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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 220

São Paulo, de 17 a 23 de maio de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

Valter Campanato/ABr

Unida, esquerda vai à luta dia 23 editorial

A importância da jornada nacional

Papa Bento XVI decide abaixar os vidros do papamóvel na chegada à Aparecida

Não existem mártires capitalistas, diz teólogo da libertação “Ao longo da história, celebramos os mártires do comunismo, mas nunca foram celebrados os mártires do capitalismo”, diz o padre comboniano João Pedro Baresi, referindo-se à polêmica frase de Bento XVI, de que os sistemas “marxista” e capitalista teriam falhado. Em Aparecida, enquanto prosseguem as discussões até o dia 31 entre os bispos participantes da 5ª Conferência do Conselho Episcopal da América Latina e do Caribe (Celam), simultaneamente, movimentos de base da Igreja se reúnem na Tenda dos Mártires da Caminhada, erguida a um quilômetro da basílica. Pág. 6

França caminha em direção aos EUA

Na África, ONU incentiva retorno

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o economista Michel Husson avalia que a vitória de Nicolas Sarkozy nas eleições presidenciais francesas intensificou a fragmentação das forças sociais. Para ele, se não houver uma recomposição da esquerda, Sarkozy implementará uma agenda política conservadora e se aproximará do estadunidense George W. Bush. Pág. 11

Cerca de 20 mil refugiados da República Democrática do Congo que vivem na Zâmbia deverão voltar para casa até o fim de 2007. É o que prevê um programa de repatriação voluntária lançado pela ONU, em parceria com os dois países envolvidos. Há hoje 340 mil congoleses fora do país, que passou por uma guerra civil entre 1998 e 2003, com o assassinato de 5 milhões de pessoas. Pág. 10

USP: estudantes ganham apoio em ocupação

Fernão Lopes/MTST

A CONSTRUÇÃO de uma jornada de lutas em 23 de maio, unificando os movimentos populares, organizações sindicais e estudantis de todo o país em torno de uma mesma pauta, constitui importante salto de qualidade na retomada das mobilizações nos últimos anos. Desde o Plebiscito Popular contra a Alca em 2002, não se conseguia unificar tantas forças políticas, movimentos e organizações em torno de um mesmo objetivo. A Plenária Nacional da Assembléia Popular em novembro de 2006 foi o ponto de partida para a construção de um calendário comum de lutas, apontando, desde então, a necessidade de se construir uma jornada nacional em maio de 2007. Enfrentando as dificuldades em relação às diferenças de análises e métodos, as forças políticas de esquerda conseguiram construir uma agenda comum de reivindicações, lutas e mobilizações. Isto é um importante sinal de maturidade. Cada vez mais, é decisivo que as forças populares construam sua unidade de forma autônoma. E somente se consolida esse processo em torno de lutas populares e ações planejadas conjuntamente. Trata-se de construir uma agenda de interesses comuns do povo brasileiro que acabe com a fragmentação das forças sociais que vem ocorrendo desde a primeira posse de Lula em 2003. Essa construção envolve tensões e divergências entre as várias correntes e concepções. Por isso mesmo, exigirá paciência e generosidade entre os que estão empenhados na retomada das mobilizações populares. “Nenhum direito a menos” será a principal palavra de ordem de uma pauta que rejeita as tentativas de reforma previdenciária e trabalhista, a limitação ao direito de greve dos servidores públicos. Exige a manutenção do veto à Emenda 3, reforma agrária e anulação da privatização do leilão da Companhia Vale do Rio Doce. Em torno dessas e outras bandeiras comuns, foi possível unificar a CUT, Conlutas e Intersindical na área sindical, as amplas articulações como a Coordenação dos Movimentos Sociais e a Assembléia Popular, incorporando as principais organizações e movimentos nacionais como o MST, a UNE e a Conam. Outro momento fundamental para esse processo de unidade será o plebiscito popular sobre a anulação do leilão de privatização da Vale do Rio Doce, a ser realizado de 1 a 7 de setembro. Eis por que é fundamental estimular o máximo de movimentos e organizações para que desenvolvam atividades de luta durante a jornada do dia 23 de maio. A somatória de cada manifestação demonstrará a insatisfação com a política econômica e com a violenta ofensiva do capital para suprimir nossos direitos.

Os principais movimentos da esquerda brasileira fizeram, nos últimos seis meses, um esforço em prol da unidade. Construíram uma agenda comum e marcaram para o dia 23 uma jornada nacional de lutas. Como eixo central, o combate ao neoliberalismo, modelo que piora as condições de vida do povo brasileiro há quase duas décadas. As mobilizações prevêem o trancamento de estradas, paralisações nos locais de trabalho e em universidades e manifestações nos centros das grandes cidades (Pág. 5). Em entrevista, Sônia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres, revela que o processo não se encerra nesses atos e que o dia 23 pode ser apenas o começo (Pág. 4). Uma das pautas unificadas das organizações é a Campanha pela Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce, cuja privatização completou dez anos e segue sendo contestada na Justiça (Pág. 7).

Os estudantes que ocuparam a reitoria da USP, no dia 3, ganharam um reforço importante: os trabalhadores da instituição entraram em greve, também, em protesto contra os decretos de José Serra que limita a autonomia universitária. Pág. 3

Terra em Transe completa quatro décadas Filme de Glauber Rocha, que inspirou a Tropicália, chegou aos 40 anos no dia 8 de maio. Trabalho foi um dos primeiros a tratar com franqueza o golpe militar de 1964, fazendo um debate sobre os erros da esquerda. 9 771678 513307 00220 Pág. 12

Acampadas há dois meses em Itapecerica da Serra, São Paulo, 3,5 mil famílias sem-teto conquistam terrenos e financiamento


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de 17 a 23 de maio de 2007

crônica

Leonardo Boff

DEPOIS DOS alarmantes relatórios do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC) o pior que nos pode acontecer é deixar as coisas correrem como estão. Então iríamos alegremente ao encontro de nosso próprio fim. Tal atitude me faz lembrar o conhecido aforismo de Sören Kierkegaard (1813-1855), famoso filósofo dinamarquês, sobre o clown, um palhaço de circo. O fato, conta ele, é que estava ocorrendo um incêndio nas cortinas do fundo do teatro. O diretor enviou então o palhaço, que já estava pronto para entrar em cena, para avisar a toda a platéia do fato. Suplicava que acorressem para apagar as chamas. Como se tratava de um palhaço, todos imaginavam que era apenas um truque para fazer rir as pessoas. E estas riam que riam. Quanto mais o palhaço conclamava a todos, mais esses riam. Pôs-se sério e começou a gritar: “O fogo está queimando as cortinas, vai queimar todo o teatro e vocês vão queimar junto”. Todos acharam tudo isso muito engraçado, pois diziam que ele estava cumprindo esplendida-

debate

O palhaço de Kierkegaard e a crise climática Muitos cientistas, empresários, bispos e até a gente do povo que pensam ser o aquecimento global uma grande enganação ou um alarme desnecessário mente seu papel. O fato é que o fogo consumiu o palco e todo o teatro com as pessoas dentro. Termina Kieregaard: “Assim, suponho eu, é a forma pela qual o mundo vai acabar no meio da hilariedade geral dos gozadores e galhofeiros que pensam que tudo, enfim, não passa de mera gozação”. Estas palavras de Kierkegaard se aplicam perfeitamente a muitos cientistas, empresários, bispos e até a gente do povo que pensam ser o aquecimento global uma grande enganação ou um alarme desnecessário. Dizem que o fenômeno é, em grande parte, natural e que a Terra

tem condições por si mesma de encontrar o equilíbrio ótimo para a vida. E vivem como os ricos do Titanic, rindo e se afundando. Por outro lado, muitos são os que tomam as advertências a sério, Estados e grandes instituições, também entre nós. Sabem que se começarem agora, com apenas 2% do PIB mundial, poderão equilibrar o clima global e continuar a aventura planetária com perspectivas de esperança. O fato inegável é que estamos face a um problema global. Não afeta apenas este ou aquele ecossistema ou região mas seu conjunto, a

biosfera e o inteiro planeta. Somos todos interdependentes e as ações de todos afetam a todos para o bem ou para o mal. Tardiamente, só a partir dos anos 70 do século passado, ficou-nos claro que a Terra é um superorganismo vivo, Gaia, que regula os elementos físicos, químicos, geológicos e biológicos de tal forma que se torna benevolente para todas as formas de vida, especialmente a nossa. Mas agora, dada a intervenção prolongada e persistente do processo produtivo mundial, ela chegou a um ponto em que não consegue sozinha se auto-regular. Precisa de nossa intervenção, que vai

Por justiça e soberania popular

Os nossos desafios atuais dividem-se em apresentar um novo programa para agricultura brasileira, que atenda as necessiades do camponeses e da população grandes grupos econômicos tomaram conta da nossa agricultura, para exportar matérias-primas, para produzir celulose e energia, para seu modo de consumo. No entanto, mais do que nunca é necessária uma reforma agrária. Uma reestruturação não só da concentrada propriedade da terra no Brasil, mas do jeito de produzir. 5º CONGRESSO Com o agronegócio, mudou o padrão da luta de classes na agricultura, onde não enfrentamos mais o tradicional latifundiário. Hoje, os que querem monopolizar as terras, controlar territórios, assegurar as reservas de água doce e se apoderar da biodiversidade são os mesmo donos de bancos, transnacionais da agroindústria. Esses são os novos inimigos da reforma agrária, agora difusos em sociedades anônimas. Por isso, os nossos desafios atuais dividem-se em apresentar um novo programa para a agricultura brasileira, que atenda as necessidades do camponeses e da população

Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

fatos em foco

João Pedro Stedile

APROVEITAMOS ESTE espaço aqui no Brasil de Fato para nos comunicarmos com os companheiros e as companheiras que atuam nas mais diferentes formas de organização de nosso povo. Queremos lhes falar da conjuntura da Reforma Agrária no Brasil e também sobre a realização do 5º Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O Brasil está vivendo um momento complexo de sua história. Tivemos um modelo econômico de industrialização dependente que organizou a nossa economia durante 50 anos – e que, pelo menos, fazia a economia crescer. Esse modelo entrou em crise. A economia está praticamente paralisada há 20 anos. As elites brasileiras, cada vez mais subordinadas aos interesses do capital estrangeiro e dos bancos, estão implementando um novo modelo, baseado nesse capital financeiro e internacional. O chamado neoliberalismo. Mas esse modelo só agravou os problemas do povo. Não cabe mais reforma agrária numa economia que tem seu centro apenas nas exportações, nos bancos e nos grandes grupos econômicos. Cerca de 200 empresas controlam a maior parte da economia e 78% de todas as exportações. Por isso, vocês devem ouvir muito a imprensa empresarial falar que não tem mais sentido a reforma agrária. Reforma agrária não é apenas pegar um latifúndio, dividi-lo em lotes e largar lá os pobres do campo para que se virem. A reforma agrária ficou mais complexa porque o capital estrangeiro, as transnacionais, os

muito além de apenas preservá-la e cuidá-la. Temos que efetivamente resgatá-la e curá-la. Pois, em termos cósmicos, é um planeta já velho, com recursos limitados e dificuldades de auto-regeneração. Como somos o principal agente desestabilizador pode acontecer que ela não nos considere mais benevolentemente e queira continuar sem nós. A dinâmica do processo de produção e consumo ilimitados não consegue manter o equilíbrio do planeta. Somos obrigados a mudar na linha do que sugere a Carta da Terra: assumir um modo sustentável de vida. Este somente se alcançará mediante a cooperação mundial e a percepção espiritual de que o planeta é Terra-mátria, prolongamento de nossa própria existência terrenal.

Petrobras boliviana Setores neoliberais tentam, cinicamente, alardear supostos prejuízos da Petrobras com a nacionalização das refinarias na Bolívia, mas a própria empresa reconhece que fez bom negócio em aceitar a indenização de 112 milhões de dólares. Na verdade, os bolivianos fizeram lá o que os brasileiros deviam fazer aqui com todas as empresas que exploram os recursos naturais. Tragédia brasileira

Maria Luiza Bezerra, de 53 anos, aposentada por invalidez, morreu, no dia 9, em Fortaleza (CE), depois que a Companhia Energética do Ceará, empresa privada pertencente ao grupo espanhol Endesa, cortou a energia de sua casa por atraso no pagamento, e ela, vítima de acidente vascular cerebral, dependia de respirador e inalador elétrico para sobreviver. Quem paga esse crime?

Mobilização agora

brasileira, e combater o modelo das elites, representado na atual política econômica, na atuação das transnacionais e do agronegócio, no latifúndio atrasado que persiste em todo o território nacional e na expansão da monocultura. Foi pensando nesse estágio da nossa luta que a nova palavra de ordem, a partir do 5º Congresso Nacional, será Reforma Agrária: por Justiça Social e Soberania Popular. As palavras reforma agrária são nossa bandeira histórica e, portanto, objetivo principal e permanente de nosso movimento e de nossa propaganda para a sociedade. Por justiça social, porque queremos que a reforma agrária contribua para um novo projeto de desenvolvimento, que elimine a desigualdade social existente, do ponto de vista econômico, social e politico, e que represente uma soceidade igualitária. Por soberania popular, pois nessa etapa do imperialismo, nunca nosso país esteve tão atacado pelos interesses do capital internacional. Mas garantir a soberania nacional somente será possível se o povo tomar para si essa determinação e lutar. Por isso, agora a soberania nacional dependerá da soberania popular. Ou seja, do povo tomar em suas mãos o destino e a defesa do nosso território, de nossas riquezas, de nossa agricultura, de nossa biodiversidade, de nossa água, de nossa cultura, de nosso idioma, de nossos alimentos. O MST está debatendo com suas bases e seus aliados um programa

novo de reforma agrária. Uma reforma agrária que deve começar com a democratização da propriedade da terra, mas que organize a produção de forma diferente. Priorizando a produção de alimentos, para o mercado interno, combinado com um modelo econômico que distribua renda. Queremos uma reforma agrária que fixe as pessoas no meio rural, combatendo o êxodo do campo e garanta condições de vida para o povo. Com educação em todos os níveis, moradia digna e emprego para a juventude. Esses temas serão discutidos no nosso 5º Congresso Nacional, de 11 a 15 de junho, em Brasília. Seria muito bom se todos vocês pudessem ir conosco no Congresso. Como seria impossível reunir tanta gente, nós estamos compartilhando com vocês o que será discutido lá. A reforma agrária não é um problema dos sem-terra, ou do MST, ou da Via Campesina. É uma necessidade para toda a sociedade brasileira e, em especial, para o povo, os 80% da população que vive de seu trabalho e que precisa de um novo modelo de organização da economia, com renda e emprego para todos. Certamente, continuaremos na luta, juntos, na construção de uma sociedade mais justa e fraterna, igualitária, como é o sonho de todo brasileiro honesto e trabalhador. João Pedro Stedile pela Direção Nacional do MST

Hamilton Octavio de Souza

Pela primeira vez em muitos anos o Brasil terá “Jornada de Luta” convocada por entidades sindicais e movimentos sociais que apóiam e fazem oposição ao governo federal, entre elas a Conlutas, a Intersindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a União Nacional dos Estudantes (UNE). A jornada prevê manifestações, paralisações e atos públicos unificados no dia 23, principalmente para defender os direitos dos trabalhadores.

Imoralidade judicial

Criado para fiscalizar e conter o corporativismo desenfreado do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça entrou no jogo dos privilégios e autorizou os membros do Tribunal de Justiça de São Paulo a receber um adicional por tempo de serviço de R$ 4 mil por mês, além dos R$ 24 mil do teto salarial permitido no Brasil. Operação “mãos limpas”, só na Itália.

