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Ano 5 • Número 216

Uma visão popular do Brasil e do mundo

R$ 2,00

São Paulo • De 19 a 25 de abril de 2007

www.brasildefato.com.br Fernando Pinheiro

No dia 15, cerca de 500 famílias do MST ocuparam área de 10 mil hectares do Exército brasileiro, no município de Papanduva, Santa Catarina

Lutas se intensificam em abril Sem-terra, sem-teto, indígenas e desempregados se mobilizam em todo o país contra as injustiças sociais

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taram em praças de pedágio e transnacionais. Já os sem-teto, da União Nacional por Moradia Popular organizaram atos em 12 Estados para cobrar a inclusão de pessoas de baixa renda em financiamentos habitacionais. E os cerca de mil indígenas, acam-

EDITORIAL

pados em Brasília, exigem novas demarcações de terra. Soma-se à agenda de luta e organização neste mês de abril a realização, em Porto Alegre, do 1º encontro nacional do Movimento dos Trabalhadores Desempregados. Págs. 3, 4, 5 e 6

Vitória do “sim” ao povo latino-americano Marcello Casal Jr/ABr

ara exigir reforma agrária e o assentamento imediato das 140 mil famílias acampadas pelo país, trabalhadores sem terra, organizados pelo MST, ocuparam latifúndios (incluindo um do Exército), realizaram atos em prédios públicos e protes-

Ato marca dez anos do assassinato do índio Galdino dos Santos no local onde ele foi morto

Documentos dos Veto à emenda 3 EUA detalham recebe apoio da morte de civis CUT e Conlutas Quase sempre escondida da opinião pública, a chocante realidade das invasões dos Estados Unidos ao Iraque e ao Afeganistão ficou exposta no dia 12, quando foram divulgados documentos do governo estadunidense em que familiares de civis mortos nas duas guerras pedem, oficialmente, compensação financeira por suas perdas. Nas solicitações, em sua maioria negadas, o comportamento das tropas de ocupação no Oriente Médio é contado em detalhes. É uma família inteira morta enquanto dormia em sua casa. Um filho assassinado em um posto de checagem. Ou então um menino atingido em meio a uma multidão alvejada por soldados. Pág. 7

A CUT e a Conlutas se mobilizam a favor do veto à emenda 3 da lei que criou a Super-Receita. Para as entidades, sua cassação pode flexibilizar direitos. Pág. 4

A competição na sociedade do espetáculo O jornalista Silvio Mieli analisa o Big Brother Brasil e sentencia: programas assim “atraem e paralisam o espectador, despotencializando-o”. Pág. 8

“E

ssa é uma vitória para o povo, para a democracia e para o nosso país”, declarou o presidente do Equador, Rafael Correa, domingo, quando as pesquisas de boca de urna esclareciam, sem sombra de dúvida, que havia vencido o “sim”, com pelo menos 78% dos votos dos 9,2 milhões de eleitores equatorianos, no plebiscito para a convocação de uma nova Assembléia Constituinte. A extraordinária vitória de Correa, que assumiu o mandato presidencial em janeiro, garante ao seu governo mais força e legitimidade para implementar o seu programa, incluindo o fim da extensão da concessão para uma grande base militar dos Estados Unidos, a renegociação de acordos de petróleo, a reestruturação da dívida nacional e outras reformas reclamadas pela Conaie (Confederação Nacional dos Povos Indígenas do Equador) e camponeses. “É fundamental a elaboração de temas que devem fazer parte das discussões da Assembléia Constituinte e da nova Constituição, como a defesa da soberania, a nacionalização dos recursos naturais, a defesa da biodiversidade e a revolução agrária”, declara Luis Macas, presidente da Conaie. As comunidades e organizações de base indígenas pretendem elaborar um corpo de propostas para moldar a nova estrutura política, partidária, jurídica e econômica do país. Há uma forte consciência de que “apenas a unidade das organizações sociais do campo e da cidade derrotará os setores da direita que, como não podem deter a Constituinte, tentarão atacá-la para impor os seus interesses”, afirma Humberto Cholango, da Confederação dos Povos Kichwas do Equador, a organização

mais poderosa da Conaie. A direita, é claro, não se conforma. “Esse governo é uma mescla de caudilhismo do século 19, de populismo da metade do século 20, de socialismo arcaico e de neofacismo”, afirma o expresidente do Equador Osvaldo Hurtado, líder da União Democrata Cristã, que encabeçou a campanha pelo “não”. Não por acaso, são acusações idênticas às que a direita faz contra Hugo Chávez, na Venezuela. A vitória do “sim” demonstra a força de um movimento revolucionário muito profundo na sociedade equatoriana, que nos últimos sete anos foi responsável pela tomada do palácio presidencial, em janeiro de 2000; pela eleição, em 2003, de um coronel do Exército (Lucio Gutiérrez) que assumia um discurso nacionalista e que, no poder, resolveu “esquecer” todos os seus compromissos com o povo; pela deposição, em 2004, desse mesmo coronel; e, finalmente, pela derrota, em janeiro de 2007, de um candidato bilionário (Álvaro Noboa) que jogou todas as suas fichas contra Correa. Como aconteceu na Venezuela, a Assembléia Constituinte equatoriana nasce com a inequívoca vocação de re-fundar o Estado sobre novas bases, sobre os escombros do falido sistema representativo liberal burguês. Exatamente por isso, no panorama da América Latina, a vitória do “sim” reforça a tendência à radicalização da luta antiimperialista. Oxalá prospere!

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DEBATE

CRÔNICA

As eleições na França: perigo à vista! Michael Löwy a França, a conjuntura das eleições presidenciais de abril e maio não se apresenta muito favorável para a esquerda: as sondagens indicam que o conjunto das forças de esquerda, da social-democracia aos revolucionários, está com o índice de apoio mais baixo desde 1969. Como se sabe, as eleições para presidente na França se dão em dois turnos: no primeiro, que será no dia 22, disputam 12 candidatos; no segundo, em 6 de maio, só participarão os dois primeiros do primeiro turno. O favorito – perto de 30% da opinião pública – parece ser o candidato da direita, o ex-ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, adepto do neoliberalismo e de uma aproximação com o governo Bush. Agitando o espectro da “insegurança”, Sarkozy promete mais repressão contra os imigrantes sem documentos e contra a juventude rebelde dos bairros periféricos – em boa parte de origem árabe ou africana – que ele tratou de “canalha” (racaille, em francês). Disputa com Sarkozy o voto reacionário o candidato da extrema direita, Jean-Marie Le Pen, herdeiro da tradição fascista – do regime de Vichy – e colonialista – guerra da Argélia – francesa. Anti-semita, racista e xenófobo, Le Pen quer “limpar” a França dos imigrantes árabes e africanos, que ele acusa, mentirosamente, de serem responsáveis pelo desemprego e pela delinqüência. Infelizmente, essa propaganda racista tem tido bastante eco e Le Pen aparece nas sondagens com um apoio de 16%, no mínimo. Nas eleições presidenciais de 2002, Le Pen criou a surpresa, passando ao segundo turno para disputar com o candidato da direita “republicana”, Jacques Chirac. Uma das novidades – pouco simpática – dessa eleição é o sucesso do candidato François Bayrou, que aparece creditado de 20% dos votos; seu partido, de origem democrata-cristão, a UDF, sempre participou de todos os governos de direita. Mas, atualmente, Bayrou se apresenta como candidato do centro, “nem à direita nem à esquerda”, o que é uma mistificação: seu programa neoliberal pouco se distingue do de Sarkozy, salvo em um ou outro detalhe.

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ESQUERDA

A principal força da esquerda na França é o Partido Socialista, que pode ser considerado como uma variante da social-democracia européia, um pouco mais à esquerda que o Partido Trabalhista inglês, de Tony Blair. Sua candidata, Ségolène Royal, aparece com 24% de apoio nas pesquisas; ela promete aos empresários mais lucros e aos trabalhadores um (pequeno) aumento do salário mínimo. Restam ainda Dominique Voynet, candidata do Partido Verde, bastante satelizado pelo Partido Socialista, com uma previsão de 1 a 2%, e a esquerda radical, dividida em quatro candidatos: Arlette Laguiller, candidata já há trinta anos do partido trotskista Luta Operária (2 a 3%); MarieGeorges Buffet, secretária-geral do Partido Comunista Francês (PCF), que se apresenta não como candidata comunista, mas

Economia indígena, vida compartilhada Marcelo Barros

A principal força da esquerda na França é o Partido Socialista, que pode ser considerado como uma variante da social-democracia européia, um pouco mais à esquerda do que o Partido Trabalhista inglês, de Tony Blair. como representante do conjunto da esquerda anti-liberal – sem convencer (2 a 3%); José Bové, antigo porta-voz da Confederação Camponesa e conhecida figura do Fórum Social Mundial e do movimento altermundialista (2 a 3%); e Olivier Besancenot, jovem carteiro, candidato da Liga Comunista Revolucionária (LCR, de origem trotskista), que se refere mais a Che Guevara que a Trotsky. Besancenot é o melhor colocado nas sondagens, entre os candidatos da “esquerda da esquerda”: 3 a 5%, sobretudo entre a juventude. DISPUTAS

