr/ABr
Movimentos rurais e urbanos unidos no dia 17 A jornada de lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) já começou. Até o dia 10, haviam ocorrido ocupações em Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo. Dentre as principais reivindicação, está a aceleração das desapropriações de terra com fins de reforma agrária e a correção dos índices de produtividade. A jornada se intensifica em 17 de abril, data do 11º aniversário do Massacre de Eldorado dos Carajás – imortalizado no Monumento das Castanheiras (foto ao lado). O dia será de luta unificada entre o MST e diversos sindicatos e movimentos por moradia espalhados pelo país. Pág. 4
Transnacional financia milícia na Colômbia
O neoliberalismo reduz salários, precariza o trabalho e coloca trabalhador na informalidade
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perador de telemarketing, balconista, auxiliar de limpeza, vigilante... Empregos como esses, de baixa
remuneração, são o destino de oito em cada dez pessoas que encontram trabalho na cidade de São Paulo. Mas esse quadro Daniel Cassol
A relação entre governo, transnacionais e paramilitares ficou mais evidente quando vieram à tona, no último mês, indícios do apoio a estes grupos por parte do Estado e da empresa estadunidense Chiquita. Pág. 7
Mais de 90% dos empregos no país pagam menos de R$ 700 é uma realidade em todo o país, fruto da opção dos últimos governos pelo modelo neoliberal, que prioriza o capital financeiro
em detrimento do produtivo. No Brasil, 94% dos empregos pagam até dois salários mínimos. Pág. 3
EDITORIAL
Por que não sai a reforma agrária?
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Força indígena – A segunda edição do Encontro Internacional Sepé Tiaraju e o Povo Guarani deve reunir pelo menos 4 mil pessoas em Porto Alegre, entre os dias 11 e 14. O primeiro encontro (foto) ocorreu no ano passado, em São Gabriel, marcando os 250 anos da morte do líder guarani. São esperados cerca de mil indígenas da etnia guarani, vindos da Bolívia, Paraguai e Argentina, além de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. A Assembléia Continental Guarani será um momento para reflexão sobre a realidade enfrentada pela etnia nestes países
Operação Condor segue vigente na América do Sul
Controladores na luta por seus direitos
Militares sul-americanos seguem trocando informações sobre os “subversivos” do continente, aos moldes do que ocorria nos anos 1970 e 1980 na Operação Condor, garante o jurista paraguaio Martin Almada. Ele, que, em 1992, provou a existência do esquema, descobriu documento de 1997 no qual coronel paraguaio envia uma lista de militantes de esquerda para colega equatoriano. Pág. 6
Diante das péssimas condições de trabalho dos controladores de vôo e das denúncias de sucateamento dos equipamentos, crise do setor evidencia a falta de planejamento do governo. Pág. 5
9 771678 513307
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dia 17 de abril de 1996 ficou marcado na história do Brasil pela luta por reforma agrária. Mais de mil trabalhadores, homens, mulheres e crianças caminhavam de Paraupebas a Marabá, no Pará, em protesto para exigir a desapropriação de uma fazenda de 50 mil hectares e a distribuição de cestas básicas. De repente, dois batalhões da Polícia Militar, fortemente armados, vindos de lados opostos, cercaram o acampamento e cometeram o massacre. Resultado: 19 sem-terra assassinados, centenas de feridos, 69 mutilados para o resto da vida. O Brasil ficou consternado. Almir Gabriel era governador do Pará; Fernando Henrique Cardoso, presidente da República; ambos do PSDB. Passaram-se 11 anos, o que mudou? Todos os assassinos, mandantes e responsáveis continuam impunes. A Via Campesina internacional declarou 17 de abril como o Dia Mundial de Luta Camponesa. Em junho de 2002, o presidente FHC sancionou a lei 10.469 de autoria da então senadora Marina Silva, hoje ministra do Meio Ambiente, declarando aquela data como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária no Brasil. Virou até lei lutar pela reforma agrária em 17 de abril. Mas o que mudou nas condições de vida dos camponeses brasileiros? Muito pouco ou quase nada. A reforma agrária continua apenas como sonho. E as estatísticas dos pesquisadores agrários revelam que, nesses 11 anos, a concentração da propriedade da terra seguiu aumentando. Ou seja, a distribuição das terras
ficou ainda mais injusta, menos mãos controlam mais áreas. Mas, afinal, por que não sai a reforma agrária? O presidente Lula ensaiou uma explicação em novembro de 2000, numa entrevista à revista Caros Amigos, quando defendeu: “Não se justifica em um país, por maior que seja, ter alguém com 30 mil alqueires de terra! Dois milhões de hectares de terra! Isso não tem justificativa em lugar algum do mundo! Só acontece no Brasil, porque temos um presidente covarde, que fica na dependência de contemplar uma bancada ruralista a troco de alguns votos”. Evidentemente que essa explicação é insuficiente. Está em curso no Brasil e em todo mundo uma disputa de projetos para a utilização das terras, dos recursos naturais e da produção agrícola. De um lado, os fazendeiros capitalistas se aliaram às transnacionais e ao capital internacional para produzir ao mercado externo e transformar nosso país em uma nação agroexportadora. Como denunciou Cláudio Lembo, ilustre intelectual burguês e ex-governador de São Paulo, ao criticar o programa de expansão da cana para produzir etanol para os Estados Unidos: “Depois de 500 anos, nossas elites querem voltar ao ponto inicial. Um modelo colonial, que não desenvolve e só produz pobreza”. De fato, o modelo defendido pelo agronegócio é apenas uma remodelagem da velha plantation. Apenas substituiu o trabalho escravo pela máquina e pelos agrotóxicos. E mesmo assim, alguns “modernos” fazendeiros continuam também
usando trabalho escravo, como foi denunciado recentemente em relação a uma fazenda da empresa aérea GOL. De outro lado, temos os movimentos camponeses, e em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com sua proposta de reforma agrária que visa a democratização da propriedade da terra e a reorganização da produção agrícola prioritariamente para produção de alimentos. Defendem também que a reforma agrária esteja vinculada com a educação, com um novo tipo de assentamento, com a instalação de agroindústrias cooperativadas e com uso de técnicas agrícolas sem agrotóxicos e preservadoras do meio ambiente. A reforma agrária está parada porque as classes dominantes são hegemônicas na economia, no Estado, no governo Lula e na maioria dos governos estaduais. Mesmo assim, os trabalhadores não ficarão parados. E, certamente, mais uma vez nessa semana do 17 de abril milhares de camponeses se mobilizarão em todo país. Farão para homenagear os mártires de Carajás. Farão para pressionar o governo. Farão para defender suas propostas de reforma agrária. Farão para enfrentar o capital internacional travestido nas transnacionais que dominam agora a agricultura e querem dominar também as sementes, a natureza, a água. Esperamos que o sacrifício dos mártires de Carajás não tenha sido em vão e que alimente a consciência e a coragem dos trabalhadores brasileiros para se organizarem e lutarem por uma verdadeira reforma agrária.
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DEBATE
CRÔNICA
Frei Betto Brasil é o país do carnaval. Aqui não se vive sem os cinco efes: fé, festa, feijão, farinha e futebol. Toda esta alegria está ameaçada de se transformar numa grande tristeza nacional caso o governo federal não tome, o quanto antes, severas medidas para impedir que o país se torne um imenso canavial em mãos estrangeiras. Estamos de volta aos ciclos de monocultura que, nos livros didáticos de minha infância, marcavam os períodos da história nacional: pau-brasil; cana-de-açúcar; ouro; borracha; café etc. Esta a razão da recente visita de Bush ao Brasil, temos a matéria-prima e a tecnologia alternativas ao petróleo, energia fóssil prestes a se esgotar. Hoje, 80% das reservas petrolíferas se encontram no conflitivo Oriente Médio. Construir usinas nucleares é dispendioso e arriscado, alvos potenciais de terroristas. A solução mais segura, barata e ecologicamente correta é a cana-de-açúcar e os óleos vegetais. Petróleo era um bom negócio quando o barril custava 2 dólares. Hoje não custa menos de 50 dólares. E não dá duas safras. Cana e mandioca, além de abastecerem veículos e indústrias, dão quantas safras se plantar. Basta dispor da terra adequada e disto que, ao contrário dos EUA, há nos trópicos em abundância: água e sol. De olho nessa fonte alternativa de energia, Bush veio ver para crer. O etanol extraído de nossa cana tem a metade do custo do produzido pelo milho made in USA; um terço do preço do etanol europeu obtido da beterraba; e é, hoje, 30% inferior ao preço da gasolina, além de não poluir a atmosfera nem se esgotar. Então, o Brasil se tornará um país rico? Sim, se o governo agir com firmeza e detiver a ganância das transnacionais. Bill Gates e sua Ethanol Pacific já estão de olho nas terras de Goiás e do Mato Grosso. Japoneses, franceses, holandeses e ingleses querem investir em usinas de álcool. Se o Planalto não tomar a defesa da soberania nacional, o imenso canavial Brasil estará produzindo combustível para os países industrializados que, na defesa de seus interesses, cuidarão da segurança de seus negócios aqui, ou seja, regressaremos ao estágio colonialista de República, não das Bananas, mas da Cana. E as próximas gerações correrão o risco de experimentar na carne o que hoje sofrem os iraquianos. Assim como Monteiro Lobato, na década de 1940, clamou pela defesa do petróleo brasileiro, dando origem à Petrobras, é hora de se exigir a criação da Biocombrás, a Companhia Brasileira de Biocombustíveis. Caso contrário, teremos nosso território agricultável retalhado pelo latifúndio associado às empresas transnacionais; a cana imperando no Sudeste; a soja e as pastagens desmatando ainda mais a Amazônia e provocando graves desequilíbrios ambientais. E é ilusão imaginar que a tecnologia de exploração da biomassa vegetal absorverá mão-de-obra. O desemprego e o subemprego (bóias-frias) serão proporcionais ao número de pés de cana plantados.
