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Uma visão popular do Brasil e do mundo

R$ 2,00

São Paulo • De 26 de abril a 2 de maio de 2007

www.brasildefato.com.br João Zinclar

Ano 5 • Número 217

Canavial ilegal – Em Limeira, interior de São Paulo, 250 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam, na madrugada do dia 21, área pública de 2 mil hectares explorada irregularmente com o plantio de cana-de-açúcar, por fazendeiro desconhecido. A área pertencia à Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) e, depois da privatização da companhia, continuou sob posse do Poder Público. O MST, que possui 3 mil famílias acampadas em São Paulo, denuncia que os canaviais já dominam 50% da área plantada no Estado

Na Nigéria, elites fraudam eleições Fraudulentas. Assim foram chamadas por observadores nacionais e internacionais as eleições nigerianas dos dias 14 e 21 de abril, quando foram escolhidos o novo presidente, governadores e parlamentares estaduais e federais. Inúmeros relatos de irregularidades – como a não abertura de postos de votação em regiões onde o partido governista não é forte – e a violência política que caracterizou a campanha eleitoral tornam quase nulas as perspectivas de mudança da realidade do país do Oeste da África. A Nigéria, apesar de ser o oitavo maior produtor mundial de petróleo, mantém cerca de 70 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza e garante altos lucros às corporações petrolíferas, que poluem o meio ambiente e causam danos à comunidades locais. Pág. 7

Retomar o trabalho de base é a saída para um movimento sindical combativo Neste “1º de Maio” não há o que comemorar frente à dura realidade imposta aos trabalhadores pelo modelo neoliberal

EDITORIAL

Energia para integrar ou dominar?

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nquanto a mídia capitalista continua desinformando o povo brasileiro sobre as verdadeiras potencialidades de uma integração dos países da América Latina, a realização da Cúpula Energética na Venezuela, no início de abril, deu mais um passo importante para que os países participantes avancem em projetos concretos na área da energia, criando as condições para um desenvolvimento sem dependência do imperialismo. Criou-se uma verdadeira torcida pela mídia teleguiada pelo império para que o etanol gerasse desentendimento entre Lula, Fidel, Chávez e outros líderes - o que, finalmente, não aconteceu. As advertências de Fidel em relação ao etanol atingem diretamente os planos dos EUA que, além de pretenderem a utilização do milho para a produção de álcool combustível, também já deu as ordens imperiais de praxe para que uma verdadeira onda de internacionalização fundiária no Brasil esteja em marcha. O expresidente da Petrobrás Philipe Reischtull – o mesmo que tentou privatizar a estatal na era FHC e mudar o nome para Petrobráx – está incumbido por um fundo de investimento estadunidense, de comprar, em 30 dias, áreas para a implantação de 10 megausinas de álcool em Goiás. Dispõe, para isso, de 2 bilhões de dólares. A Mitsubitch do Japão está comprando o controle acionário das maiores usinas no Brasil. Os milionários estadunidenses Bill Gates e George Soros estão adquirindo grandes extensões de terra na Amazônia, como bem denunciou Frei Betto em artigo

publicado no Brasil de Fato. Isso, que deveria ser motivo para levantar um país, encontra apenas o aplauso de uma mídia colonizada, a alienação da política energética governamental e até mesmo a aceitação vassala de setores petistas, cuja argumentação, lamentável, é: o que importa é que dê lucro. Quem ganha com esse projeto de energia renovável nas mãos do latifúndio e do capital externo? Existem atualmente, no BNDES, 187 projetos para financiamento de exploração de energia renovável, a metade deles para empresas multinacionais e a outra metade para grandes bancos e empresas brasileiros. Não há nenhum projeto para pequenos ou médios produtores, ou para cooperativas, ou para assentamentos da reforma agrária. O Brasil tem hoje a oportunidade de ouro da história para fazer da energia renovável uma alavanca de desenvolvimento soberano, popular e ecológico, caso o governo decida criar uma Companhia Brasileira de Agroenergia, conforme já havia mencionado no ano passado o próprio presidente Lula, antes de se entregar aos sinistros encontros com George W. Bush, pois, rigorosamente, o Brasil não necessita dos EUA nessa questão. Ao contrário, atolados no Iraque, percebendo os passos de integração econômica e energética na América Latina, fora do seu controle e produzindo menos da metade do petróleo que consomem, são os EUA que necessitam desesperadamente controlar outra modalidade energética, preparando-se para

a escassez do petróleo. E para isso não hesitarão em fazer uso de ações militares, caso as simples medidas de controle econômico não sejam suficientes. A história e o Iraque o demonstram cabalmente. O que está em jogo no Brasil é se os movimentos sociais, os sindicatos, o movimento estudantil, as universidades, os partidos progressistas, os militares nacionalistas, o clero progressista conseguirão evitar que a energia renovável seja um instrumento a mais de dominação, inclusive da rapina internacional, aliás, já em curso. A alternativa para o povo brasileiro é levantar este país em mais uma grande campanha, como foi a Campanha “O petróleo é nosso”, a Campanha das Diretas-Já, agora tendo como bandeira a criação da Companhia Brasileira de Agroenergia, como alavanca para incorporar os milhões de pequenos produtores rurais, com crédito, tecnologia, instrumentos de distribuição, gerando emprego e renda através da produção de energia e de alimentos, em plena combinação com a reforma agrária. Com uma empresa estatal, o Brasil teria melhores condições para participar dessa integração energética também na energia renovável, que a Conferência Energética Sul-americana considerou perfeitamente válida.

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trabalhador organizado é a principal arma para garantir conquista e manter seus direitos. Na década de 1990, o discurso hegemônico foi o de reduzir as garantias dos assalariados, que continuam sofrendo ataques no governo Lula. Segundo os neoliberais, a flexibilização dos direitos seria uma fórmula para gerar empregos e estimular a eco-

nomia. No entanto, o país não cresce e os índices sociais se deterioram. Essa conjuntura fez o sindicalismo voltar-se para dentro de sua burocracia. Para especialistas, a superação deste cenário adverso passa pela reorganização dos trabalhadores na base. Este “1º de Maio”, dia de luta do trabalhador, pode ser o ponto de partida. Págs. 2 e 3

Professores rechaçam valor do piso salarial

Unidos para garantir nenhum direito a menos

O governo federal lançou, no dia 23 de abril, o Plano de Desenvolvimento da Educação. Um de seus itens estipula um piso salarial para professores do ensino básico. A medida, em parte, atende a uma reivindicação histórica dos educadores, que nunca tiveram um índice nacional para balizar seus vencimentos. Porém, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação considera o valor baixo e já preparou um projeto de lei substitutivo. O piso oficial entra em vigor somente em 2010, pagando R$ 850. Já o substituto passaria a valer em 2008 e iria de R$ 1.050 a R$ 1.575. Pág. 5

João Batista Lemos, da CUT, inicia série de entrevistas do Brasil de Fato com integrantes da frente de luta em defesa do direito dos trabalhadores, formada por movimentos sociais e sindicais. Pág. 4

Rodada Doha, pouco a ganhar e muito a perder O sucesso da Rodada Doha geraria um aumento na renda brasileira de apenas 0,023% do PIB. Essa é uma das conclusões da pesquisa da Fundação Carnegie para a Paz Internacional. Pág. 6


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De 26 de abril a 2 de maio de 2007

DEBATE

CRÔNICA

“Ninguém nos contratou” Márcio Baraldi

Frei Gilvander Moreira esde a Revolução Industrial e com a instauração do modo de produção capitalista, os trabalhadores têm lutado para inscrever em leis os direitos relativos ao mundo do trabalho. No entanto, ultimamente, no altar do templo da idolatria do mercado, os trabalhadores estão sendo sacrificados pela flexibilização das leis trabalhistas. Na verdade, a mera legalização da retirada de direitos. Tudo em nome do “progre$$o” e do crescimento econômico. Os trabalhadores brasileiros vivem um dos períodos mais dramáticos da história de suas lutas. Nas duas últimas décadas, os governos escancararam as fronteiras do país ao ídolo capital, o que aprofundou o caráter colonial diante do imperialismo. Porém, a economia cresce abaixo da média mundial. Com a estagnação econômica, deu-se o avanço da onda neoliberal (neocolonial), resultando na privatização do patrimônio estatal como a siderurgia, telecomunicações e outros. Houve também a ampliação sem precedentes da privatização da educação e da saúde. A reforma da Previdência retirou direitos e desvalorizou os benefícios dos 15,6 milhões de aposentados que receberam, neste ano, apenas 3,3% de aumento. Desse modo, o Brasil passa a assimilar subalternamente o processo mundial de reestruturação produtiva, com o fechamento de milhares de postos de trabalho, crescimento do desemprego, intensificação da exploração, precarização das condições de trabalho, informalidade e falta de perspectiva para a juventude.

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Quem trabalhou menos tem as mesmas necessidades que as demais pessoas! Por isso, devemos lutar para que todos recebam um salário, independentemente se estão ou não trabalhando Sem trabalho, a pessoa perde a dignidade. Trabalhar dá autonomia, mas o emprego é um “animal” em extinção. Uma espada de dor transpassa o coração de milhões de desempregados. POLÍTICA ECONÔMICA

O presidente Lula manteve a política econômica neoliberal e assim não quebrou a máquina da concentração de renda. Ao contrário, lubrificou-a ao elevar o superavit primário ao patamar de 4,25% do PIB. Quando realiza elevados superavit primários para pagar juros da dívida pública, o Estado está transferindo aos credores, que são a minúscula fração dos ricos que concentra mais de 50% da renda e da riqueza nacionais, recursos que deveriam ser destinados às áreas sociais. Nos últimos quatro anos, além de cair a qualidade do

Em busca da arca de Noé Leonardo Boff O memorando do encontro Bush-Lula, em março, acerca da produção de etanol e de biocombustíveis não deixa de causar preocupações nos meios do pensamento ecológico. O relatório do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) deixou claro que a Terra está buscando celeremente um novo equilíbrio com o aumento de sua temperatura que pode provocar um verdadeiro transtorno nos climas mundiais, uma devastação da biodiversidade e um risco de desparecimento de milhares e milhares de seres humanos. Essa situação alarmante está suscitando novas responsabilidades nos governos do mundo inteiro, procurando adaptações e estratégias de minoração dos efeitos nocivos. Aqui e acolá se ouvem vozes que falam da urgência de uma central mundial de poderes para enfrentar coletivamente os problemas globais e também da necessidade de uma revolução objetiva nos modos de produção e de consumo. Caso contrário, poderemos conhecer, ainda neste século, o destino dos dinossauros. Depois de reinarem, soberanos, por 133 milhões de anos sobre o planeta, desapareceram há 65 milhões de anos, incapazes de se adaptar ao estado novo da Terra, provocado pela queda de um imenso meteoro rasante, provavelmente, no Caribe.

