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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 224

São Paulo, de 14 a 20 de junho de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Wilson Dias/ABr

Carlos Ruggi

MST se prepara para novas lutas

João Zinclar

Abertura do 5º Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no ginásio Nilson Nelson

Não cabe mais ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lutar só pela reforma agrária. O inimigo agora é o grande capital internacional aplicado no agronegócio. Ao longo dos seus 23 anos, o MST tem evoluído junto com os desafios impostos pelo modelo neoliberal. Em 1985, em seu 1º Congresso, eram pouco mais de mil delegados. Em 2007, eles já chegam a 18 mil. O salto organizativo é visível: a Cidade de Lona, construída em Brasília, vai abrigar, entre os dias 11 e 15, uma população maior do que as de 2.686 cidades brasileiras. Págs. 2 e 8

Transposição: indígenas se dizem traídos por Lula O Exército chegou às margens do rio São Francisco para fazer as obras de transposição. Desde o dia 4, 50 homens do 2º Batalhão de Engenharia e Construção estão em Cabrobó (PE). De seu lado, a sociedade civil organizada e as comunidades indígenas que habitam a região prometem resistir. A tumbalalá Maria José Marinheiro, por exemplo, garante que a construção pode piorar a situação do rio, já degradado pela ação humana. Além disso, afirma, “existem outras alternativas para o abastecimento de água, como poços, açudes”. Págs. 4 e 5

O encontro entre os líderes das nações mais ricas do mundo mais a Rússia, o G-8, entre os dias 6 e 8, na Alemanha, pretendia discutir soluções para a epidemia de Aids na África, bem como para o aquecimento global. A falta de

Ivo Cassol, governador de Rondônia, e Roberto Sobrinho, prefeito da capital, Porto Velho, engajaram-se pessoalmente na missão de recolher o maior número possível de adesões a um abaixo-assinado favorável à construção das usinas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira. Para tanto, lançam mão da máquina pública: órgãos dos governos estão sendo mobilizados e até as escolas entraram na jogada. Em algumas delas, seus diretores prometeram brindes como computadores, TVs de tela plana e ventiladores aos alunos que conseguissem a maior quantidade de assinaturas. Pág. 3

Exército chega a Cabrobó (PE) para início das obras da transposição do rio São Francisco

Till Baumann

Protestos por justiça social acuam o G-8 propostas concretas e de efetivação de promessas anteriores, entretanto, deixou a farsa evidente para a opinião pública. Com isso, protestos roubaram a cena e polícia prendeu mais de mil militantes. Págs. 9 e 10

Manifestantes bloquearam as vias de acesso a Heiligendamm, na Alemanha

Em Rondônia, coação garante apoio a usinas hidrelétricas

Ocupação da Palestina completa 40 anos No ano em que a ocupação dos territórios de Jerusalém, Gaza e Cisjordânia completa 40 anos, uma série de atos organizados em todo o mundo protesta contra as ações do governo israelense. Desde a invasão das terras onde os palestinos foram encurralados depois da criação do Estado de Israel, em 1948, 650 mil palestinos foram presos e 12 mil casas derrubadas. A simplificação da questão, reduzindo-a a um conflito militar ou a um problema de terrorismo, coloca em segundo plano questões fundamentais para o entendimento do quadro atual. Pág. 11


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editorial O 5° CONGRESSO Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) instalase em um momento crucial para o futuro das 20 milhões de pessoas que vivem no campo brasileiro. São mudanças que já estão acontecendo e que se intensificarão ainda mais nos próximos anos, afetando profundamente vidas já tão sofridas e injustiçadas. A razão disso é o predomínio do modelo do agronegócio adotado na agricultura brasileira que representa os interesses do capital internacional aliado aos fazendeiros capitalistas. E agora se organizam com o projeto dos governos dos países ricos de transferir para o terceiro mundo a produção dos agrocombustíveis. Os dirigentes do chamado primeiro mundo perceberam que o planeta não agüenta mais outras décadas da poluição do dióxido de carbono exalado pelos motores a gasolina. Sabem também que daqui a cinco décadas não haverá

debate

Barrar o agronegócio Torna-se indispensável unir a resistência do campo à resistência da cidade. Só assim será possível criar uma pressão de massas suficiente para deter não apenas o processo de entrega do campo ao agronegócio internacional, mas também de frear o avanço do neoliberalismo que está provocando a miséria do povo e a reversão neocolonial do país mais petróleo para fazer rodar a incomensurável frota de automóveis e caminhões. Decidiram, em vista disso, tomar providências para manter o consumo e a cultura do carro individual e os enormes interesses que estão por trás dela: fábricas de automóveis; empreiteiras de obras; industria do turismo; e bancos (que financiam tudo isso, inclusive as eleições desses dirigentes). O jeito é o de sempre: jogar a conta para o mundo pobre pagar e, no mundo pobre, para os mais pobres. O óbvio seria substituir gra-

dativamente o transporte individual pelo transporte coletivo; o caminhão e o ônibus pelo trem e pela barcaça; o consumismo desenfreado por um consumo responsável. Mas, em vez disso, optou-se pela política que, no momento, oferece mais oportunidades para grandes lucros: adicionar álcool à gasolina, mediante um aumento enorme das áreas dedicadas ao cultivo de plantas (cana de açucar, madeira, soja, etc.) que podem ser transformadas em combustíveis. O povo da terra pagará por essa nova aventura da irresponsabili-

dade capitalista, pois todos sabem que “extensão da monocultura” é sinônimo de “fabricação de pobreza”. A mudança da conjuntura exige uma rápida mudança na estratégia dos defensores da reforma agrária. O inimigo agora é o grande capital internacional aplicado no agronegócio e é preciso organizar a luta contra ele. Nesse contexto, a unidade da luta camponesa adquiriu maior urgência e prioridade. Não cabe mais ao MST e aos sem-terra lutar só pela reforma agrária; os pequenos agricultores apenas por

crônica

Altamiro Borges

A demonização da rádio comunitária NAS ÚLTIMAS semanas, houve um endurecimento da repressão às rádios comunitárias nas principais regiões metropolitanas do país. A senha para a nova ofensiva foi dada no 24º Congresso da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que reuniu os “donos de mídia” no final de maio. Na ocasião, Hélio Costa, ministro das Comunicações e homem de confiança da Rede Globo, anunciou o reforço das medidas de criminalização. Entre outras iniciativas, informou que solicitou ao Ministério Público o uso de “interdito proibitório” para punir as rádios, que intensificará as campanhas publicitárias para estigmatizar o setor e incentivar a delação e que o “seu” ministério exigirá total rigor na aplicação das penas de prisão. “A partir de hoje estamos pedindo à Justiça que penalize essa falta de respeito. A pena para quem infringe a lei é de até dois anos de cadeia”, esbravejou o rejeitado ministro do governo Lula no evento da Abert para o deleite da platéia de empresários. Ele também convocou as emissoras privadas, maiores interessadas na perseguição às rádios comunitárias, para que “ajudem na conscientização da sociedade”, criando o clima de deduragem nas periferias da cidade.

Tensão nas periferias

Até a Folha de S.Paulo, com seu linguajar preconceituoso, constatou o avanço da repressão. “Os últimos dias foram de pura tensão para os donos das rádios clandestinas, livres, ilegais ou piratas, como costumam ser chamadas”. O repórter João Wainer percorreu alguns bairros da periferia de São Paulo e sentiu o clima de perseguição. Daniel, nome fictício de um dos entrevistados, protestou: “Faz 12 anos que minha rádio presta serviços à comunidade e agora eu tenho que ouvir um engravatado lá de Brasília vir dizer que eu sou criminoso”. A rádio de Daniel nasceu do movimento popular por moradia e hoje atua totalmente na clandestinidade, temendo a destruição dos equipamentos e a prisão de seus colaboradores voluntários. Outro entrevistado, batizado de Humberto, afirma que não desistirá de seu projeto: “Sou um revolucionário e uso a rádio para passar a minha mensagem... As rádios oficiais pagam propina para que a polícia feche as piratas no bairro. Somos melhores que eles, estamos ganhando ouvintes e isso incomoda”.

Aeroportos

O pretexto usado agora para o aumento da repressão é que as rádios comunitárias estariam interferindo na comunicação aérea, causando atrasos nos aeroportos. A desculpa é das mais esfarrapadas. Segundo vários especialistas, a potência dessas rádios é baixa, sendo facilmente redirecionada pelas torres de comando das aeronaves. Na verdade, as emissoras privadas é que têm poder para interferir nas comunicações aeronáuticas. O relatório do Grupo de Trabalho

Na verdade, as emissoras privadas é que têm poder para interferir nas comunicações aeronáuticas Interministerial do governo federal registrou, entre maio e outubro de 2003, várias interferências causadas no aeroporto Santos Dummont, no Rio de Janeiro, por rádios comerciais, entre elas a Rádio Globo. Segundo um fiscal da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que preferiu não se identificar numa entrevista ao Observatório da Imprensa, “todo dia recebemos denúncias de interferência de rádios outorgadas [as “legais”] na aviação”. Até o presidente da empresa Gol, Constantino Oliveira Junior, disse aos deputados e senadores da CPI do Apagão Aéreo que “a interferência de rádios ilegais na comunicação do piloto com a torre não põe em risco o vôo, já que o piloto troca de freqüência ou faz ponte com outras aeronaves”.

“Interesses” de Hélio Costa

Comprovada a total “ignorância” do ministro das Comunicações, o que está por trás da sua fúria contra as rádios comunitárias? Na prática, o “homem da TV Globo” sempre defendeu os interesses das corporações da mídia – e até advogou em causa própria, já que é dono de rádios em Minas Gerais. Na sua triste gestão, emissoras de comunidades e movimentos sociais comeram o pão que o diabo amassou e não tiveram paz. Modestas salas de rádios comunitárias foram invadidas, transmissores foram apreendidos ou destruídos e comunicadores populares foram presos e hoje vivem na “clandestinidade”. Hélio Costa é culpado por um dos recordes negativos do governo Lula na comparação com FHC: o da repressão a rádios comunitárias. Somente no ano passado foram fechadas 1.602 rádios comunitárias no Brasil. Segundo levan-

tamento da Folha, nos primeiros cinco meses deste ano a Anatel fechou mais de 600 rádios – 90 delas em São Paulo.

O padrão estadunidense

Além da criminalização das rádios comunitárias, Hélio Costa já prepara outro golpe contra essa forma de democratização da mídia. No processo de digitalização das comunicações no país, prevista para começar em dezembro, o governo estuda a adoção do padrão estadunidense de rádio digital – In Band On Channel (Iboc). O sistema é altamente restritivo, com custos elevados e cobrança de royalties. Como explica Jonas Valente, do Coletivo Intervozes, o país até poderia adotar outros modelos, como o europeu e o japonês, ou investir em tecnologia nacional, mas as rádios privadas forçam a barra para impor o modelo ianque – e contam com a mãozinha do ministro. “Em São Paulo, as radiodifusoras já compraram mais de cem aparelhos no sistema estadunidense. Elas querem ganhar pela imposição”, alerta Valente. A própria Anatel já confessou que a introdução do padrão estadunidense levará a falência centenas de pequenas rádios comerciais, para não falar das rádios comunitárias. Só o transmissor do sistema Iboc custará cerca de R$ 30 mil. “Esse custo inviabiliza o sistema. As rádios comunitárias, educativas e culturais ficarão fora desse processo de transmissão digital”, denuncia Orlando Guilhon, presidente da Associação das Rádios Públicas Brasileiras. Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro As encruzilhadas do sindicalismo (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição)

uma política agrária adequada; os assalariados exclusivamente por condições de trabalho. A ofensiva do agronegócio levará tudo isso de roldão. Agora, é preciso somar todas essas forças em uma grande frente destinada a deter a expansão desarrazoada da monocultura energética. Mas, atenção! Nem isso basta. Mesmo unidas, as forças do povo da terra não são suficientes para barrar os interesses que estão atrás do modelo da agricultura energética. Torna-se indispensável unir a resistência do campo à resistência da cidade. Só assim será possível criar uma pressão de massas suficiente para deter não apenas o processo de entrega do campo ao agronegócio internacional, mas também de frear o avanço do neoliberalismo que está provocando a miséria do povo e a reversão neocolonial do país. Não podemos esquecer a lição da nossa história: o povo só consegue avanços quando vai para as ruas.