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Márcio Baraldi
Do carnaval ao imenso canavial
Luiz Ricardo Leitão
O Brasil entra com a terra, a água e o sol, e um pouco de mão-de-obra barata, eles colhem, exportam e vendem o produto via Monsanto, Cargill e congêneres, aplicando os lucros lá fora. Ficam com o verde da cana e dos dólares e, nós, com o amarelo da fome Bush não veio aqui preocupado com a miséria em que vivem milhões de brasileiros, sobretudo os migrantes expulsos do campo e amontoados nas favelas em torno das grandes cidades. Nem interessado na pequena propriedade rural e na agricultura familiar. Veio soprar nos ouvidos do presidente Lula para o Brasil dar as costas à Venezuela petrolífera de Chávez e erguer seu copo de garapa orgulhoso de sua energia vegetal, feliz porque vai chover alcooldólares na lavoura nacional. O Brasil entra com a terra, a água e o sol, e um pouco de mão-de-obra barata, eles colhem, exportam e vendem o produto via Monsanto, Cargill e congêneres, aplicando os lucros lá fora. Ficam com o verde da cana e dos dólares e, nós, com o amarelo da fome, como descrevia Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo.
A quem eles enganam?
O mínimo que se espera do presidente Lula é que siga o exemplo de Chávez e defenda os interesses nacionais. A empresa venezuelana equivalente à nossa Petrobras era a sócia minoritária na exploração do petróleo do país vizinho. Agora Chávez reverteu a equação: desde 1º de maio a Venezuela fica com 60% das cotas e as empresas estrangeiras com 40%. Foi o clamor popular que, no passado, obrigou o governo a ouvir que “o petróleo é nosso”. É hora de clamar pelo etanol e impedir que o imenso canavial Brasil multiplique o trabalho escravo, aumente o número de bóias-frias e devaste o que nos resta de florestas e reservas indígenas. Frei Betto é escritor, autor de Típicos Tipos (A Girafa), entre outros livros
As cenas são mais do que eloqüentes. Ao lado de Nuri al Maliki, primeiro-ministro do Iraque, dentro de um bunker em Bagdá, o sul-coreano Ban Ki-moon, novo secretário-geral da ONU, dá uma entrevista coletiva à imprensa mundial. Por motivos de segurança, ele chegou “de surpresa” à capital iraquiana: a organização cumpre um triste papel naquele devastado país, subscrevendo sem nenhum pudor a guerra suja de Bush, Blair & cia. contra o mundo árabe, e por isso tem sido alvo de violentos atentados da resistência local. Apesar de tudo, Ban Ki tem a desfaçatez de afirmar que “as condições de segurança em Bagdá melhoraram muito” nos últimos meses... Mal termina a frase, uma bomba explode a 50 metros de distância. Em pânico, o “valente” secretário tenta se esconder embaixo da mesa, ao passo que o primeiro-ministro, acostumado às explosões diárias, não esboça a mínima reação face ao estrondo. Tudo ao vivo, sem ao menos uma pausa para os comerciais... A quem eles pensam que enganam? – eu me pergunto, ao ver a cena estampada nos jornais e tevês da cadeia global. Os desatinos e a estupidez da era Bush já foram dissecados em verso e prosa pelos mais lúcidos e corajosos artistas e pensadores deste planeta, mas a farsa do Império do Norte ainda parece estar longe do fim. Desde as contundentes denúncias de Noam Chomsky e Gore Vidal, dentro das próprias fronteiras ianques, ou até mesmo o magnífico documentário de Michel Moore sobre os acontecimentos de 11 de setembro (em que Baby Bush permanece apalermado por longos minutos na sala de leitura de uma escola primária – não se sabe se lendo ou aprendendo a ler... –, enquanto os aviões destruíam os ícones do poder imperial), as máscaras nos têm sido desveladas de forma irrefutável nos quatro cantos do planeta. Ainda há pouco, um livro escrito por Eliot Weiberger (Crônicas da Era Bush – o que ouvi sobre o Iraque) tratou de sumariar os absurdos da decantada “guerra ao terrorismo” promovida pela Casa Branca e meia dúzia de grandes corporações da economia transnacional. Alguns já são conhecidos do leitor, outros talvez sejam novidade, mas vale a pena conferir o que Eliot registrou nas suas crônicas. Acredite se quiser: o primeiro secretário de Energia de Bush Jr. foi o senador que tentou aprovar um projeto de lei que propunha justamente a extinção do Depto. de Energia... E um dos seus maiores aliados no Congresso, Tom Delay, que antes da teta parlamentar se ocupava de fazer dedetizações no Texas, soltou a seguinte “pérola” sobre o trágico episódio de Columbine (onde vários estudantes foram alvejados a tiros por dois colegas): “O que se pode esperar quando essas crianças vão à escola e aprendem que descendem de um bando de macacos?”. Por falar em amigos, a Halliburton, empresa do vicepresidente Dick Chenney, foi agraciada, sem nenhuma concorrência, com inúmeros contratos de “reconstrução” do Iraque e de Nova Orleans, semidestruída pelo furacão Katrina. Também no capítulo das verbas, os novos créditos de Bush para a educação incluem US$ 100 milhões para as aulas de leitura (por acaso ele já aprendeu?) e US$ 270 milhões para as aulas de... abstinência sexual! Essa brilhante combinação talvez explique por que Baby Bush declarou, em modorrento discurso, que as importações dos EUA vêm do... exterior! Sim, meu caro leitor, este mundo está entregue aos imbecis que fazem o jogo sujo de uma classe nada imbecil. Não é à toa que lá em Israel, aliado nº 1 do Império, a empresa Crazyshops está faturando milhões de euros vendendo lotes na... Lua! Segundo ela própria divulgou, 10 mil pessoas já compraram um terreno no romântico satélite, que já foi cantado pelos mais inspirados poetas e é protegido por santo de grande poder e devoção. Aliás, o que dirá Jorge da Capadócia ao receber tantos “capadócios”? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em literatura latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary
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NACIONAL TRABALHO
Brasil, o país do subemprego Douglas Mansur
A informalidade, empregos de baixa remuneração e a solução individual prevalecem como a saída ao problema coletivo do desemprego Juliano Domingues de São Paulo (SP)
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aria Célia Ferreira, 51 anos. Trabalhava como atendente nas Casas Bahia, mas em 2003 ficou doente e dependente do auxilío-doença do INSS. Em setembro de 2006 acabou o benefício e desde então está desempregada. Conseguiu uma carta de indicação para disputar uma vaga em telemarketing, mas nunca trabalhou com isso. Adriana Carla Lias, 31 anos. Veio de Cuiabá, onde trabalhou por seis anos como vendedora. Está em São Paulo há três meses e procura uma vaga para trabalhar no mesmo ramo. Edson Rodrigues Pereira, 39 anos, desempregado há seis meses, tempo em que viveu de bicos. Antes disso trabalhou como motorista e como vendedor de passagens na companhia de ônibus Expresso Brasil. Mônica Alves da Mota, 17 anos. Trabalhou por nove meses como panfleteira, recebendo por dia trabalhado. Trabalhou seis meses num restaurante onde ganhava R$ 350 por mês. Está desempregada há um mês, já distribuiu currículos. Está disposta a qualquer vaga que aparecer. Os exemplos são quase infinitos, e retratam o fenômeno característico do Brasil nos últimos 20 anos: a precarização de mercado de trabalho pela expansão de vagas que oferecem baixos salários e exigem baixa escolaridade. Dados do Centro de Apoio ao Trabalho (CAT), órgão destinado à reinserção de trabalhadores desempregados, denunciam tal situação. O órgão, localizado em São Paulo, atende a cerca de 2 mil pessoas por dia. Entre junho de 2005 a fevereiro de 2007, apenas 13,8% de 370.377 trabalhadores conseguiram emprego. Desses, 80% estão trabalhando no setor de serviços, desempenhando atividades como: operador de telemarketing, repositor de supermercado, promotor de vendas, operador de caixa, oficial de serviços gerais, balconista, auxiliar de limpeza, vigilante, porteiro, auxiliar de almoxarifado. O quadro relativo a São Paulo pode ser extrapolado para o Brasil. Dados do IBGE de 2000 mostram que 70% dos trabalhadores urbanos do país realizam atividades consideradas precárias do ponto de vista de investimento tecnológico e humano. Para Marcio Pochmann, economista e professor da Unicamp, esse tipo de ocupação é resultado do próprio modelo econômico; trata-se da expansão de segmentos de baixo valor agregado e reduzido investimento tecnológico. “Hoje, o tipo de emprego possível é o de dois salários mínimos, 94% dos empregos no país hoje pagam até dois salários mínimos”, avalia. Segundo ele, o Brasil está cada vez mais polarizado entre ricos e pobres, com esvaziamento da classe média. “Hoje, você tem uma sociedade menos complexa com
enorme quantidade de trabalhadores que pode se dizer que não pertencem a nenhuma classe, pois estão submetidos a condições de trabalho completamente individuais. São ‘despaçados’”, acrescenta.
HISTÓRICO Pochmann lançou recentemente o livro Trabalhadores Urbanos: Ocupação e Queda na Renda (Cortez Editora). No estudo, o economista avalia que, desde o início da década de 80, prevalece no Brasil uma política de manutenção da fraqueza da atividade industrial, motor da economia, em favor do enriquecimento meramente financeiro. Dito de forma mais direta: dinheiro gerando mais dinheiro estéril sem qualquer intermediação da esfera produtiva ou comercial. Para o pesquisador, as elites isolam-se num individualismo cada vez mais exacerbado, não compartilhando com os trabalhadores os destinos do país, e dão um rumo meramente líquido às suas aplicações. A desestruturação do mercado se agrava. Não há motivo para que a demanda efetiva de postos que exijam maior capacidade intelectual se expandam. Os sindicatos defensores de dignas condições de trabalho se
Estudo revela que o Brasil é o quarto país no ranking dos maiores mercados informais do mundo, entre 110 nações
desestruturaram. O mercado de trabalho comporta-se de acordo com as decisões capitalistas e as oportunidades de trabalho também.