Imoralidade sindical

Criada, em 1983, para fortalecer as lutas dos trabalhadores e dos sindicatos combativos, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se opunha ao modelo sindical atrelado ao Estado e ao recolhimento compulsório do imposto sindical. Agora apóia a medida provisória que oficializa todas as centrais e repassa para elas 10% do imposto sindical, cerca de R$ 100 milhões por ano.

Crise agrária

A demissão da superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Pernambuco, Maria de Oliveira, abre crise no instituto, já que ela é ligada ao governador daquele Estado, Eduardo Campos

(PSB), e ao ouvidor agrário nacional, Gercino José da Silva Filho. Segundo Bruno Maranhão, do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), “a saída da Maria é uma perseguição política e vai tumultuar a reforma agrária no Pernambuco”.

Crise ambiental

A mobilização dos funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), contra a reestruturação do órgão e contra as pressões para a liberação de licenças para a construção de hidrelétricas no rio Madeira (cujos custos podem chegar a R$ 20 bilhões), demonstra que a questão ambiental tem sido a principal pedra no sapato dos que insistem nos projetos econômicos a qualquer preço. A obra de transposição do rio São Francisco, orçada em R$ 6,6 bilhões, também enfrenta forte oposição dos ambientalistas.

Indústria assassina

As principais montadoras de veículos instaladas no Brasil, todas pertencentes a empresas estrangeiras, fizeram recall (troca de peças) em mais de 5 milhões de unidades nos últimos dez anos. Segundo a Associação Nacional de Consumidores e Vítimas de Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas, esses veículos zero quilômetro com defeitos mataram mais de 20 mil pessoas.

Confusão mental

No dia 14, o atual presidente da República prestigiou a festiva de inauguração da fábrica da transnacional Siemens, em Jundiaí, interior de São Paulo. Trata-se da mesma empresa que está sendo investigada há meses pela Secretaria de Direito Econômico, do governo federal, pela prática de cartel nas concorrências públicas, o que teria lesado o Brasil em mais de R$ 1,4 bilhão. Cada qual com os seus amigos.

Direito de decidir

A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) realizará, no dia 28 de maio, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, um ato em defesa da legalização do aborto. A mobilização acontece a partir das 16 horas, na praça Ramos de Azevedo, centro de São Paulo (SP).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maitê Carvalho Casacchi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


de 17 a 23 de maio de 2007

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brasil

Reitoria continua ocupada e funcionários entram em greve USP Para estudantes, contraproposta da direção da universidade é tímida; funcionários se juntam aos protestos Dafne Melo da Redação APÓS 11 dias de negociações, os estudantes que ocupam a reitoria da Universidade de São Paulo (USP) desde o dia 3 decidiram, em plenária realizada no dia 14, manter a ocupação por considerarem “insuficientes” as propostas feitas pela reitora Suely Vilela. Segundo o movimento, nem mesmo as cinco reivindicações prioritárias, dentre as 14 existentes, foram atendidas. Diante dessa decisão, a reitoria enviou, na tarde do dia 15, uma carta à ocupação, afirmando a suspensão das atuais propostas caso os alunos não saíssem do prédio até as 16 horas. No informe, a direção da USP se diz disposta “a prosseguir na análise dos temas da pauta de reivindicações, por comissão paritária de professores e alunos, a ser constituída após a desocupação”. Como os alunos não cederam, a reitoria estaria analisando possíveis medidas judiciais contra os manifestantes. Dentre as principais demandas estudantis estão: a construção de mais moradias estudantis; abertura do Conselho Universitário (CO) à participação dos estudantes, funcionários e professores; contratação imediata de professores e funcionários de acordo com as demandas de cada unidade da USP; e reconstrução e manutenção dos prédios que apresentem tais necessidades. A proposta que obteve maior avanço foi a relativa às moradias estudantis. Das 771 vagas exigidas, a direção se comprometeu a construir 334 vagas. Entretanto, aceitar a proposta, alegam, em nota, os estudantes, “seria adiar mais uma vez a resolução de um problema histórico, consistindo numa irresponsabilidade do movimento estudantil”.

Reforço

Quanto aos decretos editados pelo governador José Serra – que dentre outras implicações tiram a autonomia universitária das universidades estaduais paulistas –, a reitoria afirma que tomará posicionamento em audiência pública a ser marcada após reunião com o CO, que seria chamada so-

mente após a desocupação. Para os estudantes, apesar da reitora dizer que “se compromete com o combinado, não querendo ser mais um reitor que prometeu e não cumpriu”, não há garantia nenhuma de que tal posicionamento será de fato tomado. “Entendemos, ainda, que consultar a universidade não é apenas consultar os membros do CO, mas abrir um diálogo com toda a comunidade universitária. E para isso um conselho universitário aberto se faz necessário”, complementam. Para agregar força à mobilização estudantil, funcionários da universidade, organizados no Sindicato de Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp), decidiram, em assembléia, entrar em greve a partir do dia 16. “Estaremos ao lado dos estudantes na ocupação”, declarou Magno de Carvalho, diretor do Sintusp. Além da pauta salarial da categoria, cuja data-base é maio, a greve terá como foco principal a luta contra os decretos do governo estadual. “Não se pode pensar uma universidade sem autonomia”, completa o sindicalista, que afirma que os decretos, por interferirem na autonomia financeira das universidades, terão também um impacto negativo nas mesas de negociação salarial.

Em cima do muro

Dia 14, os reitores das três universidades estaduais paulistas, José Tadeu Jorge (Unicamp), Marcos Macari (Unesp) e Suely Vilela (USP), publicaram uma carta aberta em que ressaltam a importância da autonomia universitária. Afirmam que o período de maior crescimento e desenvolvimento das instituições de ensino em questão se deu após a conquista da autonomia, em 1989; resultado de uma greve histórica ocorrida durante o governo estadual de Orestes Quércia (PMDB). Desde então, as universidades passaram a ter uma dotação orçamentária fixa que é administrada de acordo com as suas necessidades, possibilitando liberdade no manejo das verbas. Entretanto, os reitores têm evitado assumir uma atitude mais enérgica em relação às ações de José Ser-

http://ocupacaousp.blog.terra.com.br

Os reitores das três universidades estaduais paulistas reconhecem que foi no momento subseqüente à conquista da autonomia universitária que as instituições se desenvolveram melhor ra, considerada pela maioria da comunidade acadêmica como uma verdadeira ameaça ao ensino superior público paulista. Na mesma carta, os reitores alegam que têm negociado com o governo estadual para que, na prática, pouco se altere. “Nas conversações mantidas com o governo, as universidades tiveram a garantia de que a autonomia não sofrerá qualquer tipo de restrição e de que continuarão a operar sua execução financeira da forma como sempre o fizeram”, declarou José Tadeu Jorge, ao jornal Folha de S.Paulo.

Incertezas

Porém, o próprio secretário do Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti (reitor da Unicamp durante o governo de Paulo Maluf, ainda no período da ditadura militar), reafirmou que apenas com um decreto de Serra as universidades poderão remanejar verbas. Para Francisco Miraglia, vice-presidente da Associação de Docentes da USP (Adusp), a posição dos reitores é duvidosa. “Por que o governo estadual se daria ao trabalho de editar uma série de decretos sem aplicabilidade nenhuma? O fato de ainda não terem colocado as determinações em prática não impede que façam uso delas futuramente”, afirma. No entendimento de Miraglia, o governo está esperando um momento político mais adequado para fazer valer os decretos. Além disso, as afirmações contrárias de Pinotti mostram que os reitores estão equivocados em relação às intenções da gestão tucana. “Aparentemente se diziam ‘acertados’ com o governo, mas vemos que não é isso”, completa.

Flâmula criada para a ocupação traz o lema “privatizum mercantilis” e os rostos de Lula e Serra

A descoberta da África FORTALEZA Professores voltam à universidade para levar a história afro-brasileira ao ensino fundamental Débora Dias de Fortaleza (CE) Um continente desconhecido, com uma história rica, complexa e ignorada por educadores e estudantes brasileiros. Para conhecer mais sobre a construção do próprio país, cerca de 80 professores da rede municipal de ensino de Fortaleza (CE) estão aprofundando os conhecimentos sobre a África. Entre os objetivos, levar os conteúdos apreendidos na universidade para as discussões nas salas de aula do ensino fundamental. Essa é a proposta do Curso de Especialização em História da África, uma iniciativa pioneira que conquistou o interesse dos profissionais da educação. “Hoje, lanço um novo olhar sobre esse continente e à contribuição desses povos para a cultura brasileira”, afirma o professor João Alberto Nogueira, técnico em planejamento educacional e aluno da especialização. Para ele, o ensino de história não deve limitar a África ao tema do escravismo, mas refletir sobre os processos que surgem a partir do contato com cultu-

ras milenares. “Os negros que vieram dominavam técnicas agrícolas, de metalurgia, muitos eram islâmicos, sabiam ler e escrever. Os alunos passam a ter também uma nova percepção”, destaca.

Cumprindo a lei

Este é o primeiro curso de pós-graduação lato sensu destinado prioritariamente aos professores da rede pública que ministram a disciplina história. Do período pré-colonial à contemporaneidade, os conteúdos atendem à legislação brasileira, também ainda pouco valorizada. Numa espécie de alforria curricular, a lei 10.639, de janeiro de 2003, determina que as escolas de ensino médio e fundamental, das redes pública e particular, incluam a cultura e a história afro-brasileira em disciplinas como história, língua portuguesa e educação artística. “É uma iniciativa importante na universidade brasileira. Apesar de o país ter forte influência afro-descendente, as instituições públicas não só são ausentes como preconceituosas”, critica um dos convidados do curso, o dirigente do

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stedile. Ele participou da aula no dia 9, apresentando o relato sobre o Fórum Mundial por Soberania Alimentar, que ocorreu em fevereiro, no Mali.

Parceria

A especialização é gratuita, numa parceria entre o Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Prefeitura de Fortaleza. São 480 horas/aula, divididas em dez disciplinas, envolvendo 13 professores. “Eles (alunos da especialização) são levados a desenvolver planos de curso, pensam em como aplicar em sala de aula aqueles conteúdos”, explica um dos coordenadores da especialização, Eurípedes Funes, professor do Departamento de História da UFC. Músicas, filmes e edições do Brasil de Fato com textos sobre a África estão previstos como material didático. O jornal é o único do país com seção permanente sobre o continente. “(O curso) mostra diferentes Áfricas negras. E o lugar dessa história na história do Brasil”, reforça Eurípedes.

MORADIA

Sem-teto conseguem acordo histórico Famílias do acampamento João Cândido conseguem mais de 3,5 mil moradias Juliano Gentile de Itapecerica da Serra (SP) Dois meses foi tempo suficiente para que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) conseguisse garantir moradia para as mais de 3,5 mil famílias do acampamento João Cândido, em Itapecerica da Serra (SP). Dois meses de lutas e de convivência comunitária que fizeram algo até então inédito na política habitacional do país, um acordo com a

trução de casas, sem que houvesse integração das duas coisas. O acordo estabelecido agora abre um precedente que pode modificar a relação dos governos com todos os movimentos por moradia, uma vez que integra as duas instâncias.

Muita luta

Essa conquista, no entanto, não veio de graça. No dia 30 de março, 5 mil pessoas realizaram uma marcha que saiu de Itapecerica e foi até o Palácio dos Ban-

Aqui a luta pela moradia nos tornou uma família, nos conhecemos aqui e vivemos de outra maneira, isso aqui para mim é quase uma terapia, aqui a voz do povo fala mais alto Sérgio Silva, coordenador de grupo Companhia do Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo estadual, e a Caixa Econômica Federal. Inédito porque tanto um como outro, quando se mostravam dispostos a negociar com os sem-teto, ofereciam uma solução parcial. Disponibilizavam terrenos ou o financiamento para a cons-

deirantes, sede do governo do Estado, exigir que o poder público assumisse o problema da moradia para as famílias acampadas. Os manifestantes percorreram 18 quilômetros sob sol forte e pressão policial, mas conseguiram abrir negociação nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal.

No dia 25 de abril, os noticiários da grande imprensa tiveram mais um motivo para falar do trânsito. Centenas de integrantes do MTST bloquearam três rodovias de acesso a São Paulo (Regis Bittencourt, Castelo Branco e Raposo Tavares), com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a ausência de políticas sociais que garantam direitos não só de moradia mas de educação, saúde, trabalho e lazer, previstos na Constituição. Foi uma forma também de pressionar o governo a cumprir os acordos prometidos para que estes não fiquem no papel. É por esse mesmo motivo que o MTST organizou três marchas até a Prefeitura de Itapecerica da Serra, para cobrar do prefeito o seu compromisso de fornecer uma área provisória para as famílias até que as moradias fossem construídas. A última dessas marchas foi realizada no dia 14 de maio pois, mesmo com o acordo nos âmbitos federal e estadual, o movimento ainda enfrenta um problema sério: o prazo de permanência no terreno terminou no dia 7 e a área provisória oferecida é pequena para a demanda do movimento.

Diante da iminência do despejo e da intransigência do prefeito, os cerca de mil militantes do MTST que participaram da marcha decidiram acampar em frente à Prefeitura. Até o fechamento dessa edição, o prefeito Jorge José da Costa não havia se posicionado e os manifestantes permaneciam acampados. Apoiados no acordo já firmado com as esferas federal e estadual, os sem-teto reivindicam uma área maior e com infra-estrutura.

Organização

O terreno em Itapecerica foi a mais recente ocupação do MTST. Lá foram construídos espaços coletivos como cozinhas comunitárias, ciranda para as crianças, um telão para exibição de filmes, além da realização do cadastramento das famílias acampadas, saraus, apresentações musicais e teatrais. Trata-se de uma área cuja extensão é de 1,2 milhão m², um caso emblemático do mal uso da terra nos arredores de São Paulo (SP), onde o déficit habitacional é grande e as negociações imobiliárias obscuras são prática comum. Antiga propriedade do frigorífico Eder, o terreno foi hipo-

tecado no início da década de 1990 depois da empresa endividar-se, quando então passou para o banco Noroeste, o mesmo que protagonizou um dos maiores casos de fraude já descoberta no setor bancário brasileiro e um dos casos mais famosos de lavagem de dinheiro do mundo. Cerca de metade de seu patrimônio, 242 milhões de dólares, sumiram dos cofres de uma agência do banco localizada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman, entre 1997 e 1998. Hoje, o terreno está nas mãos da empresa Itapecerica Golf Urbanização Ltda., que é representada legalmente por um grande escritório de advocacia do país, o que talvez explique a rapidez com que foi emitida a liminar de reintegração de posse. Vale lembrar que os sem-teto ocuparam o terreno, no dia 16 de março, e apenas dois dias depois, em pleno domingo, uma juíza de plantão decidiu a favor do proprietário. Soma-se ainda a essa história um fato curioso: o terreno foi negociado pelo banco Noroeste por R$ 1 milhão na ocasião da compra, em 1994, e hoje está avaliado em R$ 40 milhões. O que explicaria essa supervalorização?