A divisão da esquerda radical é bastante desastrosa. Logo depois da vitória do “Não” à Constituição Européia neoliberal, em maio de 2005, se começou a discutir, no seio da esquerda anti-liberal, a possibilidade de um candidato comum. O nome que mais aparecia nessas conversas era o de José Bové. O partido Luta Operária se desinteressou, como de costume, dessa discussão e já lançou sua candidata, Arlette Laguiller. Quanto aos demais, em parte por sectarismo de uns e outros, e em parte por divergências políticas efetivas, o acordo não foi possível. A LCR queria que todos os participantes dessa coalizão se comprometessem a não entrar num governo socialliberal com o Partido Socialista; o PCF não aceitou essa demanda e preferiu deixar a questão em aberto. Se a LCR se declarou disposta a retirar seu candidato se houvesse um acordo político, o PCF pretendia que sua secretária-geral fosse a candidata comum da esquerda radical. Como não houve acordo, os dois partidos lançaram seus candidatos, e os independentes – incluindo os sindicalistas e setores minoritários dos Verdes, do PCF e da LCR – resolveram apresentar José Bové; só que, agora, em vez de ser o candidato unitário comum, ele

aparece como apenas um entre vários, disputando a faixa da esquerda radical. Além disso, uma das dificuldades da “esquerda da esquerda” é a pressão pelo “voto útil”: para evitar o pesadelo de 2002, muitos eleitores da esquerda radical estão tentados a votar em Segolene Royal já no primeiro turno, para que ela – e não Le Pen ou Bayrou – possa ir ao segundo turno contra Sarkozy. Como se vê, o panorama eleitoral é uma imagem bastante deformada do conflito de classes na França. Michael Löwy é cientista social, leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidade de Paris. É autor de As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (Cortez Editora, 1998) e A Estrela da Manhã. Surrealismo e Marxismo (Civilização Brasileira, 2002), entre outras obras

É este o tema da Semana dos Povos Indígenas 2007 que ocorre em torno do Dia do Índio, comemorado pela sociedade brasileira no 19 de abril. Nada mais oportuno e profético que as comunidades indígenas brasileiras, ínfima minoria no seio da população geral do país (conforme o censo mais recente, apenas 734 mil pessoas), venham dizer ao mundo todo que o modelo capitalista vigente no planeta não é único e há alternativas válidas e melhores. Os povos indígenas sempre tiveram formas próprias de desenvolver as relações econômicas entre pessoas, famílias e comunidades. Na base dessas relações está a noção de reciprocidade, ou seja: dar e receber. Essas ações são parte de um movimento único e as trocas entre as pessoas e entre os grupos são permanentes. A reciprocidade garante a redistribuição permanente dos bens no interior da comunidade e impede que uma só pessoa acumule grande parte da riqueza do grupo. Na região amazônica, existem pelo menos 40 povos que se mantêm distanciados do contato com nossa sociedade. Conseqüentemente, vivem sua economia em sentido pleno, sem interferência da lógica capitalista. Entretanto, atualmente, conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), das 27 unidades da Federação, 24 Estados têm povos indígenas. Além dos grupos ainda não contatados, existem no Brasil 241 povos indígenas estruturados e que vivem sua cultura própria. Eles falam 180 idiomas diferentes e a maioria deles ainda não tem suas terras demarcadas e vive sob agressões e ameaças de garimpos. A base de suas relações comerciais é a troca ou a venda de produtos confeccionados nas aldeias, como a farinha, o artesanato e alimentos vindos da caça e da pesca. O que caracteriza as economias indígenas é basear-se na cooperação e não na competição. Visam produzir bem, mas sabem respeitar o jeito e o lugar de cada pessoa na busca da subsistência não apenas de indivíduos isolados, mas de toda a comunidade. Que uma pessoa não tenha o necessário para viver é um atestado de incompetência e inviabilidade para toda a comunidade. Por isso, todos garantem que cada um receba o necessário e ninguém se aproprie de mais do que lhe é necessário.

As comunidades indígenas conseguem sempre produzir o necessário para a vida sem destruir a natureza e sem criar pobres e ricos na sociedade Quando são respeitadas e podem viver seu estilo de vida tradicional, as comunidades indígenas conseguem sempre produzir o necessário para a vida sem destruir a natureza e sem criar pobres e ricos na sociedade. Produzem o essencial para viver bem, mas não pressupõem a geração de excedentes. A finalidade de suas atividades econômicas é a vida e não o lucro. É uma alegria perceber que cada ano a Semana dos Povos Indígenas é mais acolhida e celebrada pelo conjunto da sociedade. Neste ano, durante esta semana em diversas cidades brasileiras o próprio Estado e diversas organizações da sociedade civil promovem atividades e eventos que possibilitam o encontro entre a sociedade envolvente e diversos grupos indígenas. Em cidades como São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Manaus, Curitiba, Boa Vista e Maceió, estão previstos debates, mobilizações e atos culturais ligados à vida e à causa dos povos indígenas. Em São Paulo, haverá até uma caminhada e uma confraternização dos índios de diversos povos que moram na cidade e não mais no campo ou na floresta. Oxalá não seja apenas uma semana de eventos folclóricos ou de espetáculos momentâneos mas que permita um intercâmbio cultural que reavive a força das minorias, as quais, contra a corrente, mantêm pulsando o coração – enfermo – desta sociedade. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, Profeta para os Nossos Dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815


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NACIONAL VIOLÊNCIA

A repressão aumenta no campo Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), violência é menor onde atuam movimentos sociais organizados Fábio Pozzebom/ABr

Pedro Carrano de Curitiba (PR)

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relatório de Conflitos no Campo no Brasil 2006, lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no dia 16, mostra que, apesar de ter diminuído o número total de incidências de conflitos no campo, a repressão sobre o trabalhador aumentou. Entre 2005 e 2006, os assassinatos subiram de 38 para 39. Já as tentativas de homicídio de trabalhadores cresceram 176%. Em 2006, foram 72, contra 26 do ano anterior. Na edição deste ano, o documento desperta a seguinte reflexão: nas regiões com maior mobilização dos movimentos sociais, o índice de violência é menor. Na opinião dos assessores da CPT, ao contrário do que prega o senso comum, esse dado revela que a ação dos movimentos sociais contribui para o diálogo. A violência, por outro lado, ocorre onde não há organização social. O relatório aponta que a Amazônia, por exemplo, é responsável por 15,3% das ações organizadas em todo o país, enquanto a região Centro-Sul chega a 44,5% do total. Pela lógica, se os conflitos fossem causados pela ocupação de terras, a região Centro-Sul seria a de maior incidência de conflitos.

Principais números 1657 conflitos por terra, água, trabalhistas etc no Brasil. Uma queda de 11,91% em relação a 2005 (quando foram registrados 1.881 conflitos)

151 conflitos no Pará, o Estado de maior incidência, seguido de São Paulo, com 134; Pernambuco, com 123; e Paraíba, com 101. O Paraná surge logo em seguida, com 76. 917 trabalhadores rurais presos em todo o país, sendo que o número em 2005 havia sido de 261. Fonte: Comissão Pastoral da Terra

Porém, ela é responsável por apenas 25,2% do total do país. A Amazônia, porém, foi o foco de 45,6%. No centro da violação de direitos humanos no campo está o modelo do agronegócio e da expansão da fronteira agrícola. Na análise do assessor da CPT-Paraná, Jelson Oliveira, “a violação de direitos trabalhistas, como o trabalho escravo, está conectada à expansão do agronegócio, e esta provoca o desgaste do meio ambiente”, afirma. Para a CPT, a mudança começa com uma atualização dos índices de produtividade no campo, os quais datam de 1976. Mas isso ainda é pouco, pois é necessária a aplicação

Membros da CPT: Antonio Canuto, dom Xavier (presidente da entidade), Carlos Walter Porto Gonçalves e Maria Madalena dos Santos

da reforma agrária. “Queremos o cumprimento da lei que possibilita a reforma agrária, não dá para fazê-la sem mexer na atual estrutura fundiária. Mesmo que uma terra seja muito produtiva, não pode ter 2 milhões de hectares”, comenta o representante episcopal da CPT, dom Ladislau Berniaski.

COMUNIDADES Em 2006, do total de conflitos no campo, 20% envolveram comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas, ribeirinhos etc), os donos legítimos das terras, forçados

a abandoná-las. “A pesquisa mostra que outros grupos sociais, além do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), são vítimas no campo”, comenta Jelson. As comunidades remanescentes de quilombolas, em luta pelo reconhecimento das suas áreas, foram afetadas de modo particular. A investigação da CPT aponta para 39 ocorrências. Entre outros fatores, está o interesse nesses territórios por parte da indústria de extração. “Grandes empresas mineradoras, indústrias de papel e celulose, usinas de ferro-gu-

sa, empreendimentos sucroalcooleiros e outros querem se apoderar dessas áreas para suas atividades”, informa documento da CPT. Além disso, a grilagem de terras realizada pelo latifundiário nacional afeta diretamente as comunidades originárias. No Norte do país, existem áreas griladas do mesmo tamanho de reservas indígenas. “Por que a terra está tão em disputa no Brasil? Pela questão da biodiversidade e da água. As terras tradicionais são grandes reservas de recurso, protegidas por comunidades cujo modelo de

agricultura não é o do agronegócio”, analisa Oliveira. A CPT critica também o recente Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo Lula como a diretriz de seu segundo mandato. “O PAC está inserido nesta lógica do produtivismo, do aumento de produção a qualquer preço, pois sabemos que 50% da energia produzida é reservada para a indústria pesada, cuja finalidade é a exportação. Exportamos para a Europa e pagamos os impactos ambientais”, comenta Rogério Nunes, da CPT-Paraná.