Os trabalhadores brasileiros vivem um dos períodos mais dramáticos da história de suas lutas emprego, cresceram as pressões para a flexibilização das relações de trabalho e da organização sindical. A classe dominante propõe o fim da multa de 40% sobre o saldo do FGTS, na demissão sem justa causa; e a perda de direitos como o 13º salário, licença maternidade, férias etc. Apregoa que essas medidas são necessárias para a retomada do crescimento econômico e a geração de empregos. Experiências de flexibilização aplicadas em outros países demonstram exatamente o contrário. Na Espanha, a flexibilização foi aplicada nas décadas de 1980 e 1990 e o desemprego saltou de 10% para 22%. Na Argentina, o desemprego passou de 6% para 20%, após as mudanças nas leis trabalhistas iniciadas em 1991. No Chile, que teve sua reforma implantada em 1978 e 1979, o desemprego chegou a 20%. Os trabalhadores não podem ser sacrificados para que os bancos e grandes empresas possam anunciar recordes de lucratividade. Lutamos por regulamentação da proteção contra a demissão imotivada; redução da jornada de trabalho sem redução do salário; salário mínimo calculado pelo Dieese (R$ 1.620,89); direito de organização no local de trabalho; e soberania das assembléias de base. UNIDADE

O Fórum Nacional de Mobilização busca construir a mais ampla unidade de todos aqueles dispostos a lutar e construir uma mobilização que traga novamente os trabalhadores às ruas e construa as condições para, inclusive, paralisar todo o país por meio de uma greve geral, se necessário for. Para combater o desemprego, propomos um plano de obras públicas que tenha como objetivo a construção massiva de casas populares, hospitais, escolas e universidades, estradas etc. Esse plano incorporaria milhões de desempregados num grande mutirão nacional de reconstrução do país e que melhoraria a vida de todos. Na parábola dos trabalhadores na vinha (Mt 20,1-16), o dono da vinha diz àqueles que são contratados para o trabalho

às nove horas da manhã: “Vão para minha vinha, e eu lhes pagarei o que for justo” (versículo 4). Já sabemos o desfecho da parábola: todos recebem igualmente. Os que trabalharam o dia inteiro e os que trabalharam uma hora apenas. Que justiça é essa, que inclusive nos incomoda? Nos versículos 6 e 7, o dono da vinha pergunta aos trabalhadores que encontra na praça às cinco horas da tarde: “Por que vocês ficam aí o tempo todo sem fazer nada?” E a resposta vem na hora: “Porque ninguém nos contratou”. Podemos imaginar quem teria sido deixado lá na praça: as pessoas mais fracas, doentes, deficientes ou idosos... Para o evangelho, justo é não reproduzir os esquemas de discriminação e marginalização e de escolha dos que só produzem nos moldes capitalistas. O pagamento igual justamente vem nessa direção: quem trabalhou menos tem as mesmas necessidades que as demais pessoas! Por isso, devemos lutar para que todos recebam um salário, independentemente se estão ou não trabalhando. Muitos não estão trabalhando porque não existem postos de trabalho para todos. E todo mundo sabe disso. A radicalidade da parábola dos trabalhadores da vinhas faz pensar em tantas práticas que se apresentam por aí como justas. Frei Gilvander Moreira é assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

O que está em jogo não é, portanto, uma alternativa à matriz energética, mas uma alternativa ao padrão de produção e consumo, numa palavra, uma alternativa de civilização No memorando Bush-Lula busca-se uma uma alternativa à matriz energética dominante, mas não uma alternativa ao tipo de sociedade menos energívora e mais respeitosa para com a Terra. O que ambos procuram é uma arca de Noé que possa salvar o sistema imperante. Ora, cabe perguntar: esse sistema pode e merece ser salvo? Não é ele que com sua voracidade de explorar de forma ilimitada todos os recursos da natureza é o principal responsável pelo aquecimento global? Sobre isso o IPCC não diz sequer uma palavra. Minuciosos cálculos revelaram que o sistema dominante e globalizado, movido a petróleo e com uma economia de competição e não de cooperação, só funciona a contento apenas para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre que somos cerca de 6,5 bilhões. Como ficam esses restantes? Edward Wilson, o grande especialista da biodiversidade, em O futuro da vida deixou claro que, se quiséssemos universalizar o bem-estar dos países industrializados, deveríamos contar com outras três Terras iguais a esta. Nosso modo de viver não é, pois, sustentável. Chegou agora, com as mudanças climáticas, ao seu fim, no duplo sentido de fim: realizou suas potencialidades (fim como objetivo alcançado) e também chega ao seu fim, (fim como morte) condenado a desaparecer. O que está em jogo não é, portanto, uma alternativa à matriz energética, mas uma alternativa ao padrão de produção e consumo, numa palavra, uma alternativa de civilização. Que adianta redesenharmos todo o mapa produtivo brasileiro em função de manter o velho sistema se ele já tem os dias contados? Sobre este ponto, o memorando Bush-Lula não faz sequer um aceno. Convocados a ajudar na formulação de alternativas não são tanto técnicos nem economistas, mas pensadores, os que vêm das ciências da vida e da Terra, os portadores de um novo sonho, capaz de construir uma arca de Noé que inclua realmente a todos e não apenas alguns. O tempo do relógio corre contra nós. Seria desejável que no governo Lula houvesse, como em outros países há, uma central para pensar a crise sistêmica e suas possíveis saídas salvadoras. Junto com tantos amantes da Terra, aqui deixamos esse desafio. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octávio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary

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NACIONAL

1º DE MAIO

Reprodução

Na imagem, tela “Il Quarto Stato” (1901), do italiano Pellizza da Volpedo, considerada pintura-símbolo da tomada de consciência coletiva por parte dos trabalhadores

Desafios para o sindicalismo brasileiro Trabalhadores enfrentam os problemas criados por anos de precarização das relações trabalhistas Eduardo Sales de Lima da Redação

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modelo neoliberal, que vem sendo implantado no Brasil desde a década de 1990, impôs uma nova configuração do mundo do trabalho. Para os sindicalistas, criou dificuldades para a organização da base ao flexibilizar direitos, precarizar as relações trabalhistas e aumentar a instabilidade no emprego. Frente a esta realidade, as maiores centrais sindicais do país buscam saídas fáceis transformando o “1º de Maio”, dia de luta do trabalhador, numa grande festa. Porém, a dura realidade do trabalhador se reflete

Trabalho versus capital É lugar comum dizer que a década de 1980 foi a “década perdida” para a economia brasileira. Mas, então, o que teria significado os anos de 1990 para os trabalhadores? Os governos neoliberais aumentaram o poder dos patrões e contribuíram para a atual instabilidade sindical no Brasil. Em 1998, por exemplo, foi criada a Lei do Banco de Horas e a medida próvisória que libera o trabalho aos domingos. A primeira definia a jornada organizada no ano para atender flutuações dos negócios, a segunda definia o trabalho aos domingos no comércio varejista, sem necessidade de negociação coletiva. Fora isso, um golpe foi dado no movimento sindical: o Decreto 2066, de 1996, que estabeleceu punição para servidores grevistas e limitou o número de dirigentes sindicais. “A crise é anterior ao governo Lula. Ela vem da década de 1990. Nesse período, houve a diminuição do número de greves e das taxas de sindicalização porque ocorreu uma desestruturação da classe”, atesta Altamiro Borges, membro do comitê central do PC do B. José Dari Krein, economista da Unicamp, lembra que, até 1994, a lógica do debate sobre a reforma trabalhista estava colocada na sociedade

no dia-a-dia. Cláudia Bueno Meira, de 26 anos e há dois no Sindicato dos Químicos Unificados (Osasco, Campinas e Vinhedo), vive na carne os problemas provocados pelo capital. Ela conta que é muito difícil convencer companheiras e companheiros, operadores de produção de uma fábrica de agrotóxicos de Mairinque (SP), da necessidade de se sindicalizarem. Além da despolitização dos trabalhadores, há a ameaça do dono da fábrica. “Certa vez, o patrão alugou um ônibus e trouxe todo mundo para se desfiliar do sindicato. E, mais, duas pessoas foram mandadas embora porque

eram minhas amigas”, denuncia. Atualmente, apenas 25% dos químicos da região são sindicalizados. Ela aponta que companheiros de trabalho procuram o sindicato tarde demais, somente quando precisam de advogado. “Mesmo que dentro da fábrica existam pessoas revoltadas com tudo isso que está acontecendo, preferem ficar quietos, na deles”, conta Cláudia. Segundo a sindicalista, os novos contratados possuem uma atitude até mais intransigente pois“só pensam em produzir o máximo que puderem”. Cláudia assinala que estar organizada na categoria foi fundamental para se sentir