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Construir a unidade João Zinclar

23 DE MAIO Em entrevista, a feminista Sônia Coelho afirma que apenas com mobilizações conjuntas do movimento de massas políticas públicas poderão ser alteradas em favor da maioria da população Jorge Pereira Filho da Redação

OS MOVIMENTOS sociais caminham para unificar suas ações. E a mobilização conjunta de 23 de maio pode ser o início deste processo. Assim avalia Sônia Coelho, militante da Marcha Mundial das Mulheres. As organizações já programaram uma avaliação da jornada de luta para dar continuidade à unificação. “A expectativa é de termos, no segundo semestre, mais mobilizações de grande porte que animam a proposta de se trabalhar conjuntamente”, revela a feminista. Nesta quarta entrevista realizada pelo Brasil de Fato com representantes de organizações que participarão dos atos de 23 de maio, Sônia expõe os desafios das mulheres diante da nova conjuntura do segundo mandato do governo Lula e ressalta a necessidade da mobilização popular pela mudança da política econômica. Brasil de Fato – Por que neste início de ano está sendo possível organizar uma mobilização unificada dos movimentos sociais, reunindo setores que antes estavam fragmentados? Sônia Coelho – Na verdade, no primeiro mandato do governo, na construção da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), já estavam presentes os mais distintos movimentos que no processo foram saindo e priorizando outras agendas. Hoje, vivemos outro momento, de um segundo mandato, de uma conjuntura distinta, e há uma nova possibilidade de construir unidade. Tivemos também um processo da Assembléia Popular, em 2005. Depois, no final de 2006, fizemos uma reunião com quase todos os setores organizados e de lá saiu a proposta de fazer um dia de lutas unificadas. Boa parte dos movimentos que estão na CMS acreditam que a unidade é fundamental para qualquer transformação no nosso país, para se ter uma mudança que altere a situação de vida das pessoas. Sempre houve essa tentativa. É verdade que falta apurar um pouco mais, o manifesto do dia 23 de maio, por exemplo, traz quase todas as bandeiras, ainda não definimos uma pauta mais precisa, mas é uma oportunidade a mais de aprendizado da construção da unidade tão necessária. Que perspectivas essa frente possui para se consolidar em um novo processo de superação da dispersão das forças de esquerda no país? Potencial sempre há, porque a maioria dos movimentos presentes são organizações absolutamente sensíveis à construção da unidade e já estivemos juntos em vários momentos. Depois da jornada, faremos uma avaliação e já foi discutido de se pensar uma grande manifestação para o segundo semestre. Estamos com o processo de construção da Assembléia Popular, em outubro, o que estimula essa luta conjunta. Em agosto, teremos a Terceira Marcha das Margaridas, vamos tentar levar 50 mil mulheres do campo e da cidade para Brasília. A expectativa é de termos, no segundo semestre, mais mobilizações de grande porte que animam a proposta de se trabalhar conjuntamente. Durante muito tempo, o projeto hegemônico da esquerda enfatizou a luta institucional como caminho para a transformação social. Como você analisa essa questão? Está colocado para os movimentos um novo horizonte, um novo momento. Houve muita reflexão sobre essa opção. É preciso levar em conta que também há uma dificuldade de mobilização pela situação conjuntural, o impacto do neoliberalismo no Brasil foi muito forte. Mas, hoje, as organizações sociais têm mais essa perspectivas de que é possível fazer mudanças pelos movimentos de massa, embora não seja uma visão de toda a esquerda. Não que os partidos não sejam importante, eles têm o seu papel. Mas sem movimento de massa organizado, os governos não vão fazer as mudanças que necessitamos. O que mudou na conjuntura em relação ao primeiro mandato do governo Lula?

“Qualquer

reforma a ser feita deveria universalizar o sistema de proteção social”,

defende a militante da Marcha Mundial das Mulheres

Há alguns aspectos. Ele foi eleito com o discurso do crescimento econômico, o que nos dá a capacidade de exigir essas mudanças. Vivemos na América Latina uma situação propícia à mobilização popular. Há um movimento de resistência ao neoliberalismo e isso nos dá força, nos ajuda a pensar que o Brasil precisa alterar suas políticas. Outro fator é que, quando Lula foi eleito, a direita colocou uma pauta para a sociedade, mas foi derrotada. No entanto, os conservadores mantiveram sua pauta como se nada tivesse acontecido e pressionam a sociedade e o Congresso para que atendam às suas reivindicações. Um exemplo é a reforma da Previdência – vemos os meios de comunicação a todo momento enfatizando essa pauta. É importante percebermos a necessidade de estar unidos nessa situação. Como vocês avaliam o principal projeto do governo Lula neste mandato, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)? O PAC tem um aspecto positivo, que é colocar a questão do papel do Estado na economia, como indutor do crescimento. Por outro lado, o programa segue a lógica dos grandes projetos de infra-estrutura que, para nós, não tem a ver com a idéia de um projeto de desenvolvimento voltado mais para a pessoa, para as necessidades do povo, na área de saúde, educação, habitação popular. Do ponto de vista da geração de emprego, esses grandes projetos não servem para as mulheres, abrem vagas de trabalho essencialmente masculinas. Temos críticas em relação a esses projetos, que geram também prostituição, um lugar do trabalho informal das mulheres. Além de tudo, o desemprego entre as mulheres e os jovens é maior, e o PAC não responde a isso. Neste segundo mandato, você avalia que o governo assumiu uma agenda mais conservadora, priorizando projetos como a transposição do São Francisco, o agronegócio e a reforma da Previdência? Sim, está em curso uma agenda mais conservadora sobretudo em relação a essa questão do agrocombustível, da monocultura. Esse projeto de expansão do etanol vai totalmente contra a propos-

ta de um desenvolvimento mais justo. O que significará, em termos de terra, de produção de alimentos, produzir etanol para manter o padrão do consumo da sociedade dos EUA? Hoje, muitos trabalhadores de cana já morrem pela superexploração do trabalho. Um desenvolvimento que coloca isso como prioritário vai gerar mais desigualdade. Da pauta unificada construída pelas organizações, o que você destacaria de especial interesse da Marcha Mundial das Mulheres?

sociedade. Com a divisão sexual do trabalho, as mulheres continuam mantendo todo o trabalho de reprodução da vida e ganham cerca de 30% a menos no Brasil do que ganham os homens, além de trabalhar mais horas. Com essa desigualdade, o fato de as mulheres poderem aposentar cinco anos antes pode ser considerada como uma medida afirmativa. O governo para alterar isso precisa de um plano, a longo prazo, de acabar com essa desigualdade na sociedade. Ampliar somente a idade mínima para as mulheres aprofundaria ainda mais essa situação de desigualda-

Vivemos na América Latina uma situação propícia à mobilização popular. Há um movimento de resistência ao neoliberalismo e isso nos dá força para pensar que o Brasil precisa alterar suas políticas Essa questão de se manifestar contra a política econômica, como estamos trabalhando desde o primeiro mandato. É uma orientação voltada para a concentração de riqueza. Outro ponto que ressaltamos é a valorização do salário mínimo, que poderia alterar a situação de vida das mulheres, pois a maioria tem rendimento de um a três salários mínimos. Os pequenos reajustes feitos no primeiro mandato de Lula já mostram que houve melhora. Mas o governo propôs dobrar o salário mínimo, e não cumpriu. Defendemos um salário individual de R$ 1.031. Inclusive temos dúvidas em relação a essa negociação que as centrais fizeram com o governo, que vinculou o reajuste do salário mínimo ao crescimento do PIB, uma variável incerta que não tem ocorrido. No Fórum da Previdência criado pelo governo, estão sendo debatidas propostas como a ampliação da idade mínima para as mulheres se aposentarem e o fim da pensão por viuvez. A maioria das mulheres, na verdade, está fora da Previdência. Para nós, qualquer reforma a ser feita deveria universalizar o sistema de proteção social e incluir as maiorias que estão fora. Não vamos aceitar em hipótese alguma essa ampliação do tempo de trabalho. Existe uma desigualdade latente de gênero na

de na sociedade. Outra pauta que queremos discutir é que a licença maternidade entre na contagem da Previdência como tempo de contribuição. Quem tem três filhos, por exemplo, passará um ano sem ter contribuições contabilizadas. Lá na frente é um tempo considerável. Como estão os preparativos da Marcha para o dia 23 de maio? Estamos participando das reuniões nacionais das organizações e recomendando aos Estados que a Marcha Mundial das Mulheres se articule com outros movimentos nas capitais para realizarmos atividades conjuntas. A proposta central da jornada é de muitas ações descentralizadas, mas aqui em São Paulo, por exemplo, haverá mobilização dos semteto, do movimento sindical e vamos nos inserir nesses processos. Arquivo Pessoal

Quem é Sônia Coelho é assistente social e desde 2000 atua na Marcha Mundial das Mulheres. Foi militante sindical e desde 1986 está no movimento feminista


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Trabalhadores vão à luta dia 23 JORNADA Maiores movimentos sociais do país vão, unidos, à luta contra os impactos e a ofensiva do neoliberalismo

OS TRABALHADORES brasileiros querem mostrar sua cara no dia 23. Querem dizer para a sociedade aquilo que já é murmurado nos pontos de ônibus, nas portas das fábricas, nas filas dos hospitais, na saída das aulas e nos acampamentos à beira de estradas: que o brasileiro convive com o desemprego, com a precarização das relações de trabalho, a fome, e a falta de vagas e a má qualidade dos serviços públicos. Conscientizados, esses trabalhadores acusam o modelo neoliberal, implantado no Brasil desde o início dos anos 1990, de ser o responsável pelo agravamento dessa situação. A aplicação das suas “receitas” determinou a privatização de setores estratégicos da economia, a redução da capacidade do Estado de prestar serviços sociais, priorizou o setor financeiro em detrimento do produtivo e ofereceu seguidos benefícios ao capital especulativo. Como resultado, estagnação da economia e aumento da desigualdade de renda. Organizados em torno dos principais movimentos sociais do país, os trabalhadores se preparam para promover, na jornada de lutas do dia 23, diferentes tipos de mobilização. Serão realizados atos nos centros das grandes cidades, paralisações nos locais de trabalho, trancamento de rodovias e manifestações em escolas e universidades.

Na luta

Emanuel Melato, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e membro da Intersindical, explica que não é possível resistir à ofensiva do modelo neoliberal apenas com atos de “vanguarda”. “Temos que envolver os trabalhadores nos locais onde se dá a exploração da mais-valia, que é local de trabalho. Para tanto, temos que paralisar a produção. Também vai haver paralisação de circulação de mercadorias. Faremos isso em to-

Robson Martins

Luís Brasilino da Redação

Maurício Morais

Francisco Rojas

Sindicalistas, professores, estudantes, sem-terra, sem-teto, mulheres e pastorais sociais participarão de atos no dia 23

“As mobilizações têm como objetivo demonstrar que existe e é viável um outro padrão de relações sociais, no qual a vida está acima do mercado, do lucro” dos os lugares onde for possível”, garante. Antonio Carlos Spis, primeiro tesoureiro da Central Única dos Trabalhadores (CUT), acredita que será preciso tirar gente das fábricas, dos bancos, do serviço público, das refinarias de petróleo e levá-las para as praças públicas para distribuir panfletos com a sociedade.

“Para mim, o dia 23 vai ser isso. Criar momentos de diálogo. Fazer a greve é importante. Mas não podemos ficar confinados dentro de uma fábrica, de um banco. É preciso vir para as ruas. Trazer o povo para as ruas”, anuncia.

Propostas

Segundo José Batista de Oliveira, da direção estadu-

Nenhum direito a menos Esta é a principal palavra de ordem dos lutadores do povo no dia 23, contra as tentativas de reforma previdenciária e trabalhista, e contra a limitação ao direito de greve dos servidores públicos da Redação A direita não conseguiu fazer com que seu candidato Geraldo Alckmin (PSDB) fosse eleito presidente em 2006. Nem por isso sua agenda perdeu força. Diversas “matérias” na mídia corporativa sugerem a “urgência” de se reformar as legislações trabalhista e previdenciária. Seria a melhor forma de gerar emprego, incluindo milhões no mercado formal, dizem. No entanto, não há notícia de que essa redução de direitos tenha tido esse resultado em qualquer lugar do mundo.

Governo estuda proposta que tornaria impossível servidores públicos fazerem greve Para os movimentos que participam da jornada de lutas do dia 23, esta é só uma forma de desvalorizar a força de trabalho e aumentar a produtividade do capital, ampliando os lucros. Almir Menezes Filho, terceiro vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), chama atenção para o fato do presidente Lula ter criado um fórum para discutir mudanças na seguridade social. “Estão soltando balões de ensaio. Essa discussão sobre o ‘rombo’ da Previdência é um engodo, ele não existe. Temos uma seguridade que envolve, além da Previdência, a saúde e a assistência social e, se olharmos para seu conjunto, veremos um superávit imenso. Acontece que o Lula usa boa parte desse dinheiro para pagar a dívida”, critica.

Emenda 3

Já na questão trabalhista, uma das principais ameaças é a Emenda 3 ao

projeto de lei que criou a Super-Receita. O dispositivo, que impede auditores de fiscalizar empresas que contratam empregados como se fossem pessoa jurídica (PJ), foi vetado pelo presidente Lula. Porém, esse veto ainda pode ser cassado pelo Congresso. Antonio Carlos Spis, da CUT, conta que os trabalhadores já entenderam o que a medida significa: “É, praticamente, rasgar a Carteira de Trabalho”. “(A emenda 3) descaracteriza as construções coletivas, as empresas ficam sem compromissos com o recolhimento de impostos e a classe trabalhadora, quase vendida. Somos a favor de fortalecer a formalidade, o registro em carteira. Para nós, isso é defender também a CUT e os sindicatos porque não vai existir sindicato de PJ. E traz também uma instabilidade enorme. Cria-se uma individualização das relações de trabalho no Brasil”, protesta Spis.

Greve

Uma outra ofensiva do capital contra o trabalho, dessa vez lançada exclusivamente pelo governo, é um anteprojeto de lei, encaminhado dia 14 pela Advocacia Geral da União à Casa Civil, que regulamenta as greves do setor público. Pela proposta, as paralisações devem ser comunicadas com 48 horas de antecedência; não podem atingir mais de 60% dos funcionários; e devem ser aprovadas por, no mínimo, 2/3 da categoria. “Esse projeto é uma excrescência”, exclama Spis. Para ele, com a aprovação dessa nova lei, ficaria impossível fazer greve. “Se tiver que colocar 40% para produzir, não tem paralisação. O que esses agentes do governo estão propondo são instrumentos que impedem o exercício constitucional de greve”, afirma. (LB)

al do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST/SP), as mobilizações têm como objetivo demonstrar que existe e é viável um outro padrão de relações sociais, no qual a vida está acima do mercado, do lucro. “Nosso modelo de agricultura está embasado numa outra proposta de sociedade na qual a semente, a água e os demais recursos naturais são um patrimônio da humanidade, não uma mercadoria”, enuncia, com relação ao conceito de soberania alimentar. Já Spis, da CUT, desta-

ca a importância de modificar a macroeconomia, “muito financista”, que impede investimento em políticas sociais e garante apenas políticas assistencialistas. “Queremos um percentual garantido do orçamento do país para ser aportado em políticas sociais. Queremos baixar o superávit primário, as taxas de juro etc.”, reivindica. Para a educação, Lucia Stumpf, diretora de relações internacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), defende a ampliação dos investimentos no ensino público, com uma criação de vagas

capaz de suprir a demanda do jovem brasileiro de ingressar na universidade e ter acesso à pesquisa, às bolsas de extensão, a projetos que ajudem a sociedade brasileira a desenvolver o país. No entanto, Emanuel Melato, da Intersindical, conta que os movimentos encaram o dia 23 apenas como um primeiro passo. “Temos outros processos de mobilização que envolvem manifestações em Brasília e, dependendo de outros fatores, não descartamos até o final do ano a possibilidade de uma paralisação ainda maior”, prevê.