SINDICATOS A situação do emprego na indústria mostra outras características do mesmo processo. A precarização dá-se principalmente pela perda de força dos sindicatos, que antes eram de luta e agora são de parceria, e pelas conseqüentes perdas de direito do trabalhador. De acordo com Marcio Pochmann, a crescente frag-
mentação dos sindicatos nas duas últimas décadas ocorreu ao mesmo tempo da redução dos sindicalizados. O universo sindical tornou-se mais heterogêneo e o processo de negociação política cada vez mais específico, sem que isso significasse ampliação dos direitos do trabalhador. “Parece um processo de ‘corporatização’ do sindicalismo. Em 2006, tivemos menos de 500 greves registradas, isso é cerca de 10% a mais do número de greves que tínhamos há 18 anos, por exemplo. O que não significa também
dizer que o fato de ter tido menos greves tenha tornado as relações de trabalho mais favoráveis aos empregados, tenha melhorado a remuneração e assim por diante”, afirma. O professor de sociologia do trabalho da Unicamp, Ricardo Antunes, afirma que hoje os capitais impõem e fazem com que os trabalhadores, despossuídos de uma defesa à altura, priorizem as soluções individuais. “As reivindicações mudam. Antes, a centralidade era o salário, mas não havia desemprego e sempre houve a luta
Ataque ao tecido social A constatação: o Brasil é o quarto país no ranking dos maiores mercados informais do mundo, entre 110 nações, diz um estudo conduzido por Maria Helena Zockun, no 18º Congresso de Mercados de Capitais, em Brasília. Dados de 2000 do IBGE mostram que mais da metade (53,5%) da População Economicamente Ativa (PEA) está na informalidade, e não contribui com o Instituto Nacional da Previdência Social (INSS). De acordo com o instituto, essa
classificação da qualidade de emprego não é medida pelo vínculo empregatício, mas pelas atividades em que não se consegue diferenciar o rendimento adquirido pelo trabalho do rendimento ganho com o capital, como é o caso de costureiras, taxistas, doceiras e camelôs. “Há um processo destrutivo de postos de trabalho, e mesmo quando há crescimento da economia esse processo poupa trabalho vivo, de modo que só resta a informalidade”, afirma o
integrante do PCdoB (SP) e editor da revista Debate Sindical Altamiro Borges. O coordenador do Grupo de Pesquisa Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (Ceget) da Unesp de Presidente Prudente, Antonio Thomaz Júnior, alerta para o fato de que hoje 54 milhões são informais. “Não dá mais para achar que o problema é só do proletariado. Isso diz respeito a um ataque ao tecido social como um todo”, avalia. De acordo com o eco-
nomista Marcio Pochmann, é preciso uma reforma trabalhista sindical progressista pela inclusão dos que estão fora do sistema de proteção social trabalhista. “Nós temos a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que se volta apenas para o trabalho formal assalariado. Quando olhamos para outras formas de ocupação não-assalariadas, trabalho autônomo, todas essas formas de organização do trabalho estão à margem do sistema de proteção social”, explica. (JD)
Pedro Kirilos
Avançar ou retroceder? A pauta da elite econômica e política para “resolver” o problema da precarização do trabalho é conhecida: a flexibilização das leis trabalhistas como único meio de diminuir o custo trabalho, facilitar a contratação por parte do empresariado e gerar mais emprego. “Isso é uma falácia e falsidade. O custo de trabalho no Brasil é equivalente ao de países intermediários. O salário aqui está muito aquém do ideal, trata-se de uma remuneração muito baixa. O que se tem é uma política que os capitais impõem aos governos servis, e o Brasil aceita. Veja se a Venezuela aceitou leis que permitissem a flexibilização das relações trabalhistas”, critica o economista Ricardo Antunes.
A “solução” apresentada pela elite econômica sempre cai na flexibilização das leis trabalhistas
Para Marcio Pochmann, tecnicamente é possível reverter a difícil condição do trabalhador no Brasil. Mas,
no entanto, seria necessário uma conjunção política ou uma maioria consciente favorável a uma expansão econô-
mica sustentável, voltada para o mercado interno, associada a bens de maior valor agregado e tecnológico, geradora
por melhores condições de trabalho, assim como há hoje. No entanto, agora a luta precedente é por emprego. O risco do desemprego bate em todas as portas de fábricas e empresas”, avalia. Luís Batista, 43 anos, diz que já trabalhou em mais de 12 empresas metalúrgicas, mas que hoje faz bico como funileiro. “Mudou muito, lembro que em 1984, você tinha uma oferta muito maior de vagas, podia trabalhar uma semana num emprego e, se não gostasse, largava e ia pra outro. As empresas também tinham melhores condições, e hoje elas te oferecem o mínimo, plano de saúde e olhe lá. O sindicato naquela época era mais atuante. Hoje, não vão mais até as empresas e mesmo os funcionários não dão atenção porque têm medo de perder o emprego”, relata. “Quando há mutações no mercado de trabalho, isso afeta as organizações que representam os trabalhadores. Antes da década de 70, cerca de 70% dos trabalhadores tinham carteira assinada e hoje cerca de 50% deles estão na informalidade, ou seja, a base de sustentação dos sindicatos sofreu forte abalo, pois hoje a classe trabalhadora encontra-se fragmentada”, explica Antunes.
de empregos de maior remuneração. “Vemos isso ocorrer em outros países, inclusive periféricos, no entanto, para tomar atitudes como reduzir taxa de juros, mudar o câmbio, essas coisas, você precisa ter convergência e apoio político. Hoje, nós só temos o combate à inflação. São 25 anos parados no mesmo lugar”, lamenta. “O Lula comanda um governo servil fincado numa política financeira. Para o Brasil, ou dá-se força a uma política que visa aumentar as horas de trabalho e gerar desemprego ou escolhe-se diminuir as horas e empregar mais. Ou fazemos a reforma agrária ou um acordo com o George W. Bush que condiciona os trabalhadores rurais brasileiros a uma condição de semi-escravos, senão escravos, cortando toneladas de cana e ganhando quase nada”, resume Ricardo Antunes. (JD)
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NACIONAL MOVIMENTOS SOCIAIS Marcello Casal Jr/ABr
Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Reino animal A selvageria do ensino privado no Brasil chegou a tal ponto que o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo orientou os donos de escolas a fazer a penhora judicial dos bens de pais de alunos e de seus fiadores – para cobrir as mensalidadesatrasadas.Aleiimpede a punição direta aos estudantes, mas aceita essa violência contra os responsáveis. Cadê o Poder Público? Pronto socorro Primeiro os médicos do Incor privatizaram o atendimento do hospital público da USP; depois fizeram uma gestão irresponsável e criaram um rombo de R$ 250 milhões; agora conseguiram, articulados com políticos, que os governos federal e do Estado de São Paulo assumissem os prejuízos dados pela Fundação Zerbini. Mais uma ação privada entre amigos com desfalque no dinheiro público. Salário baixo Com críticas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), as centrais sindicais – CUT, Força Sindical, CGT, CAT, CGTB, SDS e Nova Central – concluíram o documento dirigido ao governo federal reivindicando a criação de empregos de qualidade. Estudos do Dieese mostram que os empregos gerados no ano passado ficaram na faixa de no máximo dois salários mínimos. É pouco. Registro histórico Perfeitamentesintonizadocomoestilo do governo, o novo porta-voz da Presidência da República, diplomata gaúchoMarceloBaumbach,demonstrou já na primeira pergunta feita pelos jornalistas, em sua primeira entrevista coletiva, a sua brilhante adaptação ao novo cargo. Questionado se torce pelo Internacional ou pelo Grêmio, ele respondeu: “Prefiro não me pronunciar”. Vai fazer carreira! Maquiagem policial Mais uma trambicagem do governo tucano do Estado de São Paulo: a Secretaria de Segurança Pública andou escondendo os verdadeiros números dos roubos a banco na cidade de São Paulo, o que foi comprovado pela Febraban. Em 2005, os dados oficiais registraram 67 roubos, mas foram 193; em 2006, foram registrados 122 roubos, mas ocorreram 274. O PSDB manipulou as estatísticas. Transposição ilegal A seccional de Sergipe da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu entrar com tudo na luta contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco e vai realizar – em sua sede, no próximo dia 20 – um grande ato público. Cerca de 20 entidades sindicais e movimentos sociais já confirmaram presença. A OAB sergipana considera a obra danosa para a população nordestina. Crime anunciado As pastorais sociais da Igreja Católica informam que pelo menos dez religiosos – entre eles três bispos – estão ameaçados de morte na região amazônica, por atuação social e ambiental. O maior número de ameaças – cinco – ocorre no Pará, estado que agora é administrado pelo PT. Três são de Rondônia e dois são do Mato Grosso. Assassinos e mandantes sempre contaram com a impunidade. Exemplo argentino Em luta por melhores salários, os professoresargentinosconseguiramfazer grandes manifestações em diferentes províncias e ampla mobilização nacional; e ainda estimularam as lutas deoutrascategoriasprofissionais.Lá, as principais centrais sindicais não deixaram os trabalhadores na mão e engrossaram as manifestações, mesmo em ano de eleições presidenciais. Socorro ruralista Criado para financiar o seguro-desemprego e programas de desenvolvimento com geração de empregos, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) poderá ser utilizado indevidamente para refinanciar as dívidas do agronegócio na safra de 2004-2005. O governo quer fazer medida provisória com essa finalidade, mas as centrais sindicais pressionam contra o desvio do FAT. Suspense no Planalto!