ABRIL INDÍGENA

Protestos exigem demarcações da Redação Na principal manifestação do 4º Abril Indígena, cerca de mil representantes de diversas etnias espalhadas pelo país montaram, em Brasília (DF), o Acampamento Terra Livre. No dia 17, os participantes do acampamento saíram em marcha até o monumento erguido em homenagem a Galdino dos Santos, da etnia pataxó hãhãhãe, para celebrar os dez anos de seu bárbaro assassinato (leia quadro ao lado). Foram lembrados os demais indígenas mortos na luta pela terra e repudiada a violência contra os povos. Desde o assassinato de Galdino, na madrugada do dia 20 de abril de 1997, outros 257 índios foram mortos no Brasil, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). De acordo com as lideranças do movimento, as principais causas da violência são a falta de terras e as disputas pela sua posse e por recursos naturais. Em vista disso, a principal reivindicação do Acampamento Terra Livre, que vai do dia 16 até o dia 19, foi justamente a criação de novas reservas indígenas. De acordo com o secretárioexecutivo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Sateré Mawé, o processo de demarcação de terras anda lentamente. “A demarcação não tem sido feita; em muitas terras ainda não foram sequer iniciados os grupos de trabalho. E outras 34 áreas estão paradas no Minis-

tério da Justiça esperando declaração de demarcação”, revela. O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, participou de um dos eventos do acampamento e prometeu acelerar os processos de demarcação e homologação de terras. “Existe um processo administrativo que tem que ser cumprido, mas nós vamos procurar acelerar o máximo possível para que as homologações e as portarias que já estejam avançadas possam ser rapidamente

resolvidas”, garante. O Acampamento Terra Livre ainda prevê audiências no Supremo Tribunal Federal e no Senado Federal. No dia 20, será instalada a Comissão Nacional de Política Indigenista, que irá reunir lideranças de todo o país para debater as principais demandas dos povos indígenas brasileiros. Também há a expectativa de uma audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ainda não foi confirmada. (Com informações da Agência Brasil)

Dez anos depois, assassinos de Galdino estão em liberdade No dia 20 de abril de 1997, Galdino Jesus dos Santos, 44 anos, do povo pataxó hãhãhãe, da Bahia, foi assassinado enquanto dormia num ponto de ônibus de Brasília (DF). Ele chegou tarde na pensão onde estava hospedado e foi impedido de entrar, por isso dormiu na parada de ônibus. Durante a madrugada, cinco jovens, um deles com menos de 18 anos, ao voltarem de uma festa, viram Galdino e decidiram atear fogo nele. Ao serem presos, eles confessaram o crime. Os assassinos encontram-se em liberdade condicional desde o final de 2004. O mais jovem não chegou a ser internado. Os que eram maiores de idade, Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novely Cardoso, trabalharam e estudaram fora do presídio, mesmo estando em regime fechado – privilégio concedido pela Justiça, embora totalmente ilegal. Muitas vezes eles foram vistos pela noite, bebendo com amigos, quando deveriam estar no presídio. Em 1997, os pataxó hãhãhãe tinham ido à capital para reivindicar a anulação de títulos concedidos pelo governo do Estado da Bahia a fazendeiros que, até hoje, exploram a pecuária e o cacau na região da reserva Caramuru Catarina Paraguaçu, no sul do Estado. A reserva é habitada por 2,8 mil índios da etnia e tem uma área de 54 mil hectares, porém, o processo de nulidade dos títulos aguarda julgamento há 24 anos, no Supremo Tribunal Federal (STF). (Conselho Indigenista Missionário – Cimi)


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NACIONAL MORADIA

Fatos em foco Hamilton Octavio de Souza Amnésia política Finalmente o governo brasileiro decidiu participar da fundação do Banco do Sul, junto com Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela, uma instituição voltada para projetos de integração e desenvolvimento da América Latina, apesar da ignorância do ministro da Fazenda, Guido Mantega, para quem “o banco tem de ser técnico e trabalhar igual a outras instituições financeiras”. Reação conservadora A direita da América Latina articula vários protestos, nos meios de comunicação, contra a não renovação da concessão de radiodifusão da RCTV, da Venezuela, que terá sua permissão encerrada dia 27 de maio. O discurso da direita ataca o governo Chávez e defende a democracia e a liberdade, mas sem citar que a tal emissora é porta-voz do empresariado e apoiou o golpe de Estado de 2002. Avanço legal Vitorioso no plebiscito da Assembléia Constituinte, o presidente do Equador, Rafael Correa, segue o mesmo roteiro da Venezuela e da Bolívia para fazer as grandes transformações no país: aproveita o apoio popular e eleitoral para avançar nas reformas constitucionais em defesa das nacionalizações e socializações. O Brasil, ao contrário, mantém intactas todas as regras do neoliberalismo. Picaretagem federal A revista Veja denunciou e o governo não esclareceu de forma convincente por que o ministro das Comunicações e o presidente da República assinaram recentemente a transferência de concessão da TV Bandeirantes, do Pará, de uma empresa que devia R$ 82 milhões para a União para outra empresa sem dívidas, ambas do senador Jader Barbalho, do PMDB. Tudo indica barganha política. Privatização disfarçada – 1 A edição de abril da Revista da Adusp publica importante dossiê sobre as fundações privadas que atuam em diversas universidades públicas, especialmente na Universidade de São Paulo (USP). Além de usar recursos públicos – humanos, financeiros, materiais – das universidades, essas fundações conseguem contratos com órgãos públicos sem qualquer licitação. Pura trambicagem! Privatização disfarçada – 2 O mais grave na denúncia da Revista da Adusp é o descaso demonstrado pelo promotor Airton Grazzioli, da Promotoria de Fundações da Capital, que deveria defender o dinheiro público contra assaltos praticados por ilustres professores e altos funcionários da USP, mas que aceita essa promiscuidade do dinheiro público para o benefício privado de alguns delinqüentes acadêmicos. Até quando? Moradia urgente Em menos de um mês, o acampamento João Cândido, ocupação realizada em Itapecerica da Serra (SP), saltou de 300 para 4 mil barracos. Atualmente mais de 12 mil pessoas – população superior a de centenas de municípios brasileiros – aguardam uma solução para o problema da moradia. Nem a propaganda enganosa nem a mídia servil conseguiram esconder essa realidade. Brasil injusto – 1 Depois de criar empresas fantasmas, enviar dólares ilegalmente para o exterior e desviar mais de 2 bilhões de reais do Banco Santos, o exbanqueiro Edemar Cid Ferreira está conseguindo recuperar, na Justiça, o patrimônio adquirido na roubalheira, inclusive o acervo de obras de arte entregue para o museu da USP. O Poder Judiciário continua protegendo os crimes dos ricos e poderosos. Brasil injusto – 2 Frase de artigo assinado por Plínio de Arruda Sampaio, Fábio Konder Comparato e José Afonso da Silva, na Folha de S.Paulo, do dia 17, sobre o massacre de Eldorado de Carajás: “Se em vez de decretar um despejo a toque de caixa, a Justiça e o Executivo tivessem agido nos termos da lei, 19 vidas teriam sido poupadas e 69 pessoas não teriam sido mutiladas”. A lição não foi aprendida.

Sem-teto contra a especulação Trabalhadores se manifestam em 12 Estados para incluir pobres nas políticas habitacionais Dafne Melo da Redação

Mobilizações de sem-teto pelo país

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ntre os dias 10 e 11, movimentos populares de luta por moradia deixaram claro suas insatisfações com a política habitacional dos governos federal, estaduais e municipais de todo o Brasil. Ao todo, militantes de 12 Estados realizaram manifestações e ocupações. “Em um país com milhões de sem-teto, vivendo em condições subumanas, em que os programas de habitação popular demoram a sair do papel, a principal ferramenta do movimento popular para avançar nas conquistas de seus direitos é a pressão social e a luta”, diz nota oficial da União Nacional por Moradia Popular (UNMP). Donizete Fernandes, da coordenação nacional da entidade, explica que o movimento “não quer mais migalhas”, mas garantir, junto ao poder público, o acesso aos recursos para a habitação para a população de baixa renda. Na prática, apenas a classe média consegue obter o financiamento para a casa própria. A população que recebe até três salários mínimos acaba parando na burocracia, na falta de democratização dos recursos e de vontade política.

REIVINDICAÇÕES No dia 11, militantes decidiram acampar em frente ao Ministério das Cidades, com o objetivo de serem recebidos pelo ministro Márcio Fortes e por representantes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e da Caixa Econômica Federal (CEF). “O ministro mostrou-se sensível às reivindicações e comprometeu-se a levá-las para outros ministros, incluindo o da Fazenda, e dará, em 15 dias, um posicionamento do governo”, conta Fernandes, que sabe das dificuldades de enfrentamento com a equipe econômica do governo Lula. “O Ministério da Fazenda tem que dar uma resposta a nós. É inadmissível que, em um país com essas proporções, com tantos imóveis vazios, se tenha sem-terra e sem-teto porque imóveis são usados como especulação imobiliária”, resume. A presença de um representante da Caixa se justifica dada a necessidade de discutir a democratização dos recursos. “A CEF administra recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) do Pro-

Roraima

Amapá Rio Grande do Norte

Amazonas

Maranhão

Pará

Paraíba

Ceará

Piauí Pernambuco Acre

Tocantins

Rondônia

Alagoas

Bahia Mato Grosso

Distrito Federal

Sergipe

Goiás Mato Grosso do Sul

Nos dias 10 e 11, militantes semteto realizaram manifestações em diversas cidades de São Paulo, Ceará, Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraná, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina. A União Nacional por Moradia Popular (UNMP) congrega 150 movimentos em 17 Estados e estima ter mobilizado nos dois dias cerca de 100 mil famílias

grama de Arrendamento Residencial. Nessa burocratização, curiosamente, é a população de baixa renda a que mais tem dificuldade em obter financiamento”, ironiza Fernandes.