Os efeitos do neoliberalismo Modelo precarizou o trabalho, retirou direitos, destruiu meio ambiente e cortou verbas do ensino da Redação No governo Lula, o modelo neoliberal se expressa de forma mais nítida no que é chamado de política econômica. Segundo Antonio Carlos Spis, da CUT, a diretriz mantida pelo presidente Lula tem um viés muito nocivo, de enriquecimento da burguesia nacional. Por isso, uma das bandeiras mais importantes da jornada de lutas é o não pagamento das dívidas interna e externa. Rodrigo Ávila, da Campanha Auditoria Cidadã, da Rede Jubileu Sul, explica que, se até hoje a política econômica não mudou, é por causa da dívida. “Os juros altos vêm para satisfazer os credores. Todo mês, o país tem que pagar R$ 50 bilhões em títulos. Então, o mercado faz sua chantagem, o governo precisa de mais empréstimos e, para isso, não

Para mudar a política econômica, é necessário interromper o pagamento das dívidas interna e externa pode baixar juros. O superávit primário (economia de recursos para pagamento da dívida), logicamente, é feito para a dívida. A liberalização financeira? Exatamente, para atrair recursos e poder continuar rolando a dívida, não é feito o controle de capital. Por exemplo, em 2006, o governo isentou os estrangeiros que vêm para cá comprar título da dívida interna, interna entre aspas. E o câmbio flutuante viabiliza ainda mais ganhos para o capital estrangeiro que, agora, ganha com a queda do dólar. Entram aqui com uma enxurrada de dólares, ganham a taxa de ju-

ros e, quando saem, ainda levam a desvalorização da moeda estadunidense”, descreve Ávila. No campo e na cidade José Batista de Oliveira, do MST, afirma que a necessidade de conseguir dólares para pagar a dívida faz com que o governo estimule, no campo, o agronegócio (baseado na monocultura e voltado para a exportação). Este modelo de produção está fundado numa aliança entre latifundiários, transnacionais e capital financeiro e é marcado pelas péssimas condições de trabalho e pela destruição do meio ambiente. Outro resultado do avanço do neoliberalismo foi a reestruturação produtiva, marcada pela flexibilização de direitos e pela precarização do trabalho. Emanuel Melato, da Intersindical, destaca, nesse processo, a utilização exagerada das horas extras no Brasil. Para ele, o papel o Estado capitalista de hoje é reduzir o valor da força de trabalho para poder aumentar o lucro das grandes empresas. “Se o meu avô tinha menos direito que meu pai, que tinha menos direito que eu, meu filho não pode ter menos do eu. Existe um processo hoje para reverter todas as lutas do século passado. Se você pegar dados de como vivem os trabalhadores do corte de cana, vai ver que enfrentam condições ainda piores que os escravos. Além disso, você tem um Estado que não garante assistência médica, moradia, saneamento, educação”, denuncia Melato. Lucia Stumpf, da UNE, destaca os efeitos desse modelo no ensino. “As universidades públicas atravessam um processo de sucateamento, de baixo investimento e ampliação de vagas. A maioria dos estudantes está nas instituições privadas, com dificuldades para pagar a mensalidade e poder concluir seus cursos”, analisa. (LB)


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“Nunca foram celebrados os mártires do capitalismo”

Valter Campanato/ABr

IGREJA Frase de padre comboniano, ligado à Teologia da Libertação, é em resposta à polêmica levantada pelo papa Eduardo Sales de Lima da Redação NO DISCURSO inaugural da 5ª Conferência do Conselho Episcopal da América Latina e do Caribe (Celam), em Aparecida – cidade na qual encerrou sua visita de cinco dias ao Brasil – o papa Bento XVI ressaltou o caráter popular da religiosidade latino-americana, a devoção aos santos e “o amor ao papa”. Mas polemizou ao dizer que os sistemas “marxista” e capitalista teriam falhado. “Mas como viver hoje, então?”, questiona o padre comboniano João Pedro Baresi, revelando de imediato uma pista sobre qual tendência política, em sua opinião, estaria mais próxima das necessidades populares atuais. “Ao longo da história, celebramos os mártires do comunismo, mas nunca foram celebrados os mártires do capitalismo”, diz. Segundo o coordenador de comunicação do Fórum de Participação da 5a Conferência do Celam (existente desde maio de 2006), a visão de Joseph Ratzinger sobre a questão política se assemelha à de Karol Wojtyla (João Paulo II), pois o comunismo é criticado por ambos sob um ângulo pessoal. “João Paulo II dizia que não se podia exigir tudo dele, pois tinha a sensibilidade formada na Polônia. O Vaticano se aliou com Ronald Reagan (expresidente estadunidense) para enfraquecer o comunismo. E agora? Por que não se alia com alguém contra o capitalismo? Acho que também Bento XVI se formou dentro de uma sensibilidade própria, ele viu o que significou a Alemanha Oriental, atrasada, destruída, mas a América Latina não tem a experiência do comunismo. Nós, da América Latina, não sofremos nada em razão do comunismo. Sofremos por causa do capitalismo imperialista e sua forma neoliberal. Não há dúvida

que, entre o marxismo e o capitalismo, a história da Cúria Romana se simpatizou mais pelo segundo do que pelo primeiro”, conclui.

E os Estados Unidos?

Ao contrário da máxima que reza que “política e religião não se misturam”, Benedito Ferraro, assessor da Ampliada Nacional das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e um dos coordenadores da Tenda dos Mártires da Caminhada (leia matéria ao lado), aproxima as duas dimensões, e retoma a memória das conferências de Medellín e Puebla, articuladas com o Concílio Vaticano II. “A religião, a política e as culturas estão integradas nas comunidades. O novo modo de transmitir a fé é incluir toda essa problemática, inclusive lendo a Bíblia a partir do auxílio das ciências também”, aponta o teólogo. Quanto à participação política, são as CEBs que ilustram mais fielmente o que Ferraro aponta. “As CEBs querem, de fato, interferir na vida das sociedades, como dimensão de fé. Ali há uma dimensão política da fé. Isso está muito claro em Puebla, na Doutrina Social da Igreja, ou mesmo na Encíclica de João Paulo II, de 1981, Laborem Exercens (Exercendo o Trabalho), que mostra que o trabalhador tem direito à greve e à sua organização.” Em seu discurso, Ratzinger voltou a tocar em outra ocasião no “incômodo” tema do marxismo ao afirmar sua preocupação, na América Latina, acerca das “formas de governo autoritárias ou sujeitas a certas ideologias que se acreditavam superadas” (deixando implícito que falava de Hugo Chávez e Evo Morales). “Ficou muito no ar. Os presidentes da Venezuela e da Bolívia foram eleitos, por seu respectivo povo. Por que os Estados Unidos não fazem parte desse grupo, não exercem autoritarismo fora de seu próprio país?”, indaga João Pedro Baresi.

Papa Bento XVI durante a abertura da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe

Tenda dos Mártires da Caminhada permanecerá armada a 1 km da basílica Encontro entre movimentos de base da Igreja ocorrerá até o dia 31 simultaneamente ao encontro dos bispos da Redação O Fórum de Participação da 5ª Conferência do Conselho do Episcopado da América Latina e do Caribe iniciou, oficialmente, no dia 13, as atividades na Tenda dos Mártires da Caminhada, localizada a 1 km da Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Com o lema “Povo de Deus com Jesus Libertador rumo à Aparecida, vida plena para todas as criaturas”, serão realizados debates, reflexões, missas e orações, além da exposição de vídeos. Haverá também uma caminhada entre as cidades de Roseiras e Aparecida, com expectativa de mobilizar entre 20 e 30 mil pessoas, a partir da meia-noite de sábado, dia 19, até as 8 da manhã de domingo, dia 20, quando haverá celebração de uma missa. “Nossa idéia é reforçar uma Igreja que, de fato, se articule com a dinâmica de libertação do povo. A Pastoral da Mulher Marginalizada, a Pastoral Carcerária, a Pastoral da Juventude, o Grito

dos Excluídos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) é todo um conjunto que quer relançar e apontar aos bispos a necessidade de assumirmos o projeto de Jesus Cristo”, aponta Benedito Ferraro, assessor da Ampliada Nacional das CEBs e um dos coordenadores da Tenda. Para Ferraro, a intenção da Tenda é ser um espaço aberto, plural. “Toda a noite vamos chamar bispos de diferentes países para celebrar missas, repercutir a vida da Igreja em seu país e dialogar sobre o que se passa no interior da Conferência. Não queremos fazer nada contra, queremos fazer com”, afirma o assessor da Ampliada das CEBs.

Indígenas

Na Tenda dos Mártires da Caminhada, os povos indígenas estarão representados pelo Cimi, entre os dias 21 e 23. Bento XVI, no discurso inaugural da 5ª Conferência do Celam, rejeitou toda a interpretação histórica versada

no trauma e no apagamento da identidade impostos aos indígenas por parte dos missionários católicos no Brasil e destacou que o Espírito Santo veio purificar os povos indígenas e que, em nenhum momento, houve uma alienação das culturas pré-colombianas. Paulo Suess, assessor teológico do Cimi, comenta que a afirmação do papa de que as culturas indígenas esperavam a Igreja Católica e a sua mensagem de fé é teologicamente uma regressão aos tempos pré-conciliares (referência ao Concílio Vaticano II). “A cultura do conquistador e o cristianismo embutido nela destruíram muitos referenciais de identidade dos povos indígenas e não contribuíram para a construção de uma ‘verdadeira identidade’ sobre uma suposta ‘falsa identidade’ anterior”, diz o teólogo. Segundo Suess, o crédito que a Igreja Católica encontra entre os pobres deve ser atribuído à pastoral libertadora pós-conciliar, que rompeu com a missão colonizadora de muitos séculos. (ESL) www.brasildefato.com.br

MORADIA

Serviço público ameaçado pelo PAC Renato Godoy de Toledo da Redação Ao contrário do que o seu nome sugere, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode impor estagnação e retrocesso ao serviço público. Ainda que esta afirmação soe como um paradoxo, é o que deve ocorrer caso um projeto de lei complementar (PLP 01/ 07) do PAC seja aprovado no Congresso. O PLP determina que, durante dez anos, o gasto com a folha de pagamento do serviço público só poderá aumentar em 1,5% ao ano, além da reposição da inflação. A medida é uma emenda à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabelece limites de gastos para municípios, Estados e governo federal. A LRF foi criada em 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que acatou a “sugestão” do Fundo Monetário Internacional (FMI). Para entidades ligadas ao funcionalismo público, a aprovação do PLP representaria uma estagnação salarial de dez anos, logo, ainda maior que o arrocho salarial promovido pelos oito anos do governo tucano. Esse aumento de 1,5%, segundo as entidades, seria todo consumido no crescimento vegetativo do funcionalismo, isto é, somente as progressões de carreira e as promoções dariam conta dessa quantia. Assim, para além da questão salarial, a qualidade do servi-

ço público ficaria ainda mais comprometida, já que com o orçamento engessado, não seriam permitidas novas contratações, nem mesmo para reposição de trabalhadores que se aposentarem.

Pior que a Emenda 3

Quintino Severo, secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), considera o projeto tão grave quanto a Emenda 3, que proíbe fiscais do trabalho de autuar empresas que obrigam seus funcionários a tornarem-se pessoas jurídicas, o que, na prática, permite a total retirada de direitos trabalhistas. “Nos atos unificados do próximo dia 23, a CUT pretende levar as bandeiras da retirada da PLP 01 e da Emenda 3. O PLP precariza o serviço público e vai contra tudo o que está previsto no PAC, é um ‘tiro no pé’ do programa”, avalia Quintino, que vê o PAC, em linhas gerais, como um avanço, pois retoma a idéia do “Estado como indutor da economia, contrariando a cartilha neoliberal”. Na mesma linha de Quintino, Irineu Messias, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS), aponta o PLP como um contra-senso. “Se é para acelerar o crescimento – o que somos favoráveis – tem que haver mais serviço público. Por isso, somos radicalmente contra o limite de 1,5%. Apesar de o governo Lula ter realizado, em 2003, um

número razoável de contratações, ainda há uma escassez de quadros grande no serviço público”, reivindica.

Mercado

A CUT já teve algumas audiências com o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e com a bancada governista para negociar a retirada da limitação de gastos com pessoal do PAC. “Está difícil, eles têm sido muito duros. Tanto a bancada como o ministro sinalizam que a PLP é importante para o PAC. Segundo eles, é preciso sinalizar para o ‘famoso mercado’ que o governo está fazendo o ajuste fiscal”, afirma Quintino. A deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA) também acredita que o PLP corrobora interesses alheios às demandas dos servidores. “Nos parece que se trata de uma satisfação que o governo dá para o mercado financeiro de que vai conter os gastos públicos, pois o projeto impede o crescimento do Estado e do serviço público”, diz a parlamentar. Alice entrou com um requerimento a fim de realizar uma audiência pública para discutir o PLP e criou uma comissão especial destinada ao tema. “Estamos mobilizando os servidores para que participem desse debate na comissão especial pois a mobilização dos trabalhadores do serviço público é uma das principais armas para deter a precarização do serviço público”, afirma.

As centrais sindicais querem redigir um texto substitutivo para evitar a estagnação do serviço público. Mas para Paulo Rizzo, presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), a via da pressão institucional não deve surtir efeito. “Se tiver um texto substitutivo, provavelmente vai ser aquele que o governo concordar. O secretário de recursos humanos do Ministério do Planejamento (Sérgio Mendonça) já afirmou que nesse ano não tem nada para os servidores”, conclui.

Projetos casados

Irineu Messias, da CNTSS, vislumbra um futuro árduo para o funcionalismo público, se a PLP e a restrição ao direito de greve nos serviços essenciais entrarem em vigor. “Se esses projetos forem aprovados, os servidores ficarão sem nenhuma forma de se defender. Terão arrocho salarial e não poderão usar sua única defesa: a greve”, analisa. Irineu crê que o presidente Lula deveria regulamentar a negociação coletiva para os servidores públicos – uma questão pendente desde a Constituição de 1988. “Se tivéssemos o direito à negociação coletiva, não seríamos obrigados a fazer tantas greves. Hoje, os gestores públicos não têm obrigação de negociar, por isso se recusam a negociar”, constata.

saiu na agência IRMÃ DOROTHY No último dia 15 de maio, Vitalmiro Bastos, mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang, foi condenado a 30 anos de prisão, a pena máxima prevista pelo Código Penal brasileiro. A seção paraense da Ordem dos Advogados do Brasil comemorou a decisão do júri popular, já que “o histórico dos julgamentos em relação a mandantes desse tipo de crime no Pará sempre foi muito frustrante para as lideranças dos direitos sociais e sociedade civil em geral”. TV PÚBLICA No primeiro Fórum Nacional sobre Televisões Públicas, representantes da sociedade civil, das emissoras da TVE e da Radiobrás e governo se reuniram em Brasília, entre 8 e 11 de maio, a fim de discutir a administração, arrecadação de dinheiro e controle da programação. Uma carta lançada ao fim do encontro determinou que a rede de TV pública deve expressar a diversidade do povo brasileiro e ser independente em relação a governos. FUMO Deputados da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados estiveram presentes na região do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, e comprovaram as péssimas condições de vida dos trabalhadores em plantações de fumo. No início do ano, uma fumicultora de 61 anos se suicidou após ter toda a sua produção apre-

endida pela Justiça, em função de uma suposta dívida com a empresa Alliance One. REFORMA AGRÁRIA O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lançou oficialmente o seu 5º Congresso Nacional, que vai ocorrer entre os dias 11 e 15 de junho, em Brasília (DF). O tema do congresso será “Reforma Agrária: por justiça social e soberania popular”. A expectativa do movimento é de que cerca de 15 mil trabalhadores rurais participem do evento. BRASIL-CUBA Ocorreu no Rio de Janeiro, entre os dias 4 e 5 de maio, a 1ª Convenção Nacional de Cubanos Residentes no Brasil. Os participantes discutiram temas como a identidade cultural, a soberania dos povos e perspectivas de integração cultural e comercial entre Brasil e Cuba.