Luiz Ricardo Leitão

Em defesa dos papagaios SOLIDARIZO-ME plenamente com a causa postulada pelo Sr. Carlos Frederico Pereira, que, lá de Belo Horizonte, enviou carta a um badalado órgão da grande imprensa paulista, manifestando sua indignação com um trecho da polêmica declaração do Presidente Hugo Chávez em relação ao Congresso brasileiro, mais precisamente aquela passagem em que o líder venezuelano compara nossos parlamentares a papagaios. Afinal de contas, interpela o cidadão mineiro, “o que fizeram essas aves que tanto nos alegram para serem comparadas com mensaleiros, navalheiros etc.?” O Sr. Carlos, realmente, está prenhe de razão: salvo o caso de “Zé Carioca” (aquele pseudomalandro de Walt Disney que invadiu as telas da América Latina ao lado de Carmem Miranda e Pato Donald), sempre a serviço da política ianque de “boa vizinhança”, não podemos reclamar desses pássaros, cuja inteligência e graça supera em muito os atributos ornitológicos de nossos deputados e senadores. Estes, sem dúvida, imersos em graves escândalos de corrupção, lembram mais a voracidade e frieza das aves de rapina: investem sobre as verbas oficiais ao estilo dos velhos abutres, embora, em plagas tupiniquins, talvez conviesse chamá-los de meros urubus. É quase surreal a intempestiva defesa da “liberdade de imprensa” feita pelo coronel José do Sir Ney, sultão do Maranhão e marajá do Amapá. Tanto ele quanto ACM e outros senadores foram agraciados com régias concessões de rádio e televisão, desde que o regime militar resolveu patrocinar, em nebulosas parcerias com o capital estrangeiro, a expansão das telecomunicações em Pindorama. Por isso, a atabalhoada e prepotente ingerência do Senado Federal nos assuntos da República vizinha terminou por cair no ridículo e na execração de quem não aceita o monopólio privado da imprensa e concebe a democracia midiática sob uma ótica oposta à do capital.

Em vez de intervir diretamente sobre a RCTV por ocasião do golpe de que foi vítima em 2002, Chávez esperou a data de renovação da concessão e, com a autoridade de que o Estado o investiu, simplesmente optou por cancelá-la Recordemos o caso venezuelano. Em vez de intervir diretamente sobre a RCTV por ocasião do golpe de que foi vítima em 2002, Chávez esperou a data de renovação da concessão e, com a autoridade de que o Estado o investiu, simplesmente optou por cancelá-la. No Brasil, por sinal, a cassação pode ser feita a qualquer tempo, mas, como bem sabemos, como tudo não passa de uma ação entre amigos, seguimos há décadas padecendo dessa terrível Paidéia midiática, que trata de deseducar o povo com as idiotices e a frivolidade de Sílvios Santos & Faustões, o chauvinismo e a imbecilidade de Galvões & Lucianos, ou a canalhice afetada dos Datenas & Ratinhos de plantão. Felizmente, o exemplo do corajoso mandatário venezuelano não caiu no vazio. Há poucos dias, uma decisão histórica sobre o tema veio à luz no México: a Suprema Corte anulou os leilões públicos para as concessões (o que fatalmente representaria a concentração da imprensa nas mãos do grande capital ou até mesmo do narcotráfico) e, por oito votos a um, considerou inconstitucional o direito à concessão perpétua (!), dando fim à chamada Lei Televisa (a maior rede televisiva mexicana). Agora, sonha-se até com a livre abertura de canais comunitários, indígenas e educativos estatais, uma alternativa concreta para o monopólio que as grandes cadeias exercem naquele país. O mais curioso é que Lulinha Paz & Amor julgou “democrático” o ato de Chávez, não hesitando em defender o colega perante a grande imprensa. Em compensação, a Senadora Heloísa Helena, apesar de não contestar a prerrogativa do Estado sobre a questão, disse que seria melhor manter a RCTV nas mãos dos atuais empresários: a alagoana, não sabemos se por ingenuidade ou debilidade ideológica, acha mais eficiente dispor, diariamente, de dois ou três minutos no “Jornal Nacional” para difundir suas idéias... A Rede Globo, satisfeita, agradece o apoio da araponga. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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Máquina pública pró-hidrelétricas coage funcionários e alunos RONDÔNIA Governo do Estado e prefeitura da capital compelem seus funcionários a coletarem assinaturas para abaixo-assinado favorável à construção das usinas Jirau e Santo Antônio; aos estudantes são prometidos um computador e uma TV de tela plana Wilson Dias/ABr

Falhas no estudo de impacto ambiental impedem aprovação do Ibama, que estima que obras podem inundar até mesmo regiões da Bolívia e do Peru

Igor Ojeda e Luís Brasilino da Redação UMA VERDADEIRA forçatarefa, que conta com uma articulação entre o setor público e o privado, está sendo posta em marcha em Rondônia, especialmente na capital Porto Velho. O objetivo: coletar, através de intimidação, o maior número possível de assinaturas para um abaixoassinado favorável à construção das usinas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira. Quem denuncia o clima de coação e o uso da máquina pública para atingir as metas de “adesões” é o Fórum Independente Popular do Madeira (FIPM), entidade que reúne organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), associações ribeirinhas e a Comissão Brasileira Justiça e Paz. “O governador do Estado [Ivo Cassol, do PPS] e o prefeito de Porto Velho [Roberto Sobrinho, do PT] estão usando a máquina pública para forçar os funcionários a votarem a favor das hidrelétricas. Os professores levam para as escolas o abaixo-assinado para os alunos assinarem”, denuncia Luís Massimo, inspetor de educação da Escola Coronel Carlos Aloísio Weber, na capital, que denuncia que estudantes também estão sendo recrutados para a coleta, recebendo brindes em troca: “o aluno que levar mais assinaturas ganha um computador, o segundo ganha uma TV de tela plana”. Segundo ele, Cassol viajou o Estado inteiro e convocou reuniões com todos os diretores de escolas estaduais, entregando a cada um 50 folhas com espaço para 25 assinaturas cada. Os diretores, por sua vez, pressionados a alcançarem as metas, envolvem professores e alunos. Massimo conta que não aceitou participar da coleta e levou o caso ao Ministério Público Estadual. Capacitação Segundo o FIPM, o prefeito de Porto Velho foi o primeiro a anunciar uma meta de assinaturas: 50 mil. Em seguida, foi a vez do governador do Estado prometer 200 mil.

“A diretora passou em todas as salas entregando um papel e dizendo que quem conseguisse mais abaixo-assinados ia concorrer a um ventilador”, denuncia aluno, que prefere não ser identificado, da Escola Marcos Freire, de Porto Velho, Rondônia Para tal, determinou que suas secretarias fizessem o esforço que fosse necessário. Pontos de atendimento ao público dos órgãos estaduais foram orientados nesse sentido e os funcionários públicos, além de obrigados a assinar, também foram instruídos a coletar assinaturas. Segundo a denúncia do Fórum, Ivo Cassol escalou as secretarias da Casa Civil e de Finanças para centralizar o processo. Mas, como se não bastasse o peso dos governos estadual e municipal, o governo federal participa ativamente das pressões pelo início das obras das hidrelétricas. Mesmo sem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) ter concedido a licença prévia ambiental para o projeto, mais de 3 mil trabalhadores de Porto Velho começaram, no final de abril, a receber capacitação para atividades relacionadas à construção das usinas, como armador e operador de máquinas pesadas. Trata-se do Plano Setorial de Qualificação (Planseq) Hidrelétrica, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Estão sendo oferecidos também cursos nas áreas de comércio, agricultura familiar e empreendedorismo já que, segundo o órgão, com a obra de infraestrutura podem ser criados novos negócios na região. Os cursos contarão com investimentos de R$ 1,3 milhão, recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). São parceiros no Planseq Hidrelétrica a Prefeitura de Porto Velho, o governo de Rondônia, a Federação do Comércio (Fecomércio-RO), a Central Única dos Trabalhadores de Rondônia (CUT-RO) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que ministra as aulas. Para o FIPM, “como as usinas sequer alcançaram a Licença Prévia, a antecipação desse processo de qualificação direcionado constitui uma forma de pressão indevida sobre o processo de licenciamento no interior do próprio governo”. Como demonstração disso, destacase a declaração do ministro do Trabalho, Carlos Lupi:

“A qualificação do trabalhador não tem nada a ver com a licença. Tem a ver com uma necessidade futura. Se não tiver a licença, aquele trabalhador pode ficar qualificado e não ter emprego, isso é muito ruim. Mas eu espero que tudo acabe se organizando”. Campanha aberta O Fórum denuncia ainda que a assinatura do abaixo-as-

sinado pró-usinas faz parte do ato de inscrição dos candidatos a uma vaga nas eventuais obras. A participação em programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, do governo federal, e em benefícios às comunidades ribeirinhas executados pela Prefeitura de Porto Velho também são condicionados ao apoio às usinas. Na esfera privada, a campanha também é grande. De

acordo com a FIPM, empresas vinculadas à Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero), Fecomércio-RO, Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada de Rondônia (SiniconRO) e Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de Rondônia (Sinduscon-RO) estão coagindo seus funcionários, fornecedores e clientes a registrar o apoio às usinas. Além disso, a mídia também vem sendo amplamente usada. “Tem uma vinheta em todas as rádios e televisões, quase todas comerciais, que fala, basicamente, que o Brasil precisa da energia de

Quanto

50 mil

assinaturas foi a meta anunciada pelo prefeito de Porto Velho. Em seguida, foi a vez do governador do Estado prometer 200 mil Rondônia, que sem ela viria o apagão. Mostra que as usinas significam progresso, emprego e desenvolvimento para o Brasil e para Rondônia”, conta Luis Fernando Novoa Garzón, sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir).

Usinas podem causar graves danos sociais e ambientais Lago formado pelas barragens podem inundar até regiões da Bolívia e do Peru da Redação A construção das usinas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, é uma das principais apostas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para seu segundo mandato. Como elas, juntas, seriam capazes de produzir 6.450 megawatts (MW) de energia elétrica, estaria contemplada mais da metade da meta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de aumentar a oferta em 12.300 MW até 2010, volume necessário para afastar o risco de apagão caso se concretize a promessa de que a economia crescerá 5% ao ano daqui a quatro anos.

O professor da USP Célio Bermann explica que, para atingir a meta do PAC de geração de energia, bastaria que o governo investisse na repontencialização das turbinas já existentes e na contenção do desperdício nas linhas de transmissão Porém, no artigo “Impasses e Controvérsias da Hidreletricidade”, publicado na edição de janeiro a abril da Revista Estudos Avançados, o engenheiro Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), garante que o país não precisa construir mais nenhuma usina para atingir a meta do PAC.

Quanto

2 mil

Apenas , dos 40 mil empregos diretos e indiretos criados durante a construção, restariam ao final das obras Segundo ele, trocando as turbinas das cerca de 70 hidrelétricas com mais de 20 anos que existem no Brasil, poderia-se gerar 8.000 MW a mais. Para chegar aos 12.300 MW previstos no PAC, bastaria reduzir o desperdício nas linhas de transmissão que hoje é de 15%, para 10%. Assim, o país contaria com outros 4.500 MW de energia. Além da produção energética, outro argumento dos defensores das hidrelétricas é a de que elas gerariam emprego na região. No entanto, para o sociólogo e professor da Unir, Luís Fernando Novoa Garzón, tal lógica é uma “armadilha”. “Porque você tem 40 mil empregos diretos e indiretos durante quatro anos mas, acabada a construção, esses empregos vão se reduzir a dois mil. Segundo ele, as propostas de inter-relação entre o Complexo do Rio Madeira e o desenvolvimento local são extremamente genéricas. “Não existem agendamentos, previsão de recursos nem os mecanismos que poderiam vincular o dinamismo com que os investimentos vão chegar para as usinas no sentido de enraizá-los na economia local”, pontua.