BUROCRACIA Esse também foi o motivo da manifestação na cidade do Rio de Janeiro. Com cerca de 200 manifestantes, a União por Moradia Popular (UMP) promoveu uma caminhada da Praça XV à sede da CEF, parando na Assembléia Legislativa. De acordo com Claudio Pereira, coordenador do movimento, o objetivo era pressionar a CEF a mudar os critérios do Crédito Solidário. Os manifestantes foram recebidos pelo superintendente do banco, José Domingues Vargas, que afirmou que concorda com a pauta de reivindicações, mas não tem instrumentos para atender os pleitos. De acordo com ele, a mudança teria que partir do Ministério do Planejamento. Criado em 2003, até agora o

Minas Gerais São Paulo

Espírito Santo Rio de Janeiro

Paraná Santa Catarina Rio Grande do Sul

O que reivindica a UNMP – Um programa nacional de autogestão e mutirão com acesso direto aos recursos do Orçamento Geral da União; – Uma superintendência de habitação popular na Caixa Econômica Federal; – Repasse imediato das terras da União para moradia popular; – Agilização do programa Crédito Solidário, garantindo a continuidade do programa; – Que os recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) sejam alocados com critérios e

fundo não pôde ser acessado pelas famílias de baixa renda, a quem, paradoxalmente, o programa se destina. “Há muita burocracia. A CEF financia imóvel para a classe média e quer estabelecer o mesmo programa para a baixa renda, mas

transparência, respeitando as deliberações do ConCidades, quanto à Política Nacional de Habitação e de Desenvolvimento Urbano; – Concentração de todos os recursos não-onerosos da União, inclusive do FGTS, no Fundo Nacional de Habitação de Investimento Social (FNHIS); – Uma política de desenvolvimento urbano, rumo à construção do Sistema Nacional de Cidades; e – Garantia de uma política de tarifas sociais de água e energia elétrica.

estamos falando de pessoas na economia informal, idosos, pessoas que ganham muito pouco”, resumiu Marcelo Braga, coordenador da Central dos Movimentos Populares (CMP). (Colaborou Tamara Menezes, do Rio de Janeiro)

MOVIMENTO SINDICAL

Jornada contra o “apagão de direitos” Renato Godoy de Toledo da Redação A aprovação da Super-Receita, em dezembro do ano passado no Congresso, foi noticiada pela imprensa corporativa como uma medida que aprimora o atendimento e a arrecadação da seguridade social brasileira, já que a Previdência Social e a Receita Federal foram unificadas e passaram a ter um caixa único, subordinado ao Ministério da Fazenda. No entanto, nada foi dito a respeito da emenda 3, anexada às pressas ao projeto de lei que instituiu o novo órgão. O debate sobre a emenda só veio a público após o veto do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Agora, os setores mais à direita do Congresso pretendem derrubar o veto, enquanto as centrais sindicais se mobilizam pela manutenção da medida do Executivo. O parlamento não contesta um veto presidencial desde 1994. Na prática, a emenda 3 dá aval às relações trabalhistas fraudulentas pois proíbe os fiscais da Super-Receita de multar empresas que forçam o trabalhador a tornar-

se pessoa jurídica para não ter que lhe conceder benefícios, tais como férias e 13º salário. Na atual legislação, se o fiscal averiguar que há uma relação trabalhista travestida de empresarial, o empregador pode ser multado no ato da fiscalização. Com aprovação da emenda 3, somente a Justiça do Trabalho poderá julgar esses casos. “Se o veto à emenda for derrubado, as empresas podem demitir os trabalhadores e obrigá-los a tornarem-se pessoas jurídicas, uma empresa de uma só pessoa. Isso tira todos os direitos dos trabalhadores. Não será mais necessária a carteira assinada. Isso é uma reforma trabalhista profunda, um ‘apagão de direitos’”, afirma Quintino Severo, secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

A GRANDE IMPRENSA A mídia corporativa engrossou o coro contra o veto. Para Quintino, a grita contra a medida presidencial tem o seu porquê. “Na Rede Globo, por exemplo, desde câmeras até repórteres são pessoas jurídicas que ‘prestam serviços’. Os grandes meios de comunicação têm grande

interesse na aprovação da emenda”, diz. Quintino esteve em Brasília (DF), na última semana, e conta que viu, no Congresso, Daniel Pimentel, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), sindicato patronal dos meios de comunicação, “entusiasmado” com a emenda 3. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, solicitou aos defensores da emenda 3 que não colocassem o veto para votação no plenário nos próximos dias e abriu negociação com empresários e sindicalistas para propor um texto substitutivo, que regulamente a relação de pessoas jurídicas. “Não somos contra a regulamentação. Profissionais liberais, como advogados e contadores, realmente são empresas de uma pessoa só. Vamos tentar [nas negociações com Mantega] redigir um texto favorável aos trabalhadores”, avalia Quintino. A CUT, juntamente com as demais centrais sindicais, realizou, no dia 10, atos e paralisações em todo o país em defesa do veto presidencial. Temendo a pressão pela votação da derrubada do veto, as centrais irão promover uma nova jornada de lu-

tas no dia 23 de abril. “Não temos nenhuma confiança no Congresso. A qualquer momento, o presidente (do Senado Renan Calheiros) pode colocar o veto em votação. Vamos nos mobilizar para impedir isso”, promete Quintino.

PERIGOS DA SUPER-RECEITA A Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) também realizará atos no dia 23. Porém, as críticas da entidade não se restringem à emenda 3, mas abrangem todo o projeto da Super-Receita. “A Super-Receita, em si, já ataca os trabalhadores, pois as verbas da Previdência vão para o Ministério da Fazenda e ficam sujeitas a desvios para efetuar o superávit primário. O governo tem feito isso com todas as verbas”, constata Zé Maria, coordenador nacional da entidade. Segundo o sindicalista, a Conlutas se posiciona contra qualquer tipo de negociação com o Ministério da Fazenda a fim de redigir um texto que substitua a emenda 3. “Não adianta nada tirar uma emenda que flexibiliza os direitos trabalhistas e colocar outra que também o faz”, considera.


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NACIONAL JORNADA DE LUTAS

Reforma agrária, promessa não cumprida Durante jornada de lutas, MST critica ausência de perspectivas para as 140 mil famílias sem terra acampadas

Manifestações de sem terra por todo o Brasil

A

BF – Quais são as perspectivas do MST para o segundo mandato do governo Lula em relação à questão agrária? Marina – O que está colocado é a falta de perspectiva apresentada pelo governo neste tema. Estamos

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BRASÍLIA 800 trabalhadores ocuparam a sede do Incra CE

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MATO GROSSO O MST realizou uma vigília com 200 pessoas em frente ao prédio da Justiça Federal, em Cuiabá GOIÁS Mais de 600 famílias do MST ocuparam três fazendas improdutivas no Estado

SE BA

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Daniel Cassol

SC RS

BF – Como você vê a relação do governo com setor sucroalcooleiro, explicitada nas recentes declarações do presidente Lula de que os usineiros são os “heróis” nacionais? Marina – Temos percebido – tanto pelas falas do presidente como pelos grandes investimentos que os usineiros têm recebido principalmente por meio do BNDES (em especial nesse início de ano), e pelo prolongamento e renegociação das dívidas dos grandes proprietários de terra – que há uma opção clara desse governo em torno dos projetos das grandes empresas, das transnacionais e do agronegócio em detrimento das políticas de reforma agrária e de fortalecimento da agricultura familiar camponesa no país. BF – Quais são as principais demandas que o MST

RJ

PARANÁ Cerca de 5 mil lavradores do MST ocuparam 25 praças de pedágios no Estado SANTA CATARINA 500 famílias do MST ocuparam um terreno de 10,5 mil hectares do Exército brasileiro e deixaram o local após forçarem o governo federal a negociar uma solução para os sem terra

está levando ao governo? A atualização do índice de produtividade foi uma das reivindicações da Marcha Nacional em 2005, mas até hoje não foi atendida. Marina – Esse é um item fundamental, porque não temos como avançar na reforma agrária sem a atualização dos índices. Outra demanda é que se priorize a desapropriação de fazendas de empresas estrangeiras que vêm aqui implantar os seus monocultivos de eucalipto, soja, cana. Também exigimos que o governo faça um mutirão dos órgãos públicos envolvidos para assentar em poucos meses as 140 mil famílias que estão acampadas já há muito tempo, esperando que o governo faça o assentamento delas. A grande maioria dessas 140 mil famílias estão acampadas desde o início do governo Lula. Outra rei-

Quem é

ESPÍRITO SANTO Cerca de 40 famílias do MST ocuparam uma área no município de Guaçuí

SÃO PAULO Foram realizadas cinco ocupações de latifúndios. Em Ribeirão Preto, na região noroeste, mais de 100 trabalhadores rurais ocuparam as dependências do prédio da Justiça Federal. Uma área da empresa Suzano Papel e Celulose, ocupada em Itapetininga no dia 8, foi desocupada. Em seguida, os sem terra acamparam na fazenda Boi Gordo, no mesmo município

PR

RIO GRANDE DO SUL Cerca de 2,4 mil agricultores realizaram bloqueios de rodovia em Pedro Osório, Canguçu, Piratini, Hulha Negra, Santana do Livramento, Tupanciretã, São Luiz Gonzaga, Nova Santa Rita e Viamão. Em Coqueiros do Sul, o MST realiza uma marcha. Já na cidade de São Gabriel, estão previstas manifestações.