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brasil

Dez anos de silêncio sobre uma privatização suspeita Divulgação/CVRD

VALE DO RIO DOCE Empresa mais lucrativa da América Latina omite da opinião pública que leilão de 1997 é questionado na Justiça por mais de cem ações populares Pedro Carrano de Curitiba (PR) HÁ DEZ anos, no dia 06 de maio de 1997, no Rio de Janeiro, o então ministro do Planejamento José Serra, do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), batia o martelo do leilão da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Nesta data, o controle da segunda maior empresa brasileira passou do Estado para corporações internacionais e para o mercado de ações. Porém, as mais de cem ações populares apontando irregularidades no edital do leilão atualmente são silenciadas. Hoje, a maior produtora de minério de ferro do mundo opera negócios que lhe garantem cifras recordes. Só no primeiro trimestre de 2007 obteve lucro de R$ 5,09 bilhões – o maior resultado de uma empresa na América Latina, superando o da Petrobras pela primeira vez. A Vale, no entanto, não informa os acionistas e a opinião pública que ela está sob julgamento, descumprindo o que determina a própria Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Eloá Cruz, advogado, um dos autores de ação popular questionando a venda da mineradora, afirma que a CVRD “não vê com bons olhos o Judiciário julgar o mérito dessas ações populares, pois sabe que no mérito vão perder”, afirma. Cruz defende que os lucros da companhia deveriam ficar depositados em um fundo do Tesouro Nacional, como medida cautelar, no caso de o leilão de 1997 ser julgado irregular. “Vamos fazer um cenário otimista para as ações populares: se a decisão final julgar a venda da Vale como irregular, como esse dinheiro será recuperado? Este é o motivo da atual política de pulverização de ações promovida pela Vale. Hoje, qualquer pessoa pode comprar ações de controle da companhia – que antes pertenciam ao governo –, mas como esse dinheiro vai ser devolvido se o leilão for julgado irregular? Os dividendos precisavam ficar bloqueados no Tesouro até a Justiça se posicionar”, diz.

Reversão possível

No mesmo sentido, o advogado Ubiratan Cazetta, do Ministério Público do Pará – que investigou a participação do banco Bradesco no leilão (veja ao lado) – reconhece a dificuldade atual de anular a privatização, devido às volumosas aquisições da companhia. Em 2007, a Vale comprou a mineradora e produtora de carvão mineral AMCI Holdings Australia Pty (Austrália), pelo valor de R$ 1,38 bilhão. No ano passado, a companhia havia adquirido a canadense Inco, por 13,4 bilhões de dólares, tornando-se a segunda maior mineradora do planeta. Porém, Cazetta comenta que a reversão do leilão da companhia é possível, se a Justiça for cumprida. “Isso não implica em inviabilidade das ações populares, já que a sentença pode vir a determinar uma forma de desfazer os atos e a conseqüência deles”, comenta. Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, a CVRD declarou que não se pronuncia sobre o caso das ações populares que questionam a sua venda. “A diretoria da Vale do Rio Doce nunca se preocupou com as ações judiciais, porque hoje o que impera é a lógica do ‘respeito aos contratos’, independente de serem nulos ou lesivos aos interesses do Estado”, avalia a advogada Clair da Flora Mar-

Quanto Só no primeiro trimestre de 2007, a Vale do Rio Doce lucrou de R$

5,09 bilhões – o maior resultado de uma empresa na América Latina tins, autora de uma das cem ações populares contra a privatização. Segundo ela, os poderes Executivo e Legislativo compactuam com as irregularidades verificadas no leilão da venda da empresa estatal, em 1997, e não demonstram interesse em resgatar o patrimônio público. “O Judiciário também não se comportou com autonomia, sendo uma exceção a decisão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em Brasília (veja texto abaixo)”, diz a advogada.

Vista aérea de mina de minério de ferro, no Pará, explorada pela Vale do Rio Doce

Lucros da companhia deveriam ficar depositados em um fundo do Tesouro Nacional, como medida cautelar, defende advogado

MEMÓRIA Um alerta ignorado Quatro dias antes do leilão da Companhia Vale do Rio Doce, o então ministro Demócrito Reinaldo, do Superior Tribunal de Justiça, advertiu a União sobre os riscos da venda da estatal em meio a tantas ações populares questionando o edital do leilão. Ou seja, governo e mercado foram alertados sobre a inconstitucionalidade do seu ato. “O ministro Demócrito Reinaldo, 64, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), recomendou ontem cautela ao governo na realização do leilão da Companhia Vale do Rio Doce. ‘É até perigoso com um mundo de ações dessas se fazer o leilão, ninguém pode saber quais são as conseqüências.’ (...) Reinaldo foi escolhido relator do pedido do governo para que todos os processos envolvendo a Vale sejam julgados por um mesmo juiz. (jornal Folha de S.Paulo – 02/05/97) Qual é o valor? Segundo o economista Marcos Arruda, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, citando o jornal Tribuna da Imprensa (06/03/96), um grupo de líderes empresariais japoneses, em visita ao Brasil, foi recebido pelo então presidente José Sarney, para fazer a seguinte proposta: o grupo pagaria toda a dívida externa nacional (na época de 110 bilhões de dólares), em dinheiro vivo, em troca do arrendamento por 30 anos da província mineral de Carajás. Um valor incompatível com os R$ 3,3 bilhões pelos quais a empresa foi vendida em 97.

O papel do BNDES e da consultoria Merril Lynch na venda da empresa de Curitiba (PR) Em 1995, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND), pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ainda que a lei deste programa (Lei nº 8.031/90) tenha sido encerrada pouco depois de a Vale ser vendida. No Brasil, o gestor público do PND foi o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), responsável pelo edital de venda da Vale. No entanto, o banco público contratou os serviços de um consórcio de avaliadores, em 1995, composto por empresas brasileiras e estrangeiras, entre as quais a consultoria estadunidense Merrill Lynch e o banco Bradesco. Pesam denúncias de irregularidades sobre a participação dos dois na empreitada. A presença da Merrill Lynch foi contraditória, pois a consultora realizava os negócios da mineradora sul-africana Anglo American, um dos concorrentes pela compra da Vale (Revista Atenção, número 10, 1997). “O edital de venda foi publicado em março de 1997, mas em janeiro daquele ano o grupo africano já sabia o preço de avaliação da Vale, que seria vendida por no mínimo de R$ 3,3 bilhões”, comenta Eloá Cruz, advogado, um dos autores de ação popular questionando a venda da minerado-

ra. De acordo com a Lei de Licitação, não pode haver nenhuma relação entre avaliador e o comprador. “Obrigatoriamente, quem tinha que fiscalizar e impedir essas questões, levantar a situação econômica e financeira da empresa, seria o BNDES”, informa Cruz. O jurista conta que, ao fazer um requerimento recente sobre a lucratividade da empresa antes da desestatização de 1997, o banco público alegou não possuir informações nos arquivos. Ainda em 1995, além do edital de venda em português, o consórcio avaliador da empresa redigiu um edital de avaliação em língua inglesa desconhecido para o público em geral. À época, o economista Roberto Campos chegou a ironizar nos meios de comunicação o pedido de Cruz para que fosse revelado este documento. A partir deste texto, cujas informações são desconhecidas, grupos estrangeiros desistiram da compra da Vale. No caso do Bradesco, a participação do banco no leilão da empresa não era permitida, mas o banco participou indiretamente como investidor da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a compradora da maioria das ações da Vale do Rio Doce. O Bradesco possuía 17,9% do capital votante da CSN, porém se quisesse participar do leilão da empresa só poderia ter 5% do capital, como informa Eloá Cruz. (PC)

Movimentos sociais preparam plebiscito para setembro

Joka Madruga

Dr. Clair, Silvana Prestes e Valdemar Júnior durante debate em Curitiba

Outubro de 2005. A 5ª turma do Tribunal Regional Federal (TRF-1) de Brasília determinou que 69 ações populares extinguidas sem julgamento do mérito deveriam ser avaliadas novamente, com o uso de perícia. Tais ações estão entre as mais de cem que questionam o leilão da mineradora. Estavam todas concentradas em Belém do Pará, para onde devem voltar neste novo julgamento. A “ressurreição” dos processos animou os movimentos sociais a criar a Campanha pela Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce, convocando para setembro de 2007 um plebiscito popular sobre o destino da mineradora. Entre os dias 16 e 19, os movimentos sociais organizam um curso de formação para lideranças de movimentos sociais, a partir da elaboração de uma cartilha. Os militantes vão realizar o plebiscito, bem como repercutir o tema da Vale nas suas paróquias, comunidades etc, com a expectativa de formar mil pessoas por Estado. A questão da Vale deve ser discutida com a população seguindo eixos como a questão da dívida e do modelo de nação que o povo brasileiro necessita. “A Campanha pela Anulação do Leilão da Vale do Rio Doce chegou a uma parcela mais consciente da população, mas ainda não à população como um todo, que não sabe da sua importância e o que isto poderia significar para o desenvolvimento do Brasil, para a melhoria das condições do povo”, avalia a advogada Clair da Flora Martins, autora de uma das cem ações populares que questionam a privatização da estatal. Para ela, a mobilização das forças populares junto ao Executi-

vo e ao Judiciário é essencial para que o leilão seja revertido. Os movimentos sociais podem ter um papel fundamental, pois o desenrolar dos processos judiciais contra a venda da Vale segue sendo omitido pelos meios de comunicação massivos. Um silêncio absoluto. Atualmente, as 69 ações populares estão suspensas para avaliação do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). No fim de abril, o ministro aceitou o pedido de reclamação da Vale. A decisão ainda depende da avaliação de outros oito ministros do STJ. Os advogados da Vale alegam que as ações devem estar concentradas em Belém do Pará (onde ficaram arquivadas por anos). Na sua defesa, de um lado o TRF-1 “reabriu” as outras 69 ações. Mas por outro considerou improcedentes sete ações populares (abandonadas por seus autores). Houve, então, julgamentos diferentes. A empresa alega que esta diferença no julgamento desrespeita a decisão inicial do STJ. A Vale quer a mesma sentença para todas as diferentes ações. O advogado Eloá Cruz contesta o fato de estas sete ações populares terem sido abandonadas por seus autores e julgadas como improcedentes. De acordo com a Lei de Ação Popular, a Justiça deveria lançar um edital para que as ações fossem assumidas pelo Ministério Público ou por outro cidadão. Para ele, as mais de cem ações populares devem ser analisadas detalhadamente. O jurista afirma ainda que a decisão do STJ foi para que as ações populares fiquem concentradas em Belém, mas não para que recebam a mesma decisão.


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brasil Fotos: Cimi Sul

Protesto pela demarcação da terra indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, a 15 quilômetros de Florianópolis

INDÍGENAS Grandes empresas estrangeiras vêm demonstrando interesse em áreas indígenas; na região do Morro dos Cavalos (SC), terras onde vivem os guarani são alvo de cobiça

Ywy rupa: a territorialidade guarani Elaine Tavares de Florianópolis (SC)

mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Faz muito calor apesar de ser abril. Na aldeia de Morro dos Cavalos, em Palhoça, a uns 15 quilômetros de Florianópolis, os guarani mbyá estão dispersos em pequenos grupos embaixo das árvores, ou na sombra das pequenas casas. As mulheres sorvem, lento, o petynguá – cachimbo sagrado preenchido com fumo, planta tradicional guarani – que permite o silêncio e a reflexão. Estão digerindo ainda as notícias vindas da terra dos juruá (os brancos). A informação de que o povo da aldeia não é “brasileiro”, divulgada pela revista Veja, causou profunda tristeza. Não pela nota em si, mas pelo fato de o jornalista que fez a matéria ter sido recebido amistosamente. “Ele chegou aqui junto com o Bensousan, que já é um velho conhecido da aldeia e anda por aqui, com facão na cintura, dizendo que esta terra é dele. A gente deixa ele andar por aí porque somos um povo amistoso. Não gostamos do conflito. Essa é a nossa força e nossa fraqueza”, diz Marco Karaí Djekupe, professor da escolinha da aldeia.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

No mundo não-índio, a indignação também é grande. Antropólogos e militantes sociais vivem um período de assombramento. Sabem que a notícia não é só um equívoco de um jornalista mal informado. A questão da demarcação de terras no Brasil tem gerado toda a sorte de violência, inclusive mortes. Além disso, grandes empresas estrangeiras vêm demonstrando interesse em áreas indígenas, muitas delas repletas de riquezas minerais ou mesmo de água, elemento mais disputado neste início de crise planetária. Não seria nada irreal, portanto, pensar que esses interesses podem estar agindo no caso dos mbyá. A terra dos guarani, na região de Florianópolis, se espalha por 1.988 hectares. As fases de identificação e delimitação, que integram o processo de demarcação das terras indígenas no Brasil, já foram realizadas e até bem pouco tempo tudo estava acertado para a oficialização.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

A cultura guarani é difundida na oralidade, dentro da Casa de Reza, o lugar mais importante da aldeia. Todos os dias, faça chuva ou sol, as famílias se reúnem para ouvir as histórias dos avós, os segredos da terra sem males, as regras do bem viver. O Opy (Casa de Reza) é o centro da vida. “A única coisa que uma comunidade guarani não pode nunca abrir mão é da sua

Agora estamos aqui, vivendo essa humilhação, mais uma das tantas a que já fomos submetidos nestes 500 anos. Nosso povo está confuso e triste. Todos temem que isso atrase a demarcação Casa de Reza. Não importa onde ela esteja. Temos o exemplo de uma aldeia que está na periferia de São Paulo, no meio dos não-índios. Mas essa aldeia tem sua Casa de Reza e lá as pessoas vão escutar as palavras antigas, para que a nossa cultura nunca morra”, diz Marco. Ele, assim como muitos dos seus, sabe que hoje é bastante difícil viver na pureza das matas, como outrora. O mundo dos brancos está à volta e não há como fugir dele. Mas, se houver a Casa de Reza, a cultura viverá.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A disputa de terra na região do Morro dos Cavalos não é de hoje. O que acontece é que os guarani não têm tradição de peleia. Como sua forma ancestral de vida é a mobilidade, eles não se importam em sair de um lugar e ir para outro, caso os brancos ocupem terras próximo a eles. As histórias dos viajantes que passaram por esse território já registram a presença guarani desde 1504. E isso só

aldeia guarani e, ao ver chegar as máquinas e o povo juruá, os “tcheramõi” (os mais velhos) ficaram preocupados, mas a área não foi abandonada. Grupos guarani passaram e acamparam. Grupos guarani ficaram. Na década de 1990, outras famílias chegaram ao Morro dos Cavalos com Werá Mirim, o atual cacique. “Muitas vezes um branco chega e oferece algo para as famílias saírem da terra. Pode ser um bem qualquer, como um fogão, ou até dinheiro. O povo aceita e sai porque, para ele, a terra é de todos e qualquer pessoa pode viver em qualquer lugar. Eles se movem e vão para outro espaço, mas sempre dentro de um território tradicional que vai desde o Uruguai até a Bolívia, passando pelo norte da Argentina, leste do Paraguai, vindo até o Brasil.” E essa é a história que os guarani contam sobre a “venda” de uma parte da terra do Morro dos Cavalos para Walter Alberto Bensousan. Dizem também que ele deu dinheiro para um guara-

A decisão da consultora jurídica substituta do Ministério da Justiça em mandar de volta o processo para a Funai abre um grave precedente que pode respingar na demarcação de outras terras indígenas no restante do país considerando os olhos brancos que os viram. Segundo seus próprios relatos, desde que seu povo veio do “grande Opy” do paraíso, essa é a terra que lhes cabe. Antropólogos que estudam essa área também registram ocupações guarani em vários pontos da região do Massiambu, desde há muito tempo. A partir dos anos 1970, o valor da terra fez crescer o olho da gente branca. É que a construção da BR-101 cortou a área e acabou valorizandoa. Naqueles anos, havia uma

ni, como se tivesse comprado a terra de um índio. “Agora, o juruá vem e diz que é dono da terra. Para o guarani não houve venda e a terra segue sendo dele.”