na perspectiva de avançar na democratização das relações de trabalho. Porém, a partir de 1994, o discurso hegemônico na sociedade, no âmbito da questão do trabalho, foi o de reduzir o patamar de proteção ao trabalhador, com perspectiva de fortalecer a flexibilidade, ampliando a liberdade do empregador em determinar, de forma unilateral, as condições de uso e remuneração do trabalho. “O trabalhador ficou mais sujeito à lógica de funcionamento do mercado. Isso foi feito por meio de medidas pontuais que afetaram os elementos centrais da relação de emprego. Ampliou-se o processo de regulação privada, mais identificada com os objetivos da empresa”, explica. Para Borges, o sindicalismo no Brasil, apesar de tudo, apresenta resistência, mesmo que tímida. Boletins do Dieese mostram que atualmente a maior parte das categorias, mais de 80%, está conseguindo reposição dos salários. “O movimento sindical, contudo, precisa resolver alguns gargalos sérios, como um certo afastamento da base. Em virtude do ataque do capital, o sindicalismo se voltou mais para dentro. Hoje, a necessidade fundamental é retomar o trabalho de base”, indica. Quanto à relação entre os trabalhadores organizados e o governo Lula, o economista avalia que o presidente não apostou na mobilização popular e isso fez aumentar a instabilidade sindical,

tornando-a, inclusive, mais complexa, porque, junto à crise estrutural, emerge uma crise teórica. “O movimento sindical fica um pouco sem saber o que fazer diante deste governo. Alguns acham que ele já chegou a seu objetivo final, outros partem para a oposição frontal”, afirma. “Do ponto de vista da estratégia sindical, os trabalhadores podem atuar tanto pela negociação coletiva no Congresso Nacional, como está acontecendo agora com o movimento dos trabalhadores em relação à emenda 3, quanto no interior das empresas e da sociedade visando garantir um mercado de trabalho mais favorável diante das demandas coletivas da população”, aponta Krein. Essa organização interna se insere dentro do conceito das comissões de fábrica, que negociam diretamente seus direitos com o patrão. Influenciada nos anos de 1980 por seus professores que lutavam pelo fim da ditadura, Nilza Pereira Almeida, dirigente do Sindicato dos Químicos Unificados, entende que, para fazer a disputa contra o capital, as comissões de fábrica ajudariam bastante o trabalho sindical. “Na década de 1990, nos períodos de greve, os patrões cediam às reivindicações de aumento de salário, da diminuição da produção e da mudança do horário de refeição, mas nunca cederam para a formação das comissões de fábrica”, relata Nilza. (ESL)

mais segura diante da ameaça de seu patrão. “Eu também queria trabalhar, ganhar o meu e ficar na minha. Aí, o patrão me assediou sexualmente”, revela Cláudia, sobre os motivo de ter entrado para a militância.

FÁBRICA OCUPADA Em face das dificuldades, o sindicalista Everaldo Duarte de Oliveira, também dos Químicos Unificados, optou por outro tipo de luta. No dia 9 de dezembro de 2003, ele organizou, com os 143 operários da Flakpet (empresa de reciclagem), a ocupação da fábrica da campanhia em Itapevi (SP). Mesmo recebendo financiamento do BNDES, o

patrão, Maurício Nogutte, alegou prejuízos, parou a produção e mandou os trabalhadores, sem salário, aguardarem, em casa, uma solução. O sindicalista, que esteve à frente da ocupação, revela o quanto foi complexo o processo, principalmente por causa da falta de recursos, da falta de entendimento entre os dirigentes sindicais e da tentativa de sabotagem do ex-patrão. “Tentaram, por exemplo, bloquear os geradores de energia da empresa, mas os trabalhadores do setor elétrico conseguiram descobrir a tempo”, revela. Porém, segundo o químico, a falta de consenso entre

os trabalhadores na forma da administração facilitou o processo de reintegração de posse. “Não tinha acordo sobre a forma de gerir a empresa porque alguns líderes de fora da fábrica queriam administrar o processo e minha intenção era preparar os trabalhadores. Como eles tinham o recurso de outras empresas para comprar matéria-prima, conseguiram assumir a direção do processo. Sendo assim, infelizmente, o patrão reverteu o processo”, conta Everaldo. No dia 19 de fevereiro de 2004, a juíza substituta Carolina Conti Reed informou que iria conceder a liminar de reintegração.

ATINGIDOS POR BARRAGENS

Protesto e Justiça paralisam construção da usina de Estreito Silvia Alvarez de Brasília (DF) Desde o dia 16 de abril, centenas de ribeirinhos, pescadores e indígenas protestam contra a construção da hidrelétrica de Estreito, na divisa dos Estados de Tocantins e Maranhão. Se o projeto sair do papel, como prevê o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os povos da região perderão suas terras, meios produtivos de sustento, cultura e identidade. A ação começou com o bloqueio da Ponte de Estreito, na rodovia Belém-Brasília, ainda no dia 16. Depois de 10 horas, 300 pessoas montaram um acampamento em frente ao canteiro de obras e permanecem no local por tempo indeterminado. O objetivo é conquistar a anulação da Licença de Instalação da hidrelétrica cedida pelo Ibama. “As famílias são retiradas de suas casas e de suas raízes e, na maioria das vezes, não são indenizadas ou reassentadas. Além disso, a energia produzida pelas barragens não vai para o povo”, diz

Cirineu da Rocha, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O Consórcio Estreito Energia (Ceste), responsável pela obra, é formado pelas empresas Companhia Vale do Rio Doce, Acoa Alumínio, Billiton Metais, Camargo Corrêa Energia e Tractebel. A hidrelétrica com potência de 1.087 MW, se construída, vai formar um lago de 555 km2, e inundará uma área de 400 km².

ESTUDO DUVIDOSO No terceiro dia de acampamento, o juiz federal Lucas Rosendo, de Imperatriz (MA), deferiu uma liminar que suspende as obras da hidrelétrica, em resposta a uma Ação Civil Pública impetrada, em maio de 2006, pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pela Associação de Desenvolvimento e Preservação dos rios Araguaia e Tocantins (Adeprato), entidade ligada ao MAB. O juiz alega, na sentença, ausência de participação da Fundação Nacional do Índio (Funai) na elabo-

ração do termo de referência para a realização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o correspondente Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Mesmo após feitos os estudos complementares exigidos pela Funai, o EIA exclui terras indígenas que sofrerão impactos da usina. Além disso, segundo a liminar, o processo de licenciamento ambiental foi atropelado. As audiências públicas e as licenças prévia e de instalação aconteceram antes da conclusão do EIA. A liminar exige, ainda, um estudo cumulativo dos impactos das demais barragens do rio Tocantins. Outras ações foram impetradas contra a Ceste, pedindo a paralisação da obra, pelo Ministério Público Federal. Independente das ações e da liminar (já que consórcio ainda pode recorrer), as negociações prosseguem. No dia 25, cerca de 40 representantes de comunidades indígenas, ribeirinhas e sem-terra participaram de audiências com o Ministério de Minas e Energia, Ibama e Funai, em Brasília (DF).


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NACIONAL MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Hamilton Octavio de Souza Abalo geral O ingresso gradativo da China nos mercados do mundo capitalista acontece com sustos e terremotos, já que pode produzir os mais variados efeitos e inclusive abalar todo o sistema. Apesar das medidas do governo chinês para conter o crescimento interno, o PIB deu novo salto no primeiro trimestre deste ano. Em relação ao primeiro trimestre de 2006, o elevação foi de 11,1%, quando a expectativa era de 10,4%. Os mercados tremeram. Poder concentrador Mais uma vez o Banco Central segurou a redução da taxa de juros e, apesar da pressão do governo e de setores do empresariado, baixou apenas 0,25 ponto percentual, de 12,75% para 12,5%. Essa taxa ainda é a mais alta do mundo e permite aos especuladores – nacionais e estrangeiros – faturar uma fortuna com os papéis do governo. É aí que está o mecanismo de transferência e concentração da renda. Articulação privada A TV Globo é especialista na omissão de inúmeros eventos de relevância nacional e internacional, principalmente quando os protagonistas são os trabalhadores e os movimentos sociais. No entanto, no dia 19 de abril, a emissora fez a cobertura de uma manifestação de rua, direto de Caracas, na Venezuela, em defesa da concessão de uma emissora empresarial local. É a solidariedade de classe. Articulação social Está cada vez mais ampla e sólida a articulação de sindicatos, movimentos sociais, entidades populares e organizações de esquerda com posição de independência ou de oposição frente ao governo federal. O 1º de Maio – Dia Internacional dos Trabalhadores – deste ano, em São Paulo, será um bom teste para medir a mobilização desse campo de luta, no ato público às 10 horas, na Praça da Sé. Holofote judiciário Acostumados a vender sentenças para o jogo do bicho, casas de bingo e para outras quadrilhas de ricos e poderosos, inúmeros juízes de várias instâncias, inclusive dos tribunais superiores, foram colocados sob os holofotes da Polícia Federal em diversas operações contra o crime organizado. Resta saber agora quem vai condenar esses juízes, procuradores, delegados e policiais corruptos. Terra lucrativa A Polícia Federal desbaratou, na semana passada, uma quadrilha que falsificava a titulação, fazia a grilagem e a venda ilegal de terras da União nos Estados de Goiás e Mato Grosso. Participavam da quadrilha donos de cartórios, juízes, policiais e funcionários de vários órgãos, inclusive do Incra. O grupo operava há mais de 10 anos. É de imaginar o estrago causado durante todo esse tempo. Carmem Miranda Pessoa exótica e contraditória, o professor Roberto Mangabeira (exPDT, ex-PPS e agora do PRB) foi convidado pelo governo federal para assumir uma secretaria de Assuntos de Longo Prazo, com status de ministro. Não faz nem um ano e meio que, em artigo na Folha de S. Paulo, proclamou: “Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional”. E agora, José? Símbolo quebrado Considerada uma das marcas que mais simbolizam o modo de vida capitalista e o imperialismo dos Estados Unidos, a rede McDonald’s foi parcialmente vendida para um grupo da Argentina, controlado por empresário colombiano e com participação de investidores do Brasil. A nova empresa assume 1.600 lojas em 18 países da América Latina. É a reprodução ideológica do lixo alimentar.