BAHIA Mais de 5 mil trabalhadores rurais sem terra acamparam em Salvador

SERGIPE Mais de 3 mil trabalhadores rurais participaram de marcha contra a impunidade do Massacre de Eldorado dos Carajás e pelo assentamento das 13 mil famílias acampadas no Estado

DF

SP

quase no final de abril e o governo não apresentou nenhuma proposta do que vai fazer com a reforma agrária, seja para o segundo mandato, seja para este ano. Por outro lado, há uma disputa de projetos para a utilização das terras, dos recursos naturais, da produção agrícola. De um lado, estão os fazendeiros capitalistas, que se aliaram às transnacionais e ao capital internacional para produzir para o mercado externo, e de outro lado estão os trabalhadores rurais que têm propostas de reforma agrária.

PE

vindicação é que governo implante um novo modelo de assentamento combinado com o novo crédito rural, com a produção de alimentos e a instalação de agroindústrias cooperativadas no interior do país. Outro ponto é que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) seja valorizada para que amplie os seus recursos e garanta a toda família camponesa ou de pequenos agricultores acesso aos programas de compra dos alimentos produzidos. Também queremos que se implante um programa nacional de reflorestamento nas áreas de reforma agrária em comunidades camponesas de forma subsidiada para que a população seja estimulada a plantar árvores nativas, frutíferas. Em relação à educação no campo, exigimos a criação de uma campanha nacional de

Elza Fiuza/ABr

Brasil de Fato – Qual foi a pauta da Jornada Nacional pela Reforma Agrária de 2007 e no que foi diferente das mobilizações dos anos anteriores? Marina dos Santos – A principal reivindicação das mobilizações deste ano é em torno de um projeto de reforma agrária que vise a democratização da propriedade da terra, a reorganização da produção agrícola prioritariamente para a produção de alimentos. Reivindicamos também uma reforma agrária vinculada à educação, com novos tipos de assentamentos, com instalação de agroindústrias cooperativadas, utilizando novas técnicas agrícolas sem agrotóxicos. A jornada deste ano também está marcada por mobilizações em todo o país em torno do Massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 11 anos sem que nenhum responsável, nenhum assassino tenha sido punido. Outro aspecto das mobilizações é o enfrentamento ao capital internacional que está transvestido nas transnacionais que dominam a agricultura e as sementes, a natureza e a água.

AP

PERNAMBUCO 2.300 trabalhadores rurais ocuparam três áreas

ALAGOAS O MST realizou três ocupações de terras improdutivas para exigir o assentamento de 3 mil famílias acampadas Célia Alldridge

RR

MARANHÃO Mil manifestantes ocuparam a ponte sobre o rio Tocantins, no município de Estreito, em protesto contra a instalação da Usina Hidrelétrica de Estreito

Filha de pequenos agricultores que perderam a terra nos anos 1980 por dívidas com um banco, Marina dos Santos é da coordenação nacional do MST, movimento ao qual aderiu com 15 anos. Em março deste ano, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência do grupo Tortura Nunca Mais, por sua defesa dos direitos humanos.

Fernando Pinheiro

Tatiana Merlino da Redação lém do latifúndio, as 140 mil famílias de sem terra acampadas em todo o país reconheceram um novo inimigo que impede a realização da reforma agrária: as transnacionais. Durante todo o mês de abril, militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizam a Jornada Nacional pela Reforma Agrária, que esse ano tem entre suas reivindicações além da criação de novos assentamentos o “enfrentamento com o capital internacional representado pelas transnacionais”, explica em entrevista ao Brasil de Fato Marina dos Santos, da coordenação nacional do MST. De acordo com ela, o movimento incluiu nas mobilizações a luta contra as transnacionais que, aliadas aos grandes fazendeiros, “impõem um modelo de monocultura no país para produzir para o mercado externo”. Desde o início de abril até o fechamento dessa edição, o MST realizou ocupações, marchas e protestos em 17 Estados. As mobilizações pela reforma agrária no país acontecem tradicionalmente em abril, em homenagem às vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 17 de abril de 1996, quando 19 sem terra foram mortos pela polícia. Ninguém está preso.

PARAÍBA Cerca de 600 famílias sem terra ocuparam áreas no sertão do Estado

PARÁ O MST, junto com outros movimentos da Via Campesina, percorreRORAIMA ram as ruas do centro de Belém e Mais de 400 trabalhadomontaram um acampamento na res do MST participaram praça no centro da cidade de uma marcha e caminharam 35 quilômetros até a capital Boa Vista

erradicação do analfabetismo e que se aumente as vagas dos cursos técnicos para a juventude do campo. Também está pautado que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) seja vinculado diretamente à Presidência da República e forme, junto à Conab, um novo formato institucional para viabilizar a aceleração da reforma agrária. Esses são os pontos contemplados na carta que estamos enviando ao presidente da República para que receba os representantes do MST para debatermos o futuro da reforma agrária no país. Desde o início do segundo mandato, o governo prometeu nos receber, mas concretamente não pautou nenhuma audiência. BF – Como avalia o primeiro mandato do governo em relação à questão agrária? Marina – O governo desenvolveu alguns programas que foram importantes para o desenvolvimento da agricultura familiar camponesa, como o aumento do crédito, o programa Luz para Todos, o aumento dos recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Mas, por outro lado, o agronegócio teve muito acesso ao crédito. Foi nesse período que as transnacionais aumentaram a sua intervenção no país e aumentaram a sua disputa em torno da terra, da água,

RIO DE JANEIRO Cerca de 300 trabalhadores rurais ocuparam a fazenda Desejo e Azurara, que fica na BR-101, próxima ao local onde o MST bloqueou o tráfego de veículos em duas pistas por quase duas horas. O protesto aconteceu simultaneamente ao fechamento das duas pistas da Via Dutra, na altura de Piraí. Após liberarem a rodovia federal, os agricultores seguiram para o acampamento Josué de Castro

do meio ambiente, da biodiversidade. Essa contradição explica a dubiedade do governo. BF – Como vê a discussão em torno das metas do Plano Nacional de Reforma Agrária? Quando o governo divulgou os números, estudiosos questionaram os dados, dizendo que o Ministério do Desenvolvimento Agrário estava contabilizando dentro de novos assentamentos reordenação e reorganização fundiária, mas o MST não se pronunciou a respeito. Marina – Em relação aos números da reforma agrária, o governo tem feito bastante propaganda dos assentamentos que fez no primeiro mandato. No entanto, a ação prioritária foi na região Norte, repetindo o que foi feito nos anos 1970 em forma de projetos de colonização. Outra coisa feita foi deslocar famílias dos acampamentos para assentamentos antigos que tinham problemas de evasão. Na verdade, eles pegaram gente dos acampamentos e colocaram nos assentamentos antigos, nos lotes vagos, o que seria reordenação fundiária. Nós não nos pronunciamos até hoje porque eles ainda não apresentaram as tabelas, não disseram onde foram feitos esses assentamentos, quantas famílias foram assentadas e as principais regiões onde eles fizeram isso.


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NACIONAL TRABALHO DE BASE

Um movimento nacional de desempregados Em seu primeiro encontro nacional, trabalhadores discutem formas de organização na periferia urbana mudança radical das formas de produção, dentro de um novo projeto de sociedade. “Queremos que a classe trabalhadora possa exercer a sua vida da forma mais humana possível, reorganizando o trabalho para o bem viver, e não para uma acumulação”, defende Diva.

Marcelo Rodrigues

Nanda Duarte e Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)

C

om quase sete anos de existência, o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) realizou, entre os dias 12 e 15 de abril, o seu I Encontro Nacional, em Porto Alegre (RS). A construção de uma identidade nacional para a organização, que crie união dos desempregados em torno de bandeiras comuns, foi um dos principais desafios levantados. “O MTD acredita no potencial revolucionário do trabalhador desempregado, tão negligenciado pela esquerda. O capital precisa dele justamente para pressionar aqueles que estão trabalhando, para dizer: ‘Se você não quiser este trabalho, existem milhões ali fora querendo’. Quando esses milhões que estão fora negarem esse processo de exploração é que a gente vai fazer diferença”, avalia Diva Braga, da coordenação do MTD em Minas Gerais.

NOVA ORGANIZAÇÃO A tarefa da organização dos trabalhadores urbanos é mais complexa do que parece. “O meio urbano está organizado. A questão é: para que está organizado?”, questiona Mauro Cruz, coordenador do MTD no RS. Os dirigentes do movimento defendem que a periferia está, hoje, organizada pelo crime, pelo terceiro setor, pelas igrejas, na lógica da manutenção das relações sociais capitalistas de exploração. “Então, nós temos que nos organizar de outra maneira”, completa Cruz. Diva Braga denuncia o desserviço das ONGs para a organização popular nos bolsões de pobreza, que concentram o maior número de desempregados do país. “Nesses lugares está havendo uma ação muito forte do terceiro setor, no sentido de fomentar um espaço de trabalho precarizado, de ocupação do tempo, onde a pessoa não consegue se compreender como desempregado”, afirma, complementando que isso afeta a construção de sua identidade de uma classe e a compreensão da necessidade de organização. “Além disso, temos outros atores que se colocam no meio urbano, que são o tráfico, as milícias e as religiões evangélicas nas periferias”, explica Alexsandro Soares, coordenador do MTD no RJ, onde o fenômeno se evidencia especialmente. Para ele, “trabalhar hoje na favela é trabalhar com esses atores que se conflitam porque acabam se negando dentro daquilo que defendem”. E completa: “As igrejas evangélicas entram nessa situação de violência e pobreza extrema com as promessas de ganhos terrenos e de que tudo tem salvação”. Para fazer frente às promessas, o MTD aposta no trabalho de base. “Não só olhando para a visita pontual, para uma campanha. Mas o acompanhamento sistemático da periferia, dos núcleos de base”, explica Mauro Cruz. A metodologia de organização guarda diferenças

LUTA SEM ILUSÃO

O MTD acredita no potencial revolucionário do trabalhador desempregado: “O capital precisa dele justamente para pressionar aqueles que estão trabalhando, para dizer: ‘se você não quiser este trabalho, existem milhões ali fora querendo’; quando esses milhões que estão fora negarem esse processo de exploração é que faremos a diferença”

de região para região, que tem autonomia para avaliar a melhor forma de construção dos espaços de luta. Mas os princípios gerais do movimento são preservados: trabalho coletivo, coordenação com gênero (um homem e uma mulher na liderança), e o norte da construção de uma sociedade socialista. Outra marca do MTD é a clareza com que esses princípios são apresentados e discutidos. Por isso, a formação também se destaca entre as preocupações centrais na

metodologia do movimento. “Se nós não fizermos isso, vamos construir uma massa de manobra. Pessoas que vêm para atividades sem saber para quê”, defende o coordenador gaúcho.

