BDF_225

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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 225

São Paulo, de 21 a 27 de junho de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

João Zinclar

Fortalecidos para enfrentar as transnacionais e o agronegócio

Durante o Congresso, a Escola Itinerante Paulo Freire acolheu cerca de 600 sem-terrinha

Reunidos em Brasília, em seu 5º Congresso Nacional, cerca de 18 mil sem-terra do MST debateram os problemas do país e reafirmaram o compromisso de luta contra os seus principais inimigos: o agronegócio, o capital internacional e as transnacionais. É a monocultura que empobrece os solos, a exploração do trabalhador, a violência no campo. Esse conjunto conformou um novo contexto político no campo. Para superá-lo, fazse necessária a mudança do sistema econômico e a construção de um projeto popular. É com essa concepção que o Movimento organiza o povo para que lute por seus direitos e contra a desigualdade. Assim, os assentamentos são seguidos pela formação de cooperativas, o agrotóxico é substituído pela produção orgânica e a vergonha de não saber ler, pelo orgulho de ser um brasileiro alfabetizado nas escolas do MST. Págs. 2, 4 e 5

João Zinclar

Leonardo Melgarejo

Que mistério é esse que motiva os sem-terra? Dentro do MST, acredita-se em uma motivação subjetiva inexplicável que move o camponês a permanecer na luta por uma sociedade justa. A mística, como é chamada, une a fé revolucionária aos mistérios do cristianismo, da terra e do brotar dos alimentos.“Nós não precisamos negar Cristo, Marx, Lenin, Paulo Freire, Darci Ribeiro, Caio Prado ou Florestan Fernandes. Esse universo de pensamento filosófico, sociológico e religioso vai conformando a organização que somos”, diz Charles Trocate, do MST-PA. Pág. 12

Nos EUA, Bush marginaliza trabalhadores e pobres

Transposição não levará água às regiões mais secas do Ceará

O governo de George W. Bush mantém uma política de ocupação e colonização dentro dos próprios Estados Unidos. A avaliação é do sociólogo Michael Burawoy, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Pág. 10

Se o projeto da transposição tivesse realmente o intuito de levar água para os 12 milhões de nordestinos, como diz a propaganda feita pelo governo, o Sertão dos Inhamuns, no Ceará, deveria fazer parte das regiões beneficiadas pelas águas do

rio São Francisco. No entanto, os municípios da região mais seca do Estado estão de fora do desenho dos eixos da obra e as famílias que ali vivem sofrem com os impactos das secas periódicas e a dificuldade de acesso à água. Págs. 7 e 8 Latuff

Soldados da Força Nacional de Segurança

45 dias no Complexo do Alemão 80 baleados; destes, 21 mortos Pág. 3

A água amarelada abastece a família de Maria Bantin para beber, cozinhar e tomar banho

Privatização: sete estradas serão leiloadas em outubro O governo anunciou que vai leiloar sete trechos de rodovias federais até outubro. Serão passadas para a iniciativa privada cerca de 2,6 mil quilômetros de estradas, num negócio que, para o subprocurador da República Aurélio Veiga Virgílio Rios, tem lucros comparáveis apenas com os do “tráfico internacional de drogas”. Além disso, a criação de novas praças de pedágio não prejudica apenas quem trafega pelas estradas. Ao onerar a circulação de mercadorias e, conseqüentemente, elevar o preço do produto final, a medida pode ser entendida, até mesmo, como um tiro no pé do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Pág. 6

Na África do Sul, a luta contra o neoliberalismo Centenas de milhares de trabalhadores do setor público sul-africano estão parados desde o dia 1º. Buscam, através do aumento salarial, entre outras demandas, melhorar suas condições de vida, deterioradas pelo modelo neoli-

beral adotado nos últimos dez anos no país. A economia vem crescendo há quatro anos, chegando a 5,5% em 2006. No entanto, a população, principalmente negros e mulheres, não colhem os frutos do boom econômico. Pág. 9