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Também está fixado na mente guarani que o terreno que lhes foi dado por Nhanderu é esse espaço entre o Rio Grande do Sul e a Bolívia, cujo centro mítico é o Paraguai. Seria mais ou menos como os povos andinos

consideram Cuzco sua capital central, ou como os católicos, muçulmanos e judeus entendem Jerusalém como o centro de sua religião. Por isso que cada guarani se sente filho daquela região, o Paraguai, porque ali é o centro de seu mundo. Assim como um judeu, mesmo vivendo em Nova York, se diz filho de Sião, um guarani, vivendo em qualquer lugar, sempre vai ser filho do Paraguai.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A terra do Morro dos Cavalos, de ocupação tradicional dos guarani, passou por um estudo da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 16 de outubro de 2001. O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação teve seu resumo publicado nos diários oficiais da União e do Estado de Santa Catarina (em dezembro de 2002 e março de 2003, respectivamente). Feito isso, deu-se início a fase do contraditório, período em que qualquer pessoa pode apresentar manifestações à Funai, seja para pedir indenização ou para apontar vícios no relatório. Houve algumas manifestações, entre elas a da Fundação do Meio Ambiente (Fatma), órgão ambiental do governo de Santa Catarina; a do representante do Ministério Público do Estado em Palhoça; e a de Walter Alberto Sá Bensousan. Passados 90 dias, a Funai encaminhou, para o Ministério da Justiça, os autos do processo administrativo com pareceres contrários às manifestações. A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça apresentou parecer favorável à publicação da portaria ministerial declarando como terra indígena os 1.988 hectares. Tudo parecia apontar para um desfecho favorável de demarcação da área guarani. Mas, em outubro de 2005, o procurador de Estado de Santa Catarina, Loreno Weissheimer, encaminhou diretamente à Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, fora do prazo de contraditório, um pedido de suspensão do processo. Segundo ele, haveria provas de que a terra em questão não era tradicionalmente ocupada pelos guarani. Em fevereiro de 2006, a consultora jurídica substituta do Ministério da Justiça determinou que o processo de identificação e delimitação da terra retornasse à presidência da Funai, sugerindo que o parecer fosse reavaliado. Agora tudo está parado novamente, com os prazos legais sendo violados, segundo denuncia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Campanha pela demarcação da terra

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Uma pessoa do povo guarani não tem na cabeça os mesmos conceitos que o juruá, daí a necessidade de se ter clareza da cosmovisão dessa etnia. Para um guarani é absolutamente incognoscível a idéia de fronteira. Eles não se dizem gaúchos, catarinenses, paranaenses, paulistas, capixabas, mato-grossenses, uruguaios ou bolivianos. São guarani e circulam por Ywy Rupa, como eles denominam o território guarani, o mundo no qual se encontram as aldeias atuais, os caminhos percorridos e os lugares ocupados pelos antepassados, onde estão as áreas sonhadas, os espaços temporariamente desocupados e os locais a serem ainda apropriados. Compreender isso é entender a alma guarani.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A duplicação da BR-101 abriu mais um espaço de discussão acerca da terra do Morro dos Cavalos. Em 2005, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisou uma representação que denunciava possíveis irregularidades na escolha do projeto de transposição das famílias, e exigiu que fossem feitos estudos, sem entrar na questão se é ou não terra indígena. Por outro lado, o Ministério Público Federal em Santa Catarina tem ingressado com ações civis públicas para determinar à União o cumprimento da lei no que diz respeito a diversos processos administrativos de demarcação de terras indígenas. Ainda assim, nada acontece. O que parece é que enquanto a Funai não reafirmar a decisão acerca de que este é um território tradicionalmente ocupado pelo povo guarani,

a incerteza vai continuar, assim como os conflitos envolvendo agricultores da região. A decisão da consultora jurídica substituta do Ministério da Justiça em mandar de volta o processo para a Funai abre um grave precedente que pode respingar na demarcação de outras terras indígenas no restante do país, inclusive aquelas que são cobiçadas por empresas estrangeiras, como é o caso da Aracruz Celulose, no Espírito Santo. Por isso, a luta agora é para que a Funai reenvie o processo para o ministro da Justiça, responsável pela assinatura da portaria declaratória e que, de uma vez por todas, sejam demarcadas as terras.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

O nome do lugar onde hoje está a aldeia guarani, às margens da BR, tem uma simbologia extremamente afinada com o drama da gente que, agora, ali vive. É nome de branco, mas evoca um sentimento que qualquer etnia tem no coração. Foi dado durante a Guerra dos Farrapos quando uma tropa de revolucionários deixou ali os cavalos e foi dormir. Quando raiou a manhã, os cavalos haviam sumido. Tinham tomado o rumo da liberdade, galopando, sem amarras, pelo monte. Nunca mais foram pegos. Hoje, ali, já não há mais cavalos livres. Existem pessoas, também buscando encontrar a liberdade de ser o que são. Crêem que, depois de 500 anos sendo aviltadas, e agora confinadas a reservas, seja a hora de um pouco de dignidade. Querem ser livres para andar no seu grande território, e nunca, jamais, serem chamadas de estrangeiras. Porque não o são. (Fonte Observatório Latino-Americano - OLA)


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internacional

Claudia Jardim de Caracas A POUCOS dias para que se termine a concessão da RCTV (27 de maio), Marcel Granier, presidente do canal que é um dos principais meios privados da Venezuela, foi à Europa buscar apoio internacional e conseguir possíveis sanções ao governo venezuelano. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirma que não renovará a concessão pública deste meio de comunicação e que, em seu lugar, será criado um canal de serviço público. Um dos encontros de Granier na Europa foi com Robert Menard, secretário geral da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que tem marcado a história da entidade na América Latina por freqüentes ataques à Cuba e Venezuela. Para entender a atuação da RSF e as conexões desta organização com a imprensa venezuelana, a reportagem do Brasil de Fato conversou com Maxime Vivas, escritor francês que acaba de terminar um livro no qual relata as relações da organização RSF de origem francesa com o governo dos Estados Unidos e a CIA (Agência de Inteligência Americana). Brasil de Fato – A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) responde a quais interesses? Maxime Vivas – O que a RSF defende é a liberdade de um sistema, de um discurso, nunca a liberdade da informação. Desde que começaram a defender a liberdade de imprensa, o número de jor-

Reprodução

VENEZUELA Escritor francês afirma que organização recebe dinheiro de entidades ligadas à CIA e tenta “satanizar” o governo de Hugo Chávez na Europa

Marta.cz

As ligações obscuras da Repórteres Sem Fronteiras com os EUA nalistas mortos tem crescido, em sua maioria vítimas do teatro de guerra dos Estados Unidos. O que lhes interessa é ter a liberdade de escrever e imprimir, não o direito de dizer a verdade. Quando o senhor deu início às investigações sobre a organização RSF? A atuação da organização funciona sob a mesma lógica das ações do governo dos Estados, seja na América Latina ou no Oriente Médio. Nos damos conta que a RSF não é uma organização não-governamental (ONG), e sim uma organização que atua em prol de um país. Fui buscar provas disso e o que encontrei foi que na América Latina, Europa e Oriente Médio, a RSF tem a mesma posição que o governo estadunidense. De que maneira podemos vincular a RSF com os EUA? Durante o conflito na Iugoslávia, forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) coordenadas pelos EUA dispararam contra uma televisão sérvia, 16 pessoas foram mortas, das quais dez eram jornalistas. No balanço anual de mortes de jornalistas divulgado pela RSF, essas mortes não foram mencionadas. Outro exemplo: em 2003, tropas estadunidenses atacaram o hotel Palestina em Bagdá, principal sede dos jornalistas estrangeiros que cobriam a invasão dos EUA no Iraque. Dois jornalistas e um câmera foram mortos. No mesmo dia também atacaram a sede da televisora Al Jazeera. A RSF não condenou as mortes e fez uma investigação favorável aos EUA

Acima, cartaz da Repórteres Sem Fronteiras mostra um Che Guevara punitivo que dá “boas-vindas a Cuba – a maior cadeia do mundo para jornalistas”, segundo a RSF; ao lado, propaganda do governo venezuelano argumenta a decisão de retirar a concessão da RCTV: “Dar concessão à verdade... é não renovar a mentira”

Nas contas anuais da organização, aparece a subvenção de organismos que são testa-de-ferro da CIA. O principal deles é o Centro para a Liberdade de Cuba (Center for Free Cuba), que entregou 90 mil dólares em 2005 em resposta aos ataques. E na América Latina, de que maneira podemos evidenciar esses vínculos com a Casa Branca? Há muito tempo, a RSF considera Cuba como seu inimigo número 1 – ainda que nenhum jornalista tenha sido morto na ilha –, assim como já ocorreu nos EUA. Em uma ocasião o secretário da RSF, Robert Menard, foi a Havana para encontrar um jornalista dissidente que havia sido contratado para passar informações. No entanto, o interesse de Menard não estava relacionado à liberdade de imprensa, e sim se haviam policiais ou membros das Forças Armadas que se postulavam como dissiden-

tes ao governo de Fidel Castro. Essa pergunta normalmente é de interesse da CIA ou de uma organização que diz se preocupar pela liberdade de imprensa? Assim trabalha a RSF. Essa história foi revelada pouco tempo depois pelo próprio jornalista encarregado de “passar” informações, Néstor Baguer, um agente da inteligência cubana. Há alguma relação concreta entre a RSF e a CIA? Ainda que essa informação tenha sido negada pela RSF durante algum tempo, nas contas anuais da organização aparece a subvenção de organismos que são testa-de-ferro da CIA. O principal deles é

o Centro para a Liberdade de Cuba (Center for Free Cuba), que entregou 90 mil dólares em 2005 à RSF e a Fundação Nacional para a Democracia (NED, na sigla em inglês). Nenhum outro país financia esta organização, somente o governo dos EUA. De que maneira a NED tem respondido aos interesses dos EUA na América Latina? Os diretores da NED são em sua maioria ex-agentes da CIA e conhecemos outras atuações desse grupo na América Latina, como foi o caso da Nicarágua para derrubar o governo sandinista e mais recentemente durante o golpe de Estado na Vene-

zuela em 2002. A NED financiou e ainda financia a organização Súmate, um dos grupos que participaram do golpe de 2002 contra Hugo Chávez. Nesse período, apenas dois países e uma organização reconheceram o golpe: Estados Unidos, com George W. Bush, e Espanha com José Maria Aznar. Obviamente, a RSF também o fez. Quando fracassou o golpe, a organização emitiu um comunicado afirmando que estavam preocupados com a liberdade de imprensa na Venezuela. No dia 27 vence a concessão do canal de televisão venezuelano RCTV, para a qual o governo afirma que não haverá renovação. Na última semana, o presidente da RCTV, Marcel Granier, e o secretário da RSF participaram juntos de seminários realizados na Europa. O que pretendem com essa campanha? A RCTV será utilizada como pretexto para dar continuidade à campanha permanente contra a Venezuela. Preocupa porque a RSF há algum tempo tem influência no Parlamento Europeu e conseguiu a aprovação de sanções contra Cuba nos acordos bilaterais de Cotonu. Todos os governos que estão contra os EUA são inimigos de Robert Menard, secretário da RSF. Primeiro Cuba, agora a Venezuela e brevemente será a vez da Bolívia. O Parlamento Europeu poderia sancionar a Venezuela pelo caso RCTV? A conjuntura é mais difícil para conduzir um processo contra a Venezuela nas Nações Unidas, por exemplo. No entanto, se conseguem satanizar a Venezuela como fizeram com Cuba, não podemos descartar uma sanção comercial ao governo venezuelano por parte do Parlamento Europeu.

TERRORISMO

ESTADOS UNIDOS

Cuba diz ter novas provas contra Posada Carriles

Michael Moore reage à pressão de Bush Chris Rae

Gravações podem confirmar plano do terrorista e ex-agente da Cia para assassinar Fidel Castro da Redação As autoridades cubanas afirmaram que têm em seu poder o conteúdo de 14 conversações vinculando Luis Posada Carriles a um fracassado plano de assassinar Fidel Castro e a outros atos terroristas em Havana. As gravações não tinham sido reveladas até o dia 15 (fechamento desta edição), mas o anúncio ocorreu após a Justiça dos Estados Unidos retirar, no dia 8, as acusações contra o ex-agente da CIA (agência de inteligência estadunidense) por fraude imigratória. Em abril, Carriles havia sido liberado da prisão após pagar uma fiança de 250 mil dólares. Cubano naturalizado venezuelano, o ex-agente da CIA é acusado de ser um dos executores do ataque a um avião cubano que deixou 73 mortos em 1976. Carriles teria também coordenado diversas ações realizadas por mercenários centro-americanos entre 1997 e 1998 contra hotéis cubanos, colocando explosivos em suas instalações. O objetivo era provocar um colapso no setor turístico do país caribenho e criar uma imagem de desestabilização interna. Os próprios autores dos atentados, presos em Cuba, revelaram que haviam sido contratados pelo ex-agente da CIA. O governo Hugo Chávez, por sua vez, solicitou a extradição de Carriles para que fosse julgado pela Justiça venezuelana pela derrubada do avião cubano. O governo dos Estados Unidos rejeitou o pedido. Com o fim do processo contra o exagente da CIA, Cuba reforçou as críticas à “dupla moral” da política de combate ao terrorismo de George

Cineasta que prepara documentário sobre a indústria da saúde acusa presidente estadunidense de abusar do poder legal em prol de sua agenda política da Redação

Poster de filme fictício, com Bush e Carriles, em outdoor de Havana

W. Bush, acusando-o de acobertar um dos maiores terroristas da América Latina. A repercussão não se limitou aos massivos protestos na ilha caribenha. Um abaixo-assinado com mais de 5 mil nomes de personalidades – entre eles, o Nobel José Saramago e o lingüista Noam Chomsky – pede justiça às vítimas de Carriles. “A decisão é símbolo do terrorismo de Estado e uma mensagem da administração do presidente Bush para fortalecer a impunidade no mundo”, afirmou o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz.

Operação Condor

As ações de Posada Carriles se inserem também na lógica da Operação Condor, segundo a Associação de Advogados da Argentina. Trata-se de

uma coordenação criminosa das ditaduras latino-americanas nos anos 1970, em sintonia com a Doutrina de Segurança dos Estados Unidos. Os atos terroristas se espalharam, na Operação Condor, pelos países do Cone Sul – Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai – com ramificações na Colômbia, Venezuela, Peru e Equador. A Operação Condor só foi viabilizada pela participação dos agentes pagos pela CIA que, a exemplo de Carriles, acumularam experiência nos planos para assassinar Fidel Castro e sabotar o governo cubano. Redes terroristas foram constituídas por toda a região e se tornaram um dos antecedentes para os comandos da morte nas ditaduras do continente. (Com informações do La Jornada e da Prensa Latina).