Danos à região

No entanto, devido a uma série de falhas no estudo de impacto ambien-

tal (EIA), o Ibama não concedeu a licença para o início da construção. Parecer técnico do órgão, divulgado no final de abril, concluiu que não é possível atestar a viabilidade ambiental da obra pois o EIA subdimensiona as áreas impactadas pela hidrelétrica. Os técnicos estimam que o lago formado pela construção pode inundar até mesmo regiões da Bolívia e do Peru. Além disso, os movimentos sociais da região alertam para os riscos ambientais e sociais. Segundo declaração do 3º Encontro do Movimento Social em Defesa da Bacia do Rio Madeira e da Região Amazônica, realizada, entre os dias 8 e 10, na cidade de Guajará-Mirim (RO), o represamento do rio causará a extinção de espécies e a conseqüente perda da pesca regional, principal atividade econômica dos ribeirinhos. “O que, somado à perda de áreas de cultivo, de florestas, de paisagens com potencial turístico, expulsará os habitantes para a periferia das cidades, ou os submeterão ao subemprego e ao trabalho forçado, juntamente com os milhares de migrantes que serão trasladados durante o período de eventual construção das obras”, diz o documento. De acordo com Novoa, o aporte de R$ 43 bilhões previstos não se justifica do ponto de vista energético, já que existiriam soluções mais baratas e mais rápidas. “Tudo indica que o que interessa é a própria construção e a IIRSA [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional SulAmericana], que quer fazer hidrovias para criar um corredor de exportações para o Oceano Pacífico”, analisa. (IO e LB)




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SINDICATOS Funcionários pedem aumento de salários e melhorias no serviço público; governo se mostra refratário às negociações

Fabio Pozzebom/ABr

Cem mil servidores em greve

Renato Godoy de Toledo da Redação DIANTE DA negativa do governo em dar reajustes ao funcionalismo, cerca de 100 mil servidores permanecem em greve por salário e melhorias no serviço público. O movimento também protesta contra o projeto de lei complementar (PLP 01) do Programa e Aceleração do Crescimento (PAC) que, se aprovado no Congresso, pode recrudescer o arrocho. A proposta prevê um aumento limite de 1,5% ao ano nos gastos com a folha de pagamento, mais o reajuste da inflação. Segundo o economista Rodrigo Ávila, somente a progressão vegetativa das carreiras do serviço público dariam conta desse valor. Assim, nenhuma verba restaria para novas contratações e até para reposição de quadros aposentados. Até o fechamento desta edição, permaneciam em greve servidores do Ibama, do Banco Central, do Incra, do SUS, funcionários de universidades federais e trabalhadores do Ministério da Cultura. Apesar da postura aparentemente intransigente, o governo se mostrou flexível no caso da greve dos servidores da Polícia Federal (PF). Para findar a greve, o governo concedeu um reajuste para a categoria que deve vigorar a partir de setembro. “Queremos tratamento isonômico, se cedeu para a Polícia Federal tem que ceder para todos”, afirma Walter Borges, vice-presidente da seção

Em assembléia, funcionários do Banco Central decidem entrar em greve por reajuste de salários

Quanto

R$ 2.600 é o

vencimento máximo de um médico de hospital universitário federal

paulista do Sindicato dos Trabalhadores do Banco Central (Sinal). Os funcionários do Banco Central, em greve desde o início de maio, exigem do governo o cumprimento de uma promessa feita em 2006. O governo sinalizou que, em 2007, pagaria uma parcela do reajuste, que seria implementado em 2008. Agora, o governo fala em uma primeira parcela apenas em 2008 e o reajuste em 2009, o que indignou a categoria. “Disseram que depois do período eleitoral resolveriam a questão salarial. Esperamos que o governo cumpra sua

promessa”, afirma Borges, cuja categoria exige cerca de 25% de aumento, na média das carreiras. Segundo o Sinal, mais de 80% da categoria está de braços cruzados.

Universidades

Em meio ao debate público acerca da autonomia universitária, impulsionado pela ocupação da reitoria da USP (leia matéria na página 7) e pelos ataques do governo José Serra (PSDB-SP), a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra) contabiliza 44 universidades com trabalhadores paralisados. Além de reajuste salarial, a Fasubra reivindica o fim dos estudos acerca de um projeto de transformar os hospitais universitários em fundações. “Para nós, isso representa uma privatização escamoteada desses hospitais”,

afirma João Paulo Ribeiro, coordenador geral da entidade. O argumento usado pelos defensores do projeto é que o financiamento para os hospitais universitários é escasso, já que se dá apenas via Ministério da Educação (MEC). Para a Fasubra, a escassez de verbas existe, mas a solução não passa pelo financiamento de entidades privadas ou do “terceiro setor”. “Se há escassez no financiamento dos hospitais universitários, eles deveriam receber verbas também dos ministérios da Saúde e de Ciência e Tecnologia”, defende João Paulo, para quem os hospitais universitários, em função da precarização do sistema público de saúde, tornaram-se hospitais de assistência e não de aprendizado para os estudantes da área da saúde. João Paulo denuncia a situação dos médicos que tra-

Trabalhadores da CSN realizam primeira greve na “era privatizada” da Redação Novembro de 1988. Em meio ao processo de intensificação das lutas de massa, inaugurado pelo novo sindicalismo do ABC paulista e pelo movimento em prol da redemocratização do país, trabalhadores da então estatal Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), entram em greve por reposição das perdas salariais nos planos econômicos do regime autoritário, redução da jornada e reintegração de trabalhadores afastados por atividade sindical. O movimento ganha apoio da população local e notoriedade na opinião pública. O governo civil, de José Sarney (PMDB, 1985-1990), com o auxílio do governador do Rio de Janeiro, Moreira Franco (PMDB, 19871991), se vale dos ensinamentos de seus antecessores militares: envia o exército a Volta Redonda, reprime as manifestações pró-greve e mata três trabalhadores que ocupavam a planta da CSN. William Fernandes Leite, Valmir Freitas Monteiro e Carlos Augusto Barroso foram assassinados no dia 9 de novembro de 1988. Junho de 2007. Os trabalhadores da CSN deflagraram uma nova paralisação no dia 6, a primeira greve desde a privatização da companhia, em 1993. O fantasma de 1988 novamente assombrou os trabalhadores da fábrica, que paralisaram parcialmente as atividades até o dia 8, quando a greve foi encerrada. Em seu ápice, o movimento paralisou 80% da produção. A greve foi feita de forma externa, segundo o presidente do

Reprodução

Empresa tentou sabotar a greve e pediu a presença da polícia; após 10 anos, trabalhadores conseguem aumento acima da inflação

balham nos hospitais universitários e acredita que nesse cenário não há como oferecer uma saúde de qualidade. “O salário inicial de um médico é, em média, de R$ 1.400 e ele se aposenta com, no máximo, R$ 2.600”.

Resgate

Sobre a ocupação da reitoria da USP e os ataques à autonomia universitária em São Paulo, o dirigente sindical afirma que as universidades federais já sofrem com a falta de autonomia e que o movimento dos estudantes resgatou esse debate. “O artigo 207 da Constituição até hoje não foi aplicado em âmbito nacional. Em São Paulo, ele foi regulamentado em 1989 (após uma greve das universidades paulistas). Além disso, nós servidores públicos, não temos o direito à negociação coletiva. Portanto, não temos nem data base”, revela. O direito à negociação coletiva, aliás, tem sido um dos prin-

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Palavra presidencial Em entrevista para o jornal O Tempo, o bispo de Barra (BA), dom Luis Cappio, criticou o início das obras de transposição do rio São Francisco. “O presidente assinou um documento afirmando que abriria um diálogo sobre alternativas à transposição e não cumpriu sua palavra. Ele mentiu para o Brasil e demonstrou a falta de seriedade desse governo com o povo, nos empurrando um projeto goela abaixo, numa total falta de respeito”, afirmou. Entrada proibida

Na semana passada circulou na internet e no interior da Universidade de São Paulo o seguinte convite: “Convidamos todos os professores, toda a comunidade universitária e, enfim, toda a sociedade (exceto a grande mídia) para participar do Grupo de Discussão sobre Estatuinte, que ocorrerá amanhã, sábado, às 17 horas, na reitoria ocupada”. Aqui no Brasil, assim como na Venezuela, já se percebe a imprensa empresarial como inimiga do povo.

Natureza capitalista Ação militar em 1988 resultou na morte de três trabalhadores

Na década de 1980, exército reprimiu manifestação pró-greve e matou três trabalhadores Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, Renato Soares. Piquetes foram realizados, mas a empresa providenciou buracos nos muros e criou cerca de 20 entradas alternativas nos arredores da CSN. Segundo o presidente, a Companhia tentou de todas as formas sabotar a greve, inclusive, providenciando colchonetes para os trabalhadores dormirem dentro da fábrica. “Teve gente que ficou cerca de 30 horas dentro da fábrica, para não ter que enfrentar o piquete no dia seguinte. Com o problema do desemprego e com a pressão da CSN, alguns ficaram com medo de fazer greve. Mas, o sindicato fez a sua parte”, garante Renato. O clima foi de tensão. A mando da diretoria da CSN, o Batalhão de Operações Policiais Es-

peciais (Bope), famoso por sua atuação violenta nos morros cariocas, foi acionado para deter os grevistas. “Eles agrediram um dirigente do sindicato”, diz Renato. “Nós decidimos não ocupar a fábrica pois sabíamos que a repressão seria forte, não queríamos que acontecesse o mesmo que em 1988”, relata.

Conquista

Depois de 10 anos de arrocho, os trabalhadores da CSN conseguiram um aumento real de 1,5%. Além disso, foram conquistados o horário de almoço de uma hora para os trabalhadores com jornada de oito horas, café-da-manhã gratuito e R$ 2 mil de abono. Segundo Renato Soares, o horário de almoço conquistado pelos trabalhadores deve gerar cerca de 400 novos empregos. (RGT)

cipais debates entre os sindicalistas em greve. Desde a Constituição de 1988, os servidores públicos lutam pela conquista desse direito. Segundo os sindicatos de trabalhadores da esfera pública, a negociação seria fundamental para amenizar o conflito, já que muitas vezes os governos nem sequer abrem canal de diálogo com os funcionários, deixando a greve como único instrumento de reivindicação. O governo recentemente afirmou que pretende ratificar a Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a negociação coletiva no setor público, porém esse projeto pode tramitar no Congresso simultaneamente à restrição ao direito de greve, como já sinalizou o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo.

O caso da Cipla, de Joinville (SC), revela a essência do capitalismo. A fábrica estava sendo má administrada, não pagava os impostos, devia para os trabalhadores e estava falida. Os trabalhadores assumiram o controle da indústria em 2002, colocaram a produção em dia, recuperaram a credibilidade da empresa, mas a Justiça determinou agora, cinco anos depois, a intervenção e afastou os trabalhadores da direção. O capitalismo não aceita autogestão.

Repressão generalizada

Qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que no cipoal das emissoras de rádio não legalizadas existem excelentes rádios comunitárias, constituídas por entidades e associações sérias da comunidade, e emissoras montadas por pastores eletrônicos e picaretas em geral, que utilizam essas emissoras em benefício pessoal. O que não dá é o ministro das Comunicações, Hélio Costa, determinar a repressão e o fechamento de todas elas, indiscriminadamente. Isso é pura sacanagem!

Bandeira democrática

Os setores conservadores da sociedade brasileira atacaram o fechamento da RCTV, da Venezuela, como sendo uma ameaça à democracia. Vários veículos

abusaram do discurso da liberdade de imprensa e da defesa da democracia para fustigar o governo Hugo Chávez. Para ter alguma coerência e sinceridade, a mesma posição deveria valer para assegurar a liberdade de expressão e o acesso democrático dos movimentos sociais aos meios de comunicação no Brasil – o que não acontece.

Desfalque financeiro

De acordo com o vice-presidente da República, José Alencar, o Brasil gastou R$ 600 bilhões com o pagamento de juros nos primeiros quatro anos do governo Lula. Se a taxa nominal tivesse sido reduzida pela metade da que foi praticada no período, o Brasil teria economizado R$ 300 bilhões para investir nas prioridades sociais. Afinal, quem entrega o dinheiro público para os grandes credores privados deve ser chamado como?

Negócios tucanos

O ex-governador de São Paulo, Mário Covas, privatizou o Banespa e acabou com o Badesp, que eram os bancos de fomento econômico do Estado. Agora, sem qualquer referência a essa liquidação polêmica de seus antecessores, o atual governador, José Serra, promete criar um novo banco de desenvolvimento com recursos públicos de São Paulo. Provavelmente só para competir com o BNDES na próxima disputa presidencial.

Plano furado

Pressionado por alguns grupos industriais estrangeiros, o governo federal atropelou o desenvolvimento da tecnologia nacional para impor, ao toque de caixa, o novo padrão de TV digital, que deve entrar em funcionamento no dia 2 de dezembro. Só que o aparelho conversor da nova tecnologia custa perto de R$ 800,00, o que limita a TV digital a uma minoria da população. Mais um bem de consumo para as elites.