Unidos em defesa dos trabalhadores Movimentos sociais e sindicais preparam protestos unificados em 23 de maio com a participação das maiores organizações do país

João Zinclar

Fatos em foco

Jorge Pereira Filho da Redação

O

s movimentos sociais e sindicais brasileiros estão construindo uma frente de luta em defesa do direito dos trabalhadores. O primeiro ato concreto desta iniciativa será um protesto unificado em todo o país, agendado para o dia 23 de maio. Estão previstas marchas, paralisações nas fábricas, bloqueios de estradas, entre outras ações. O processo começou a ser construído ainda em dezembro, diante da insatisfação crescente das organizações com a diretriz neoliberal da política econômica do governo Lula e da necessidade de construir uma força social que possa intervir nessa conjuntura. A articulação cobre um espectro político amplo e, potencialmente, se opõe ao processo de fragmentação das forças sociais no país. Participam de sua construção a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Via Campesina (MST, MAB, MPA, etc.), a Intersindical, a Conlutas e outras iniciativas conjuntas, como a Assembléia Popular e a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS). O ponto central da unidade é a necessidade de se fazer lutas concretas para se reverter a crise social do país. As bandeiras serão mudança na política econômica e nenhum direito a menos. Até a data da mobilização, o jornal Brasil de Fato publicará quatro entrevistas com representantes dessas organizações. Nesta edição, João Batista Lemos, coordenador nacional da Corrente Sindical Classista (CSC), que atua na CUT, enumera as ameaças em curso aos direitos dos trabalhadores e defende a construção de um projeto nacional com a valorização do trabalho e da soberania. Brasil de Fato – O que está levando os movimentos sociais a programarem um protesto unificado em 23 de maio? João Batista Lemos – A primeira coisa são as questões dos direitos. Com a reeleição do governo Lula, criaram-se melhores condições para a luta do povo por um novo projeto. O avanço da esquerda na América Latina e a correlação de forças no continente compõem uma situação mais favorável para avançar em um projeto nacional de valorização do trabalho e soberania. Isso significa que vai aguçar a luta de classes, pois há também uma ofensiva global do capital para retirar direitos dos trabalhadores para recompor sua margem de lucro. Houve períodos em que as classes trabalhadores avançaram, quando o capital deu o anel para não perder o dedo. Mas agora querem retomá-lo. BF – Como a principal iniciativa do governo para este segundo mandato, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), entra nesse quadro? Batista – O PAC tem um aspecto positivo, trabalha metas de desenvolvimento a partir da indução do Estado. No entanto, não contempla a distribuição de renda e, ainda, limita os direitos dos trabalhadores. Com a restrição do reajuste salarial dos servidores em 1,5% por ano, você restringe o papel do Estado do ponto de vista de garantia dos direitos sociais. BF – Que outras ameaças existem para os trabalhadores?

O jornal Brasil de Fato publicará uma série de entrevistas com dirigentes sociais e sindicais até o dia 23 de maio

Batista – Tem a questão da Emenda 3, que por meio da Super Receita vem no sentido de flexibilizar os direitos. Outra questão é a limitação do direito de greve (proposta defendida pelo governo Lula). A atual legislação já penaliza esse direito, mas precisamos, ao contrário, ampliá-lo. Com relação à proteção dos serviços essenciais à população, os trabalhadores já têm experiência nisso e sabem que áreas não podem parar. Outra questão é que as mudanças estruturais não estão vindo, como uma reforma agrária efetiva. É um governo ainda contraditório, tem um setor desenvolvimentista, mas isso não neutraliza a luta de classes. Por isso, está sendo construída uma frente social em defesa dos direitos do povo, dos trabalhadores. É isso que unifica essas organizações.

Está se ensaiando uma retomada do movimento social no sentido de ocupar o protagonismo das mudanças e da transformação social do país. Há também um certo amadurecimento das organizações para buscar o que unifica BF – Vivemos um processo de divisão e dispersão nas forças sociais progressistas. Qual o potencial de esse quadro ser revertido? Batista – Estamos ainda em um período de descenso do movimento de massas, mas há um avanço na disposição de luta do povo. A vitória dos partidos de esquerda na América Latina e a eleição de Lula são exemplos disso. Está se ensaiando uma retomada do movimento social no sentido de ocupar o protagonismo das mudanças e da transformação social do país. Há também um certo amadurecimento das organizações para buscar o que unifica, e não o que nos divide. Nessa frente que estamos criando, há quem faz oposição ao governo Lula; há quem apóia o governo, no sentido crítico e mantém sua autonomia. A arte de tudo isso é procurar o que nos unifica e construir essa unidade, a questão principal. BF – De que forma vocês enxergam o debate que o governo federal começou a tratar sobre a Previdência? Batista – Está dentro dessa ofensiva do capital. Faz parte de um ajuste neoliberal no mundo e já começou no nosso país, com a Reforma da Previdência, que substituiu o tempo de trabalho por tempo de contribuição e já penalizou os mais pobres que

começam a trabalhar com 10, 12 anos de idade. Agora, querem aumentar a idade mínima para a aposentadoria. Essa reforma tem sentido neoliberal. O próprio Lula reconheceu que a Previdência não é deficitária. O problema maior é a questão do crescimento econômico com a geração de emprego e combate ao mercado de trabalho informal. A saída é expansão econômica com a abertura de mais postos de trabalho, o que exige redução da jornada de trabalho sem perdas salariais, metas de crescimento e também de emprego. Por isso, defendemos um novo projeto nacional para o país, com base na valorização do trabalho. BF – Uma das dificuldades dos movimentos sociais é justamente organizar essa população que vive do trabalho informal, sem direitos. Batista – O movimento social tem a necessidade de uma organização maior. O sindicato representa hoje os trabalhadores do mercado formal, com um nível de sindicalização baixo. O movimento sindical cada vez mais tem de interagir com o conjunto dos movimentos sociais, como os sem-teto, de luta pela moradia, que atuam nos bairros com essa população. Por isso, a unidade do movimento social é fundamental para unir toda a classe, aquela que é obrigada a vender a força de trabalho e aquela que nem tem trabalho. E esse processo deve ser construído em cima de bandeiras muito concretas. A unidade da frente só vai ser possível se encontrarmos bandeiras muito concretas, que respondam aos interesses dessas massas. BF – Durante muito tempo, o projeto hegemônico da esquerda priorizou a luta institucional no projeto de transformação social. Como você avalia esse processo? Batista – Há uma pressão muito grande para a luta institucional porque as questões acabam sendo decididas, hoje, na atual fase da correlação de força e da luta política nas batalhas eleitorais. Na América Latina, a experiência está sendo muito rica. Há uma combinação da luta social com a luta política. A Nicarágua é exemplo, Evo Morales na Bolívia, também no Equador... Mas é uma ilusão achar que só por meio da luta institucional vamos fazer as transformações. Não reúne as condições para enfrentar o grande capital e o imperialismo. Mas também é uma ilusão que só pelo meio dos movimentos sociais vamos fazer essas transformações. Por isso, a necessidade de articular a luta do movimento social com a luta político-institucional no sentido de conquistar posições e fazer frente ao imperialismo e construir um poder de acordo com os interesses da maioria do povo. BF – Quais são as principais pautas de um novo modelo de

desenvolvimento que contemple os interesses da classe trabalhadora? Batista – A primeira questão é a soberania nacional. De como enfrentar o capital financeiro, por isso a necessidade da mudança da política macroeconômico, que aposta na alta dos juros e superavit primário elevado (economia dos gastos públicos para pagamento de juros da dívida). Temos de enfrentar esse modelo da política agrária que se baseia no agronegócio, que não é voltado para os interesses nacionais e da maioria dos trabalhadores do campo e atinge a questão do meio ambiente, outra pauta importante a ser colocada. A outra questão fundamental é a do desemprego, da ocupação. É preciso que a maioria dos trabalhadores seja incorporada na produção, há uma grande massa que está desempregada e um grande setor que está fora do mercado, que não contribui para a Previdência. É preciso incluir esses trabalhadores. Outra é a distribuição de renda. A melhor forma de distribuir renda é a geração de emprego, assim você desenvolve um mercado interno. À medida que o governo se voltar para os grandes interesses do povo, ele encontra o caminho do projeto nacional. E outra questão é a dos direitos, que está dentro da política de valorização do trabalho: recomposição dos salários, ampliação dos direitos, valorização do salário mínimo. BF – Como vocês estão se preparando para as mobilizações do dia 23? Batista – A CCS atua na CUT e estamos fazendo a divulgação dos protestos do dia 23. Já conseguimos unificar as bandeiras nos movimentos sociais. Para nós, essa manifestação deve ocorrer em todo o país, protestos unitários nas capitais, mas lutas também dentro das empresas, bloqueios de estradas, formas que as próprias organizações nos Estados vão encontrar para fazer o seu protesto e a sua manifestação. É importante que se levantem bem alto as bandeiras, para pressionar o governo. Estamos otimistas com a construção dessa unidade, que interessa ao povo e aos trabalhadores. www.vermelho.org.br

Quem é

João Batista Lemos é coordenador nacional da Corrente Sindical Classista (CSC). Operário metalúrgico, 52 anos, ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em 1975, é Secretário Sindical Nacional, atuou no ABC paulista no movimento grevista de 1978/1982.