Onze anos depois, o massacre que arrancou do anonimato a cidade de Eldorado dos Carajás (na foto) continua a ser lembrado no mês em que ocorreu
É abril, começa a jornada de lutas MST faz ocupações em todo o país pela reforma agrária; movimentos urbanos também se mobilizam Rogério Almeida de Belém (PA)
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eguindo as tradições do mês de abril, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) deu início a sua jornada de lutas. No dia 8, 150 famílias ocuparam, em São Paulo, uma área da transnacional Suzano Papel e Celulose. No dia seguinte, foi a vez do palácio de governo do Piauí. Já no dia 10, cerca de 300 agricultores fizeram protestos na Secretaria de Obras de Nova Santa Rita (RS). Entretanto, as mobilizações devem mesmo se intensificar no dia
17, data do aniversário de 11 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás. Neste ano, as mobilizações vão contar com a participação de diversos trabalhadores urbanos. Os sem-teto ligados à União Nacional por Moradia Popular (UNMP), por exemplo, prometem mobilizar 100 mil famílias em 17 estados e também promover a sua jornada de lutas. Além disso, no Encontro Nacional Contra as Reformas, realizado no dia 25 de março, em São Paulo (SP), vários sindicatos tiraram o 17 de abril como dia de luta unificada. Dentre eles, estão comprometidos com mobilizações, e até paralisações, o Fórum das Seis, que reúne as entidades dos professores, funcionários e estudantes das universidades estaduais paulistas, a Coordenação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Cnesf) e o Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
O MASSACRE Faz 11 anos que a chacina de 19 trabalhadores rurais sem terra, no lugar conhecido como “Curva do S”, na rodovia PA-150, arrancou do anonimato a cidade de Eldorado dos Carajás, no sudeste do Pará. A marcha dos sem-terra foi interrompida por tropas da Polícia Militar, que obedeciam a ordens do então governador Almir Gabriel (PSDB). Os laudos médicos nos corpos dos que tombaram deixa claro: houve execução à queima-roupa. Tiros foram disparados a curta distância em nucas e peitos. Os PMs usaram as próprias ferramentas dos sem-terra na mutilação dos corpos dos militantes. Além dos 19 mortos na chacina, 75 foram feridos gravemente.
Alguns, até hoje, possuem balas alojadas no corpo. O grupo peleja na Justiça por reparação. O prazo limite para pagamento de indenização aos sobreviventes é julho. Mas tudo depende da burocracia do Estado. Dos que entraram com processo contra o Estado do Pará, somente 20 recebem pensão de um salário mínimo, que julgam insuficiente para a manutenção de suas vidas com dignidade. Dos 155 policiais envolvidos no caso, não há nenhum preso. Os comandantes do massacre, coronel Mário Pantoja e o major José Maria Oliveira, que foram condenados a 228 e 154 anos de prisão, respectivamente, respondem o processo em liberdade. Por conta das “brechas” da lei, Almir Gabriel e o secretário de Segurança, Paulo Sete Câmara, não foram pronunciados no processo. (Com informações da Agência Brasil de Fato)
Veja as principais reivindicações do MST 1. Que se agilize a desapropriação de fazendas improdutivas, priorizando algumas regiões em cada estado, de preferência próximas a centros consumidores, para facilitar o acesso ao mercado e o desenvolvimento da produção de alimentos. 2. Que se priorize a desapropriação das fazendas de empresas estrangeiras, que vieram aqui implantar seus monocultivos predatórios para o meio ambiente, com uso intensivo de agrotóxico, expulsando os trabalhadores brasileiros do interior. 3. Que o governo atualize a portaria que mede a produtividade das fazendas, que ainda se baseia em dados de 1975. Que mobilize sua base parlamentar pelo projeto, já aprovado no Senado, que determina a expropriação das fazendas com trabalho escravo. 4. Que o governo faça um verdadeiro mutirão de todos órgãos públicos envolvidos, para as-
sentar em poucos meses todas as 140 mil famílias que estão há muito tempo acampadas. 5. Que se organize um novo modelo de assentamento, combinando um novo crédito rural, especial para os assentados, com a produção de alimentos e a instalação de agroindústrias na forma cooperativa. 6. Que a Conab (empresa nacional de abastecimento) seja valorizada, amplie seus recursos e garanta a toda família camponesa o acesso ao programa de compra de todos os alimentos produzidos. 7. Que se implante um programa nacional de reflorestamento nos lotes da reforma agrária e nas comunidades camponesas, de forma subsidiada, para que cada família seja estimulada a plantar pelo menos dois hectares de árvores nativas e frutíferas, em cada área. 8. Desenvolver um amplo programa de educação no campo, que comece com uma campanha
nacional de erradicação do analfabetismo, e se aumentem os cursos e vagas de cursos técnicos a serem destinados especificamente para a juventude do campo. E se ampliem os recursos do Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária viabilizando a demanda de cursos e convênios com as universidades brasileiras para dar acesso aos jovens camponeses em regime de alternância nos cursos superiores. 9. Que se crie um novo formato institucional para viabilizar a assistência técnica e extensão rural pública nos assentamentos. Para isso é necessário que se tenha um órgão público responsável pela assistência técnica e capacitação dos agricultores. 10. Que o Incra seja vinculado diretamente à Presidência da República e forme, com a Conab e o órgão de assistência técnica, um novo formato institucional para viabilizar e acelerar a reforma agrária.
DIREITOS
Previdência e Trabalho divergem sobre reformas Renato Godoy de Toledo da Redação A saída de um ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Ministério do Trabalho pode frear o processo de retirada dos direitos trabalhistas. E o fato desse mesmo ex-dirigente cutista assumir a Previdência pode dar fôlego a uma nova reforma. Essas afirmações, que há menos de dez anos soariam como inusitadas, são compartilhadas por uma parcela significativa da esquerda. Em março, o ex-presidente da CUT, Luiz Marinho, deixou de ser o titular do Trabalho e passou para a Previdência. No seu discurso de posse, ele avisou que, até o final do ano, atenderá ao pedido do presidente Lula e “salvará” a Previdência, por meio de uma reforma. Por outro lado, no lugar de Marinho, foi escalado Carlos Lupi, presidente nacional do PDT, que foi taxativo: “Podem me chamar de antiquado, de atrasado, dizer que estou fora do mundo atual. Mas não vou defender reformas que tirem os direitos do trabalhador. Não tem como
sair reforma trabalhista ou sindical sem consenso entre trabalhadores. E o consenso é muito difícil”. Para Altamiro Borges, membro do Comitê Central do PCdoB, a postura de Lupi “até aqui foi boa”. Porém, ele acredita que o ministro sofrerá forte pressão do capital. “Lupi tem sido um defensor dos direitos trabalhistas; no Fórum Nacional do Trabalho, ele se posicionou contra qualquer ataque aos trabalhadores. Esperamos que sua defesa dos direitos seja tão taxativa quanto o seu discurso de posse”, afirma.
PREVIDÊNCIA AMEAÇADA Com a mudança de ministério, Marinho presidirá o Fórum Nacional da Previdência Social (FNPS), responsável por avaliar a possibilidade de uma nova reforma, agora sob a “luz” de um recém-lançado estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que aponta o sistema de seguridade brasileiro como um dos mais “generosos” do mundo. Com a divulgação da pesquisa, a mídia corporativa lançou uma ofensiva para elevar a idade mínima para a aposentadoria.
Só que, na visão do economista José Carlos de Assis, editor do site Desemprego Zero, não há necessidade de uma reforma previdenciária. Para ele, essa idéia tem sido vendida para a opinião pública pelos economistas neoliberais, que vêem uma nova reforma como um importante passo para concluir a privatização do setor, iniciada no governo Fernando Henrique (19952002) e recrudescida, em 2003, pelo governo Lula. “A Previdência brasileira é superavitária, não há déficit, o próprio presidente sabe disso. A questão é que a Constituição não é cumprida, já que os recursos da seguridade social (que engloba saúde, Previdência e assistência social) são desviados para a realização de superávit primário. É um crime fazer reajuste fiscal com recursos da seguridade”, avalia. Porém, questionado sobre a composição do chamado segundo escalão de seu ministério, Marinho afirmou que pretende manter a equipe, inclusive o secretário de Políticas de Previdência Social, Helmut Schwarzer, que declarou
abertamente que um dos objetivos do FNPS é mudar a idade mínima.
HISTÓRIA Na hipótese do projeto ser levado adiante, o governo deve enfrentar resistência do movimento sindical. “Somos contra a reforma da Previdência. Nós, da CUT, não passaremos para a história como os sindicalistas que aceitaram o aumento da idade mínima”, enfatiza João Felício, secretário de relações internacionais da CUT. Sobre o novo posto, Marinho afirmou que precisa estudar melhor a questão da Previdência. “Ele deveria conversar com o ex-ministro [Nelson Machado] que, em entrevista, disse que não há déficit e, portanto, não há necessidade de reforma”, aconselha Altamiro Borges, que ressalta a importância de Marinho na história recente do sindicalismo brasileiro e aponta boas medidas adotadas na sua gestão no Ministério do Trabalho, como o combate ao trabalho escravo. “O que está em jogo é a história do Marinho, se ele fizer essa reforma sua imagem ficará manchada para sempre”, anuncia.