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brasil

Com avanços, ocupação da reitoria da USP chega a 40 dias EDUCAÇÃO Apesar do recuo do governo Serra frente aos decretos, estudantes continuam na luta por outras reivindicações Dafne Melo da Redação NASCE UM novo movimento estudantil? Essa é uma das perguntas que paira no ar desde que estudantes decidiram ocupar a reitoria da maior universidade do país, a USP. Embora não haja consenso em torno da questão, o certo é que a mobilização criada a partir da “Reitoria Ocupada”, como os estudantes costumam se referir ao espaço, gerou avanços indiscutíveis. O maior deles foi a derrota imposta ao governo de José Serra (PSDB), que no fim de maio assinou um decreto declaratório que modifica trechos dos decretos anteriores que atacam a autonomia universitária. A avaliação sobre a nova medida também não é unânime. Estudantes das estaduais paulistas – USP, Unesp e Unicamp e Fatecs (faculdades técnicas) – em documento elaborado conjuntamente, reconhecem o recuo do governo estadual, mas avaliam que “ainda são mantidos ataques fundamentais”. Tais ataques, continua a nota, “se materializam na manutenção da Secretaria de Ensino Superior, com (José Aristodemo) Pinotti como representante dos empresários da educação à frente para implementar um projeto educacional que fragmenta ensino, pesquisa e extensão para colocar a produção de conhecimento ainda mais a serviço do capital privado”. Em assembléia estudantil realizada na noite do dia 12, decidiu-se por um indicativo de desocupação da reitoria condicionada à efetivação de algumas reivindicações: não punição de participantes da ocupação, manutenção de todas as contrapropostas oferecidas pela direção da universidade em negociações anteriores e uma audiência pública sobre o Inclusp (Programa de Inclusão da USP), órgão que decide as políticas de acesso e permanência dos estudantes das escolas públicas. Já os docentes decidiram,um dia antes, suspender a greve, iniciada dia 23, por terem tido avanços nas negociações sala-

Latuff

Fernando Henrique/CC

Cartaz ironiza o governador José Serra

“Antes você tinha sempre as mesmas pessoas nas assembléias e discussões, agora está mais difuso, há mais pessoas, de partidos ou não, lutando”, diz estudante de Física riais e entenderem como significativo, embora não inteiramente satisfatório, o recuo do governo. No mesmo dia, professores da Unicamp optaram por dar continuidade ao movimento grevista.

Outras conquistas

Outra vitória, avaliam as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato, foi mostrar para a sociedade que o movimento estudantil (ME) está vivo. Ocorreram também ocupações nas diretorias da Unesp em Marília e Rio Claro. Sem citar as conquistas de março, obtidas pelos estudantes da Unicamp, que, após 4 dias de ocupação, tiveram seus pontos de pautas atendidos pela reitoria. Dentre as reivindicações, mais moradias estudantis. “A ocupação da USP representa uma espécie de reemergência do ME depois de um período de um certo marasmo. É também a reocupação de um papel histórico dos estudantes de serem agentes políticos críticos não só em relação às questões acadêmicas, mas também aos problemas nacionais, já que não só questionaram especificamen-

te os decretos, mas toda uma política educacional”, observa Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da USP. Ao seu ver, as mobilizações também devem ser vistas inseridas em uma conjuntura de intensificação das lutas. “O início do segundo mandato de Lula e o primeiro dos governos estaduais esgotam uma fase anterior de quatro anos em que havia muita expectativa por transformações. Agora os governos já encontram um ceticismo e ou uma desconfiança aberta de diversos setores da população. Isso talvez explique porque esteja havendo uma recuperação dos processos de luta dos movimentos sociais, tanto grevistas, quanto no campo e agora o movimento estudantil”, complementa.

Ineditismo

Lucas Guerra, estudante de Física, conta que o número de estudantes nas assembléias de seu curso cresceu muito. “Assembléia com 400 pessoas num curso como Física foi algo inédito. Um dia de paralisação na Escola Politécnica (que

abarca os cursos de Engenharia) ou assembléia com 500 estudantes na Faculdade de Direito, que tem pouco mais de 2 mil alunos, também foi algo que não se via antes”, aponta. Como conseqüência, analisa o estudante, diversificou-se o perfil dos militantes. “Antes você tinha sempre as mesmas pessoas nas assembléias e discussões, agora está mais difuso, há mais pessoas, de partidos ou não, lutando”, opina. Para Marcelo Freso, estudante de História, a ocupação alavancou a formação de um novo ME na universidade. “Acho que é novo, sim. Politicamente é até cedo para falar, mas deu força para muita gente, inclusive para mim, que era desiludida com o ME”, defende. Henrique Costa, estudante de Ciências Sociais, vê a situação com mais cautela. “Acho precipitado dizer que é um novo ME” e cita a greve de 2002 da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) como um momento similar ao que se vê hoje na USP. Apesar de diferenças e desentendimentos, estudantes filiados a partidos, apartidários e

até antipartidários mantendo, como em 2002, coesão na luta pela conquista de melhorias para a Educação.

Difamações

A presença na “Reitoria Ocupada” de estudantes e funcionários que também militam em partidos políticos foi o gancho para uma matéria publicada, dia 10, n’O Estado de S. Paulo. “Partidos de ultra-esquerda controlam invasão na USP”, estampava a capa. Entre as inverdades, a de que partidos como PSTU, Psol e PCO estariam manipulando o movimento. Havia também informações incorretas como a afirmação de que a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) é hegemonizada pelo PCO (quando esse ainda integra a CUT) e a de que Sindicato dos Trabalhadores da USP é ligado ao PSTU, quando, afirma Henrique Carneiro, “não há um militante sequer do partido no sindicato”. A matéria, vista pelo conjunto do movimento como mais uma tentativa de difamar a mobilização, causou revoltas. “É uma matéria de muita má-fé, o que está descrito lá nunca houve, não existe. Por mais que tenham tido tentativas de manobras políticas, elas não aconteceram”, desmente Henrique Costa. Freso acredita que também

há a tentativa de dividir o movimento, acirrando os desentendimentos entre estudantes filiados a partidos e os independentes e antipartidários, ao mostrar os partidos de esquerda como aparelhistas. “As pessoas sempre me perguntam: que grupo lidera a ocupação? Eu fico feliz de dizer que nenhum. Enquanto militantes e indivíduos, as pessoas têm direito de entrar em partidos. O espaço que criamos e queremos criar é democrático, sem sectarismos”, afirma. Lucas Guerra avalia que o espaço criado pela ocupação quebrou parte das barreiras e preconceitos existentes entre os estudantes “independentes” e os que também militam em partido. “Acho que uns saem com uma visão menos ‘antipartido’ e os que estão em grupos políticos saem com uma visão mais madura de como compor com partidos e pessoas diferentes”. Guerra também desmente a verdade criada pela imprensa comercial de que os estudantes estão torcendo para a chegada da Tropa de Choque, numa tentativa de criar um fato midiático que atinja a imagem de José Serra. “O que nós queremos é que o movimento cresça, queremos discutir projeto de Educação. Não vejo como apanhar da polícia contribua para isso.”

POLÍTICA

Psol, um partido em busca da transição socialista No 1º Congresso Nacional, partido decide combinar bandeiras socialistas com as nacionais e democráticas Luís Brasilino da Redação Um partido de massas organizado em núcleos que identifica uma unidade indissociável entre a luta pelo socialismo e as bandeiras democráticas, nacionais e antiimperialistas. Esses serão os principais elementos do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que realizou seu 1º Congresso Nacional entre os dias 7 e 10, “concluindo o período constituinte de sua vida partidária”, segundo as palavras de Martiniano Cavalcante, da executiva nacional do Psol e coordenador do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL). A discussão em torno do programa, contudo, foi a grande polêmica política do encontro. Plinio Arruda Sampaio, ao lado dos militantes do Coletivo Socialismo e Liberdade (Csol) e da Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), defendia que, “como o capitalismo já não tem mais nada a oferecer, não tem nenhuma missão civilizatória a cumprir”, é preciso conquistar o poder para fazer transformações socialistas. Nesse programa, as elei-

ções seriam mais um momento de agitação e propaganda do que de disputa de poder. Mas essa tese foi derrotada pelas tendências que abrigam os parlamentares do partido, o Movimento Esquerda Socialista (MES), da deputada federal Luciana Genro (RS); a Ação Popular Socialista (APS), do senador José Nery (PA) e do deputado federal Ivan Valente (SP); e o grupo ligado ao deputado federal Chico Alencar (RJ), que conta com os intelectuais cariocas Milton Temer, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Segundo Martiniano, que apoiou a mesma tese do MES, dada a proximidade deste com o MTL, a resolução aprovada entende que o movimento social em luta contra os “grandes monopólios, a oligarquia política, o capital financeiro e o imperialismo” pode constituir um governo que seja efetivamente de transição. Ivan Valente acredita que essa posição mostra que o partido amadureceu. “Além do Norte socialista, ele contempla tarefas nacionais e democráticas, como a reforma agrária, o enfrentamento da dependência externa, a defesa da soberania e a democratização radical da sociedade. Isso e mais as tarefas táticas do momento: mudança da política econômica, defesa dos serviços públicos e resistência à retirada de direitos dos trabalhadores”, afirma. O deputado explica que a resolução está lastreada nas experiências venezuelana e boliviana, nas quais

a pressão popular levou à formação de governos nacionalistas e progressistas.

Estrutura e alianças

A formação de um partido de massas também não era a melhor opção para todas as tendências. Algumas delas defendiam uma organização de quadros, mais vanguardista. De seu lado, Martiniano conta que a escolha foi feita com base na conjuntura nacional. “O Brasil não vive, como foi no período de construção do PT, um ascenso generalizado da luta de massas, de caráter de esquerda e com orientação socialista, com todo aquele acúmulo da luta contra a ditadura”, recorda. Dessa forma, ele aponta para uma estrutura ágil – “capaz de atrair setores de massa com organizadores coletivos, como a internet, a mídia eletrônica e os clássicos, jornais e panfletos” – e que tenha pólos onde os militantes possam se politizar e desenvolver sua ação coletiva. Por fim, o outro grande foco de disputas no Congresso se deu em torno da política de alianças. Só que a definição ficou para mais tarde. “O arcabouço geral é que ela gire em torno da frente de esquerda [com PSTU e PCB] formada para as eleições de 2006. A polêmica é se esse é o nosso objetivo final ou se trabalhamos com algumas exceções, como conquistar setores de esquerda que estão no PT, no PDT, no PSB e no PCdoB. Como estamos muito longe do processo eleitoral, marcamos uma conferência para 2008”, revela Martiniano.

Celebração da unidade Para lideranças,“vitória” do 1º Congresso foi baseada no respeito à democracia interna da Redação Ainda que derrotado na discussão sobre o programa do partido, o balanço de Plinio Arruda Sampaio sobre o 1º Congresso Nacional do Psol é de que o encontro foi positivo “porque deu debate”. “Houve espaço para a minoria colocar seu ponto de vista e há espaço para que ela continue colocando”, analisa. A pluralidade e a democracia interna são, de fato, os dois principais elementos celebrados pelos participantes do Congresso. Ao encontro, compareceram 745 delegados, eleitos pelos cerca de 500 núcleos espalhados pelo país, e cerca de mil observadores. A direção, por sua vez, não teve direito a voto, só voz. Martiniano Cavalcante, do MTL, também destaca a inexistentência de alinhamentos totais entre as 13 diferentes teses globais participantes. “Ocorreram alterações de composição em variados temas”, destaca. Em comunicado na página da internet do partido, a ex-senadora Heloísa Helena, reeleita para a presidência do Psol, qualificou o Congresso como um “exercício do que sempre se sonhou em termos de democracia interna, com divergências muito respeitosas e muita disciplina”. Nesse sentido, Martiniano destaca duas resoluções “inéditas” aprovadas no Congresso.

A primeira garante às minorias o direito de se pronunciar publicamente quando ocorrerem “diferenças conceituais” em relação à direção, sem que isso acarrete em sanções. A outra é a exigência de dois terços da direção nacional para que se tome uma decisão acerca de questões políticas não definidas no Congresso, ou seja, “uma legitimidade muito alta”, completa Martiniano.

Oposição

Tal sintonia convergiu para tirar as duas principais resoluções conjunturais do Congresso, uma nacional e a outra internacional. A primeira é a manutenção da oposição ao governo Lula, a partir da compreensão de que seu mandato não altera o curso da vida econômica e política do país e, pior, aprofunda o modelo neoliberal. “Ao mesmo tempo, a ampliação do leque de alianças, com a incorporação do PMDB, aproxima o governo dos velhos métodos da oligarquia política. Sendo assim, o Psol reafirma sua oposição intransigente, programática e ideológica”, completa Martiano. No plano internacional, a resolução foi no sentido de dar apoio ao presidente Hugo Chávez (Venezuela) na não renovação da concessão da RCTV. Também foram apoiadas as conquistas dos povos e as medidas progressistas e antiimperialistas implementadas pelos governos Chávez, Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). (LB)


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brasil Douglas Mansur

Além da terra, conquistar a justiça social Jorge Pereira Filho de Brasília (DF) “O QUE eu sabia plantar? Só cana. Tudo na minha vida era a cana, só sabia plantar cana, comer cana, cortar cana”. Paulo Venâncio, pernambucano de fala curta, olhos claros, gestos bruscos, negou o caminho de seu pai e de sua mãe. Como ditava o destino na Zona da Mata, esse trabalhador rural foi cortador de cana e empregado de usinas. Como todos em sua família, logo cedo estava de pé no canavial. E o Sol a pino lhe envelhecia a pele durante sua jornada, às vezes de até 12 horas de trabalho. “Sentia muita fraqueza, as pernas doíam, o dinheiro que eu ganhava mal dava para pagar a comida. Trabalhava feito burro.” Alguns não agüentavam a tarefa diária de cortar 12 toneladas por dia e desmaiavam. Venâncio decidiu que não iria tombar naquela monocultura. Participou de uma ocupação, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Há 8 anos, depois de uma longa luta, vive em sua casa no assentamento Joaquim Nabuco, com sua mulher e suas duas meninas. Em seu lote, semeia mandioca, milho, feijão, inhame, frutas. Mas não foi apenas a cultura agrícola desse sem-terra que ficou mais rica e diversificada. “Eu trabalho bastante, mas hoje eu sou livre. Não sou explorado, tenho meu pedaço de terra. Com o que planto, garanto minha alimentação e vendo o restante.”