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De 26 de abril a 2 de maio de 2007

NACIONAL EDUCAÇÃO

Piso salarial é rejeitado por professores Robson Martins

Governo define vencimento mínimo unificado para educadores de todo o país; mas o valor é considerado baixo Renato Godoy de Toledo da Redação

O

governo federal atendeu a uma reivindicação histórica dos educadores brasileiros. No dia 24 de abril, com o lançamento oficial do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), foi instituído o Piso Salarial Nacional Profissional do Magistério Público (PSNP). Porém, todas as entidades representativas do professorado ouvidas pelo Brasil de Fato, em maior ou menor grau, rechaçam o valor, a carga horária estipulada e o método para a aplicação do PSNP. O projeto de lei para estabelecer o piso, que já tramita no Congresso, sugere que os professores devem receber R$ 850 para uma jornada de 40 horas semanais. Não há diferenciação salarial entre os professores com formação em nível superior e em nível médio. De acordo com a proposta do governo federal, o vencimento dos professores deve ser aumentado gradualmente, para atingir os R$ 850 em 2010. A União repassaria verbas aos Estados e municípios para que estes cumpram o piso. Segundo o ministro da Educação, Fernando Haddad, cerca de 55% dos docentes do ensino

Manifestação em São Paulo da Apeoesp, entidade que também engrossa a Marcha Nacional da Educação, organizada todos os anos em Brasília

SUBSTITUTIVO No dia seguinte ao anúncio do PDE, 25 de abril, educadores de todo o Brasil realizam a Marcha Nacional da Educação, em Brasília (DF), impulsionada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), com o mote “Pague o piso ou pague o preço”. A entidade elaborou um projeto de lei substitutivo que prevê um piso de R$ 1.050 para os professores com habilitação em nível médio e R$ 1.575 para os professores com nível superior. Esses valores seriam relativos a 30 horas trabalhadas por semana e

valeriam a partir de janeiro de 2008. Na opinião da presidente da CNTE, Juçara Dutra Vieira, a instituição do PSNP, apesar do valor muito aquém das demandas da categoria, é pertinente, já que a discussão do piso está presente desde 1827, quando D. Pedro I formulou a primeira lei nacional de educação. “A idéia do piso é muito importante, mas não podemos aceitar essa proposta do governo. Além de o valor ser rebaixado, ele só entra em vigor em 2010. Ou seja, até lá o valor estaria mais defasado ainda pois o projeto não fala nada sobre a reposição da inflação”, afirma Juçara. A CNTE tentou marcar uma audiência com o pre-

REALIDADE NOS ESTADOS Atualmente, os professores do ensino básico da rede pública recebem salários e gratificações. Um temor da categoria é que o governo considere essas

“Tem universidade particular que mais parece shopping center”. A brincadeira – que se tornou comum depois que algumas instituições de ensino superior privado passaram a abrigar empreendimentos como salões de cabeleireiros, academias de ginástica e praças de alimentação – tem encontrado fundamento após o surgimento de universidades-shopping centers. Pioneira no Rio de Janeiro, a iniciativa se espalhou e hoje em dia existe também nos Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Sergipe, entre outros. Mais do que um local onde a educação é oferecida como mercadoria, esses estabelecimentos se tornam opção de “consumo, lazer e educação” (exatamente nesta ordem), como afirma uma publicação especializada direcionada a empresários do ramo de serviços. Uma vendedora de uma rede internacional de fast food instalada em um shopping center, onde funciona uma universidade em São Paulo (SP), pergunta: “neste calor, porque não passar aqui e levar uma ‘casquinha’ antes de ir para a aula?”.

PREJUÍZOS PEDAGÓGICOS Mesmo funcionando de acordo com a lógica de mercado, as universidadesshopping não satisfazem as

Aldo Gama

Universidades no templo do consumo Bruno Terribas de São Paulo (SP)

necessidades do aluno-consumidor. “Esta faculdade é uma baderna. A reitoria está mais preocupada com o shopping do que com a estrutura de ensino. Onde já se viu, somente cinco computadores lentos para acesso à internet? Uma biblioteca com vários livros de direito desatualizados? Deveria ser muito melhor. Fora a mensalidade, que é um absurdo”, relata um estudante de uma universidade particular paulistana que, neste ano, transferiu suas instalações para um shopping center. Para evitar represálias, o estudante preferiu não se identificar. “Temo que daqui a alguns anos, quando perguntarem onde me formei eu tenha que dizer: me formei no Shopping Capital”, lamenta. Paulo Rizzo, presidente da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), afirma que a deformação no ensino se dá também na relação professor-

aluno já que, “quando a educação é oferecida em meio a outras mercadorias, o docente se torna um prestador de serviços como outro qualquer, seja ele o vendedor de roupas ou o bilheteiro do cinema. Isso é péssimo, pois perdese o caráter de formação de cidadania inerente à uma educação de qualidade”.

A NÃO-EDUCAÇÃO Assim como promove o isolamento do cidadão do mundo real para fazê-lo adentrar no “reino da fugacidade” – como define o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano –, o shopping center oferece em suas “vitrines” uma concepção distorcida do ensino, explica Pablo Gentili, coordenador adjunto do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para ele, o fato de existirem campi universitários instalados nesses locais é símbolo do “para-

bonificações como parte do salário, o que “facilitaria” o pagamento do piso. “O piso tem que ser baseado em salário, não em gratificação. O trabalhador vive de salário, não de gratificação”, afirma Carlos Ramiro, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). Em São Paulo, Estado com o maior PIB do país, o piso salarial é R$ 668. Com as gratificações, chega próximo aos R$ 1.000. Ou seja, se esses complementos forem considerados como salário, o professorado paulista nem notará a vigência do PSPN. Mesmo em Estados que possuem PIB menor, alguns setores do magistério não se-

sidente Luiz Inácio Lula da Silva para apresentar seu projeto substitutivo, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta. Outro ponto criticado pela entidade é a equiparação salarial entre os professores formados em nível superior e os de nível médio. “Isso é um desincentivo à valorização do professor e da educação. O profissional com nível médio não tem motivação para se habilitar em nível superior”, explica Juçara.

digma da degradação” em que se encontra a sociedade atual. Se de um lado a educação pública tem espaços que promovem a solidariedade, os valores humanos e o cooperativismo, nesse outro modelo são promovidos os valores de competição do mercado, comprometendo a sociabilização e a identidade territorial existentes no espaço público. Porém, mesmo no ambiente do ensino superior público, há a ameaça da lógica mercantilista, explica o professor José Rodrigues, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em educação e coordenador de um projeto de pesquisa sobre o tema. “A incrível força de penetração da noção de equivalência entre consumo e cidadania encontrou, no mesmo segmento de acadêmicos que celebra o advento dos MBAs, elementos de sustentação política”, afirma. Segundo Rodrigues, no vácuo do desmantelamento físico dos campi, os empresários utilizam argumentos que mascaram a falta de investimentos governamentais na universidade pública, enfraquecendo o sentido geral da luta por verbas para o ensino superior. “Não estamos muito distantes do dia em que professores, estudantes e funcionários deixarão de lado suas reivindicações históricas para clamar pelo aroma McWorld”, analisa.

rão beneficiados com a medida. Em Sergipe, por exemplo, os professores com formação em ensino médio recebem R$ 393 e os com nível superior R$ 682, para jornada de 40 horas semanais. Em ambos os casos, há uma bonificação mensal, chamada regência de classe, equivalente a 50% do salário. “Para os trabalhadores com nível médio, a medida pode representar um avanço, mas os de nível superior ficam numa situação delicadíssima: eles já têm um salário acima do piso. Portanto, até 2010 eles podem sofrer uma estagnação salarial”, avalia Joel de Almeida Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Sergipe (Sintese).

Suzane Durães

público recebem salários abaixo desse valor.

35 mil camponeses – Entre os dias 18 e 22 de abril, a cidade de Anchieta (SC) recebeu a 4ª Festa Nacional das Sementes Crioulas (Fenamic). Cerca de 35 mil pessoas participaram do evento que reuniu camponeses de todo o Brasil e de países da América Latina, Europa e Ásia. Cledecir Zucchi, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), conta que o objetivo foi mostrar a agricultura camponesa e apresentar o trabalho de resgate das variedades crioulas desenvolvido pelos camponeses. Sendo assim, a programação contou com espetáculos de música, dança e teatro e, ainda, comidas típicas e exposição de alimentos produzidos pela agricultura camponesa. Miguel Altiere, professor de agroecologia da Universidade da Flórida, explica que a agricultura camponesa é muito importante para o mundo. “Ela detém apenas 20% das terras e é a responsável pela alimentação mundial”, explica. Berta Oyarun, dirigente da Amanuri, organização de mulheres camponesas do Chile, conta que foi à Fenamic para buscar experiências e aplicá-las em seu país. “Estamos preocupadas com as plantações de eucalipto e pinos que prejudicam o solo, as nascentes e o meio ambiente. Nossa água está privatizada e temos que lutar contra as grandes empresas que colocam a nossa soberania alimentar em risco”, revela. Nesse sentido, a ponta de lança do capital internacional são as sementes transgênicas. Para Altieri, os camponeses, com o resgate das espécies crioulas, são os únicos que podem detêlo. “A saída é proteger o meio ambiente e criar zonas livres de transgênicos”, indica. (Suzane Durães, de Anchieta/SC)


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INTERNACIONAL RODADA DOHA

Aldo Gama

“Ganhos” do Brasil não passam de 0,023% do PIB Estudo prevê perdas para a maioria dos países em desenvolvimento, com prejuízos maiores para aqueles de renda mais baixa Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

M

uita fricção e pouca luz. Todo o correcorre armado em torno da assim chamada Rodada Doha de Desenvolvimento parece fadado a gerar migalhas para a economia mundial como um todo. Pelo menos é o que aponta o mais recente estudo sobre o assunto, realizado pelo Carnegie Endowment for Internacional Peace (Fundação Carnegie para a Paz Internacional) – instituição sem fins lucrativos, com sede nos Estados Unidos, dedicada a incrementar a cooperação entre as nações e a promover um engajamento mais ativo dos EUA em questões internacionais. Lançada na capital do Qatar, em 2001, a rodada estabeleceu como meta a liberalização do comércio global de produtos agrícolas, com redução de tarifas e barreiras impostas à compra e venda desses produtos, corte de subsídios que distorcem a concorrência mundial e maior facilidade de acesso aos principais mercados con-

sumidores do mundo. Tudo isso se os negociadores que participam da rodada conseguirem vencer o atoleiro em que se meteram, o que tem travado as conversações e impedido o cumprimento dos prazos fixados pelos países dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC). O trabalho desenvolvido pelo Carnegie mostra que eventuais ganhos da Rodada Doha, se e quando vierem a se confirmar, tendem a ser modestíssimos. Muito inferiores aos resultados alardeados por outros estudos realizados por consultorias badaladas e instituições igualmente renomadas. Descrito pelo próprio Carnegie como o “modelo mais acurado” desenvolvido para avaliar os possíveis resultados da rodada, ao considerar com maior precisão a maneira como os mercados de trabalho funcionam nas economias em desenvolvimento, além de agregar ferramentas mais modernas de avaliação do comércio mundial, o estudo projeta que a economia global receberia uma injeção entre

40 bilhões a 60 bilhões de dólares, qualquer que seja o cenário considerado para o desfecho das conversações. “Isso representa um incremento inferior a 0,2% do produto doméstico bruto mundial”, estima o levantamento. Na verdade, ao contrário do que sugere a retórica esgrimida pelos mais entusiasmados defensores da rodada, o aumento da renda global seria único. Mais precisamente, o ganho projetado, além de reduzidíssimo, ocorreria uma única vez, assim que as mudanças em negociação (redução de tarifas, eliminação de cotas e corte em subsídios que distorcem o comércio mundial de produtos agrícolas) fossem implementadas.