TRABALHO X EMPREGO Defender a “revolução” em um discurso sem máscaras fortalece a construção de uma luta consciente de si, mas “faz demorar um pouco mais a organização do povo, porque as pessoas, conhecendo a miséria,

querem resolver o seu problema, e o quanto antes”, lembra Diva Braga. Uma característica que não está implícita quando se pensa um movimento de trabalhadores desempregados, mas que diferencia o MTD, é justamente o seu objetivo principal, como explica Cruz: “Nossa luta não é por emprego, é por trabalho. Nós não queremos organizar as pessoas para vender sua força de trabalho, mas para produzir de acordo com as suas necessidades”.

A análise do MTD é de que o desemprego é uma questão estrutural, não tem solução dentro do capitalismo. “O movimento não quer a construção de um monte de carros para entupir as cidades e poluir nosso ar para gerar mais trabalho nesses moldes, continuando a prática da exploração e da acumulação. O crescimento do emprego está condicionado a uma forma de vida que a gente combate”, afirma Diva. Significa dizer que a bandeira maior do MTD é a

Quando o assunto é projeto de sociedade, o movimento urbano tem de se relacionar com o rural. A unidade da esquerda, porém, ainda parece distante. “A maioria, e nós nos colocamos também nesse sentido, dos movimentos são corporativistas. Organizam-se em uma categoria e constroem a sua identidade a partir de lutas específicas”, avalia Cruz. A conjuntura de decepção dos movimentos com a gestão do governo Lula pode indicar um amadurecimento nos espaços de esquerda, segundo ele: “Certamente nos iludimos com o primeiro mandato do Lula. Nesse segundo mandato, a gente tem muito mais disposição de luta, sem ilusão”. Na concepção do MTD, o desafio está em que os movimentos avancem para uma consciência menos reivindicatória e mais política, de projeto, de disputa da sociedade. Mauro aponta que “é desta necessidade, inclusive, que nasce o próprio MTD”.

O MTD pelo Brasil Marcelo Rodrigues

Rio Grande do Sul Berço do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), que surgiu a partir de um acampamento de desempregados em 2000 em uma área ao lado da montadora de automóveis General Motors (GM), em Gravataí, região metropolitana. A questão dos desempregados já vinha sendo discutida na Consulta Popular. Hoje, mais de 4 mil pessoas estão organizadas pelo movimento. A principal conquista são as Frentes Emergenciais de Trabalho, programa obtido durante o governo do petista Olívio Dutra (19992002), que ajuda a gerar renda aos integrantes do MTD. Bahia Surgiu em 2003 nas periferias de Vitória da Conquista, sudoeste baiano, e foi baseado na construção de assentamentos rururbanos. A partir de 2005, o MTD se expandiu para a região metropolitana de Salvador, tendo os grupos de trabalho urbanos como forma de organização. Atualmente, há sete acampamentos e dois assentamentos agrícolas em Vitória da Conquista, que ainda produzem somente a subsistência. Guapeí Vasconcelos, da coordenação, relata que a dificuldade está em criar um método eficaz de organização nos grupos de produção. “Diferentemente do RS, na Bahia não há um instrumento de massa que possa aglutinar as pessoas, como as frentes de trabalho. Além disso, os grupos de produção ainda têm muitas dificuldades financeiras de gerarem renda”, diz.

Paraíba A coordenação do MTD está em formação, mas há um grupo de militantes que já vem organizando os desempregados no Estado há um ano. Atualmente, trabalham com jovens de duas comunidades da periferia da capital, João Pessoa, e pretendem levar a organização para Campina Grande, segunda maior cidade no Estado. Os militantes também querem iniciar, em 2007, a organização específica dos desempregados na capital. Rio de Janeiro Apesar de o trabalho estar sendo feito há apenas um ano, já existem núcleos de trabalho do MTD na região de Volta Redonda e grupos de formação em Petrópolis. Alexsandro Soares, da coordenação estadual, explica que escolheram iniciar a organização do movimento em Volta Redonda e não na capital, por esta passar por uma crise social. “O setor fabril estatal foi sucateado na década de 80 e colocado em processo de falência, para que fosse vendido a preços abaixo do mercado. Isso gerou um caos social, formando uma massa de desempregados”, relata. O tráfico de drogas, as milícias armadas, as religiões evangélicas e o assistencialismo do Estado são os principais empecilhos para organizar os desempregados na capital. Santa Catarina A organização do MTD começou em 2003, no município de Criciúma, região sul do Estado.

Atualmente, o trabalho está concentrado na formação de jovens, que juntamente com as donas de casa, são os mais afetados pelo desemprego em SC. Dos 180 mil habitantes de Criciúma, 30 mil estão desempregados. Para o coordenador João Batista Costa, a principal dificuldade está em mostrar aos desempregados que não se precisa de patrão. “As escolas e outras instituições da sociedade preparam a pessoa para ser empregada, acabando com qualquer tipo de iniciativa de independência e de autogestão”, diz.

Experiência “Sonho Real” mostra importância da ação organizada A ocupação de uma área abandonada por nove meses no Parque Oeste, em Goiânia (GO), mostrou a importância da organização a Eronilde Nascimento, uma das coordenadoras da ação. A ocupação Sonho Real, de cerca de 3,5 mil famílias desempregadas e sem moradia, foi despejada violentamente pela polícia em 2005. Pessoas foram executadas e as casas, com todos os pertences dos moradores, destruídas. “A ocupação do Sonho Real não foi um mo-

vimento organizado. Foi um grupo de famílias que entrou e se organizou. Lá tinha tudo para ter virado o Movimento dos Sem Teto de Goiás e não virou, porque se tornou partidário. Surgiram lideranças oportunistas que se candidataram a cargos públicos, e que agora estão oprimindo o povo”, relata. A trabalhadora desempregada avalia que se houvesse um movimento social organizado na ação do Sonho Real, talvez a situação tivesse sido outra.

“Isso poderia não ter evitado o surgimento de lideranças oportunistas ou a violência policial. Mas, pelo menos, teríamos tido mais respaldo político para negociar com governos e estaríamos mais protegidos contra a ação dos partidos políticos, que nos prejudicaram muito”, diz. Nesse sentido, ela considera importante o debate e a luta travados pelo Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD). “Já conhecia o movimento e vinha estudando sobre ele.

Me identifiquei com as suas bandeiras e acho que poderão contribuir para uma melhor organização das famílias do Sonho Real. Nossa organização de mulheres é que organizará o debate do MTD agora na comunidade”, argumenta. Na desocupação da área do Parque Oeste, Eronilde perdeu o esposo, que foi morto pela polícia com três tiros e ainda teve o pescoço quebrado durante a ação. Atualmente, as famílias estão acampadas em uma

área cedida pela Prefeitura, mas aos poucos estão sendo remanejadas para um loteamento, com casas próprias, criado em conjunto pelos governos estadual e federal. Apesar da vitória dos desempregados, Eronilde afirma que a luta ainda não terminou. “Nenhum policial, comandante ou o próprio governador da época foi julgado. Queremos justiça! E continuarei com a luta dos desempregados, levando o MTD para o Estado”, diz. (RC)


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INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

Efeitos (nada) colaterais de uma guerra U.S. Air Force/Sgt. JoAnn S. Makinano

Documentos do governo dos EUA revelam histórias de mortes de civis causadas pelas forças de ocupação no Iraque e no Afeganistão Igor Ojeda da Redação

A

família de um civil iraquiano dormia numa cidade de Salah Ad Din, província do leste do Iraque, quando soldados dos Estados Unidos invadiram a casa e abriram fogo, matando sua mãe, seu pai e seu irmão. Foram tantos tiros que 32 das ovelhas criadas por eles também morreram. Em Kirkuk, o filho de outro iraquiano passava por um posto de checagem das forças de ocupação quando foi atingido no abdômen por uma bala que atravessou o teto do carro e faleceu horas depois. Ele não havia se dado conta de que os tiros de aviso, disparados para o alto antes, eram para ele sair do veículo. Em outro posto, na cidade de Baqubah, a mãe de outro civil foi morta, enquanto seu irmão de quatro anos foi ferido por estilhaços de bala na cabeça e sua irmã atingida na perna. Eles estavam em um táxi. Em Cabul, no Afeganistão, o filho de 13 anos de um casal estava vendendo pizza numa barraquinha de rua quando um protesto furioso começou depois que um veículo do Exército estadunidense perdeu o controle e bateu em vários carros. Soldados dos EUA e a polícia local atiraram contra a multidão, matando o garoto. Mais 492 histórias reveladoras, como essas, da realidade da ocupação estadunidense no Iraque (desde 2003) e no Afeganistão (desde 2001) tornaram-se públicas no dia 12, após uma organização não-governamental dos EUA chamada American Civil Liberties Union (Aclu, União Estadunidense de Liberdades Civis) obtê-las por meio do Ato de Liberdade de Informação.