Agronegócio

A vida de Venâncio mudou, mas o canavial não saiu do seu destino. Segue presente e avança na Zona da Mata. Ve-

Quanto

18 mil

sem-terra. Esse é o número de delegados no maior encontro de camponeses da América Latina nâncio tem amigos que ainda cortam cana. O sem-terra, agora, faz trabalho de base com esses cortadores para que passem a lutar por um pedaço de terra. O problema é que uma nova realidade agrária, impulsionada pelo apoio de políticas do Estado, estão estimulando a plantação de cana novamente na região. “Em 2000, de 40 usinas de Pernambucano, apenas 11 faziam a moagem. Estavam falidas, mas agora foram reativadas”, relata. O ressurgimento da monocultura da cana na região ilustra esse novo contexto do campo. Os latifundiários seguem controlando os territórios e subjugando os trabalhadores rurais. Mas, agora, ganharam dois companheiros: o agronegócio e as transnacionais. Essa nova realidade, que se choca com o avanço da reforma agrária e impede a melhoria das condições de vida dos trabalhadores, é o pano de fundo do maior encontro de camponeses já realizado na América Latina: o 5º Congresso Nacional do MST, que ocorre entre 11 e 15 de junho em Brasília. Paulo Venâncio é um dos 18 mil delegados que deixaram seus assentamentos e acampamentos em 24 Estados. Viajaram para a capital federal, construíram a Cidade de Lona (veja quadro) para, nesses cinco dias, debater os desafios da realização da reforma agrária e do MST.

“O canavial é a boca com que primeiro vão devorando matas e capoeiras, pastos e cercados; com que devoram a terra onde um homem plantou seu roçado; depois os poucos metros onde ele plantou sua casa; depois o pouco espaço de que precisa um homem sentado; depois os sete palmos onde ele vai ser enterrado”

Carlos Ruggi

QUESTÃO AGRÁRIA Em seu 5º Congresso, MST denuncia a aliança do agronegócio e das transnacionais no campo e enfatiza a necessidade da luta popular para se avançar na reforma agrária e nas transformações da sociedade

João Cabral de Mello Neto

O lema deste 5º Congresso, “Reforma Agrária, por Justiça Social e Soberania Popular”, resume a idéia de que a luta do movimento hoje não se resume à conquista da terra, imprescindível. “O debate nas bases aponta para a existência de dois projetos que estão em disputa no campo: o projeto do agronegócio, com a interferência das transnacionais, que traz uma perda de soberania enquanto nação e, por outro lado, da necessidade da realização da reforma agrária como forma de se fazer justiça social neste país; como forma de distribuição de terra, gerar empregos saudáveis e garantir a soberania alimentar dos brasileiros”, resume Marina dos Santos, integrante da coordenação nacional do MST.

Proposta

Não se trata de um discurso distante da realidade. A construção do 5º Congresso do MST nasceu de um processo de discussão feito em assentamentos e acampamentos iniciado há dois

Integrantes do Movimento realizam mística de abertura do congresso; acima, painel oficial do encontro

“É preciso fazer luta política com outros setores. Estudantes, professores, operários para derrotarmos o Estado burguês, o capitalismo e fazer uma reforma agrária decente”, diz Gilmar Mauro, da direção nacional anos. Do acúmulo desse debate nascem as principais resoluções levadas ao encontro em Brasília. “Nossas teses de construção do projeto de reforma agrária, que vai ser debatido e refletido aqui, é um processo de construção nas bases. É um encontro com os representantes da nossa base que já fizeram todo o processo de avaliação a partir de sua realidade. É a maior instância de decisão do movimento para os próximos cinco anos”, explica Marina.

Com relação à proposta da organização para a reforma agrária, há quatro aspectos centrais. Acesso à terra fértil, crédito sem burocracia para produção, desenvolvimento de tecnologias agrícolas que respondam às necessidades do pequeno agricultor e apoio para o comércio da produção agrícola. “A reforma agrária não pode ser vista de forma paliativa. Os próprios assentados colocam essa necessidade de se pensar políticas não só para distribuir a terra, a ri-

queza, mas também garantir programas que resolvam as questões sociais do povo do campo”, relata Marina. Outro desafio colocado para o MST é o estímulo às lutas populares como via para se conseguir, de fato, a justiça social. “É preciso fazer luta política com outros setores. Estudantes, professores, operários para derrotarmos o Estado burguês, o capitalismo e fazer uma reforma agrária decente. É por isso que nós priorizamos a educação, a formação, queremos estimular as lutas na classe operária, na periferia e transformar nosso país”, comenta Gilmar Mauro, da direção nacional, em um dos debates do Congresso. (Leia a cobertura completa do 5º Congresso na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br) (Colaborou Mayrá Lima, de Brasília-DF) Douglas Mansur

Congresso confirma salto organizativo do MST Carlos Ruggi

De mil delegados em 1985, para 18 mil em 2007

Cidade de Lona, a capital dos sem-terra

de Brasília Em 1985, eram pouco mais de mil militantes. Reunidos em Curitiba, no Paraná, aqueles sem-terra se colocaram o desafio de construir um movimento social pela reforma agrária, no final do 1º Congresso Nacional do MST. Vinte e dois anos se passaram, a realidade agrária permanece reproduzindo a desigualdade. O Brasil é o segundo país do planeta com maior concentração fundiária. Cerca de 1,6% dos imóveis responde por 43,7% do território de todas as propriedades rurais do Brasil. Mas se os trabalhadores seguem sem o direito de ter acesso à terra, a organização para reverter esse quadro avançou. Nesse 5º Congresso, são 18 mil sem-terra reunidos para discutir os novos desafios do movimento. “Sem um salto organizativo, não teríamos como reunir tantas pessoas. Nos três primeiros congressos, nossa estrutura era toda centralizada com relação ao transporte e à alimentação. Hoje, cada regional viabiliza sua vinda, traz os alimentos”, afirma Neuri Rosseto, da coordenação nacional. Outro exemplo desse avanço é a capacidade de o movi-

Eduardo Sales de Lima e Jorge Pereira Filho de Brasília (DF)

Número de participantes demonstra ampliação de base social

mento realizar as mais diversas tarefas do Congresso de forma autônoma. “Antes, pagávamos gente de fora até para escrever o nome MST nas faixas. Agora, com o acúmulo, aumentando nossas habilidades, o nosso pessoal é que está pintando o painel do Congresso. Um gigantesco painel com todos os elementos do momento”, exemplifica Marina dos Santos, também da coordenação.

Para ela, outros motivos que permitiram a participação de um maior número de sem-terra foi a ampliação da base social do movimento, com a esperança de que o presidente Lula realizasse a reforma agrária, e o investimento da organização em educação e formação. O 5º Congresso será o com maior número de sem-terra formados em cursos universitários, como Engenharia Agrôno-

ma, Medicina, Direito. “Um exemplo disso é a campanha ‘todos e todas sem-terra estudando’, pela qual todos, a coordenação, os dirigentes, a base, cada assentado e assentada têm que estudar. O resultado é a elevação do nível de consciência do nosso povo e uma capacidade maior de articulação, organização e intervenção na sociedade”, avalia. (JPF, colaborou Mayrá Lima)

Brasília ganhou um município temporário: a Cidade de Lona. Durante cinco dias, nele viverão 18 mil sem-terra vindos de 24 Estados, e outros 200 delegados de 28 países. E não será um pequeno município. A população que irá usufruir dessa infra-estrutura montada para abrigar os participantes do 5º Congresso do MST será maior do que a de 2.686 cidades brasileiras, segundo o IBGE. Na montagem dessa cidade de lona, o movimento contou com a experiência dos seus 23 anos de história, organizando acampamentos na luta pela terra no Brasil. O desafio, desta vez, é promover um cotidiano seguro aos 18 mil participantes do Congresso, entre eles 1.500 crianças. “O MST está maduro o suficiente para ter essa organicidade”, explica Henrique Marinho, da coordenação de Infra-Estrutura do Congresso. Os bairros desse município serão as próprias localizações de origem das delegações “Trata-se da lógica distributiva. Classificamos a grande região, o Estado e a delegação”, explica Henrique. Serão utilizados 14,9 mil metros de lona preta. Cerca de 50 caminhões-pipa e 18 caixas d’água de mil litros abastecerão as 140 cozinhas desta cidade. O sistema de esgoto próprio já está integrado ao da cidade de Brasília. As cozinhas foram conectadas à uma caixa de gordura provisória que, por sua vez, está ligada à rede de esgoto. Como todo município que se preze, a Cidade de Lona terá corredores de acesso aos prestadores de serviços, corpo de bombeiros, ambulância, e amplo sistema de energia elétrica. Os acampamentos foram montados de modo a privilegiar a ventilação, com amplo espaço entre as famílias.


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internacional

G-8: promessas vazias e retórica Dafne Melo da Redação O DESLOCAMENTO de quase 18 mil policiais para as proximidades de Heiligendamm (Alemanha) não foi suficiente para calar as milhares de pessoas que protestaram durante a Cúpula do G-8, grupo dos líderes dos sete países mais ricos do mundo, mais a Rússia. Não só nos dias da reunião, entre os dias 6 e 8, mas também nas datas que a antecederam, várias gerações da esquerda, organizados e não-organizados, radicais e moderados, se uniram para deixar claro sua insatisfação com as políticas impostas pelo grupo. “Nos acampamentos se podiam achar organizações como Attac e Greenpeace ao lado de ativistas da esquerda radical e anarquistas”, conta Till Baumann, um dos organizadores das manifestações. “Trabalhar juntos em alianças inéditas, integrando culturas de protesto muito diferentes, não foi fácil, mas foi muito importante para conseguir realizar o que aconteceu no início do mês. Acho que poucas pessoas tinham pensado que os bloqueios iam ser tão fortes, mesmo para 17.800 policiais representando os ‘mais poderosos do mundo’. Isso dá esperança”, avalia.

Fotos: Till Baumann

LUTA ANTIGLOBALIZAÇÃO Apesar da forte repressão, ativistas fazem balanço positivo das manifestações durante Cúpula

As decisões

Embora não pudessem chegar a menos de 13 quilômetros dos governantes presentes na Cúpula, organizações e ativistas acreditam que o resultado da reunião também mostra algumas vitórias. Primeiro, ficou clara a incapacidade das nações mais fortes do mundo entrarem em um acordo sobre o problema das mudanças climáticas, um dos principais pontos da pauta oficial do encontro. Os desentendimentos foram expostos inclusive pela imprensa comercial européia. “Não haverá acordo com metas concretas para reduzir as emissões de gases que causam efeito estufa na Cúpula de Heiligendamm. Se muito, haverá acordo sobre um texto carregado de boas intenções e poucos compromissos”, escreveu o diário espanhol El País. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, rejeitou o estabelecimento de limites para a emissão de gases em seu país. Em relação às ajudas à África (leia matéria na página 10), a reação não foi diferente. Embora tenham prometido doar 60 bilhões de dólares para o combate a Aids, tuberculose e malária, poucos acreditam que a intenção se concretize. No encontro de 2005, na Escócia, os mesmos líderes se comprometeram a doar 50 bilhões até 2010, para que todos os africanos contaminados pudessem ter acesso a tratamento. Boa parte desses países, entretanto, ainda não viu a cor do dinheiro. Hoje em dia, dois terços das 40 milhões de pessoas portadoras do vírus da Aids no mundo vivem na África subsaariana e a imensa maioria não tem acesso a tratamento. Além disso, a Stop Aids Campaign, organização que aglutina 80 organizações não governamentais (ONGs) britânicas de luta contra a Aids informou que a quantia não é suficiente para atender as demandas do continente. Em nota oficial, a Via Campesina afirmou que o resultado da Cúpula evidencia “a farsa do G-8”. “Vê-se claramente que o G-8 tem perdido legitimidade e credibilidade. Como acontece na maior parte desses encontros entre líderes, a Cúpula de Heiligendamm teve que se esconder por detrás de cercas com arame farpado e criar uma atmosfera de guerra civil”, diz a nota. Na avaliação da organização, “o que será lembrado dessa reunião serão promessas vazias e retórica”.