“A natureza limitada dos ganhos da Rodada Doha explica em grande parte a falta de urgência demonstrada pelos negociadores da OMC”, escreve Sandra

Quem ganha e quem perde Cenário Doha para liberalização do setor agrícola e impactos para países em desenvolvimento País/Região

Variação na renda real (Em milhões de dólares)

Argentina

358

Resto da Ásia

307

Brasil

251

Resto da América Latina

141

África do Sul

57

América Central e Caribe

18

Indonésia

9

Resto do Sul da Ásia

-14

Bangladesh

-22

Índia

-42

Resto da África Subsaariana

-106

Leste da África

-110

Vietnã

-157

México

-165

Oriente Médio e Norte da África

-178

China

-264 Fonte: Carnegie Endowment for International Peace

Isso ocorreria porque os preços dos produtos manufaturados tenderiam a subir mais aceleradamente do que as cotações dos bens agrícolas, gerando distorções como a deterioração relativa dos termos de troca no comércio mundial, o que penalizaria as nações menos industrializadas. Mais claramente, os preços dos principais produtos importados pelos países menos desenvolvidos, que concentram suas compras em bens manufaturados, tenderiam a subir mais do que os preços recebidos nas vendas ao exterior. Levando-se em conta todos os cenários avaliados pela Carnegie, as 15 princi-

No caso do Brasil, um dos poucos países em desenvolvimento que poderia ter algum ganho com a rodada, Polaski projeta um aumento correspondente a 251 milhões de dólares, a serem acrescidos ao Produto Interno Bruto (PIB) como resultado da (esperada) abertura de mercados agrícolas ao redor do mundo. Isso representaria mero 0,023% de todas as riquezas geradas pelo país em 2006. Algumas comparações ajudam a ilustrar a real dimensão desse “ganho”. No ano passado, sem a “ajuda” de Doha, o PIB brasileiro experimentou um incremento equivalente a 80 bilhões de dólares quando comparado a 2005, o que representa 318,7 vezes mais do que o tímido avanço projetado pelo Carnegie.

Sob as condições atuais de mercado, com toda a montanha de subsídios despejados no setor rural pelos governos dos países mais ricos, cotas, tarifas e barreiras não alfandegárias, as exportações brasileiras do agronegócio experimentaram uma variação de 13,4% no ano passado, saindo de 43,601 bilhões para praticamente 49,428 bilhões de dólares. Apenas nessa área, foram incorporados à balança comercial do país 5,827 bilhões de dólares a mais, perto de 23 vezes mais do que todo o avanço prometido pela Rodada Doha. Em outros termos, o avanço apurado para o Brasil pelo instituto representaria 0,3% do valor bruto da produção agropecuária, que atingiu R$ 172,4 bilhões no ano passado.

SEM URGÊNCIA

Rendimentos “arrasadores” para as nações mais ricas do globo Para a especialista em comércio Sandra Polaski, “os benefícios da liberalização do comércio agrícola fluem arrasadoramente para os países ricos, enquanto os países em desenvolvimento, na verdade, sofrem pequenas perdas no total”. Entre os menos desenvolvidos, destaca o trabalho da Fundação Carnegie, apenas Brasil, Argentina e Tailândia registrariam ganhos, mas haveria perdas para a maioria deles. “Entre os perdedores incluem-se as mais pobres nações do mundo, incluindo Bangladesh, os países do Leste da África e do resto da África Subsaariana.” Além desses, também teriam prejuízos países do Oriente Médio, do Norte da África, Vietnã, México e China. Todos os países e regiões de renda mais alta tenderiam a experimentar pequenos ganhos, considerando-se os cenários principais desenhados pelo estudo (que considera um total de nove cenários, incluindo a improvável liberalização total do comércio global). Mesmo nessa última hipótese, a abertura ampla e geral dos mercados para produtos agrícolas e industrializados representaria o acréscimo de 168,1 bilhões de dólares na renda mundial, equivalente a somente 0,53% do PIB global. “Os ganhos viriam muito mais da liberalização do comércio de bens manufaturados do que de produtos agrícolas”, aponta Polaski.

Polaski, especialista em comércio que assina o trabalho “Ganhadores e Perdedores – o Impacto da Rodada Doha nos Países em Desenvolvimento”. Por essa e outras razões expostas ao longo das 117 páginas do texto, Polaski conclui que o modelo de análise adotado pelo Carnegie, aliado ao estudo mais cuidadoso de modelos recentes, torna claro que “o comércio não é uma panacéia para a mitigação da pobreza ou para a promoção do desenvolvimento de forma mais geral”. O comércio, prossegue ela, é um dos fatores, entre vários outros, que pode contribuir para o crescimento econômico e a ampliação da renda, “mas sua contribuição parece ser muito modesta”.

pais economias da União Européia, assim como os países de industrialização recente da Ásia, passariam a registrar melhorias nos termos de troca (ou seja, os preços dos produtos exportados por eles subiriam mais do que os dos importados). Mas haveria deterioração para todos os demais países e regiões. Nos casos da China, dos dez países que formam a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) e Japão, ao contrário, o pequeno avanço dos preços de muitos produtos manufaturados exportados seria ofuscado pela elevação dos preços dos alimentos importados. (LVF)

Perdas para 16 setores da indústria O Brasil, diz a Fundação Carnegie, que teria melhorias nos termos de troca se as mudanças fossem limitadas ao comércio de produtos agrícolas, passaria a experimentar deterioração em sua relação comercial com o resto do mundo quando incluídos bens manufaturados nas negociações. Na combinação dos dois cenários – abertura do mercado agrícola e concessões comerciais também na área industrial –, a perda relativa para os chamados termos de troca seria causada pela mudança mais expressiva dos preços dos manufaturados, superpondo-se aos ganhos no setor agrícola. Sob o Cenário Hong Kong, que considera os termos da estrutura de negociações definida pelo encontro ministerial realizado pela OMC na região em dezembro de 2005, a maioria dos setores da economia analisados pelo Carnegie perdem produção e valor agregado no Brasil. A Declaração de Hong Kong autoriza os países em desenvolvimento membros da OMC a recorrem a um mecanismo especial de salvaguarda, que entraria em operação sempre que produtores agrícolas domésticos se sentissem ameaçados por um aumento inesperado no volume de importações ou por queda repentina dos preços de produtos agrícolas importados. Para um total de 22 setores avaliados, incluindo desde a produção de grãos, óleos vegetais, açúcar, carne e laticínios, até calçados, vestuário, petróleo, produtos minerais, motores, equipamentos eletrônicos e outras máquinas, as exportações líquidas do Brasil registrariam um incremento de 319,36 milhões de dólares. O resultado corresponde a 0,23% das exportações totais do país e a 0,69% do superavit comercial acumulado em 2006, que atingiu 46,074 bilhões de dólares. Mais cla-

ramente, o esforço de exportação realizado pela economia brasileira tem rendido muito mais frutos do que os magros resultados prometidos pela Rodada Doha. O detalhe é que 16 entre os 22 setores teriam perdas líquidas nas transações com o exterior, num total de 2,660 bilhões de dólares. Os ganhos ficariam concentrados em seis setores, somando 2,979 bilhões de dólares. Apenas as indústrias de carne e laticínios, com destaque para a primeira, concentrariam 64% dos ganhos líquidos, com saldo positivo de 1,894 bilhão de dólares. Em outro tipo de avaliação, o Carnegie estima que 64% dos setores acompanhados teriam perda na produção e 59% anotariam queda no

valor agregado (o que significa dizer que perderiam participação em seus setores para produtos importados). Tratando-se de valor agregado, apenas setores relacionados à produção de grãos e outros de origem agropecuária e/ou florestal apresentariam avanços. Segmentos que incorporam maior conteúdo tecnológico e/ou de maior valor agregado teriam perdas. Em dois exemplos, óleos vegetais, carne e laticínios teriam ganhos na faixa de 10% quando se compara o valor agregado por aqueles setores antes e depois da Rodada Doha. A pecuária conseguiria ampliar o valor agregado à produção em 9,6%. Mas equipamentos eletrônicos e outras máquinas teriam perdas superiores a 3%. (LVF)

Baixa qualidade

Fonte: Carnegie Endowment for International Peace

Abertura comercial na agricultura e indústria afeta negativamente produção e valor agregado no Brasil, por setor de atividade Setores

Produção Valor agregado (variação em %) (variação em %)

Grãos

1,272

3,392

Óleos vegetais

8,171

10,279

Vegetais e frutas

-2,292

-0,213

Outras culturas

-1,379

0,797

Pecuária

7,121

9,577

Carne e laticínios

9,690

10,578

Açúcar

4,107

4,491

Alimentos processados

1,049

1,371

Bebidas e fumo

-0,044

0,128

Produtos florestais e pesca

0,358

0,814

Óleo bruto e gás natural

-0,341

-0,749

Têxteis

-1,766

-1,942

Vestuário

-0,605

-0,811

Calçados e couro

-2,762

-2,859

Outros manufaturados

-1,165

-1,237

Produtos de papel e lã

-0,517

-0,713

Petróleo, carvão e produtos minerais

-0,308

-0,615

Produtos químicos, plásticos e borracha

-1,552

-1,932

Metais e produtos de metal

-1,072

-1,492

Motor de veículos e outros equipamentos de transporte

0,419

-0,202

Equipamento eletrônico

-2,695

-3,335

Outras máquinas

-3,027

-3,412


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De 26 de abril a 2 de maio de 2007

INTERNACIONAL NIGÉRIA

Votar para nada mudar Derrick Evans

Pleito no oitavo produtor mundial de petróleo é marcado por fraudes em grandes proporções e violência política

momento”, disse Innocent Chukwuma, um dos diretores da organização. Observadores da União Européia disseram também que o pleito não pode ser considerado confiável.