NEGAÇÃO DA CULPA Os documentos divulgados pela Aclu são reivindicações de

“Meu filho estava vendendo pizza em uma barraquinha. Eu ouvi dizer que tinha acontecido um acidente de trânsito. Eu fui ajudar meu filho a tirar as coisas. Enquanto eu o estava ajudando, um veículo estadunidense abriu fogo e uma bala atingiu meu filho no nariz e saiu por trás de sua cabeça. Ele morreu. Ele tinha 13 anos. Minha família está profundamente triste por sua perda. Ele era o provedor da família. Eu não posso trabalhar por causa de ferimentos que recebi do Talibã”, diz a solicitação de compensação financeira enviada ao governo dos EUA pelo pai do garoto morto em Cabul, no Afeganistão. Sua família recebeu 4 mil dólares, apesar de ter pedido 6 mil dólares.

Soldados estadunidenses realizam procura em uma casa na cidade de Zaghiniyat, Iraque, no dia 29 de março

compensações financeiras feitas ao governo dos EUA por familiares de civis mortos na guerra pelas forças de ocupação e por sobreviventes iraquianos e afegãos que ficaram feridos ou tiveram suas propriedades danificadas. Do total de 496 arquivos divulgados, 479 vêm do Iraque e 17 do Afeganistão. A maioria das reivindicações iraquianas é de 2005; das afegãs, de maio de 2006. “Esses arquivos revelam o que os EUA fazem – e o que não fazem – quando civis são prejudicados. Eles nos dão um panorama do que está acontecendo no Iraque e no Afeganistão. A maioria dos casos obtidos pela Aclu mostram que os civis não foram compensados por suas perdas”, diz Sarah Holewinski, diretora da organização Campaign for Innocent Victims in Conflict (Campanha para Vítimas Inocentes em Conflito), em entrevista ao Brasil de Fato. De fato, segundo a Aclu, reivindicações baseadas em incidentes não relatados no banco de dados do Exército são geralmente

negadas, mesmo com confirmação de testemunhas oculares. Além disso, do total de reclamações, 198 compensações financeiras foram rejeitadas porque o Exército considerou que tais incidentes derivaram “de ações de um inimigo ou resultado, direta ou indiretamente, de uma ação de combate das forças estadunidenses”. O pai do civil morto no posto de checagem em Kirkuk teve negada sua solicitação mesmo com a afirmação de um sargento do Exército, no documento de reivindicação, que o motorista não poderia saber que ele deveria sair do carro depois dos tiros de aviso: “Se eu tivesse no lugar dele, também teria ficado parado”. Em outros 164 casos, os EUA aceitaram realizar pagamentos, mas só em metade destes admitiram responsabilidade pela morte do civil. A vida dos três familiares mortos em Salah Ad Din vale para seu parente, segundo o governo estadunidense, 11,2 mil dólares em compensação financeira. Já a do menino morto

em Cabul vale 4 mil dólares, mesmo com seus familiares pedindo 6 mil dólares e explicando que era o provedor da família, uma vez que o pai estava incapacitado fisicamente.

ARQUIVOS SECRETOS Na outra metade, os EUA aprovaram “pagamentos por condolência”, de não mais que 2,5 mil dólares por pessoa morta ou ferida. Ou seja, como uma expressão de solidariedade, mas sem aceitar culpa no fato. Para o familiar dos ocupantes do táxi no posto de checagem em Baqubah, o Exército sugeriu um pagamento (que não se sabe se foi concretizado) de 7,5 mil dólares, mesmo com um memorando militar afirmando que “há evidências que sugerem que os cones e sinais de aviso ainda não haviam sido expostos em frente ao posto, o que pode ser a razão de o motorista do táxi não ter pensado que ele deveria parar o veículo”. Em nota, a Aclu afirmou, baseada no número de mortes representadas e na variação em número

e localidade das reclamações por ano, acreditar que existam documentos adicionais sendo retidos. “Infelizmente, o custo humano das guerras no Iraque e no Afeganistão não é inteiramente conhecido. As Forças Armadas têm mantido arquivos secretos de mortes de civis e só agora nós temos um panorama do que está acontecendo lá por causa dos documentos obtidos pela Aclu. Se os EUA dizem publicamente que minimizam as mortes de civis, devem responder às solicitações de compensação com dados sólidos incluindo mortes de civis, ferimentos e danos à propriedade”, cobra Sarah. A Aclu chama a atenção, ainda, que um grande número de reclamações se referem a mortes de postos de checagem (50) e comboios estadunidenses (42). Ou seja, não aconteceram como “efeitos colaterais” de combates. Os documentos divulgados pela Aclu podem ser acessados, em inglês, pelo endereço www.aclu.org/ natsec/foia/log.html

EQUADOR

VENEZUELA Marcelo García/Prensa Miraflores

Referendo popular aprova Constituinte Jorge Pereira Filho da Redação

Escola de Medicina – Os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Bolívia, Evo Morales, inauguraram no dia 15, no Estado Miranda, a sede venezuelana da Escola Latinoamericana de Medicina Alejandro Próspero Reverend (ELAM). Também participou da cerimônia o argentino Alberto Granado, médico e companheiro de Ernesto Che Guevara em sua viagem pela América Latina. O objetivo será formar 200 mil jovens da América Latina e Caribe em um período de dez anos. A iniciativa faz parte da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), acordo lançado por Chávez e o presidente cubano, Fidel Castro, em agosto de 2005, e ratificado pela Bolívia, com Evo Morales. (leia mais na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)

O presidente Rafael Correa está prestes a obter uma vitória política no Equador. Pesquisas de boca de urna apontam que a população se manifestou favorável à realização de uma Assembléia Constituinte no país, que deverá redigir uma nova Constituição sem a participação do atual Congresso. Segundo o Cedatos-Gallup, cerca de 78% votaram a favor da Constituinte. Na tarde do dia 17, com 99% das urnas apuradas, 82% dos eleitores contabilizavam a aprovação à proposta que conta com o apoio de movimentos sociais equatorianos. Para Correa, esse processo pode desencadear uma reforma política radical no país, mesmo porque o Congresso está desacreditado na sociedade e o seu partido – o Alianza País – não apresentou candidatos ao Parlamento justamente como estratégia para não legitimá-lo. “Esta assembléia com amplos poderes poderá reformar o Legislativo, o Judiciário e até mesmo o Executivo”, disse Correa. “Vamos avançar com essa assembléia para ter uma democracia representativa real”, prometeu. A vitória no referendo poderá impulsionar iniciativas como o fim do acordo da Base de Manta, que os

Estados Unidos controlam em território equatoriano, a renegociação de acordos de petróleo e a reestruturação da dívida nacional. O presidente pretende fazer uma auditoria nos contratos e cogita também suspender o pagamento dos credores. A Constituinte foi apoiada por diversas organizações sociais que se mobilizaram em Quito e Guayaquil, as duas principais cidades do país. O movimento indígena, articulado na Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), realizou protestos massivos em quatro cidades serranas. “As milhões de consciências pobres que necessitamos de mudança venceremos, e não os milhões de dólares pró-imperialistas”, afirmou o dirigente da organização Humberto Cholango à Agência Latino-americana de Informações (Alai).

CONTEXTO O Equador vive uma crise institucional e social, agravada pelas políticas neoliberais implementadas nas duas últimas décadas. Em apenas dez anos, três presidentes caíram. Mais da metade da população vive abaixo da linha de pobreza. A dolarização da economia, efetivada em 2000, empobreceu ainda mais o povo e os equatorianos lideram os rankings de migrações. Em 2005,

foi o 15º em uma lista de 224 nações sobre os números de pessoas que deixaram o seu país para viver no exterior. Apesar de somarem 13,8 milhões de habitantes (pouco mais do que a população da cidade de São Paulo), os equatorianos são os mais numerosos entre os latino-americanos que vivem na Espanha, a maior parte de forma ilegal. Para o sociólogo argentino Atílio Boron, a vitória da Constituinte no plebiscito pode colocar fim a um processo de desrespeito aos direitos constitucionais “e a uma ordem democrática deslegitimada e inoperante”. “O objetivo dessa reforma será reconstruir o Estado, criar dispositivos que garantam a redistribuição de riqueza e justiça social, a defesa da soberania nacional e a nacionalização dos recursos naturais”, escreveu o sociólogo em artigo divulgado pela Alai. Boron vê com otimismo o processo equatoriano. “Correa triunfou e demonstrou não só sabedoria para planejar e executar sua estratégia de construção de poder, como também o valor e a audácia que requerem todas as grandes iniciativas políticas”, avalia. Uma das próximas datas nesta disputa política será o mês de setembro, para quando está agendada a eleição dos 130 membros da assembléia. (Com agências internacionais)


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CULTURA

De 19 a 25 de abril de 2007

ANÁLISE

Aldo Gama

BBB: imagens puras da exceção No reality show, o papel dos espectadores é o de empobrecer o conteúdo de suas próprias existências Silvio Mieli

N

o final de março, durante uma palestra sobre democracia e movimentos populares, Francisco Whitaker, do Comitê Organizador do Fórum Social Mundial e vencedor do Prêmio Nobel Alternativo de 2006, se insurgiu contra o Big Brother Brasil (BBB), sétima versão do programa levado ao ar pela Rede Globo. Suas críticas se voltaram contra o apresentador, o jornalista Pedro Bial, que, num dos episódios, saudou os participantes do programa dizendo: “E agora vamos falar com os nossos heróis!”. Whitaker ficou indignado e sugeriu o lançamento de uma oportuna campanha de boicote à emissora e ao programa. “Afinal de contas, quem são os nossos heróis?”, bradou. O momento exige a compreensão do caráter despotencializador, paralisante, dessas produções televisivas integrado a uma outra dimensão social e política. Esse aspecto é que será necessário aprofundar.