O cineasta Michael Moore afirmou no dia 11 que está “disposto a lutar” contra a ofensiva do governo dos Estados Unidos, que o acusa de violar o bloqueio imposto por Washington contra Cuba. Moore acusou a gestão de George W. Bush de abusar de seus poderes no comando do Estado para favorecer sua plataforma política. Em março, Moore viajou à ilha caribenha para filmar o atendimento médico prestado pelo sistema de saúde cubano a dez trabalhadores estadunidenses que participaram dos serviços de resgate no atentado de 11 de setembro, em Nova York. As imagens fazem parte do novo documentário do cineasta, Sicko, que denuncia a indústria da saúde nos Estados Unidos e o mau serviço prestado à população na maior potência capitalista do planeta. Em 2 de maio, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos enviou uma carta a Michael Moore, autor de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, informando

que o governo estadunidense não havia lhe concedido permissão para “ignorar” o bloqueio contra Cuba. Moore é intimado a entregar uma série de dados sobre a viagem que fez, além de ser ameaçado a responder possíveis processos de âmbito “civil e/ ou criminal”. Desde 1962, os Estados Unidos impõem um bloqueio político, econômico e comercial contra Cuba. Os prejuízos financeiros da medida são calculados em mais de US$ 82 bilhões. O bloqueio já foi condenado em 15 ocasiões pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), a última vez em 2006. As restrições, ampliadas no governo Bush, proíbem estadunidenses de viajar à ilha sem autorização oficial. Em uma resposta do cineasta, publicada por Meghan O’Hara, produtora de Sicko, Moore afirma que “o presidente Bush e seu governo deveriam gastar seu tempo tentando ajudar a esses heróis para que recebam a assistência sanitária que necessitam, ao invés de abusar de seu poder legal em prol de sua agenda política”. (Fonte: Adital/ World Data Service)


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áfrica Michel Hasson/http://phototheque.net

A batalha para recomeçar R. D. DO CONGO Em 2007, programa da ONU prevê o retorno de 20 mil refugiados congoleses que, no momento, vivem na vizinha Zâmbia Igor Ojeda da Redação QUATROCENTOS quilômetros de estradas e 380 quilômetros de navegação pelo lago Tanganica foi a distância que os 414 refugiados da República Democrática do Congo (RDC) tiveram que percorrer em três dias para voltarem para casa depois de um período vivendo na vizinha Zâmbia. Partiram, no dia 3, da localidade zambiana de Mwange e desembarcaram em Kalemie, na província congolesa de Katanga, no dia 5. Eles deram início a um programa de repatriamento voluntário lançado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que terá duração de três anos. O projeto, que conta com a colaboração do governo dos dois países envolvidos e da Organização Internacional para as Migrações, pretende fazer com que mais de 20 mil congoleses, dos cerca de 61 mil que vivem na Zâmbia, retornem à pátria em 2007. A balsa fretada especialmente para o programa tem previsão de sair uma vez por semana. Ao final da estação de chuva – quando os veículos poderão percorrer a estrada sem dificuldades – o número de comboios transportando os refugiados aumentará. A ACNUR deu o sinal de partida ao projeto porque se estabeleceram condições de segurança em muitas áreas da RDC: em 2006 foram realizadas as primeiras eleições presidenciais depois de anos de ditadura e guerras civis (veja matéria nesta página). Os comboios vindos da Zâmbia irão levar os refugiados para locais livres de minas terrestres, e que contem com serviços básicos como água potável, escolas e hospitais.

Auto-suficiência

Ao entrarem em território congolês, os repatriados ficarão em um centro de recep-

Quanto

61 mil

refugiados congoleses vivem atualmente na Zâmbia; desses, cerca de 20 mil devem voltar ao Congo ainda este ano ção por um ou dois dias, onde serão informados sobre os riscos representados pelas minas terrestres, e receberão assistência médica, principalmente em relação ao HIV. Antes de voltarem definitivamente para suas regiões de origem, os refugiados receberão alimentos, cobertores, sabões, utensílios para cozinha, baldes e um kit para ajudar na reconstrução de suas casas. Além disso, ao longo do ano, serão municiados com sementes e utensílios agrícolas para ajudá-los a atingir a auto-suficiência. O projeto atual é em parte inspirado em um grande programa de repatriamento realizado pela ACNUR em Angola – que terminou em janeiro de 2007, após quatro anos.

Além disso, uma iniciativa similar realizada no começo do ano permitiu, em abril, a volta de 494 congoleses que viviam na Tanzânia, outro país vizinho à RDC. Dos 61 mil refugiados congoleses na Zâmbia (que em sua maioria fugiram da guerra civil ocorrida entre 1998 e 2003), quase 44 mil estão divididos nos quatro campos de Mwange e Kala, no extremo norte do país, e de Meheba e Mayukwayukwa, a oeste e a noroeste, enquanto pouco mais de 2 mil se encontram em áreas urbanas. O resto se instalou fora desses campos. Ainda existem 340 mil congoleses refugiados nos países vizinhos mas, ao longo dos últimos dois anos, a diáspora congolesa está se retraindo lentamente. Desde 2004, cerca de 103 mil voltaram para casa. Segundo a ACNUR, aproximadamente 300 que estão vivendo em Moçambique pediram à agência ajuda para retornar à RDC. Eles devem partir nos próximos dois meses.

Apesar de acordo de paz, conflitos seguem da Redação Localizado na África Central e terceiro maior país do continente, a República Democrática do Congo (RDC) possui 60 milhões de habitantes; 70% deles vivem abaixo da linha da pobreza, e a expectativa de vida, ao nascer, é de apenas 51 anos (a do Brasil é de quase 72 anos). No país, encontra-se uma das maiores reservas de recursos minerais do mundo: ouro, diamante, cobre, cobalto, urânio, tântalo etc. Depois da independência da Bélgica, o país passou por 32 anos (1965-1996) de ditadura de Mobutu Sese Seko. Entre 1997 e 2001, a RDC foi comandada por Laurent Kabila, líder do movimento que derrubou Mobutu. Em uma tentativa de golpe, Kabila foi assassinado, e seu filho Joseph assumiu a presidência. Em 2006, foi o mais votado nas primeiras eleições em quatro décadas. A disputa pelos recursos foi uma das

O tântalo é o principal recurso natural cobiçado pelas transnacionais; o metal é utilizado na fabricação de telefones celulares principais causas de uma grande guerra civil de 1998 a 2003 entre grupos rebeldes e o governo, e que envolveu outros países: Angola, Namíbia, Zimbábue, Uganda e Ruanda. Cerca de 5 milhões de pessoas morreram. No entanto, apesar do fim oficial do conflito, através de um acordo de paz, diariamente ainda ocorrem confrontos entre o Exército congolês e grupos rebeldes – com o conseqüente deslocamento forçado de civis –, principalmente no leste do país, onde encontra-se a maior parte das riquezas. Nessa região, estima-se que cerca de

Quanto A República Democrática do Congo (RDC) é o º maior país da África, com 60 milhões de habitantes

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mil pessoas morrem todos os dias de doenças relacionadas aos enfrentamentos. Com a ajuda de 17 mil soldados da ONU, o governo afirma ter desmobilizado cerca de 150 mil rebeldes – restariam ainda 70 mil.

Bayer

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), na província de Kivu do Norte, 123 mil pessoas tiveram que deixar suas casas nos últimos três meses. Tanto as forças oficiais quanto os grupos armados são responsáveis pelas violações aos civis, que incluem assassinatos, seqüestros, roubos e estupros. Após o acordo de paz de dezembro de 2003, muitos líderes rebeldes assumiram cargos no governo, enquanto grande parte de seus homens foram integrados ao Exército. As transnacionais estrangeiras são as maiores interessadas nos recursos naturais., principalmente no tântalo – metal utilizado como componente de equipamentos eletrônicos, sobretudo telefones celulares. Nesse contexto, a principal financiadora dos conflitos, através da compra ilegal desses materiais – cujas receitas são usadas na compra de armas – é a Bayer, conhecida por fabricar o analgésico Aspirina. Através de sua subsidiária, a H.C. Starck, a corporação alemã compra o tântalo para processá-lo e vendê-lo às empresas de celular. Na página da internet da Bayer, a empresa informa que sua subsidiária é responsável por mais de 50% da produção mundial do pó deste metal. (IO)

Ainda existem 340 mil congoleses refugiados nos países vizinhos

GUINÉ

O alto preço da lealdade Soldados amotinados, responsáveis por repressão a protestos populares no começo do ano, agora cobram maiores salários do governo que apoiaram Igor Ojeda da Redação Os mesmos soldados que ajudaram o presidente da Guiné, Lansana Conte, a reprimir violentamente uma onda de greves e protestos ocorridos em janeiro e fevereiro voltamse agora contra o próprio mandatário do país, realizando saques e causando mortes decorrentes de balas perdidas. A revolta dos oficiais de baixa graduação do Exército guineano estourou no começo de maio. Eles reivindicam um aumento permanente de seus rendimentos, e o pagamento retroativo referente a um grande incremento salarial recebido em março, logo após terem atuado na repressão às manifestações do início do ano. De acordo com os dados do próprio governo, pelo menos 129 pessoas morreram e 1.700 ficaram feridas no período, em sua maioria manifestantes atingidos pelo Exército e pela polícia.

assumissem o posto. A demissão dos ocupantes anteriores de tais cargos – respectivamente Ousmane Arafan Camara e Kerfalla Camara – era uma das principais exigências dos soldados. No dia 11, seis pessoas morreram devido aos protestos na capital Conacri e em outras cidades. Acredita-se que a maioria foi vítima de bala perdida após os soldados dispararem para o alto. “Estamos aqui para exigir nosso dinheiro. Eles prometeram e não entregaram”, disse à agência de notícias Reuters um oficial júnior que participou de uma marcha. Os amotinados saquearam armas, lojas de comidas e as casas de oficiais do Exército mais graduados.

Greve geral

Em meados de janeiro, sindicatos realizaram uma série de greves para protestar contra a queda do padrão de vida da população do país e a corrupção. Preços de bens básicos como arroz e combustíveis haviam disparado. Os lí-

Guiné é considerada pela organização Transparência Internacional o país mais corrupto do mundo O presidente afirma que os aumentos estão custando cerca de 3,5 milhões de dólares aos cofres públicos. Os soldados exigem também a reintegração de colegas demitidos em 1996, em outra rebelião por melhores salários, que contou inclusive com o bombardeio do palácio presidencial. Os oficiais de baixa graduação têm sido fundamentais para sustentação do governo de Conte desde que este subiu ao poder em 1984, após um golpe de Estado. Conte vem irritando ainda mais os soldados, ao adiar seguidamente conversações sobre a pauta de reivindicações. No dia 12, ele não apareceu no encontro marcado. Dois dias depois, adiou por 24 horas a reunião para que os novos ministros da Defesa e o comandante do Exército

deres sindicais afirmaram que a economia guineana só melhoraria com a saída de Conte do poder. Independente da França em 1958, a Guiné possui grandes reservas de bauxita e ferro. No entanto, o país é o 160º (de 177 nações) no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU. Além disso, é considerado pela organização Transparency International (Transparência Internacional) o país mais corrupto do mundo. Após manifestações iniciais, uma greve geral prevista para durar 18 dias foi cancelada após o presidente prometer entregar o cargo a um novo primeiro-ministro. No entanto, ele nomeou para o posto um de seus aliados mais próximos, causando a retomada de novos protestos e paralisações.

Uma greve nacional foi convocada novamente, resultando na paralisação de todos os principais setores da economia, incluindo a mineração, responsável por grande parte da receita estatal. Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas, fecharam rodovias e enfrentaram a polícia. A reação do governo foi dura. Forças de segurança começaram a atirar diretamente contra as multidões que tentavam avançar à região central da capital, resultando em inúmeros mortos e feridos. Alguns dos protestos tornaram-se também violentos, com saques de postos policiais e escritórios de governo. Além disso, gangues aproveitaram a ocasião para roubar lojas e transeuntes. Em fevereiro, o presidente Lansana Conte chegou a impor em todo o país um toque de recolher, e mandou o Exército fazer o que fosse necessário para restaurar a ordem.

Repressão

No final de abril, a organização Human Rights Watch (HRW, Observatório de Direitos Humanos) lançou um relatório de 64 páginas detalhando como as forças de segurança da Guiné reprimiram “brutalmente” as manifestações. As 115 vítimas ou testemunhas da violência denunciaram o “envolvimento de membros do Exército e da polícia em assassinatos, estupros, agressões e roubos. Testemunhas de dezenas de assassinatos contaram à HRW que as forças de segurança atiraram diretamente na direção de manifestantes desarmados, freqüentemente antes de esgotarem os meios não-letais de controlar a multidão, e executaram os que tentavam fugir”, diz o texto. Além disso, as forças do governo atuaram diretamente contra as organizações, saqueando os escritórios de um dos sindicatos que organizaram a greve e uma das estações privadas de rádio do país. (Com agências internacionais)


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internacional Phil Moore/Creative Commons

Manifestantes amontoados em ônibus da polícia, recolhidos durante os protestos que se espalharam após a vitória de Sarkozy

Sarkozy vai se alinhar a Bush, alerta economista francês

FRANÇA Para Michel Husson, apenas a mobilização social pode impedir um processo de “norte-americanização da França” João Alexandre Peschanski de São Paulo (SP) “O CHOQUE.” Foi a manchete do jornal L’Humanité, ligado ao Partido Comunista Francês (PCF), no dia seguinte à eleição de Nicolas Sarkozy à presidência da França, em 6 de maio. Mas o balanço do pleito não é um choque só, são pelo menos três. O primeiro diz respeito à situação das agremiações progressistas no país: desunidos, cinco partidos de extrema esquerda apresentaram candidato próprio no primeiro turno, em 22 de abril, conquistando resultados inferiores aos de votações anteriores. O esfacelamento teve impacto direto na discussão programática – os maiores partidos, o Socialista (PS) e a União por um Movimento Popular (UMP), de Sarkozy, fizeram silêncio sobre temas tradicionais da esquerda, como a situação dos trabalhadores e o fortalecimento do Estado de bem-estar social. Por fim, o choque fica por conta do perfil do novo presidente, eleito com 53%, na disputa contra Ségolène Royal, do PS. Sarkozy, que se apresenta como homem capaz de conciliar as facções políticas na França – o que o levou a convidar integrantes do PS a compor seu gabinete –, é porta-voz de correntes racistas e xenófobas.

Sarkozy conseguiu atrair boa parte do eleitorado de extrema direita ao retomar o discurso da “identidade nacional” A esquerda francesa está em crise. E esta “não poderá ser resolvida no curto prazo”, afirma o economista Michel Husson, em entrevista ao Brasil de Fato, por correio eletrônico. Se os movimentos sociais e partidos progressistas não se unirem e se organizarem, diz, o governo de Sarkozy, que vai se iniciar em 2008, pode implementar políticas econômicas que ataquem direitos trabalhistas e adotar atitudes autoritárias contra estrangeiros, tornando-se um parceiro de armas do presidente estadunidense, George W. Bush, cujo Partido Republicano aplaudiu a eleição do candidato da UMP. Brasil de Fato – Qual seu balanço do governo de Jacques Chirac, que está no poder desde 1995? Michel Husson – Quando foi reeleito, em 2002, Chirac teve 81% dos votos no segundo turno, na disputa com o candidato de extrema direita Jean-Marie Le Pen. Seus dois mandatos sucessivos foram marcados por políticas sistemáticas de contra-reforma liberais, que levaram à degradação salarial dos trabalhadores. A Reforma das Aposentadorias (2003) levou a um retrocesso na idade da aposentadoria e, em conseqüência, ao empobrecimento relativo dos aposentados. A Reforma da Previdência (2004) gerou uma diminuição da participação do Estado no pagamento de auxílios-doença. O mercado de trabalho foi “flexibilizado” por uma série de reformas visando a desmontar os direitos trabalhistas – principalmente, a jornada semanal de 35 ho-