Repressão

O clima de guerra civil a que se refere a Via Campesina foi sentido literalmente na pele

Cerca de 12 mil manifestantes foram às ruas, bloqueando as vias de acesso a Heiligendamm e apresentando uma série de “coreografias” ao redor da cerca de 13 km que demarca a aldeia

No encontro de 2005, na Escócia, os mesmos líderes se comprometeram a doar 50 bilhões até 2010, para que todos africanos contaminados pudessem ter acesso a tratamento. Boa parte desses países, entretanto, ainda não viu a cor do dinheiro Quanto

1.000 manifestantes foram detidos pela polícia alemã

pelos manifestantes. Till Baumann conta que, no segundo dia de bloqueios, um ativista perdeu um olho após ser atingido por um jato d’água. Mais de mil pessoas ficaram feridas, inclusive policiais. Outros mil manifestantes foram detidos, sendo que alguns ficaram presos durante vários dias. “Três semanas antes já havia começado uma repressão forte com revistas policiais em várias cidades. Em alguns bloqueios, a polícia foi mais reservada,

em outros removeu as pessoas brutalmente, com uso de cacetetes, canhões de água e gás lacrimogênio”, relata. Outra tática usada pela polícia alemã foi infiltrar policiais no meio dos protestos para gerarem conflitos e justificarem o uso da violência por parte das forças de segurança. “Num dos bloqueios foi desmascarado publicamente um policial disfarçado tentando estimular ativistas a jogar pedras na polícia. Isso pode não explicar toda a violência que aconteceu durante os protestos, mas lembra Gênova: a polícia disfarçada dentro do Black Block, criando confusão para justificar a repressão”, finaliza Baumann.

Em SP, polícia também reprime manifestação Rafael Gatuzzo Barbieri, de São Paulo (SP) No dia 7, cerca de 80 manifestantes ocuparam a avenida Paulista em protesto contra as decisões do G-8. A marcha acontecia pacificamente. À medida que a manifestação avançava, cresceu a tensão entre ativistas e a polícia, que prontamente formou um cerco em frente a uma agência do banco Santander, próxima ao local da cadeia de lanches McDonald’s. Os manifestantes, após o conflito, fugiram pelas travessas da avenida. Em menos de uma hora tudo já havia se dissipado e a polícia, em busca dos participantes, vasculhou toda a área e redondezas. Quinze pessoas foram oficialmente abordadas e levadas pela polícia, apenas um ficou ferido no confronto com os policiais. Segundo testemunhas, as primeiras ameaças partiram dos policiais que aproveitaram a brecha da manifestação no meio da via para abordarem os participantes, que reagiram com pedras e materiais que encontravam pelo chão. Já a polícia revidou com tiros de borracha, bombas lacrimogêneas e de efeito moral.

ANÁLISE

Bloqueando o egoísmo Till Baumann de Rostock (Alemanha) Heiligendamm é uma aldeia de 300 habitantes no Norte da Alemanha. Uma praia, algumas casas e um hotel luxuoso. Nesse hotel, encontraram-se, entre os dias 6 e 8, os chefes de Estado dos países que compõe o G-8. As medidas de segurança foram inéditas: a polícia construiu uma grade de 13 quilômetros, cercando Heiligendamm de uma praia a outra. Na construção, foram gastos 12,5 milhões de euros. Ao todo, 17.800 policiais estavam presentes na região, a maior missão na história da Alemanha depois da 2ª Guerra Mundial. Mas também foram dias de um movimento muito grande e colorido. Na tradição da resistência contra os encontros em Seattle, Gênova, Praga e outros lugares, o G-8 de Heiligendamm foi acompanhado por protestos e bloqueios. A “coreografia dos protestos” consistia em várias manifestações, um encontro de cúpula alternativo e muitas ações diretas e bloqueios. Na maior manifestação, realizada, dia 2, em Rostock (20 quilômetros de Heiligendamm), participaram 80 mil pessoas. Foi uma das manifestações mais coloridas das últimas décadas, com muita música, teatro e mais de 60 bonecos gigantescos. A violência na parte final da manifestação foi acompanhada intensamente pela mídia que – junto com a polícia – criou uma imagem muito negativa de um dia que foi de festa do movimento contra o G-8. Os dias que antecederam o encontro foram de ação, enfocando nos três temas: migração, guerra e agricultura (especialmente o tema dos transgênicos). A resistência mais forte e com maior impacto aconteceu nos bloqueios das ruas e

Quanto

17.800 policiais participaram

daquela que foi a maior missão na Alemanha desde a 2ª Guerra Mundial

trilhas de acesso a Heiligendamm a partir do dia 6. Por razões de espaço dentro da aldeia, só podiam ser alojados os chefes de Estado e os delegados de hierarquia mais alta, todos chegando de avião ou helicóptero. Milhares de outras pessoas necessárias para o funcionamento da Cúpula – integrantes dos delegações, tradutores, jornalistas, seguranças – ficaram de fora. Os bloqueios foram organizados para impedir o acesso dessas pessoas e para perturbar o procedimento do G-8 o máximo possível. Indo contra todas as proibições de protestos perto da cerca, 12 mil pessoas tomaram as ruas no dia 6, o primeiro do G8. Saindo dos acampamentos de Rostock, Reddelich e Wichmannsdorf, atravessando campos e florestas, conseguiram bloquear todas as ruas e trilhas de acesso a Heiligendamm durante o primeiro dia. Existiam dois bloqueios grandes e vários menores, mais descentralizados. Alguns delegados foram transportados via helicóptero ou barco, mas muitos não conseguiram chegar ao local da reunião no primeiro dia. A conferência de imprensa na inauguração do encontro aconteceu com a participação de apenas quatro jornalistas. No segundo dia, os protestos continuaram a dificultar a organização do encontro de maneira surpreendente. Vários dos bloqueios foram mantidas até o terceiro e último dia do G8. Till Baumann mora em Berlim, faz teatro político e participou das atividades contra o G-8


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REGIERUNGonline/Bergmann

áfrica

Na Alemanha, membros do G-8 posam para a imprensa junto de representantes de países africanos

CÚPULA DO G-8 Além de pouco dessa quantia ser verdadeiramente nova, compromisso assumido em cúpula de 2005 não foi cumprido

“Ajuda” de 60 bilhões à África é apenas promessa, e deixa dúvidas Gustavo Barreto do Rio de Janeiro (RJ) OS PAÍSES do G-8 anunciaram na semana passada, na Alemanha, a ajuda de 60 bilhões de dólares para combater a Aids e outras doenças na África – como a malária e a tuberculose – em frase repetida continuamente por toda a mídia brasileira. Em todo o noticiário da grande imprensa, com o tradicional oficialismo governamental predominando, foram notáveis as falhas provocadas pela ausência da crítica ao discurso das potências mundiais. Apesar das promessas, organizações da sociedade civil nos países desenvolvidos fazem notar que o grupo ofereceu poucos fundos verdadeiramente novos para as populações mais pobres, e mesmo os novos ainda são promessas. Para se ter uma idéia, os países ricos descumpriram a promessa de duplicar a ajuda ao desenvolvimento, feita na cú-

pula do G-8 de 2005, em Gleneagles, na Escócia. Além disso, a declaração do G-8 não estipula um cronograma. Apenas afirma que o dinheiro “será enviado ao longo dos próximos anos”. Também não identifica os países individualmente ou quanto dessa quantia já havia sido prometido. “Estou indignado. Acho que essa é uma linguagem deliberada de ofuscamento. Isso é algo feito intencionalmente para nos enganar”, resume o roqueiro Bono Vox, do grupo U2, que acompanha de perto o problema e freqüentemente alerta para a demagogia promovida pelos países do G-8. “Não podemos ficar iludidos com as cifras astronômicas. Os 60 bilhões de dólares significam no máximo um aumento de 3 bilhões de dólares na ajuda prometida até 2010”, alertou um membro da ONG inglesa Oxfam. “Os líderes reunidos na Alemanha não têm credibilidade para fazer tal anúncio, porque falharam nas promessas feitas anteriormente. Em vez de entregar o

que prometeram, tentaram produzir o maior número de manchetes jornalísticas possíveis com o menor aumento possível de ajuda humanitária”, concluiu. No Brasil, conseguiram quase uma unanimidade, difundindo uma informação quase que totalmente equivocada, aceita com enorme passividade pela imprensa de grande circulação.

Não podemos ficar iludidos com as cifras astronômicas. Os 60 bilhões de dólares significam no máximo um aumento de 3 bilhões de dólares na ajuda prometida até 2010 Formato não claro

Outra questão central é que algumas das mais importantes decisões relacionadas ao combate à Aids no mundo são tomadas em eventos como a Assembléia Mundial da Organização Mundial da Saúde (OMS). Por coincidência, a 60ª edição da Assembléia ocorreu de 14 a 23 de maio, em

Em Mali, a “ajuda” que não sai do papel País africano, que faz fronteira com a Argélia, sofre tanto com a pobreza quanto com a ingerência do FMI do Rio de Janeiro (RJ) Outra questão que é pouco comentada na imprensa mundial é a “contribuição” dos países ricos por meio dos organismos financeiros internacionais, em grande parte formados por integrantes dos governos das superpotências ou indicados por estas. Mali é um dos países onde a ajuda prometida (porém não cumprida) dos países ricos é alocada. Procurando fiscalizar a destinação do dinheiro prometido na Escócia, em 2005, membros da Oxfam e jornalistas do The Guardian visitaram a cidade de Intadeyni e conheceram uma das escolas que poderiam ser beneficiadas pela efetivação das promessas.

Os funcionários do FMI em Mali defendem o interesse dos investidores nas jazidas de ouro descobertas no final dos anos 90 Mali, localizado no lado Oeste do continente africano e que faz fronteira com a Argélia, sofre tanto com a pobreza quanto com a ingerência do Fundo Monetário Internacional (FMI). É um dos últimos colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pela ONU. Os funcionários do FMI em Mali defendem o interesse dos investidores nas jazidas de ouro descobertas no final dos anos de 1990, no Sul do país, entre outros recursos, além de promoverem o ajuste fiscal – nada condizente com as imensas necessidades da população. Além disso, o FMI negociou por muitos anos com governos autoritários e genocidas, como ocorreu em 1992, por exemplo. Depois de anos de enfrentamentos armados entre o governo e os rebeldes tuaregues do Norte do país, a organização não

Genebra, e os generosos diplomatas estadunidenses rejeitaram proposta dos países menos desenvolvidos, liderados pelo Brasil, para que a OMS preste assistência técnica e normativa às nações que desejem recorrer a medidas que ampliem o acesso a medicamentos, como o licenciamento compulsório. A resolução, que teve forte rejeição dos paí-

governamental inglesa Anistia Internacional concluiu em relatório que houve prisões arbitrárias de vários representantes da oposição e a decretação de 14 penas de morte, mudadas posteriormente para penas de prisão perpétua. A Anistia também afirmou na época que o Exército do governo teria executado sem julgamento várias dezenas de membros da comunidade tuaregue.