FRAUDES

Igor Ojeda da Redação

O

Aliança entre Estado e transnacionais A região mais explosiva atualmente na Nigéria é a que compreende o delta do rio Níger, no Sudeste do país. A maior parte do petróleo do país é extraído no local, mas sua população, formada por um grande número de etnias minoritárias, não recebe os benefícios do Estado. “O governo nigeriano e as corporações transnacionais do petróleo têm conspirado para manter a região nessa condição lamentável. Décadas de marginalização produziram uma época assustadora de violência e grupos armados, alguns demandando uma distribuição eqüitativa na região”, explica Patrick Naagbanton, coordenador do CEHRD. As transnacionais petrolíferas que atuam na região, como a Shell, a Chevron e a Total, são acusadas de causar inúmeros danos ambientais e às comunidades, além de contarem com o aparato po-

“Um bando de criminosos que querem ser chamados de ‘excelências’ se impôs através de violência e fraudes eleitorais”, denuncia nigeriano

de Fato, Patrick Naagbanton, coordenador do Centro para o Meio Ambiente, Direitos Humanos e Desenvolvimento (CEHRD, na sigla em inglês), uma organização da comunidade rural de Ogale-Nchia, na região do Delta do Níger, no Sudeste da Nigéria.

RIQUEZA X POBREZA O país do Oeste da África é o oitavo produtor mundial de petróleo, obtendo cerca de 50 milhões de dólares diários com a sua exportação. No entanto, de acordo com Adetokunbo Mumuni,diretor executivo da organização nigeriana Projeto Direitos Socioeconômicos e Responsabilidade (Serap, em

licial do governo na repressão aos que se opõem às suas atividades. “As empresas de petróleo estão literalmente controlando o governo nigeriano. Elas ameaçam o meio ambiente e o povo com desprezo e impunidade. Aqueles que questionam suas práticas vão para o esgoto, assim como o famoso escritor nigeriano, Ken Saro-Wiwa, e outros”, protesta Patrick. Em 1995, Ken SaroWiwa e outros oito líderes da etnia Ogoni que lutavam contra a presença da Shell na região foram condenados à morte por um tribunal especial militar (cujas decisões não podem sofrer apelo) pelo assassinato de outros quatro ativistas Ogoni, mesmo sem nenhuma comprovação. Oito dias depois, foram executados. O principal grupo armado de oposição às empresas é o Movimento de Emancipação do Delta do Níger (Mend), que realiza ataques a instalações petrolíferas (que já causaram muitas vezes diminuição ou interrupção da produção) e seqüestros de funcionários. (IO)

ARGÉLIA

NIGÉRIA Abuja

OCEANO ATLÂNTICO

Luanda

ANGOLA

inglês), tal riqueza não é revertida para a população. “O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) relatou em dezembro de 2002 que cerca de 70 milhões de nigerianos estavam vivendo abaixo do nível de pobreza, um aumento de 20 milhões em relação a 1998. Mesmo assim, sucessivas constituições nigerianas, incluindo a atual, de 1999, freqüentemente falharam em incorporar direitos econômicos, sociais e culturais”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato. Segundo ele, para quem é preciso uma reforma constitucional para garantir esses direitos, as maiores priori-

dades para os novos governantes deveriam ser saúde e educação, às quais “crianças pobres e seus pais não têm acesso”. Para Adetokunbo, outro gravíssimo problema é a corrupção sistêmica. País de 140 milhões de habitantes (sendo cerca de 50% deles muçulmanos e 45% cristãos), a Nigéria tornou-se independente da Inglaterra em 1960. Até 1999, quando o atual presidente, Olusegun Obasanjo, foi eleito (depois reeleito em 2003), o país passou por diversos regimes militares. Desde então, suas eleições vêm sendo bastante conturbadas. A do dia 21 de abril, por exemplo, foi classificada

pelos observadores como “fraudulenta”. O resultado oficial deu a vitória ao candidato do PDP (atualmente no governo) Umaru Yar’Adua, um nome desconhecido até sua indicação à candidatura, com 24,6 milhões de votos ou 70% do eleitorado. O segundo colocado recebeu apenas 6,6 milhões de votos, o que representa 18%. O maior grupo de monitoramento eleitoral da Nigéria, o Transition Monitoring Group, afirmou que a eleição foi tão falha que deveria ser anulada e realizada novamente. “Em muitas partes do país, as eleições não começaram no tempo certo ou simplesmente não começaram em nenhum

CUBA

Justiça dos EUA liberta terrorista internacional da Redação O terrorista internacional Luis Posada Carriles, 79 anos, foi posto em prisão domiciliar no dia 19 de abril pelas autoridades estadunidenses, após pagar fiança de 250 mil dólares. O ex-agente da CIA é um dos executores do ataque a um avião cubano que deixou 73 mortos em 1976. Esse, entretanto, não é motivo pelo qual o anticastrista encontrava-se preso, já que as autoridades estadunidenses se recusam a indiciá-lo pela participação no ato terrorista. Cuba também o acusa de integrar o grupo de quatro terroristas que organizou um frustrado atentado contra o presidente cubano, Fidel Castro, durante a 10º Cúpula Ibero-americana no Panamá, em 2000; e também de planejar uma série de atentados a bomba em 1997 contra instalações turísticas de Havana, em uma das quais morreu o jovem italiano Fabio di Celmo. Carriles estava preso desde 2005, depois de aparecer em público em Miami e deixar evidente sua entrada ilegal no território estadunidense. Um juizado federal do Texas o condenou em sete acusações, incluindo uma por fraude no processo de naturalização e outros seis por dar informação falsa a oficiais de imigração, mas nenhuma acusação pelos seus atos terroristas.

Tgraham/Creative Commons

dia 29 de maio poderá ser o primeiro na história da Nigéria no qual um presidente civil entregará o cargo a outro civil. Mas a democracia nigeriana está longe de ser motivo de comemoração, de acordo com organizações sociais do país e observadores nacionais e internacionais. A Nigéria foi às urnas duas vezes em abril. No dia 14, para eleger os governadores nos Estados e os parlamentares estaduais. No dia 21, para eleger o presidente e os parlamentares federais. Porém, mudanças na dura realidade do país dificilmente ocorrerão e, nas duas ocasiões, o pleito ficou marcado por fraudes, violência política e dificuldade de votar. “Estas são as piores eleições na história de nosso país. Não é uma eleição no sentido pleno da palavra, mas uma eleição de zombaria. Um bando de criminosos que querem ser chamados de ‘honoráveis’ e ‘excelências’ se impôs através de violência e irregularidades eleitorais. Eu duvido que eles trarão alguma mudança para a política. Trarão sim mais crises”, lamenta, ao Brasil

Há relatos de uma série de irregularidades, como a chegada tardia de material eleitoral a postos de votação quando a maioria dos eleitores já haviam voltado para casa. Testemunhas afirmaram também que alguns homens depositavam nas urnas incontáveis cédulas favoráveis ao partido governista e que quem pretendia votar na oposição tinha a cédula rasgada. Vinte e cinco partidos de oposição se aliaram para declarar que os nigerianos devem resistir à “fraude em alta escala” das eleições presidenciais. Além disso, a campanha eleitoral foi marcada por muita violência política. A União Européia afirma que pelo menos 200 pessoas morreram desde seu início. Documento conjunto da Anistia Internacional e de organizações nigerianas divulgado no começo de abril afirma que períodos pré-eleitorais no país são marcados por intimidação de candidatos e violência contra seus apoiadores, além de muitos candidatos serem assassinados, seja por opositores, seja por correligionários. “Existem acusações de que candidatos individuais, assim como alguns partidos políticos estaduais e locais, contratam grupos armados para instigarem a violência política”, diz o texto.

Ex-agente da CIA, Carriles também é acusado por Cuba de ter tentado matar Fidel no ano 2000

A sentença que permitiu sua prisão domiciliar foi considerada contraditória, já que a juíza reconheceu que o réu participou do atentado contra Fidel no Panamá. Entretanto, a magistrada considerou que as acusações que recaem sobre o réu não estão relacionadas com nenhum desses acontecimentos. Além disso, alegou-se que ele não constituía um perigo para a comunidade.