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NACIONAL CRISE AÉREA
Em 16 anos, frota de aeronaves aumenta quase 50%, mas infraestrutura não acompanha o crescimento
para 11.090, um aumento de 47,9%. Carlos Henrique Trifillio, presidente da Federação Brasileira de Associações de Controladores de Tráfego Aéreo (Febracta), assegura que o número de controladores não subiu nessa proporção. Em pronunciamento feito no dia 3, a deputada federal Luciana Genro (P-SOL-RS) ressaltou que é do governo a responsabilidade pela situação ter chegado ao ponto de os controladores militares se rebelarem, como aconteceu no dia 30 de março. Isso porque o aumento dos efetivos era o pressuposto fundamental da garantia de segurança do tráfego, permitindo a redução da carga horária até que se chegasse a um acordo sobre a remuneração justa. “Isto não foi feito porque o governo não aumenta suas despesas com servidores. É verdade que os passageiros sofrem com os atrasos, mas é verdade também que, não fosse por esse movimento, ninguém saberia dos enormes problemas que existem no controle do tráfego aéreo brasileiro e das dificuldades encontradas por esses profissionais para exercer as suas tarefas corretamente”, defende Luciana. Ela pondera que a disciplina militar não deve sobrepor-se ao interesse da coletividade. “Não fazemos coro com os que, em nome da disciplina militar, que-
Eduardo Sales de Lima da Redação
A
mídia conservadora alardeia por todos os cantos a “necessária” punição aos controladores de tráfego aéreo. Entretanto, diante das condições de trabalho dos controladores trazidas a público, das denúncias de insegurança e sucateamento dos equipamentos e da carga excessiva de trabalho, evidencia-se a falta de políticas para o setor. Estas envolvem temas que vão do controle civil do transporte aéreo até um melhor entrosamento entre a Infraero, que faz a administração e o gerenciamento da infra-estrutura aeroportuária, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Força Aérea Brasileira (FAB) e o Ministério da Defesa. Em primeiro lugar, o descaso com a carga excessiva de trabalho dos controladores se destaca como uma das principais causas da crise atual. Segundo dados do Ministério da Defesa, em 1990, havia 7.494 aeronaves civis no Brasil. Já em 2006, a frota saltou
Maringoni
Controladores enfrentam hierarquia militar
rem punir os líderes de um movimento legítimo, que visa garantir segurança para quem voa, em uma luta para assegurar condições de trabalho adequadas para quem controla essa área estratégica do país”, completa.
ENFRENTAMENTO Ávidos pela desmilitarização do setor, os profissionais da área lançaram o Manifesto dos Controladores de Tráfego Aéreo, explicando o porquê do aquartelamento dos 149 sargentos do Primeiro Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta 1), em Brasília (DF), no dia 30 de março. Tratava-se de
Desmilitarização não levará à privatização aéreo. As equipes, civil e militar, trabalham em sedes próximas, às vezes separadas apenas por uma parede. Segundo o vice-presidente da Febracta, deve haver um órgão civil para controle do espaço aéreo civil. “Hoje, a Força Aérea percorre todas as obrigações e os deveres que se relacionam ao serviço de tráfego aéreo. Ela normatiza o meio, qualifica pessoas e investiga anomalias. É um modelo de gestão que, talvez nos anos 1960 e 1970, fosse
aceitável por causa da questão do militarismo, mas que hoje não se justifica”, explica Almeida. Para ele, a execução do serviço, a qualificação profissional e algumas outras funções que existem nesse meio precisam sair da Força Aérea. “Chegamos ao ponto em que chegamos justamente por causa da hierarquia, dessa disciplina. Alguém não passou informação para alguém e ninguém decidiu nada”, critica. (ESL)
Disputa no interior da Força Aérea
diferenças pontuais entre militares que desempenham a função de controlador de tráfego aéreo e militares que praticam outras funções, daí a distinção. “O erro na atividade do controle aéreo pode levar à morte de muitas pessoas. E o erro de Infantaria pode ser corrigido. A mesma coisa com o escrevente, o que trabalha na administração. O erro dele
é facilmente resolvido. Sem contar as especificações de qualificação do controlador de tráfego aéreo. A gente precisa de pelo menos quatro anos para obter todas as credenciais. Tudo isso leva a uma série de exigências e especificações apropriadas somente a nós. Não dá para assemelhar a outras atividades de caráter militar”, finaliza. (ESL)
Em 2006, a FAB fez um levantamento detalhado das associações e sindicatos ligados aos controladores de tráfego aéreo. Segundo informações do jornal Correio Braziliense do dia 7 de novembro de 2006, a Força Aérea rastreou as ligações políticas e comerciais de sargentos e suboficiais que “aproveitaram o momento eleitoral e o acidente com o vôo da Gol para dar força ao movimento”, diz relatório. De acordo com o levantamento, estaria em curso uma espécie de luta interna envolvendo sargentos e suboficiais controladores de tráfego aéreo contra oficiais de outros setores. Isso porque os primeiros desfrutariam de escalas de trabalho reduzidas, que lhes permitem estudar ou desempenhar outras profissões, e não precisariam cumprir escala de serviço armado. No entanto, o vice-presidente da Febracta ressalta
Antônio Cruz/ABr
Moisés Almeida, vicepresidente da Febracta, acredita ser pouco provável que a desmilitarização provoque uma privatização do setor, pois o sistema atual não permite compartilhar informações de defesa aérea. O controle do espaço aéreo brasileiro é militarizado desde sua criação, em 1946. Assim, o monitoramento de rotas da aviação comercial é feito com os mesmos equipamentos utilizados no sistema de defesa do espaço
Acidente com avião da Gol e eleições serviram de pano de fundo
um desabafo à sociedade e à mídia tendenciosa, revelando um novo ângulo da crise. No documento, eles reclamam que, nos últimos meses, todos os problemas e paralisações do serviço causados por fenômenos naturais, como chuvas e nevoeiros, por panes no sistema de comunicação, por queda de energia ou até por overbooking das empresas aéreas precisavam ter um bode expiatório, e ele tinha um nome: controladores de vôo. “Nunca houve ato de sabotagem por parte desse profissional que trabalha para prover a segurança e não atos de terrorismo”, enfatiza a carta. Os controladores argumentaram que a incom-
patibilidade entre a vida militar e o controle de tráfego aéreo já foi denunciada pela Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Estamos trabalhando com os fuzis apontados para nós, vários representantes de associações legais estão sendo perseguidos, com afastamentos e transferências arbitrárias”, afirma o documento.
REIVINDICAÇÕES As principais reivindicações dos controladores de tráfego aéreo são o fim das perseguições e o início da desmilitarização. Em acordo firmado com os trabalhadores,
no dia 31 de março, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e a secretária-executiva da Casa Civil, Erenice Guerra, se comprometeram a fazer a revisão dos atos disciplinares militares, como transferências e afastamentos ocorridos nos últimos seis meses. Eles também asseguraram que não seriam praticadas punições em decorrência do aquartelamento ocorrido no dia 30. Segundo a minuta da negociação, o ministro se compromete a abrir um canal permanente de negociação com representantes da categoria, inclusive com os controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro e para a implantação gradual de uma solução civil, a partir deste mês. “A promessa do governo tem sido de nos ouvir e isso tem sido feito. O que aconteceu foram promessas de batalha. Eu vejo as sugestões sendo atendidas pela comissão interministerial na sua plenitude para trazer um sistema de tráfego aéreo mais eficiente. Não estou falando que a Força Aérea não seja eficiente, só que ela chegou ao limite de expansão e de evolução”, admite Trifillio, da Febracta. Porém, apesar do trato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comunicou, no dia 3, que a Aeronáutica reassumiria o comando das negociações sobre a crise aérea.
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AMÉRICA LATINA DITADURAS Imagens: reproduções
As asas do condor ainda sob o Cone Sul Militares sul-americanos seguem trocando informações sobre “subversivos”, garante o jurista Martin Almada Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)
O
advogado paraguaio Martin Almada assegura que a Operação Condor continua vigente na América do Sul. Foi ele que, no início da década de 1990, descobriu os arquivos e comprovou a existência desse esquema de colaboração entre os regimes militares de Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. A união dos aparatos repressivos desses países contra militantes de esquerda começou nos anos 1970 e, oficialmente, teria se encerrado na década seguinte. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Almada afirma que, com exceção do governo argentino, falta vontade política aos governos latino-americanos para terminar com a impunidade de figuras que, nos anos de chumbo, assassinaram e torturaram jovens combatentes que se insurgiram contra as ditaduras. Finalmente, Almada analisa a conjuntura no Paraguai e fala sobre a real possibilidade de vitória do exbispo Fernando Lugo nas eleições presidenciais de 2008. Lugo enfrenta sérias objeções da oligarquia que não se conforma com o surgimento de um nome que possa desbancar o Partido Colorado. Brasil de Fato – Como você descobriu os arquivos da Operação Condor? Martin Almada – Isso foi fruto de mais de 15 anos de investigação. Em 26 de novembro de 1974, quando voltei a Assunção depois de terminar meus estudos superiores na Universidade de La Plata, na Argentina, fui seqüestrado pela Polícia Política de Alfredo Stroessner (ditador paraguaio de 1954 a 1989) e levado a um tribunal militar. Este era integrado pelos adidos militares de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai, além de militares e políticos paraguaios. Um coronel chileno e o chefe de polícia da província de Córdoba (Argentina) ordenaram que eu fosse torturado. Fiquei na sala de tormento durante 30 dias. Finalmente, os militares tipificaram meu delito como “terrorista intelectual”. Depois, fui transferido para o Comissariado Primeiro, a sede da Interpol. Soube, então, da Operação Condor, estando em seu ventre, por meio de um comissário que estava preso conosco. Isso foi em abril ou maio de 1975 e a Condor só foi criada, oficialmente, em fins de novembro ou dezembro daquele ano. O comissário estava informado porque trabalhou no Escritório de Telecomunicações da Polícia, onde recebia todos os telex. Caiu preso por não ter delatado que seu filho integrou o Centro de Estudantes de La Plata (Argentina), quer dizer, tornou-se “subversivo”. Um dia, o comissário me disse: “Olhe, Martin, se tu sai vivo daqui tens de ler a Revista Policial do Paraguai, ali está tudo sobre a Condor. BF – E como você saiu? Almada – Fiz greve de fome durante 30 dias e saí em setembro de 1977. Em fevereiro de 1978, viajei ao Panamá, cujo presidente, o general Omar Torrijos, pediu ao secretário-geral das Nações Unidas que me arranjasse um trabalho. Foi assim que a Unesco de Paris me contratou como con-
sultor para América Latina (19781992). Nas horas livres, pesquisei os passos do Condor pela Revista Policial do Paraguai. Em 3 de fevereiro de 1989, caiu a ditadura de Stroessner. Mudou-se a Constituição, que contemplou a figura jurídica do hábeas-data, estabelecendo que “toda pessoa tem o direito a ter acesso à informação e aos dados sobre si mesma”. Eu queria saber detalhes sobre a morte de minha esposa, a educadora Celestina Perez, e também o que significava ser um “terrorista intelectual”. Por isso, recorri à Justiça pedindo que a polícia fornecesse meus antecedentes, mas ela negou a existência deles. BF – E o que você fez, então? Almada – Pedi a abertura do arquivo da polícia, fato publicado na imprensa, e recebi uma chamada telefônica de uma mulher que me disse: “Professor Almada, seus papéis não estão na Central de Polícia, mas sim nos arredores de Assunção”. Convidei-a para passar no meu escritório. Uma hora depois, ela me traçou um plano. Disse que confiava muito em mim e se despediu. Levei esse plano ao juiz que estava conduzindo meu recurso de hábeas-data, dr. Jose Agustin Fernandez, e ele decidiu abrir os arquivos do Comissariado de Lambaré, a 12 quilômetros de Assunção. Isso foi em 22 de dezembro de 1992. Encontramos toneladas de documentos... Quem foi a mulher que me traçou o plano? Soube muito mais tarde que foi a esposa de um comissário que fugiu com uma menina muito mais jovem. Ela me traçou o plano por despeito.