Autoritarismo

O ano de 1993 foi marcado pela ocupação da rádio estatal por estudantes (março) e importantes manifestações contra a política econômica (abril). Com o apoio do FMI e de outros organismos financeiros internacionais, no entanto, o governo consolidou arbitrariamente a liberalização econômica em prol dos interesses estrangeiros. O então presidente Alpha Oumar Konaré promoveu uma reforma fiscal, reduziu os gastos públicos, privatizou empresas estatais e eliminou o controle de preços. Enquanto negociava com rebeldes, o governo continuava a reprimir a população e, por isso, não sofreu nenhuma sanção internacional. Ao contrário: em 1995, o FMI considerou como “positivos” os resultados econômicos de Mali e aprovou o “terceiro plano de ajuste estrutural anual”. Em um dos mais violentos incidentes, nas cidades de Gao e Beher em 1994, a repressão política ocasionou a morte de cerca de 200 pessoas, entre as quais muitas mulheres e crianças. Corrupção e ineficiência administrativa é o resultado de ingerências freqüentes dos organismos financeiros internacionais na economia e na política de Mali. A “ajuda humanitária” dos países ricos, como costuma afirmar o lingüista e analista político Noam Chomsky, poderia começar pela não interferência nos países pobres em questões de soberania nacional e, quem sabe, na efetivação dos recursos em projetos educacionais como os de Intadeyni. (GB)

ses do G-8, também abre espaço para a criação de um sistema de pesquisa e desenvolvimento na saúde que diferencie o preço das invenções, do preço dos produtos. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) alerta que existem disponíveis medicamentos muito mais baratos. Os ativistas da MSF lembram

que em Camarões, por exemplo, onde a terapia com anti-retrovirais é subsidiada pelo governo, o custo mensal do tratamento com Triomune, medicamento genérico do tipo 3 em 1 que reúne num único comprimido três anti-retrovirais (chamadas combinações de doses fixas), é de 20 dólares por paciente – 15 dólares a menos que a mesma terapia tripla com medicamentos de marca, adquiridos separadamente. Ou seja, com o mesmo volume de recursos podese tratar um número até 85% maior de pacientes. Além disso, há uma diferença significativa entre os dois tipos de tratamentos. O tratamento de primeira escolha (ou primeira linha), normalmente empregado de acordo com o tratamento preconizado pelo Ministério da Saúde para cada doença, é muito mais barato. A resistência aos anti-retrovirais de primeira escolha é inevitável tanto em países ricos quanto em países pobres. Quando os medicamentos de primeira escolha não fazem mais efeito,

devido à resistência, ou quando o paciente não pode usá-los devido à gravidez, idade ou intolerância, passa-se ao tratamento de segunda escolha, com medicamentos freqüentemente muito mais caros. Com os tratamentos de segunda escolha custando até cinco mil dólares por paciente/ano nos países em desenvolvimento – 15 vezes mais que o custo dos tratamentos de primeira escolha – eles simplesmente não estarão acessíveis. Caso essa situação não mude, constata a MSF, o custo por paciente vai permanecer alto e as pessoas vão morrer quando não mais responderem ao tratamento oferecido com o Triomune. Esse tipo de briga não é alvo de investigação da imprensa. Muito menos a incoerência dos EUA, que efetivamente defendem abertamente os interesses das indústrias farmacêuticas nos fóruns do setor – um fato público, porém inacessível ao grande público. (Fazendo Media – www.fazendomedia.com)

MEMÓRIA

Morre expoente do cinema e da literatura africana Cineasta e escritor, Ousmane Sembène deixa legado de contestação ao colonialismo e às injustiças no continente Divulgação

da Redação O senegalês Ousmane Sembène, considerado um dos pioneiros do cinema africano, morreu no dia 9, aos 84 anos, após uma prolongada doença. Autor de uma filmografia política e social, Sembène fez 12 filmes, estando entre os mais conhecidos Le Mandat, Xala, Ceddo, Guelwaar e Camp de Thiaroye. Esse último, rodado em 1987, conta o massacre de uma divisão de infantaria senegalesa pelas tropas coloniais francesas em dezembro de 1944. Ele próprio foi mobilizado pelo Exército colonial da França em 1942 e, entre 1946 a 1960, viveu nesse país, onde trabalhou como estivador na cidade de Marselha. Durante sua passagem pela França, entrou para a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e para o Partido Comunista Francês (PCF). Militou contra a guerra colonial francesa na Indochina e em defesa da independência da Argélia.

Sembène é considerado o responsável pelo primeiro longa-metragem de um diretor da África Subsaariana Sembène, cujo primeiro filme, o curtametragem Borom Saret foi lançado em 1963, é considerado o responsável pelo primeiro longa-metragem de um diretor da África Subsaariana: La Noire de..., de 1966. Conhecido como “o decano” por seus compatriotas, ganhou diversos prêmios cinematográficos. Com Mooladé, sua última película (2004), que aborda a mutilação genital feminina, prática ainda comum em alguns países africanos, Sembène foi premiado no Festival de Cannes, na

Ousmane Sembène em set de filmagem

sessão Um Certo Olhar e recebeu o prêmio especial do júri no Festival Internacional de Marrakesh, no Marrocos. O senegalês foi também co-fundador do Festival Bienal Pan-africano de filme e televisão de Ouagadougou (Fespaco), capital de Burkina Faso. Além de cineasta, Sembéne era escritor. Foi autor de nove romances e ensaios. Seu livro mais famoso, Les Bouts de Bois de Dieu, de 1960, trata da longa greve realizada em 1947 pelos trabalhadores da Dacar-Níger, ferrovia que ligava Dacar, no Senegal, a Bamako, no Mali. Tal obra alcançou tamanha repercussão que figura no programa escolar de vários países africanos, incluindo o Senegal. No dia 10, o secretário-geral da Organização Internacional da Francofonia (OIF), o ex-presidente do Senegal Abdou Diouf, afirmou em comunicado que Sembène “soube, com o talento imenso que o caracterizava, descrever um continente orgulhoso de sua cultura ao denunciar as injustiças que perduram”.


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internacional

Palestina, 40 anos de ocupação ORIENTE MÉDIO O ano de 1967 significou novos rumos para a resistência palestina; depois da Guerra dos Seis Dias, com a ocupação dos territórios de Jerusalém, Gaza e Cisjordânia, os palestinos viram seu horizonte de soberania desaparecer

1967

No rol de fatos que contam a história da ocupação, 1967 tem um lugar decisivo. “Aquilo foi uma segunda nakba, um momento que fez os palestinos desistirem da falsa percepção de que um regime árabe poderia libertar a Palestina. A partir de então, deveríamos assumir o controle da luta contra a ocupação”, explica o médico. Desde a invasão das terras onde os palestinos foram en-

650 mil

palestinos foram presos e 12 mil casas foram derrubadas desde a invasão das terras onde os palestinos foram encurralados depois da criação de Israel, em 1948

ticos dos judeus em qualquer outro país’”. A carta é de 1917 e está reproduzida, ao lado de outros documentos que fazem parte da trajetória da criação de Israel e da ocupação da Palestina, no livro “A Guerra da Palestina”, do historiador André Gattaz.

Criação de Israel

A criação de Israel seria concretizada em 15 de maio de 1948. Nesse momento, começa a avalanche de violência por parte das forças sionistas que deslocariam os palestinos para fora de suas terras, a primeira al-Nakba (catástrofe). Naquele momento, 80% de suas casas foram destruídas. Como define Abdel, “a construção de Israel foi baseada em um plano imperialista que usa um mito religioso para criar e sustentar uma entidade política”. Longe da mitologia que foi criada para justificar Israel, os palestinos vivem problemas terrenos que precisam de uma solução urgente. O cerne da questão para os palestinos é que o acesso à terra e à possibilidade de ter uma vida justa são completamente usurpados pelo Estatuto judeu. Para Abdel, é uma aberração que aos palestinos, com famílias que há gerações e gerações habitam aquelas terras, não seja permitido o acesso à cidadania. “Por outro lado, qualquer judeu de qualquer lugar do mundo ganha cidadania israelense no momento em que pisa no aeroporto de Tel Aviv”.

curralados depois da criação de Israel, em 1948, e que são consideradas pela ONU como um Estado soberano, foram presos 650 mil palestinos e 12 mil casas foram derrubadas.

Primeira Guerral

Parte da atividade cultural do dia 9 foi a apresentação do Núcleo Entrelinhas de teatro com dois trechos da peça “Os Meninos e as Pedras” – em cartaz até 2 de julho no Espaço Cênico Viga - Sala Porão. A primeira cena foi o encontro das potências imperialistas em 1922 para definir a divisão do Oriente Médio pós-1ª guerra. A Palestina, com o Iraque, pertenceria ao Mandato Britânico. Um documento importante que definiu a partilha e abriu as portas para a criação de Israel foi a Declaração Balfour, uma carta de Arthur James Balfour, então secretário de exterior britânico, que diz ao banqueiro sionista Lord Rotschild: “Tenho muitas satisfação em comunicarlhe, em nome do Governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia com as aspirações dos judeus sionistas, que foi submetida e aprovada pelo Gabinete: ‘O Governo de Sua Majestade vê com aprovação o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e fará todos os esforços para facilitar a obtenção de tal objetivo, ficando claramente expresso que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos de comunidades não-judaicas na Palestina ou os direitos e status polí-

Muro

Outro capítulo dramático para os palestinos é escrito desde 2002, com o início das obras que levantaram muros cercando cidades palestinas e fragmentando o território da Cisjordânia. “A Palestina sempre teve uma sociedade multicultural, aberta. Sempre houve ali a possibilidade de diferenças viverem juntas. O que o muro representa é o auge da força militar de Israel, mas também a decadência da ideologia sionista. Moshe Nuhaim, um pensador judeu nascido em Haifa, Palestina, conta a história de um dentista palestino que tratava os pobres de graça, entre eles, muitos judeus. A família desse dentista foi uma das primeiras a ser expulsa de Haifa. O sionismo é a antítese da convivência pacífica entre árabes e judeus”.

Cartaz da página da Coalisão Kibush 40, que reúne várias organizações para protestar contra os 40 anos de ocupação

“É uma aberração que aos palestinos, com famílias que há gerações e gerações habitam aquelas terras, não seja permitido o acesso à cidadania. Por outro lado, qualquer judeu de qualquer lugar do mundo ganha cidadania israelense no momento em que pisa no aeroporto de Tel Aviv”, diz palestino

Quadraspazzed

AO FIM da atividade cultural “O Mundo diz Não à Ocupação Israelense”, promovida pelo Instituto da Cultura Árabe, dia 9, para lembrar os 40 anos da ocupação de Jerusalém, Cisjordânia, Gaza e Colinas do Golã (estas, da Síria), o palestino Abder Raouf Ibrahim Yousuf Misleh, nascido em uma aldeia perto de Tulkarem, Palestina, despede-se de mim com um aperto de mão respeitoso. Vai, então, cumprimentar Abdel Latif, conterrâneo seu. O abraço que ambos deram ali foi a forma mais clara de explicar o que os palestinos da diáspora sentem depois de quase 60 anos da al-Nakba (a tragédia de 1948) e de 40 depois da invasão dos territórios que lhes sobraram (em 10 de junho de 1967). O conjunto de gestos mostra a série de sentimentos que dividem. O que têm em comum é uma história coletiva recheada de dor, deslocamento, distância, ausência, resistência, mortes, necessidades, muros, postos de controle, diáspora, acordos, frustrações. Abdel Latif é médico intensivista, natural de Bethlehem (Belém), que migrou em 1991 depois de casar-se com brasileira descendente de palestinos. Não foi permitido a ela viver lá, então vieram para o Brasil. Para Latif, até hoje existe um grave problema conceitual nas discussões que permeiam o debate da questão, pois se consolidou a visão que retrata o conflito como militar ou um problema de terrorismo. Essa abordagem ignora ou coloca em segundo plano questões cruciais e decisivas para o entendimento atual do quadro de opressão aos palestinos.

Quanto

Reprodução

Arturo Hartmann e Soraya Misleh de São Paulo (SP)

Degradação do processo de paz aumenta papel dos palestinos espalhados pelo mundo Soraia Makhamra, palestino-brasileira que viveu nos territórios entre 1978 e 1984, fala sobre os efeitos da diáspora

Diante da longa ocupação israelense – que se expandiu para Jerusalém Oriental, Gaza, Cisjordânia e Golã na chamada Guerra dos Seis Dias, há 40 anos –, preservar a cultura e a identidade palestinas tem sido questão de sobrevivência para essa população.

pantes são todos voluntários”. Na opinião, dessa palestino-brasileira, a cultura foi essencial à resistência à ocupação israelense.

Arturo Hartmann

de São Paulo (SP)

Intercâmbio

“Com o acordo de Oslo, criou-se a ilusão de que teríamos um Estado palestino, que seria questão de tempo”, diz palestino-brasileira É o que enfatiza a palestinobrasileira Soraia Makhamra, para quem “manter o nosso dabki (dança), o nosso falafel, é muito importante”. Ela lembra que uma forma crucial de resistência tem sido conservar hábitos, costumes e a arte. Soraia recorda-se de como isso era presente quando morou na Palestina, de 1978 a 1984, ainda adolescente: “Nos anos de 1980, por exemplo, cantávamos a poesia “Carteira de Identidade” (de Mahmud Darwish), na escola. Eu trabalhava o verão inteiro como voluntária em acampamentos infantis. A gente tinha aula de artes e passava o período inteirinho cantando essas

Ato realizado em 9 de junho, na Avenida Paulista, em protesto contra a política de Israel

músicas. Tem uma fantástica que se chama ‘Meu nome é povo palestino’, que a gente ensinava para as crianças”.