REPERCUSSÃO O povo cubano, incluindo familiares das vítimas do atentando de 1976, protagonizaram diversas manifestações na ilha caribenha. Mais de 20 mil pessoas se reuniram na cidade de Matanzas (100 km de Havana) na Plaza de la Vigía. O ato ainda con-

tou com a presença de jovens proveniente de 72 países que estudam diferentes carreiras em Cuba, especialmente Medicina. Concentrações similares se realizaram dias 19 e 20 em Bayamo (Oeste do país) e Santa Clara (centro), respectivamente. Declaração do governo cubano acusa Washington de ignorar o clamor mundial contra a impunidade, a qual qualificou de insulto às vítimas dos crimes de Posada Carriles. “A plena responsabilidade pela liberação do terrorista e as conseqüências que dela derivam recai diretamente sobre o governo de Estados Unidos e, muito particularmente, sobre o presidente George W. Bush”, ressaltou o documento. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, em seu

programa televisivo, deixou clara sua crítica aos EUA. “Eles que dizem lutar contra o terrorismo, aí está, a máscara cai a cada momento; tentam usá-la, mas ela volta a cair”, afirmou. Chávez ainda disse que a “Venezuela toda levanta sua voz indignada pela proteção que o governo imperialista dos EUA continua dando ao pai de todos os terroristas de todos os tempos no continente americano, o assassino Luis Posada Carriles”. A Venezuela estuda levar à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos o caso da liberação do terrorista, cuja extradição é exigida devido à sua fuga de uma prisão venezuelana em 1985. (Com informações da Prensa Latina)


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CULTURA

De 26 de abril a 2 de maio de 2007

LITERATURA

Gorki, o feminista Há um século, o escritor e militante russo Máximo Gorki concluia A mãe, uma das suas principais obras Reprodução Arte de Aldo Gama sobre foto de Rodrigo Encinas/Creative Commons

Gervásio de Paula

E

m 1907 – há 100 anos, portanto – o escritor russo Máximo Gorki estava refugiado em Staten Island, Estados Unidos, com a idosa mulher que lhe pariu e resolveu escrever A mãe, um de seus monumentos literários montado em envolventes pilastras sociais. Descreve de início os costumes, a dura e crua sobrevivência das pessoas num comum bairro operário russo. Em seguida, passa a narrar a saga de uma das famílias. Mikhail Vlassov – chefe de casa – morre. Ficam Peláguea Nilovna viúva e o filho Pavel. A morte do velho não abalou os familiares. Nem a comunidade onde morava, em razão da sua grosseria e rudez, tanto com a mulher quanto com o filho. Fazia mais de dois anos não se falavam. Mikhail era detestado por quantos conviviam com ele, mesmo por breves tempos. Era arruaceiro. Apesar de sua relevante capacidade profissional como serralheiro, a sua ignorância o afastava até dos que precisavam de seus serviços. Por isso, escapava com migalhas financeiras. Durante boa parte do livro, Máximo Gorki deixa, também, a sua marca de inimigo do machismo, embora fosse obrigado a conviver com gente dessa espécie, mas quando tinha oportunidade deixava, em seus escritos e ensinamentos, um sutil e comovente protesto. Diz o famoso escritor Marques Rebelo, na apresentação de uma das obras de Gorki, ter nascido o revolucionário russo em Nijni Novgorod, em 14 de março de 1868, sob o batismo de Alexei Maximovitch Pechkov, com profundas e compreensivas razões para adotar o pseudônimo literário de Máximo Gorki, com o qual se imortalizaria. É que Gorki, em russo, significa amargo, amargoso; e amarga como fel, tantas vezes, foi a sua vida desde o berço miserável. E até a sua morte – em pleno auge da glória, em 14 de junho de 1936 – não foi isenta de amargura, quando os médicos que o atendiam teriam sido forçados a aplicar-lhe remédios inadequados, uma espécie de cicuta estatal. É que pelos altos poderes diretivos era olhado sob suspeita de conspirador. Quando não foi mais, durante toda a sua agitada existência, do que um grande e generoso inconformado. Um descontente com a feição que iam tomando os negócios públicos e desejoso de voltar para o estrangeiro, onde tanto tempo estivera, quando negaram-lhe o passaporte – “e tudo isso era conhecido publicamente e discutido em murmúrios”, escreve Trotsky em livro de memórias.

FEMINISMO Em 1923, por exemplo, quando escreveu seu famoso conto O primeiro amor, Máximo Gorki esbanjou solidariedade feminina, ao exteriorizar: “A maior prova da inteligência que

Até a sua morte – em pleno auge da glória, em 14 de junho de 1936 – não foi isenta de amargura, quando os médicos que o atendiam teriam sido forçados a aplicar-lhe remédios inadequados, uma espécie de cicuta estatal

o homem pode dar é saber amar a mulher, adorar a sua beleza; do amor pela mulher nasceu toda beleza do mundo”. Mas, voltando à família operária russa de A mãe... Salvando-se, mesmo de maneira funesta, da convivência dolorosa do marido, Peláguea Nilovna dedica-se com mais fervor a cuidar do filho Pavel. De tanto se apegar ao jovem, nota – o que não sentira antes – que seu comportamento é diferente dos outros jovens de sua comunidade. Não vai à festa. Entorna bebida uma vez na vida, apesar de viver mais na rua do que em casa. A mãe de Pavel começa a se preocupar com os estranhos – para ela, claro – hábitos do filho. Botando a imaginação e a experiência para trabalharem com mais intensidade, enfrenta crises angustiosas de preocupação, de tanto levantar suposições sobre o afastamento do filho, de sua companhia em casa com mais constância. Numa baixíssima temperatura climática, depois do desjejum da tarde, Pavel recolheu-se a um canto da casa, sob a penumbra de uma lanterna, para ler um livro. A mãe sorrateiramente dele se aproxima, pensando que não estava sendo percebida, de tão embebido na leitura estava o filho. No entanto, Pavel diz logo que está a ler um livro proibido. “Como este já li outros. São considerados perigosos. Por isso, proíbem. E proíbem por dizer a verdade sobre vidas de operários.” De repente a mãe se angustia. O filho explica-lhe com paciência o que havia aprendido da vida dos operários. E informa, também, que alguns de seus amigos da cidade iriam brevemente a sua casa para realizar uma reunião. Desde esse dia as reuniões são constantes na casa de Pavel. A mãe, de início, ficou assustada. Mas, depois aclimatou-se e estendeu a admiração e o afeto que tinha pelo filho aos seus demais colegas. Pavel organiza um grupo e passa a ativista profissional, agindo nas fábricas do bairro. Distribuição de panfletos é uma das tarefas mais executadas. Organizam uma greve como ponto alto dessas tarefas, mesmo a época não sendo nada favorável. A repressão do governo tsarista agia com violência, como com violência age

Durante a prisão do filho, Nilovna sentiu no sangue a proposta de Pavel e de seus amigos. E isto resultou no fortalecimento de sua disposição para a luta, transformando-se em ativista, integrandose ao grupo dos jovens que se mobilizavam clandestinamente no bairro toda polícia. Numa de suas atividades, Pavel foi preso. Mas, solto em seguida. Durante a prisão do filho, Nilovna sentiu no sangue a proposta de Pavel e de seus amigos. E isso resultou no fortalecimento de sua disposição para a luta, transformando-se em ativista, integrando-se ao grupo dos jovens que se mobilizavam clandestinamente no bairro. Peláguea Nilovna passou até a se disfarçar de vendedora de comida para facilitar a infiltração de diversos panfletos nas fábricas, passando com muita malícia e cinismo pela vigilância governista e pelas tropas privadas do patronato.

REALIDADE E FICÇÃO Na A mãe, Máximo Gorki conta episódios verídicos ocorridos na Rússia, nesse período. Relata que alguns dias antes do “1° de Maio de 1902”, a mãe de Pavel – que já alcançara um elevado grau de consciência política, sob a influência também do filho – passou a cooperar na organização dos movimentos no bairro, a partir da confecção, e distribuição de panfletos e cartazes, o que antes fazia ainda recatadamente, afora os cuidados que tomava em advertir os seus companheiros, para não caírem nas malhas da repressão tsarista.

“Os manifestos” – narra Gorki –, “conclamando os operários a festejar o “1° de Maio”, eram pregados nos muros e paredes todas as noites; apareciam, até, nas portas de delegacias e eram encontrados diariamente nas fábricas. Todas as manhãs, policiais enfurecidos percorriam o bairro, arrancando e raspando os cartazes roxos das paredes, Mas, à hora do almoço, eles voltavam a voar pelas ruas caindo aos pés dos transeuntes”. No entanto, nem a vigilante repressão tsarista, nem a colaboração não oficial, evitaram que o ânimo envolvesse o movimento de “1° de Maio”. Uma ava-

lanche operária, comandada pelo grupo de Pavel – um dos mais influentes líderes – esteve presente ao ato popular. Em A mãe, escrito há cem anos, o grupo de Pavel é identificado como célula do Partido Operário Social Democrata Russo. Com o fortalecimento gradativo da passeata, Pavel dá de cara com as forças da reação. Mas, não se intimida. Porém, a multidão, em pequenos grupos, desvanece. Já os líderes do movimento não arredam o pé e entram em choque com os policiais. Como era de se esperar, após a dispersão da massa, Pavel e seis de seus companheiros são presos.

Até o ucraniano Andrei, que morava na casa de Pavel e adquirira grande amizade com Peláguea. Após a prisão houve um ato, cuja participação principal foi de Nilovna, que falou não somente na defesa do filho, porém demonstrando um ardor pela causa que os jovens serviam.

PRECAUÇÃO Com medo de que houvesse mais reação com funestas conseqüências à mãe de Pavel, dada a sua impetuosidade e destemor no ato público e por se encontrar só em casa, os companheiros levaram-na para morar na cidade. A polícia tsarista já tinha ido duas vezes à casa da mãe de Pavel. Não a encontrara. Porém, reviraram tudo. Agora, ela poderia ser presa. Diante disso, Peláguea foi morar na casa de Nicolai, ativo militante. Mas, sem deixar de intensificar seu trabalho clandestino pelo partido. Assumiu, inclusive, a responsabilidade de organizar o transporte de jornais, panfletos e manifestos. Prioritariamente, para os camponeses, tornando-se, assim, uma autêntica revolucionária. O livro é fiel ao narrar as convulsões sociais em que a Rússia mergulhou no começo do século 20, mostrando todo o início do movimento político no bairro operário. De tal maneira que somente um habilidoso, perspicaz e sensível conhecedor da cultura, dos vícios de linguagem, das gírias, das mazelas, das virtudes, das manias e dos costumes do povo russo, como Máximo Górki, seria capaz de escrever A mãe – despertando um grande entusiasmo em quantos o lêem, a partir da história da vida de Peláguea Nilovna. Gervásio de Paula é jornalista

A mãe Máximo Gorki Expressão Popular R$ 15,00 (456 páginas)


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