A situação brasileira é ainda pior porque o Exército nunca permitiu que se investigasse seus crimes de lesahumanidade e muito menos que se entregasse à Justiça os documentos da Operação Condor BF – Nestes 15 anos subseqüentes à revelação da Operação Condor, foi feita justiça com relação às violações de direitos humanos na América do Sul? Almada – A Operação Condor foi um pacto criminoso entre os militares de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. No Paraguai, foram enviados ao cárcere os “torturadores” da Polícia Política, mas os autores morais e intelectuais, os militares, continuam impunes e com muita riqueza, fruto dos roubos aos cofres do Estado e da oposição. Quando falo com os militares sobre o tema, eles dizem que cumpriram ordens da embaixada estadunidense em Assunção. Realmente, para nós, o terrorista mundial número 1 chama-se Henry Kissinger, o segundo é George W. Bush e o terceiro Osama bin Laden, sócio deles. BF – Os fundamentos da Operação Condor seguem vigentes? Almada – Sim.
Nas fotos, Henry Kissinger “ontem” e “hoje”. Mentor da Operação Condor, o secretário de Estado dos Estados Unidos de 1973 a 1977 (cargo que é hoje ocupado por Condoleezza Rice) é considerado por Almada o terrorista número 1 do mundo. “O segundo é George W. Bush e o terceiro Osama bin Laden, sócio deles.” Em março de 2005, FHC, durante conferência em Washington, saudou Henry Kissinger “como um velho amigo que ajudou a mudar o mundo”. Entre as obras do “velho amigo” está o golpe que derrubou e matou o chileno Salvador Allende – presidente de um país que acolheu FHC em dias difíceis. Ao lado, mapa dos países participantes da Operação Condor. Em vermelho, os participantes ativos, em rosa, os colaboradores.
BF – E como se manifestam? Almada – Encontramos um documento militar paraguaio de 10 de julho de 1997, no qual o coronel Francisco Ramon Ledesma, oficial do Exército, diz ao coronel equatoriano Jaime del Castillo Baeza, secretário-executivo da XXII Conferência de Exércitos das Américas (CEA), que estava remetendo a lista dos subversivos de seu país como contribuição do Exército paraguaio para que Baeza elaborasse a lista dos subversivos da América Latina. A pedido de organizações de direitos humanos, o juiz penal Jorge Bogarin Gonzalez ordenou que o coronel paraguaio prestasse declaração. Isso ocorreu em 9 de outubro de 1997. O coronel paraguaio, que nunca viu a cara da Justiça, assustou-se e revelou ao juiz que a reunião da CEA ocorreu em novembro de 1995, em Bariloche (Argentina), com a presença dos ex-presidentes da Argentina, Carlos Menem (19901999), e do Chile, Augusto Pinochet (1973-1990), fornecendo os nomes dos militares paraguaios participantes. Seguimos a pista e descobrimos que, em novembro de 1997, reuniram-se os militares latino-americanos em Quito (Equador), onde trocaram uma lista de subversivos. Posteriormente, reuniram-se em La Paz (Bolívia), sob a presidência de Hugo Banzer (1997-2001). Nessa ocasião, segundo os militares paraguaios que assistiram ao evento, foi acordada uma exigência pela imediata libertação de Pinochet, então preso em Londres, por ordem do juiz Baltasar Garzón, acusado de crimes de lesa-humanidade. BF – Quais sugestões você faria aos governos democráticos do continente para que se faça justiça em relação às pessoas envolvidas naquele período de forte repressão? Almada – Com exceção do presidente Néstor Kirchner, da Argentina, nenhum governo latino-americano tem realmente vontade política de fazer justiça. Por exemplo, no Chile, o governo de Michelle Bachelet tem um discurso progressista, mas, na prática, é de direita, ao permitir que a morte alcançasse Pinochet impune e ao aceitar as honras militares ao ex-ditador. Mas a situação brasileira é ainda pior porque o Exército nunca permitiu
que se investigasse seus crimes de lesa-humanidade e muito menos que se entregasse à Justiça os documentos da Operação Condor. Devemos investigar o passado não só para castigar e condenar, mas, fundamentalmente, para aprender. BF – Como está a situação no Paraguai? Almada – No Paraguai, do presidente Nicanor Duarte, há uma pobreza explosiva. O atual governo se caracteriza por exportar seus pobres para a Espanha e Argentina ao aplicar em toda a plenitude a política ordenada por Washington. Além disso, o que temos de combater não é a extrema pobreza, mas sim a extrema riqueza e a sua concentração nas mãos de uma limitada oligarquia herdeira da ditadura de Stroessner. BF – Nas eleições de 2008, é possível a vitória de um candidato que não seja do Partido Colorado, ao qual pertenceu o ditador Stroessner? Almada – O povo paraguaio quer a alternância de poder, mas o oficialismo não sabe interpretar os sinais dos tempos. Stroessner endividou o Estado para que os pobres paguassem essas dívidas e as empresas privadas aumentassem seus benefícios. Em 3 de fevereiro de 1989, o regime político mudou, mas não mudou a natureza corrupta do Estado imposto por Stroessner. Por isso, há uma consciência clara dos de baixo de que não há ninguém que represente seus interesses. Segundo as últimas pesquisas, Fernando Lugo, ex-bispo católico, é o candidato favorito. BF – Que possibilidades efetivas ele tem de conquistar a Presidência enfrentando a máquina do Partido Colorado? Almada – No Paraguai, repetese o fenômeno argentino do ano 2000, na base da palavra de ordem “Que se vayan todos!”. Nesse cenário, Lugo pode vencer a infernal maquinaria oficialista.
BF – Então, vai ser difícil impedir a sua candidatura, como querem os setores conservadores? Almada – O oficialismo, a burguesia e a hierarquia católica continuam seus ataques a Lugo, o candidato dos que não têm voz. O povo paraguaio tomou consciência de que foi vítima da democracia de marketing, com promessas não cumpridas e enganações, por mais de 60 anos. Da economia de mercado passamos à sociedade de mercado e para governos de mercado. Lugo recebe diariamente massivas adesões que desesperam os governantes. Parafraseando um destacado geógrafo brasileiro que escreveu a A Geografia da Fome, Josué de Castro: no Paraguai, os ricos não podem dormir porque têm medo dos pobres e os pobres não podem dormir porque têm fome. BF – Quando acha que a candidatura de Fernando Lugo vai se definir, ou seja, não haverá mais tentativas de impugnação? Almada – A candidatura de Lugo está definida. Ele tem dois caminhos muito importantes a superar e entrar na corrida. Primeiro, exigir a renúncia dos cinco ministros da Corte Suprema de Justiça que avaliam a violação da Constituição Nacional por ele, supostamente, ainda ser bispo. Segundo, exigir a renúncia dos três ministros da Justiça Eleitoral, a serviço total do oficialismo. Para conquistar estes dois objetivos seguiremos inundando a Justiça de exigências e as ruas de protestos.
Quem é O advogado paraguaio Martin Almada recebeu, em 2002, o Prêmio Nobel Alternativo da Paz e é um dos expoentes latino-americanos na denúncia das ditaduras da região. Integrante da Associação dos Juristas Americanos, foi ele quem descobriu os arquivos da Operação Condor.