ras. A política fiscal se baseou na redução da carga de impostos dos mais ricos e no aumento do déficit orçamentário, de tal modo que a dívida pública cresceu mais do que a renda nacional. Como o governo francês segue as orientações européias, restritivas (taxa de juros alta, aceitação da diminuição do dólar), foi o vetor de um crescimento medíocre, abaixo da média do continente. O resumo do balanço se expressa na taxa de desemprego, que aumentou desde 1997. Foi um governo marcado por muitos protestos e greves. Chirac não conseguiu realizar todo o programa liberal que preconizava, especialmente em virtude da resistência popular. E isso é um paradoxo da eleição de Sarkozy: a direita vence, apesar da intensificação das mobilizações. A Reforma das Aposentadorias levou ao surgimento de um movimento de massas importante; em 2005, o projeto liberal de Constituição européia foi derrotado em um referendo (55% dos eleitores votaram não). Depois, em 2006, o Contrato de Primeiro Emprego, que flexibilizava o trabalho para todos os jovens, foi tirado da agenda política, após uma poderosa mobilização. A situação política e social, antes do pleito presidencial, era bastante aberto com, de um lado, mobilizações crescentes e, do outro, vacilos na orientação liberal do governo. Qual a trajetória de Sarkozy? Seu projeto consistiu em passar de uma estratégia de comer pelas beiradas a uma ofensiva global. Em 1995, Sarkozy não apoiou Chirac, mas um outro candidato de direita, Édouard Balladur. Foi então marginalizado e passou os 12 últimos anos a reestabelecer sua hegemonia na direita. Retomou a direção da UMP e construiu sua identidade política como ministro do segundo mandato de Chirac, iniciado em 2002. Participou do governo, mas manteve autonomia no Ministério do Interior, no qual posou de homem de direita moderno, mas também autoritário. Ele indicou à opinião pública que pretende acentuar a expulsão de imigrantes sem papéis, apesar dessa política ser alvo de protestos. Uma pista para entender o sucesso de Sarkozy é que ele conseguiu atrair para si boa parte do eleitorado de extrema direita. Em 2002, dois candidatos dessa corrente (Le Pen e Bruno Mégret) obtiveram 19% dos votos, e Le Pen caiu para 10% em 2007. Sarkozy atingiu esse resultado ao retomar o discurso da “identidade nacional” e é por isso que seus opositores o chamaram de fascista. Mas isso é apenas uma das facetas do novo presidente. Muitos analistas repararam que Sarkozy é excelente orador. Mas a eloqüência no discurso expressa também um programa de governo vago. O que ele pretende realizar em seu mandato? É em torno da questão social que se explica o paradoxo da eleição de Sarkozy, após vários anos marcados por protestos sociais e a derrota da direita em todos os pleitos intermediários. No pla-

no econômico e social, o programa do novo presidente é nefasto para os trabalhadores: ele vai combater a jornada de trabalho de 35 horas, defender a instituição de contratos de trabalho precários, reduzir o investimento na área social e nos serviços públicos. Mas isso é ocultado por um discurso populista, que faz a apologia dos “valores do trabalho representados por aqueles que se levantam cedo para trabalhar”. Sarkozy atacou sem descanso as políticas sociais, mobilizando os trabalhadores mal pagos contra os desempregados, ao mesmo tempo que reivindicou mais liberdades para as empresas e invocou valores tradicionais da direita, como ordem, nação, reconhecimento e mérito. Nessa perspectiva, Sarkozy pode ser definido como neoconservador, tal como Bush, com o qual o novo presidente francês quer se alinhar. O esfacelamento da esquerda contribuiu para que ele fosse eleito. Normalmente, seu discurso eclético (Sarkozy chegou até a citar duas figuras históricas do socialismo francês, Jean Jaurès e Léon Blum) não teria sido capaz de fazer com que a continuidade que ele representava em relação ao governo anterior ficasse em segundo plano. Mas ficou – e sua vitória se explica principalmente em razão dos problemas da esquerda. Sua corrente radical, antiliberal e altermundialista não conseguiu se unir e sofreu com o “voto útil”, o medo de não ter nenhum representante de esquerda no segundo turno, como ocorreu em 2002. O PS escolheu uma orientação social-liberal, personificada por Ségolène, que se deixou levar pelo discurso nacionalista e repressivo de Sarkozy. Ela não apresentou propostas que convencessem os trabalhadores da possibilidade de uma mudança profunda. A falta de clareza ocasionou um fenômeno inédito, a emergência de François Bayrou, candidato de centro-direita, que obteve 18,6% dos votos. No segundo turno, o PS não conseguiu reconstruir seu discurso e sua base de apoio. Qual o impacto da vitória de Sarkozy para a esquerda? As duas correntes da esquerda (antiliberal e social-liberal) estão em crise profunda, que não poderá ser resolvida no curto prazo. É provável que as eleições legislativas, marcadas para junho, garantam à direita a maioria do Parlamento. Nessas condições, deve ocorrer uma ofensiva frontal da elite sobre questões politicamente simbólicas: direito de greve, garantias trabalhistas, estabilidade para os funcionários públicos, nova legislação em relação à jornada de trabalho... Tudo vai depender do grau de mobilização social. Se for forte demais, o governo vai voltar à estratégia dos pequenos passos de Chirac – a implementação progressiva e lenta de políticas liberais. É a conjuntura social que vai definir os parâmetros inevitáveis da recomposição da esquerda. Com apenas 2% dos votos no primeiro turno, o PCF vai ter de escolher: ou

se torna um partido satélite do PS ou se insere na recomposição da esquerda radical. Mas o PS vai também se desfazer, dividindo-se entre aqueles que denunciam a falta de identificação clara da agremiação com a esquerda e aqueles que vão apoiar uma estratégia de aliança, quem sabe até fusão, com o partido de Bayrou. Qual o sentido dessa recomposição da esquerda? Deve levar a dois posicionamentos: uma esquerda radical, reunindo a extrema esquerda, o PCF, os coletivos unitários e uma parte dos ecologistas e do PS; e uma esquerda social-liberal, na qual estariam a ala de direita do PS e de centro-esquerda. Mas a essa recomposição se chocam dois fenômenos institucionais. O sistema eleitoral favorece o bipartidarismo e impõe obstáculos à emergência de correntes políticas independentes dos dois grandes partidos. E há também o conservadorismo dos aparelhos políticos, que preferem se manter nas posições já conquistadas. Não há perspectivas de lutas unitárias da esquerda contra Sarkozy? A situação política francesa foi profundamente abalada pelas eleições presidenciais e uma grande incerteza pesa sobre o futuro. Tudo vai depender da dialética entre o grau de ofensiva do novo governo e o grau de resistência dos movimentos sociais. Se a resistência social a Sarkozy for insuficiente, a França poderia experimentar, junto com a dominação econômica e social do liberalismo, a “norte-americanização” do sistema político, em que as relações entre grupos se dá pelo lado moral. Mas a França tem a vantagem de ser um país imprevisível, e o protesto acumulado, diante de uma regressão social, poderia ressurgir mais rápido que a direita imagina. Um pouco como aconteceu em 1995, quando um movimento social se desenvolveu apenas cinco meses após a eleição de Chirac. Arquivo Pessoal

Quem é Formado em economia, Michel Husson trabalha no Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, entidade que realiza estudos sobre a situação do emprego na França. Entre 1975 e 1984, ele foi funcionário do Ministério da Economia e, entre 1987 e 1989, do Ministério da Indústria. Husson integra o Conselho Científico da Associação para a Taxação das Transações e pela Ajuda dos Cidadãos (Attac). É autor de Trabalho flexível, assalariados descartáveis (2006), entre outros.


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de 17 a 23 de maio de 2007

cultura

, 40 anos

Ilustração: Aldo Gama

CINEMA Lançado há quatro décadas, filme do cineasta Glauber Rocha pôs o dedo na ferida de 1964

Dafne Melo da Redação BRASIL, INÍCIO da década de 1960. O país, escreve o crítico literário Roberto Schwarz, estava “irreconhecivelmente inteligente”; passava por uma intensa agitação política, onde a esquerda dava cada vez mais o tom, principalmente no campo cultural. Apesar da incredulidade de parte da esquerda em relação a um golpe da direita, ele vem em 1964 e não inaugura apenas alguns dos períodos mais obscuros da política brasileira, mas também deixa boa parte da intelectualidade socialista com muitas questões a serem respondidas. Como deixamos chegar a esse ponto? Como não vimos isso antes? Por que o povo não reagiu? Por que a esquerda não reagiu? O reflexo dessas indagações é uma profunda crise. Francisco Alambert, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), conta que a questão da esquerda naquele momento era lidar com uma ilusão; a ilusão de que era hegemônica. “Precisava responder à questão: como não vimos e como não nos organizamos para isso não acontecer? E o povo brasileiro sentou-se e

viu os tanques passarem, não saiu às ruas, não houve sangue, não resistiu. Sequer um grupo, uma facção popular se organizou para resistir ao golpe naquele exato momento, como foi na Argentina e no Chile”, recorda. Três anos depois, ou seja, há quatro décadas, Glauber Rocha lançava Terra em Transe, botando o dedo na ferida do 1º de abril de 1964. A crítica presente no filme não poupa ninguém: direitistas, golpistas, populistas e, principalmente, esquerdistas. Não poupa nem ele mesmo, um dos expoentes do Cinema Novo e, portanto, também parte da esquerda.

Acusações

Diante da crise, a esquerda começa a tentar entender o que, de fato, aconteceu. “Todo mundo começa a lavar a roupa suja. Acusam uns de terem colaborado com as circunstâncias que levou ao golpe, outros de terem sido, no fundo, alienados e não terem visto o que efetivamente acontecia, outros de não terem sido radicais o suficiente para se anteciparem ou para radicalizarem a ação política, no sentido de organizar o povo para resistir ao golpe”, resume Alambert. Terra em Transe, lançado nesse contexto, é odiado

Inspirando a Tropicália De Caetano Veloso a José Celso Martinez, não são poucos que vêem na obra de Glauber Rocha a inspiração para o movimento da Tropicália, a qual também está comemorando seus 40 anos. Para o professor Rubens Machado, essa geração se sentiu sacudida pelo filme e criou algo a partir desse choque. “Isso não quer dizer que o filme seja tropicalista, mas que ele tinha uma característica que interessou muito aos tropicalistas”, analisa. Um desses pontos de interesse foi a exploração da ambigüidade, ou seja, da possibilidade de se ler um mesmo objeto artístico de diversas formas, inclusive contrárias. Entretanto, enquanto o discurso tropicalista cai muitas vezes no escárnio e no cinismo, Terra em Transe vai no sentido contrário. Francisco Alambert, avalia que, no longa, tudo tem um peso e uma seriedade assustadora. “É um filme quase sem humor. É trágico, operístico, anti-naturalista, exagerado. Mas não há cinismo nenhum, muito pelo contrário. Ele diz: ‘olha, já fomos cínicos o suficiente, agora vamos falar sério’ ”, comenta. Para o historiador, a ambigüidade de Terra em Transe se faz presente a partir da necessidade de se pensar uma realidade extremamente complexa, recheada de contradições. Já na Tropicália, de um modo geral, a ambigüidade servia como um espaço de manobra para que o movimento pudesse viver com o Brasil da ditadura e não se opor a ele. “Sobretudo para se encaixar dentro da indústria cultural. Queriam ser uma vanguarda, mas uma vanguarda dentro da indústria cultural. O que é uma coisa que o Glauber nunca quis. Só no final da vida ele teve um programa de TV, que durou pouquíssimo, uma espécie de anti-programa, provocava o público e os entrevistados, nada bem-comportado e nada vendável. Diferente dos tropicalistas, que foram se adaptando cada vez mais”, pontua Alambert. (DM)

Convulsão, choque de partidos, de tendências políticas, de interesses econômicos, violentas disputas pelo poder é o que ocorre em Eldorado, país ou ilha tropical. Situei o filme aí porque me interessava o problema geral do transe latino-americano e não somente do brasileiro. Queria abrir o tema ‘transe’, ou seja a instabilidade das consciências (Glauber Rocha) por parte da esquerda, que o vê como uma obra niilista e propositalmente hermética. Além disso, acrescenta Alambert, tudo naquele momento que fizesse uma crítica à esquerda parecia estar a favor da direita. “Os comunistas achavam que era uma traição, uma ‘porra-louquice’ do Glauber, um filme alienado. Tanto que se colocou a pecha, que persiste até hoje, de ser uma obra elitista, que não foi feita para o povo, incompreensível. Enfim, uma avaliação simplista, banal, tanto que o filme rende debate até hoje”, completa o historiador. Rubens Machado, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, acredita que o filme é mais difícil pelos temas que aborda do que por sua narrativa ou estética. “É a obra mais próxima da linguagem do grande público dentre todos os filmes que Glauber fez. Não há cenas arrastadas como em

Deus e Diabo na Terra do Sol (1964), ou Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Há a articulação de uma história que dramaturgicamente é convencional, nada é muito exigente na estrutura narrativa que só cinéfilos ou um público muito preparado possa entender. Mas traz questões difíceis de serem pensadas, fala da própria dificuldade de se pensar do intelectual, de pensar a si próprio e seus limites e acredito que, historicamente, naquele momento, fosse ainda mais difícil”, avalia. Machado ressalta que o filme só foi debatido tempos depois de seu lançamento, pois também foi muito ignorado, não só pela temática, mas também pelo seu aspecto estético. A produção causou tanta surpresa que pouco se discutiu sobre o filme ainda em 1967. “Falava-se de aspectos muito primários do filme, ou simplesmente não tratavam do assunto, talvez a for-

O cinema prolonga a morte. Estas imagens estarão eternas. Além da morte (Glauber Rocha) Divulgação

ma mais coerente de exprimir o estranhamento. Isso é um processo corrente: filmes muito inovadores não chamam muita atenção quando lançados”, opina.

História e atualidade

No filme, Glauber Rocha, que também assina o roteiro, refaz uma leitura da formação histórica, política e cultural do Brasil. “Parte-se do golpe, volta-se ao passado para pensar essa formação, especialmente a dos intelectuais, e depois volta ao presente para mostrar o impasse: e agora?”, sintetiza Alambert. Todas as relações são feitas de forma alegórica, uma vez que não faz qualquer referência direta nem ao Brasil, nem a nenhum país latino-americano. Entretanto, aponta Rubens Machado, “tudo ali respira os anos 60, a América Latina, o Brasil”, graças à matéria histórica presente no conteúdo do filme, o que faz

com que ele ainda seja atual. “Ele trata questões ainda muito vivas por se basearem num processo histórico que ainda não se resolveu”, afirma Machado. E, por não se resolverem, as questões voltam em novos contextos. Guardadas as devidas proporções, para muitos é impossível não traçar paralelos entre os dilemas da esquerda pós-golpe (retratados no filme) e o dilema da esquerda durante o primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Uma das cenas mais fortes e polêmicas é também aquela em que o paralelo com os dias atuais se faz de forma mais óbvia. Em determinado momento, Gerônimo, um líder sindical tipicamente pelego, faz um discurso vazio, óbvio, despolitizado. Paulo Martins, personagem principal, que simboliza o intelectual, tapa a boca do operário com a mão e diz: “Já imaginou o Gerônimo no poder?”.

Ficha Técnica: ficção, longa-metragem, preto e branco Duração: 115 minutos Lançamento: 8 de maio de 1967 Roteiro e direção: Glauber Rocha Elenco: Jardel Filho (Paulo Martins), Paulo Autran (dom Porfírio Diaz), José Lewgoy (dom Felipe Vieira), Glauce Rocha (Sara), Paulo Gracindo (dom Julio Fuentes), Hugo Carvana (Álvaro) e Danuza Leão (Sílvia) Sinopse: Nas primeiras imagens, Paulo Martins, personagem central da obra, aparece baleado. Em um último delírio, revê sua trajetória. Jornalista e poeta – ou seja, um intelectual –, se envolve com a política ainda na juventude, apadrinhado por dom Porfírio Diaz, político de perfil autoritário que representa as classes dominantes no poder desde o início da colonização de Eldorado, país fictício, com capital de mesmo nome, onde se passa a história. De esquerda na juventude, Diaz busca o poder pelo poder. Seu discurso é pela família e por Deus, mas sua prática política mostra seu alinhamento com as grandes corporações estrangeiras. No outro extremo em que circula Paulo Martins está Felipe Vieira, governador da província de Alecrim. Aparentemente com um perfil que o colocaria como oposição a Diaz, mostra-se, posteriormente, um perfeito demagogo e populista: usa os camponeses e operários para se eleger e depois, já no poder, os reprime. Sara, militante comunista, é a assessora de Vieira com quem Paulo se envolve. Martins ainda é próximo de Julio Fuentes, representante da “burguesia nacional” que, dentre suas empresas, possui a maior rede de TV de Eldorado. Circulando todos esses personagens, acreditando em promessas e verdades que não se cumprem, vendo e cometendo erro atrás de erro, Paulo Martins encarna e vive os dilemas e contradições do intelectual de esquerda.


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