Cultura de resistência

A situação se agravou ainda mais na Palestina dos anos de 1980 para cá e a cultura se consolidou como forma não-violenta de luta frente a um regime segregador, o qual impõe condições de vida in-

sustentáveis à população que vive sob ocupação israelense. Assim, ampliaram-se ainda mais os grupos folclóricos e centros culturais que, tradicionalmente, sempre existiram e passaram a ter na poesia, dança, arte e música instrumentos imprescindíveis à sobrevivência e oposição a toda opressão e exclusão impostas. “Li há pouco tempo que foi inaugurada uma galeria de ar-

te em Jerusalém Oriental. Ainda como exemplo, existe o Instituto Nacional da Música em Jerusalém, cujo diretor, se não me engano, é Suheil Khouri, que foi pioneiro em várias iniciativas relacionadas à questão da resistência através da música. Ele foi diretor do Centro da Arte Popular em Ramallah, uma ONG de onde saiu o grupo folclórico Al-Funoun, cujo trabalho é fantástico e os partici-

Assim, manter sua identidade mesmo na diáspora é questão de sobrevivência, diz. E propiciar a jovens de origem palestina a oportunidade de conhecerem a terra ocupada e sua história é essencial. Em julho, um grupo de latino-americanos fará essa viagem. Do Brasil, serão cinco adolescentes a integrá-lo. “Esse intercâmbio é fantástico. Mas o que faz esse trabalho com a diáspora urgente é que, com o acordo de Oslo, criou-se a ilusão de que teríamos um Estado palestino, que seria questão de tempo. E as comunidades na diáspora foram deixadas meio de lado, a necessidade de manter sua estrutura parece que se tornou dispensável, até mesmo porque muita gente voltou para a Palestina. Com a degradação do processo de paz, esse quadro piorou. Contudo, quando se fala de unidade nacional, inclui-se não só quem está nos territórios, até mesmo porque grande parte dos palestinos está fora hoje e não consegue voltar, nem para visitar a família.” (AH e SM) (Para saber mais, acesse a página do Instituto da Cultura Árabe, www.icarabe.org)


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cultura

Quem viver verá

Divulgação

CINEMA Documentário narra a história de Aparecido Galdino Jacintho. Torturado e internado num manicômio pela ditadura, Galdino chamou para si a atenção dos militares por ter reunido, em 1970, 14 homens com a intenção de se somarem ao Exército da Força Divina, que seria enviado por Deus, com o objetivo de juntos impedirem a construção da usina de Ilha Solteira – na época, a maior hidrelétrica do país

Juliano Domingues de São Paulo (SP) O ANO é 1970. O local é Rubinéia, uma cidadezinha do interior paulista. O governo militar brasileiro leva a cabo o projeto de construção do que seria a maior hidrelétrica do país, a usina de Ilha Solteira, feita a partir do represamento das águas do rio Paraná. Em meio ao processo, chama a atenção um agricultor, que mais tarde se destacaria como líder religioso local. Seu nome é Aparecido Galdino Jacintho, o Aparecidão. Consciente dos males que o represamento das águas iria causar à população que trabalhava naquelas margens e ao meio ambiente em torno, Aparecido reúne 14 homens com a intenção de se somarem ao Exército da Força Divina, enviado por Deus, para juntos impedirem a construção da usina. A história retratada no documentário “O Profeta das Águas”, do cineasta e diretor da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Leopoldo Nunes, parece fantasiosa, mas é real. Em Rubinéia, as Forças Divinas não compareceram. A cidade foi inundada. Aparecido foi preso, conduzido pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury a São Paulo, onde foi torturado e depois internado num manicômio, em Franco da Rocha, de onde saiu só em 1989. O desrespeito ao meio ambiente e populações ribeirinhas é fato mais que atual. Hoje o governo encabeça uma política desenvolvimentista irresponsável, da qual a transposição do Rio São Francisco é seu ícone máximo. A pergunta que fica após mais de 30 anos: “Quantas comunidades não serão exterminadas e quantos outros Aparecidos não serão taxados de loucos e presos?” Hoje, Aparecido Galdino tem 80 anos de idade, continua a benzer quem o procura e não perde a oportunidade de profetizar. Brasil de Fato – Como se deu o seu contato com Aparecido e Rubinéia? Leopoldo Nunes – Eu sou de Santa Fé do Sul, município vizinho a Rubinéia – palco dos acontecimentos. A

A usina de Ilha Solteira iria atender 45% da demanda energética do país, e hoje, ela representa menos de 1%. Então, apesar do impacto que causou, a obra tornou-se praticamente obsoleta 30 anos depois prisão do Aparecido se deu em 1970, e a primeira etapa do fechamento do rio, em 1971. Em 1970, a região vivia um grande alvoroço decorrente da desocupação da área que viria a ser inundada. Isso foi uma coisa muito presente na minha vida, e na história da população daquela região. Eu comecei a me interessar em fazer cinema no início dos anos de 1980, e cer-

tamente essa era uma grande história. Aparecido trabalhava em um viveiro de mudas da prefeitura, que inclusive serviu de sua tutora, oferecendo-lhe emprego e ajudando-o no processo de liberação, afinal de contas, ele estava em um manicômio judiciário. Eu começo a me relacionar com ele nessa fase, e é como se eu estivesse indo em busca de minhas raízes, de uma história relativamente recente, que, pelo grau de repressão e violência praticada contra esse grupo, gerou uma espécie de medo naquela população toda. Falar no assunto era algo meio proibido, como se fosse algo errado que tivesse dado um grande problema. E como surgiu a idéia para o filme? Então, eu começo a me relacionar com ele em 1985, e inicio a pesquisa de personagens e episódios que estavam em torno da inundação de Rubinéia e do caso do Aparecidão. Em 1986, enviei uma carta ao Carlos Drummond de Andrade para que ele fizesse a leitura das crônicas que havia publicado sobre o assunto no Jornal do Brasil, em 1971 e 1973. Eu considero o início da realização do filme ali, entre 1985 e 1986. É função do cinema comentar os acontecimentos históricos que não podem mais ser percebidos por nós. A cidade agora está debaixo d’água, e não há mais registro do que foi aquela antiga Rubinéia, certo? Não há. O que existe são aqueles escombros que eu filmei debaixo d’água. Há algumas poucas ruínas das fundações da antiga cidade. Isso porque como o represamento é uma coisa lenta, as pessoas aproveitaram o máximo de material que podiam para construção das novas casas. Mas sobre a importância de resgatar acontecimentos que você diz, e o filme fala sobre isso, a usina de Ilha Solteira iria atender 45% da demanda energética do país, e hoje, ela representa menos de 1%. Então, apesar do impacto que causou, ela tornou-se praticamente obsoleta 30 anos depois. O filme contribui para essa discussão. Eu pude vivenciar um rio que existia ali antes da construção. Depois, vivenciei um lago. Vivenciei o apodrecimento das coisas verdes vivas, das florestas todas que ficaram debaixo d’água, até chegar nesse grande reservatório que é hoje, de criação de alevinos. Ou seja, é um impacto ambiental muito grande, o microclima se altera, a fauna aquática, enfim, toda a cadeia de vida em torno do rio. O que aconteceu com Aparecido, em meio à ditadura militar, faz pensar no que ocorre hoje com pessoas que militam em movimentos contra a construção de barragens e contra a transposição do São Francisco, que deve ex-

terminar muitas comunidades ribeirinhas. A gente está assistindo isso agora. Todo esse embate entre população e Estado. A demanda energética é uma coisa muito séria. A força hidrelétrica é uma forma antiga, convencional e, no entanto, extremamente eficiente, pois você barra um rio, aproveita a sua força e ali certamente você conseguirá gerar energia. Ou seja, tem uma durabilidade e previsibilidade naquilo que você vai fazer. O problema é que a demanda de energia é cada vez maior, aumenta num passo muito crescente e é um dos entraves para o desenvolvimento do país. No entanto, eu entendo que o Brasil, por ser um país tropical, com essa disposição de energia solar e com essa quantidade de terra, deveria buscar ser protagonista em formas alternativas e mais modernas de produção de energia. E quanto ao São Francisco? É complicado falar porque eu sou um homem de governo. A minha posição está manifestada no filme. Mas, em relação às usinas, eu as considero extremamente danosas, do ponto de vista social; cultural – porque as culturas ficam todas submersas –; e também ambiental, que é o que tem sido afetado mais diretamente. Deveríamos fazer um grande investimento na busca de formas alternativas. Eu acompanho a luta do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e vejo como eles lutam contra o que, geralmente, são grandes interesses. Por exemplo, o desenvolvimentismo. Ninguém pode ser contra o desenvolvimentismo, mas devemos calcular melhor o custo disso. Temos exemplos de usinas mais recentes que foram feitas com grande impacto ambiental e se tornaram quase obsoletas num prazo muito mais curto do que a própria Ilha Solteira. Então, a gente move montanhas pra viabilizar essas alternativas, sendo que podíamos olhar um pouco para a nossa própria experiência. Ver, em poucas décadas, como é que fica o estado disso. Nós temos grandes pensadores, como o próprio Aziz Ab’Saber, que tem dado grande contribuição em relação à necessidade de assumirmos essa responsabilidade, de ouvirmos a sabedoria das pessoas que vivem nesses locais.

Serviço Título Original: O Profeta das Águas Gênero: Documentário Duração: 83 minutos Lançamento (Brasil): 2007 A produção de O Profeta das Águas começou em 1986 e foi concluída apenas em 2005. Ganhou o prêmio de Melhor Filme no 5º Ecocine (Festival Internacional de Cinema Ambiental) e no 8º Festival Internacional de Cinema Ambiental de Goiás Velho.

RIO SÃO FRANCISCO

Os prejudicados de hoje Se o governo federal implementasse as obras sugeridas pela Agência Nacional da Águas (ANA) para o meio urbano e as da Articulação do Semi-Árido (ASA) para o meio rural, 44 milhões de nordestinos seriam beneficiados. Com a transposição, o governo tem dito que irá atender, muito menos, 12 milhões Roberto Malvezzi (Gogó) O governo tem dito que “a transposição vai beneficiar 12 milhões de pessoas sem prejudicar ninguém”. Só se for nas contas do governo. Sem falar nos 100 mil relocados de Sobradinho e Itaparica, nos pescadores que perderam seus peixes, nos agricultores que perderam suas terras e ilhas, sem falar nos que serão relocados mais uma vez pela construção de Riacho Seco, sem falar nos índios que sofreram todas as conseqüências dessas barragens e agora terão as bombas sugando água no pé de sua ilha, há ainda muito que considerar. Se olhasse, ainda que por um único instante, o Atlas do Nordeste feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), o governo iria ver que os prejudicados pela transposição somam mais de 32 milhões de nordestinos. Onde eles estão? Estão nos nove Estados nordestinos e mais o Norte de Minas. Só na Bahia são 250 municípios, 6 milhões de baianos, que poderiam garantir sua água até 2015 se fossem implementadas as obras do Atlas, mas nenhuma delas terá sua segurança hídrica garantida porque o governo prefere jogar a grana na transposição. Vale lembrar mais uma vez que o Atlas do Nordeste diagnosticou a situação hídrica de 1.112 municípios com núcleos urbanos acima de 5 mil pessoas e mais 244 abaixo de 5 mil pessoas e propôs as obras necessárias para evitar o colapso hídrico desses núcleos urbanos até 2015. Vale dizer que abrange todo o Nordeste, não só o SemiÁrido. Significa dizer também que grandes capitais como Salvador, Recife e Fortaleza estão contempladas no Atlas. Se o governo federal não pensar o Nordeste como um todo, quem pensará? Os políticos estaduais e municipais que não enxergam nada além de sua paróquia. Ora, quando o governo prioriza a transposição, estará também priorizando o uso econômico da água em detrimento dos demais nordestinos que também precisam de água. Portanto, estará invertendo a prioridade do uso da água no Brasil segundo a Lei de Recursos Hídricos nº 9.433/97. O governo reage e diz: “mas a água da transposição é para abastecer 12 milhões de pessoas”. Nós respondemos: “a implantação do Atlas vai atender 1.356 municípios, nos nove Estados do Nordeste, incluindo aí os que pretensamente serão beneficiados pela transposição, totalizando 34 milhões de nordestinos. Ainda mais, a água vai realmente chegar até às famílias e, pelo princípio de precaução, estará preparando todos esses núcleos urbanos para evitar o colapso hídrico previsto pela Agência Nacional de Águas até 2015”. Ora, quando o governo troca 34 milhões de nordestinos pelos 12 milhões, ele vai deixar entregue às moscas os 22 milhões que estão fora do alcance da transposição. Quando se soma a esses 22 milhões do meio urbano os 10 milhões do meio rural, o governo está preterindo 32 milhões de nordestinos em favor de uma minoria. Ainda mais, se implementar as obras do Atlas, ninguém ficará de fora e até os 12 milhões alcançados pela transposição também serão beneficiados pelo Atlas. Portanto, o governo tem uma chance histórica de implementar as obras da ANA para o meio urbano e as da Articulação do Semi-Árido (ASA) para o meio rural, beneficiando simplesmente 44 milhões de nordestinos. Não queremos as migalhas compensatórias do Geddel (ministro da Integração Nacional), Lula e demais. Queremos água para todos e um Semi-Árido cheio de vida. A chance está nas mãos, mas não temos governo para aproveitar a chance. Roberto Malvezzi é da Comissão Pastoral da Terra (CPT)


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