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AMÉRICA LATINA COLÔMBIA
Ligações perigosas: milícias, Uribe e EUA Arquivo Brasil de Fato
Documentos dos EUA e acusação à transnacional Chiquita iluminam conexões entre governo, empresas e paramilitares Igor Ojeda da Redação
O
elo entre Estado, transnacionais e grupos paramilitares de direita na Colômbia ficou explícito por mais duas vezes em menos de um mês. No dia 29 de março, uma série de documentos estadunidenses – datados de 1994 a 2002 – foram publicados pelo National Security Archive (NSA, Arquivo de Segurança Nacional), revelando a ligação entre o governo colombiano e os paramilitares, além do fortalecimento destes últimos desde 1997. O NSA é uma organização não-governamental que coleta e publica documentos que deixaram de ser confidenciais e que são obtidos através do Ato de Liberdade de Informação. Anteriormente, no mesmo mês, a transnacional Chiquita Brands International, corporação estadunidense do setor de bananas, admitiu financiar, entre 1997 e 2004, o grupo paramilitar Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), com 1,7 milhão de dólares. A AUC está envolvida em uma série de massacres de civis nos últimos dez anos. A acusação à empresa foi feita pelo Departamento de Justiça dos EUA em 13 de março. No texto do processo, está a afirmação de que pelo menos 825 mil dólares foram enviados ao grupo paramilitar depois dele ter sido considerado uma organização terrorista internacional pelo Departamento de Estado estadunidense, em 2001. A empresa concordou em pagar uma multa de 25 milhões de dólares ao governo dos EUA.
ACORDO O processo detalha como o chefe da AUC, Carlos Castaño, acertou os pagamentos com a Banadex, subsidiária da empresa de frutas na Colômbia, em 1997: “Ele informou ao gerente geral da Banadex que a AUC estava prestes a expulsar a guerrilha Farc de Urabá (centro das operações da empresa no país)” e também que “o fracasso nos pagamentos poderia resultar em danos físicos ao pessoal e à propriedade” da empresa. O Departamento de Justiça estadunidense listou mais de cem pagamentos nos sete anos de relações; 50 destes feitos depois que a AUC passou a ser considerada terrorista pelos EUA. Mario Iguarán, procurador-geral da Colômbia, disse que irá pedir a extradição de oito executivos da Chiquita envolvidos no caso. Ele irá investigar também a acusação de que, em 2001, um navio descarregou 3.400 fuzis AK-47 e munições destinados à AUC em um porto colombiano controlado pela Chiquita. Os documentos estadunidenses divulgados pelo NSA mostram que o período em que a AUC ganhou força
Documentos comprovam que desde 1997 governo (no detalhe, o presidente Álvaro Uribe) fortalece paramilitares do país; transnacional estadunidense do setor de bananas, Chiquita, financiou a Autodefendas Unidas de Colombia (AUC) com cerca de US$ 2 milhões, e abriu um de seus portos para receber um carregamento de 3.400 fuzis AK-47
coincide com o financiamento da Chiquita e que o grupo se desenvolveu nas regiões onde a produção de banana era mais presente. Além disso, revela que o Estado e as Forças Armadas colombianas não só fizeram “vistas grossas” à atuação dos paramilitares, como forneceram apoio a eles em muitos momentos.
GOVERNO Outra revelação importante da acusação do Departamento de Justiça estadunidense é a de que os pagamentos da Chiquita à AUC eram muitas vezes feitos ilegalmente através de um programa do governo colombiano conhecido como Convivir (Conviver), uma rede de cooperativas rurais de segurança estabelecida pelo Exército para policiar o campo e obter informações sobre as guerrilhas de esquerda, como as Farcs e a ELN. É aí que entra o atual presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. Quando era governador de Antioquia, onde está Urabá, ele foi o padrinho do
Convivir no estado. Logo que assumiu a Presidência, em 2002, Uribe anunciou a implementação de programas similares no país, com a utilização de soldados civis organizados em milícias locais. O caso Chiquita e a divulgação dos documentos chegam justamente no meio de um escândalo de grandes proporções – apelidado de “parapolítica” – que vem atingindo e derrubando políticos colombianos nos últimos meses. Pessoas muito próximas ao presidente estão sendo acusadas de fortes ligações com os paramilitares, espe-
cialmente a AUC. No final de março, o jornal estadunidense Los Angeles Times publicou uma matéria revelando que um relatório da CIA acusa o chefe do Exército colombiano, general Mario Montoya (um dos principais conselheiros de Uribe), de planejar e executar uma operação do Exército em conjunto com paramilitares da cidade de Medellín. Pelo menos 14 pessoas morreram e outras dezenas estão desaparecidas.
PRODUTIVIDADE Entre os documentos divulgados pelo NSA, estão
um telegrama da Embaixada dos EUA na Colômbia em que um chefe da polícia de inteligência colombiana admite que suas forças não agiam nas regiões do país sob controle do AUC; relatórios da CIA sobre as ligações do Exército da Colômbia com os paramilitares, onde é descrito, por exemplo, o pouco empenho dos oficiais das Forças Armadas em combater esses grupos; e um relatório da inteligência militar estadunidense sobre a afirmação de um coronel colombiano de que o programa Convivir teria grande
Histórico de massacres A Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), formada em abril de 1997, possui extensa lista de massacres, seqüestros e assassinatos – em sua grande maioria, de civis – nos seus dez anos de atuação. Logo quando nasceu, em julho de 1997, os paramilitares foram responsáveis pela morte de pelo menos 30 pessoas em Mapiripán, um povoado no sudeste do país controlado pela guerrilha. Cerca de 200 homens da AUC foram de Urabá até o
local, e tiveram sua entrada e saída facilitadas por tropas locais do Exército colombiano. Em novembro do mesmo ano, a ligação da AUC com o Convivir ficou clara. De acordo com um telegrama enviado pela Embaixada dos EUA na Colômbia, um dos responsáveis pelo massacre de 14 camponeses em La Horqueta, uma vila perto de Bogotá, a capital, foi identificado como sendo o presidente do programa em Urabá. (IO)
potencial de se transformar em paramilitarismo. Um deles, um relatório do Departamento de Defesa dos EUA, descreve a afirmação de um coronel aposentado do Exército colombiano sobre a “obsessão” dos oficiais com a apresentação de números de baixas dos inimigos. Isso fez com que, segundo ele, a utilização de grupos paramilitares como “procuradores” do Exército na guerra contra a guerrilha fosse permitida. O governo de Álvaro Uribe desenvolveu um programa de desmobilização das forças paramilitares – chamado Justiça e Paz – que prevê redução drástica das penas aos líderes desses grupos que voluntariamente confessarem seus crimes e pagarem reparações a suas vítimas. Além dos benefícios concedidos aos paramilitares, o programa é criticado pelo fato de a comissão responsável por esse processo não estar autorizada a investigar crimes de Estado ou as ligações entre governo e paramilitares.
Justiça brasileira liberta porta-voz das Farc Arquivo Brasil de Fato
Tatiana Merlino da Redação Depois de ficar um ano e quatro meses preso, o porta-voz da Comissão Internacional das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o expadre Olivério Medina, foi libertado. Em 21 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou o pedido do governo da Colômbia para extradição de Medina, acusado pela Justiça colombiana de “homicídio com fins terroristas”. Durante o julgamento, a maioria dos ministros decidiu que Medina não poderia ser extraditado porque ganhou do governo brasileiro a condição de refugiado político, impedindo o prosseguimento de qualquer pedido de extradição. Em julho de 2006, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) brasileiro concedeu a Medina o status de refugiado. Foi a primeira
concessão de refúgio determinada pelo órgão a uma pessoa envolvida em processo de extradição. De acordo com Edson Albertão, vereador de Guarulhos (P-SOL-SP), um dos responsáveis pela articulação de apoiadores ao portavoz colombiano, a decisão é uma vitória muito importante para os movimentos sociais e defensores de direitos humanos e demonstra que o Brasil adota uma política de não intervenção no conflito colombiano. “Caso houvesse a extradição, o país estaria se intrometendo na política colombiana. Essa decisão significa a não aceitação da manutenção do conflito”, afirma o vereador, que acredita que, se fosse enviado ao governo colombiano, Medina poderia ser morto. Essa também foi a argumentação utilizada pelo advogado do porta-voz das Farc, Ulisses Borges, com os ministros do Supremo.
O ex-padre Olivério Medina ganhou status de refugiado político
Segundo Borges, para conseguir status de refugiado, o ex-padre se comprometeu, por meio de uma carta, a se afastar do conflito político na Colômbia.
PEDIDO DE EXTRADIÇÃO O Ministério das Relações Exteriores da Colômbia solicitou, em julho de 2006, ao governo brasileiro que revisasse o estatuto de refugiado do ex-padre e reiterou
o pedido de extradição apresentado em 15 de setembro de 2005. Após a detenção de Medina, em agosto de 2005, feita por meio de uma operação conjunta da Polícia Federal e da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) no Brasil, entidades de direitos humanos, sindicatos, movimentos e partidos de esquerda criaram um comitê exigindo sua imediata liber-
tação. As organizações condenaram a prisão, que responderia também aos planos do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que com apoio do mandatário colombiano Álvaro Uribe desenvolve no país andino o Plano Patriota, iniciativa militar para reprimir os guerrilheiros das Farcs. De acordo com o vereador Albertão, mesmo comprometido a “se manter fora do conflito em seu país”, o ex-sacerdote deveria ter liberdade para manifestarse a respeito do conflito na Colômbia, que “hoje vive uma crise enorme, com escândalos das revelações das ligações de Álvaro Uribe com os paramilitares”. Oito parlamentares de sua base estão presos por ligação com os paramilitares. A ministra das Relações Exteriores da Colômbia, María Consuelo Araújo, renunciou ao saber que seu pai e seu irmão estavam entre os presos.