FICÇÃO BARATA Nietzsche (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século 19) já profetizou que, no fim, o mundo verdadeiro transforma-se em fábula. Os “shows de realidade” são fábulas. Só que de quinta categoria. É ficção barata mesmo. Entretanto, há em toda ficção barata um imenso poder despotencializador. Os reality shows atraem e paralisam os espectadores, despotencializando-os. Nesse sentido, representam o apogeu da sociedade do espetá-

Pedro Bial num dos episódios saudou os participantes do programa dizendo: “E agora vamos falar com os nossos heróis!”. Afinal de contas, quem são os nossos heróis? culo. São um misto de neodarwinismo (sobreviverá o mais “forte”), sociedade do espetáculo (celebrização), sociedade do controle (via marketing), redução da complexidade e da biodiversidade do imaginário audiovisual e produção de monoculturas mentais (condição humana reduzida ao seu mínimo denominador comum). A idéia é a seguinte: devem sobreviver nesses programas as figuras mais bem adaptadas à sociedade espetacular. Quem passar pelos crivos da audiência (manipulada e manipulável), do mercado (regido por éticas e estéticas perversas) e novamente do público (pervertido, no sentido de desmoralizado) deve sobreviver tanto no show como na vida, dimensões que se fundem

numa só e única realidade. O “zumbi” que sobreviver pode ser utilizado de várias maneiras: virar modelo, atriz/ator de novela, garota(o)-propaganda, e assim girar a máquina enlouquecida do espetáculo. O documentarista francês Jean-Louis Comolli, quando passou por São Paulo em 2001, enfatizou o caráter transformador de qualquer experiência audiovisual. No caso do cinema, exemplificou, “supõe-se que o espectador percorra todo o filme para sair modificado no final; é o sujeito da experiência. Num reality show, o sujeito da experiência são as pessoas que estão sendo filmadas. É uma inversão a partir de um artifício construído com os mesmos tópicos do cinema”. Não há interação com

o público, muito menos intervenção. O roteiro do show já está previamente definido. O papel dos espectadores é o de empobrecer o conteúdo da sua própria existência, alugando uma pseudo-realidade oferecida pelo programa. Além, é claro, de incentivar a compra dos subprodutos desse show de horrores. Comolli dizia na época da entrevista (concedida ao caderno Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo, em 19 de novembro de 2001) que “essa tendência corresponde ao movimento global de desresponsabilizar os cidadãos e colocá-los em jogo uns contra os outros. Abdica-se de uma responsabilidade real por uma responsabilidade entre aspas. Isso lembra as condições de surgimento do fascismo”.

Diante de programas dessa natureza, o primeiro ímpeto seria aquele de dizer que “o estado de exceção” chegou aos produtos da indústria cultural. Mas sabe-se que desde a formação do capital inicial da indústria cultural, o terreno já estava preparado para a produção de um imaginário “excepcional”, um modelo de produção e circulação de signos que inclui o outro através da sua exclusão como ser humano (capitalização do espírito e da alma). Só que, agora, estamos diante das imagens puras da exceção. E utilizando a riquíssima análise que o filósofo italiano Giorgio Agamben nos oferece (a partir dos debates entre Walter Benjamin e Carl Schmitt), percebe-se que a exceção virou regra geral. O assalto sobre o que restou de dignidade humana já entrou nos cálculos do poder daqueles que controlam o aparato produtor de imagens.

Agamben comparou a situação dos judeus no nazismo – juntamente à cidadania, haviam perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus – com a nova figura dos detidos na base de Guantánamo (mantida pelos Estados Unidos em território cubano, à revelia da soberania do país caribenho e da própria ONU). Os presos se acham submetidos a uma pura dominação de fato, a uma detenção que não é apenas indefinida num sentido temporal, mas também por sua própria natureza, pois escapa completamente à lei e a toda forma de controle judiciário. Aqui, dirá Agamben, toda ficção de um vínculo entre violência e direito desaparece. Não há mais que uma zona sem lei ou regra em que prevalece uma pura violência sem nenhuma cobertura jurídica. Ora, quando o estado de exceção se torna a regra, então o sistema político se transforma num aparelho de morte. O Big Brother Brasil, e congêneres, aparentemente pode parecer inofensivo, mas carrega um potencial deletério, principalmente no nosso universo local. Trata o imaginário dos telespectadores como se fossem os “detidos” de um sistema prisional “a la Guantánamo”. Como afirmou Giorgio Agamben, “até que, todavia, uma política integralmente nova não se apresente, toda a teoria e toda praxe permanecerão aprisionadas em um beco sem saída, e o ‘belo dia’ da vida só obterá cidadania política através do sangue e da morte ou na perfeita insensatez a que a condena a sociedade do espetáculo”. (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004, p.19). Silvio Mieli é jornalista e professor do Departamento de Jornalismo da PUC de São Paulo

CINEMA

Miguel Stedile “Uma nova era está começando, uma era de liberdade e todos saberão que demos nossos últimos suspiros para defendê-la.” Poderia ser George W. Bush justificando a invasão do Iraque, mas a frase pertence ao personagem Leônidas, no filme 300 de Zach Snyder, em cartaz desde março. Adaptação de uma história em quadrinhos, 300 é o novo xodó da indústria de Hollywood. Custou apenas 60 milhões de dólares, uma bagatela para os padrões hollywoodianos, e já se pagou apenas com o primeiro mês de exibição. O filme é o primeiro colocado também na bilheteria brasileira. O roteiro baseia-se na Batalha de Termópilas, em 480 a.C., quando 300 soldados espartanos enfrentaram um exército de 200 mil persas. Fosse apenas a elegia à liberdade, 300 não se diferenciaria de qualquer filme estadunidense de guerra. Porém, Snyder transformou a batalha entre espartanos e persas em um duelo entre

Ocidente, “terra da Liberdade”, e um Oriente, “místico e tirano”, nas palavras das próprias personagens. Num roteiro carregado de frases de efeitos, não serão poucas as vezes que o espectador ouvirá o rei Leônidas afirmar que seus soldados estão “marchando pela liberdade”, que “homens livres” marcham contra a escravidão. O filme, porém, não se resume à oposição ao Oriente. Leônidas vai a uma guerra considerada um suicídio por seus patrícios, e a cada momento justifica sua necessidade e sua permanência. Assim como Bush enfrenta a resistência do seu Congresso, Leônidas também tem a rejeição de seu conselho. Uma vez em guerra, tal como os estadunidenses no Iraque, o herói relembra, permanentemente, “nunca recuar, nunca se render, esta é a lei de Esparta”. A mesma idéia é repetida para compensar um pai pela perda do jovem filho em batalha, “a morte no campo de batalha é a glória maior que poderia conseguir em vida”, declara. Morrer é glorioso,

Divulgação

Por Esparta, pelo Ocidente e pela Coca-Cola

Leônidas e Bush: muita coisa em comum; associações entre Esparta e Washington vão desde a defesa de uma “guerra em nome da liberdade” até a presença em menor número de marines no Iraque

quando se trata de defender a liberdade ocidental. Seria mera coincidência que a Pérsia corresponde ao atual Irã, alvo anunciado dos próximos ataques estadunidenses? Não à toa, o New York Times comparou Leônidas a Bush e sua defesa da liberdade a qualquer custo. E há ainda quem veja nos

super-soldados espartanos metáfora para os marines estadunidenses em menor número no Iraque. Simples metáfora? Dificilmente. 300 se aproxima mais do panfleto audiovisual e se inscreve numa velha tradição do cinema. A Alemanha nazista descobriu rapidamente o papel

do cinema como agitação e propaganda e produziu filmes como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, em que o Congresso do Partido Nacional-Socialista é filmado com ares épicos. Foi o ministro de propaganda nazista, Goebbels, quem bolou a mesma fórmula usada por 300: expor

os ideais do Terceiro Reich de forma indireta, através de personagens e situações exemplares. As vésperas da queda do governo nazista, a Alemanha filmava Kolberg, utilizando a resistência alemã contra Napoleão como motivadora para a ofensiva dos países aliados. Mas os estadunidenses também perceberam muito rápido o potencial do cinema como veículo de propaganda. A representação persa em 300 não perde em nada para a forma como os japoneses eram representados em Hollywood na década de 1940, nem os espartanos de Snyder fazem feio frente aos Boinas verdes, de John Wayne, em plena Guerra do Vietnã. E, em breve, os cinemas exibirão a volta do herói da guerra fria, Rambo, em seu quarto filme, ressuscitado tal como Rocky, para defender mais uma vez a pátria estadunidense. Loucura, diz um persa no início de 300 e ouve a resposta, “Loucura, não. Isso é Esparta”. Não, não é. Isso é Washington. Miguel Stedile é jornalista


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