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CULTURA
De 12 a 18 de abril de 2007
PERFIL
Contra os preconceitos, a música Madina N’Diaye, artista do Mali, desafiou a ordem estabelecida e decidiu tocar a kora, proibida para as mulheres a ser solicitada para outras manifestações e cerimônias oficiais da escola, até entrar para um grupo de teatro. Mas a música teve que esperar. Madina tentou seguir seus estudos em uma escola de administração, mas não conseguiu passar nos exames. No Instituto de Jovens Cegas (IJA, sigla em francês), onde fez parte do ensino fundamental por já apresentar algumas dificuldades com a visão, disseram que ela tinha talento para a música. “Eles estavam convencidos de que eu poderia ter uma carreira artística brilhante e insistiram para eu entrar no Instituto Nacional de Artes (INA). Mas naquele momento eu estava determinada a estudar contabilidade!”, brinca. Madina conseguiu um trabalho de gerente em um posto de gasolina, até ser convencida pelos professores do IJA a estudar música. “Uma colega minha do INA dizia que eu perdia meu tempo, que uma mulher não podia tocar este instrumento sagrado: a kora é considerada uma mulher, e a sociedade não poderia tolerar que uma mulher se apaixonasse por outra.” Para Madina, não há feminilidade nenhuma na kora, mas ela também não vê ali nenhuma masculinidade. A música, diz, é para todos.
B
ébé dirige um táxi, Astan é carpinteira, Bintou é deputada, Fanta é pilota pára-quedista. E Madina N’Diaye, cantora maliana que as homenageia em sua música, toca a kora, um instrumento tradicionalmente proibido para as mulheres em seu país. Compositora e intérprete apaixonada pelo ritmo mandingue, Madina encantou os franceses com sua voz pura e seu engajamento pela causa feminina desde 2003. Ela havia acabado de perder a visão definitivamente após uma grave infecção nos olhos, no dia 24 de outubro de 2002. A cegueira, porém, era apenas mais um dos obstáculos a enfrentar. Para fazer sua música, ela contrariou a casta dos griôs – artistas que se dizem detentores da permissão para tocar o instrumento. “Chegaram a dizer que eu fiquei cega por causa da minha insistência”, conta. A kora, que seria o equivalente a uma harpa, possui 21 cordas e é confeccionada com fios de pesca e uma cabaça revestida de couro de vaca. Um dos “virtuosos da kora”, Toumani Diabaté, presenteou Madina com o instrumento em 1993, uma surpresa que a fez chorar. Treze anos depois, foi com esse presente que Madina fez seus shows na França e gravou seu primeiro álbum, Bimogow.
COMPROMETIMENTO Suas letras falam da bravura e da abnegação das mulheres e celebram o amor e a paz que “fazem tanta falta para a humanidade”. Ela se opõe, também, a todo tipo de discriminação, e aborda a migração dos povos em várias canções. “Os homens pensam que as mulheres são incapazes de fazer o que eles fazem. Mas eu, Madina,
DESCOBERTA Tudo começou numa escola da periferia de Bamako, capital do Mali, no bairro de Moribabougou. Uma professora pediu a Madina que cantasse em uma apresentação, e desde então ela passou
Para fazer sua música, ela contrariou a casta dos griôs – artistas que se dizem detentores da permissão para tocar o instrumento. “Chegaram a dizer que eu fiquei cega por causa da minha insistência”, conta
Divulgação
Fernanda Campagnucci de Lyon (França)
eu toco a kora...”, diz, em “Mussow” (Glória às mulheres). Em “Tounkan” (êxodo, ou exílio), Madina denuncia os abusos cometidos pelas autoridades francesas que repatriam imigrantes clandestinos à força, em vôos fretados. Para ela, a arte é antes de tudo engajamento: “É um meio de expressão de suas convicções sociopolíticas e culturais. Eu sou uma artista engajada e uma mulher emancipada”. E emanciparse significa poder exercer as mesmas profissões que
os homens, segundo Madina N’Diaye. “Tocando a kora, eu levo a vida com meu suor, como os homens. É o que temos em comum com eles. Fora isso, um homem e uma mulher se completam no lar e na vida.” Essa mulher de fala tranqüila passa longe do conformismo. “Em vez de me abater, as discriminações e toda essa maldade gratuita só me fizeram redobrar minha vontade de aprender a tocar a kora, esse instrumento místico e misterioso.” Madina nunca se desani-
mou após a perda da visão, que ela afirma ter melhorado muito sua música. “Antes, se uma corda da kora se soltava, eu não era capaz de colocá-la de volta. E deixar de ver foi, de uma certa forma, uma oportunidade de viver melhor, com uma dupla sensibilidade.” Ela não se separa do seu “ditafone”, em qualquer viagem que faça: a qualquer momento, a qualquer som, a inspiração pode aparecer e é bom que o gravador esteja lá. E é só a kora que é proibida às mulheres, no Mali?
“Claro que não”, Madina diz, apontando em seguida para o kamalen n’goni, um instrumento de seis cordas, encostado na parede. “Na minha língua, kamalen n’goni quer dizer ‘instrumento tocado pelos homens’. Pois eu o toco também.” SERVIÇO O álbum Bimogow é distribuído pela Harmonia Mundi, mas é possível escutar três de suas faixas no site www.myspace.com/ madinandiayemusic
DOCUMENTÁRIO
Eduardo Sales de Lima da Redação Uma abordagem dos problemas sociais e ambientais que latifundiários e políticos impõem à Amazônia desde a década de 1970. Essa é a proposta do documentário Nas Terras do Bem-Virá, de Alexandre Rampazzo e Tatiana Polastri, que recebeu menção honrosa no festival É Tudo Verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro, no final de março. Na época, o lema do governo militar era: “Homens sem terras do Nordeste para terras sem homens na Amazônia”. Esse encaixe foi tão imperfeito que a temática do documentário perpassa a devastação da floresta, o conflito fundiário e o trabalho escravo. Relata a trajetória dos “severinos” nordestinos, que já não rumavam para o litoral pernambucano, mas para o trabalho forçado nas fazendas de gado e soja, impossibilitados de retornar às suas casas. O período de filmagem nas 29 cidades do Norte e Nordeste foi de quatro meses. O longa inicia-se na cidade de Barras, interior do Piauí, onde vilarejos inteiros vivem o mesmo drama: não
Divulgação
Amazônia, o avanço do agronegócio pela escravidão
Mais informações sobre o documentário: Tatiana Polastri e Alexandre Rampazzo E-mail: eclipseproducoes@terra.com.br / telefones: 11 9253-3142/11 3586-1608
há trabalho e a terra é controlada por latifundiários. Os homens saem de lá e chegam ao Pará com um desejo de conseguir uma maneira para sustentar a família, que ficou. O serviço é desmatar as florestas, tanto para ampliar ou abrir novas fazendas voltadas ao agronegócio. “Entrevistamos os familiares, no Piauí e no Maranhão. Em Tocantins e no Pará, fizemos algumas entrevistas em acampamentos. Havia casos de trabalhadores que já tinham sido vítimas de trabalho
escravo. Relacionamos o fato de não haver terra para todos e ser esse um dos motivos de eles caírem nesse tipo de ‘relação trabalhista’ também”, conta Tatiana Polastri,
AUTO-ORGANIZAÇÃO O que mais chamou a atenção de Rampazzo foi a auto-estima dos trabalhadores que vivem abaixo da linha da miséria, mas tentam mudar sua situação por meio da auto-organização. “Quando pertenciam ao movimento dos trabalhadores,
eles te olhavam nos olhos, de cabeça erguida, sabiam da situação, mas sabiam de seus direitos”, destaca o produtor Alexandre Rampazzo. O documentarista aponta a existência de um tipo de escravidão funcional para os migrantes conhecidos como “peões do trecho”. O trabalhador fica por algum tempo na pensão, adquire dívida com a proprietária, até que chega o empreiteiro, conhecido na região como “gato”, e recruta esse trabalhador. O “gato” pagava sua “dívida”
com a dona da pensão, mas o trabahador adquire outra, com o empreiteiro. “Há pessoas que estão há 15, 20 anos nesse ciclo, ficam sem dinheiro nenhum e não conseguem retornar à família”, diz Rampazzo. O aumento da escravidão caminha junto com a fronteira agrícola, deixando rastros de violência e destruição ambiental. Essa devastação, que até pouco tempo se concentrava no sul do Pará, hoje encontra-se na região da Terra do Meio, justamente onde foi assassinada a missionária Dorothy Stang. “Sentimos um cheiro de pólvora no ar. O próprio presidente da Câmara Municipal de Anapu, Jurandir Plinio de Souza (PP-PA), um dos envolvidos, expulsou-me da Câmara Municipal da cidade. Ele disse “Vocês são de São Paulo, não conhecem a realidade daqui”, conta Rampazzo. O documentarista afirma que, entre todos os entrevistados, existem pelo menos dez pessoas que correm o risco real de serem assassinadas. O bispo da região de Altamira, dom Erwin Klauter, por exemplo, celebra a missa com colete.
O esforço de fazer um documentário audiovisual sobre todo o ciclo do trabalho escravo na região amazônica até a conseqüente devastação da floresta e os assassinatos de líderes populares foi apenas a primeira etapa do desafio dos jovens produtores. Para denunciar a exploração humana e ambiental, Tatiana e Alexandre contaram com a colaboração de sindicatos locais e da Comissão Pastoral da Terra regional (CPT). “Dormíamos onde dava. Em Anapu (PA), dormimos no quintal da casa de um padre, numa rede”, relata Tatiana Polastri. A segunda etapa do desafio é a obtenção de recursos para financiar a exibição do trabalho. Rampazzo afirma que meia dúzia de famílias controla a mídia nacional, e no cinema não é diferente, restando migalhas para a grande maioria de produtores. “Em nosso trabalho não recebemos um centavo da Lei de Incentivo. É uma grande dificuldade financiar algo que denuncie o agronegócio, ou mesmo que questione a privatização da Companhia Vale do Rio Doce”, desabafa o documentarista. O filme não tem previsão para estrear no circuito comercial.