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editorial

Maioria dos brasileiros quer a Vale do Rio Doce de volta “OS RESPONSÁVEIS pela privataria estão observando a mudança da conjuntura política latino-americana na qual a retomada para o controle do Estado de empresas estratégicas, que haviam sido privatizadas ilegalmente no vendaval neoliberal dos anos de 1990, é a tônica dos novos governos nacionalistas e de esquerda” Uma pesquisa encomendada pelo partido Democratas (ex-PFL) comprovou que a maioria dos brasileiros (50,3%) é favorável à recuperação da Companhia Vale do Rio Doce para o patrimônio público. E apenas 28% disse ser contra. A empresa foi privatizada em maio de 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, pela bagatela de R$ 3,6 bilhões, quando se tratava da maior empresa mineradora do mundo, com um patrimônio, inclusive no subsolo, que se estimava em mais de R$ 1 trilhão. Ou seja, a empresa foi doada. Ou roubada? Um verdadeiro crime de lesa-pátria. Quem comprou? O Banco Bradesco foi o testa-de-ferro, que entregou o cheque em nome de inves-

debate

É louvável que mais de cem entidades, movimentos sociais e pastorais das igrejas, aglutinados na Assembléia Popular, tenham se reunido na semana passada em Brasília para organizar o plebiscito popular, durante a Semana da Pátria tidores estrangeiros. Hoje, consta até da página na internet da empresa que 42% de suas ações pertencem a grupos de outros países. Além da falcatrua da negociata, a Vale do Rio Doce é a menina-dosolhos do capital internacional, que está utilizando-se na sua ofensiva de redivisão do trabalho no mundo, deixando para os países da periferia o papel apenas de exportador de matérias-primas minerais e agrícolas. O porto de exportação da Vale do Rio do Doce, em São Luís (MA), escancara a olhos nus como o minério é exportado sem nenhum processo de beneficiamento. Depois, o Brasil recompra da China e do Japão o mesmo ferro de volta, na forma de carros, eletrodomésticos, brinquedos. É a volta do colonialismo mais brutal para atender aos interesses das empresas transnacionais e do imperialismo.

A realização de uma pesquisa sobre a Vale exatamente por um dos partidos que cometeu esta vergonhosa traição nacional já possui um significado muito emblemático. Os responsáveis pela privataria estão observando a mudança da conjuntura política latino-americana na qual a retomada para o controle do Estado de empresas estratégicas, que haviam sido privatizadas ilegalmente no vendaval neoliberal dos anos de 1990, é a tônica dos novos governos nacionalistas e de esquerda, na Venezuela, Bolívia, Argentina, Equador, Nicarágua etc. Estamos diante de novos fenômenos políticos, que indicam que o povo compreendeu o fracasso do neoliberalismo que afundou a humanidade numa selvageria social. Quando a oligarquia-financista que comanda o partido Democratas se preocupa em investigar o que o povo brasileiro pensa sobre a priva-

crônica

Compromisso dos sem-terra

Carta do 5º Congresso do MST

Nós, 17.500 trabalhadoras e trabalhadores rurais sem-terra de 24 Estados do Brasil, 181 convidados internacionais, representando 21 organizações camponesas de 31 países e amigos e amigas de diversos movimentos e entidades, estivemos reunidos em Brasília entre os dias 11 e 15, no 5º Congresso Nacional do MST, para discutirmos e analisarmos os problemas de nossa sociedade e buscarmos apontar alternativas. Nos comprometemos a seguir ajudando na organização do povo, para que lute por seus direitos e contra a desigualdade e as injustiças sociais. Por isso, assumimos os seguintes compromissos: 1. Articular com todos os setores sociais e suas formas de organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro. 2. Defender os nossos direitos contra qualquer política que tente retirar direitos já conquistados. 3. Lutar contra as privatizações do patrimônio público, a transposição do rio São Francisco e pela reestatização das empresas públicas que foram privatizadas. 4. Lutar para que todos os latifúndios sejam desapropriados e prioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos. 5. Lutar contra as derrubadas e queimadas de florestas nativas para expansão do latifúndio. Exigir dos governos ações contundentes para coibir essas práticas criminosas ao meio ambiente. Combater o uso dos agrotóxicos e a monocultura em larga escala da soja, canade-açúcar, eucalipto etc. 6. Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras.

Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país. 7. Exigir o fim imediato do trabalho escravo, a superexploração do trabalho e a punição dos seus responsáveis. Todos os latifúndios que utilizam qualquer forma de trabalho escravo devem ser expropriados, sem nenhuma indenização, como prevê o projeto da lei já aprovado no Senado. 8. Lutar contra toda forma de violência no campo, bem como a criminalização dos movimentos sociais. Exigir punição dos assassinos – mandantes e executores – dos lutadores e lutadoras pela reforma agrária, que permanecem impunes e com processos parados no Poder Judiciário. 9. Lutar por um limite máximo do tamanho da propriedade da terra. Pela demarcação de todas as terras indígenas e dos remanescentes quilombolas. A terra é um bem da natureza e deve estar condicionada aos interesses do povo. 10. Lutar para que a produção dos agrocombustíveis esteja sob o controle dos camponeses e trabalhadores rurais, como parte da policultura, com preservação do meio ambiente e buscando a soberania energética de cada região. 11. Defender as sementes nativas e crioulas. Lutar contra as sementes transgênicas. Difundir as práticas de agroecologia e técnicas agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente. Os assentamentos e comunidades rurais devem produzir prioritariamente alimentos sem agrotóxicos para o mercado interno. 12. Defender todas as nascentes, fontes e reservatórios de água doce. A água é um bem da natureza e pertence à humanidade. Não pode ser propriedade privada de nenhuma empresa. 13. Preservar as matas e promover o plantio de árvores nativas e frutíferas em todas as áreas dos assentamentos e comunidades ru-

tização da Vale, revela aí mesmo a debilidade da direita, porque teme que essa consciência nacionalista-progressista brasileira forjada especificamente na era Vargas, responsável pela criação da Vale do Rio Doce, volte a se manifestar, sobretudo de forma organizada. Por outro lado, estamos diante também de dois fatos importantes. A Justiça Federal Regional, de Brasília, por decisão de uma de suas câmaras de juízes, sentenciou em dezembro de 2004 que o Leilão da Vale do Rio Doce foi fraudulento, e portanto, o anulou. A Vale do Rio Doce recorreu e agora a causa está no Superior Tribunal de Justiça. Já no segundo turno das eleições passadas, questionado sobre o tema, o candidato Lula disse que tinha sido um erro privatizá-la. Assim, esperamos que tanto a Justiça quanto o presidente da República sejam coerentes com suas decisões e que

rais, contribuindo para a preservação ambiental e na luta contra o aquecimento global. 14. Lutar para que a classe trabalhadora tenha acesso ao ensino fundamental, escola de nível médio e a universidade pública, gratuita e de qualidade. 15. Desenvolver diferentes formas de campanhas e programas para eliminar o analfabetismo no meio rural e na cidade, com uma orientação pedagógica transformadora. 16. Lutar para que cada assentamento ou comunidade do interior tenha seus próprios meios de comunicação popular, como, por exemplo, rádios comunitárias e livres. Lutar pela democratização de todos os meios de comunicação da sociedade contribuindo para a formação da consciência política e a valorização da cultura do povo. 17. Fortalecer a articulação dos movimentos sociais do campo na Via Campesina Brasil, em todos os Estados e regiões. Construir, com todos os movimentos sociais, a Assembléia Popular nos municípios, regiões e Estados. 18. Contribuir na construção de todos os mecanismos possíveis de integração popular Latino-Americana, através da Alternativa Bolivariana dos Povos das Américas (Alba). Exercer a solidariedade internacional com os povos que sofrem as agressões do império, especialmente agora, com o povo de Cuba, Haiti, Iraque e Palestina. Conclamamos o povo brasileiro para que se organize e lute por uma sociedade justa e igualitária, que somente será possível com a mobilização de todo o povo. As grandes transformações são sempre obra do povo organizado. E nós, do MST, nos comprometemos a jamais esmorecer e lutar sempre. Reforma agrária: Por Justiça Social e Soberania Popular! Brasília, 16 de junho de 2007.

estejam do lado dos interesses do povo e do país. Já do lado do povo brasileiro, não basta ficar assistindo, torcendo pela decisão dos outros. É louvável que mais de cem entidades, movimentos sociais e pastorais das igrejas, aglutinados na Assembléia Popular, tenham se reunido na semana passada em Brasília para organizar o plebiscito popular, durante a Semana da Pátria. Essa campanha popular será muito importante, pois é um exercício de pedagogia popular, para debater com o povo a importância de uma empresa como a Vale do Rio Doce para o desenvolvimento e para usar nossas riquezas naturais em prol da distribuição de renda e do combate à pobreza do povo. Atualmente, os R$ 15 bilhões de lucros anuais da Vale vão para os investidores estrangeiros e para alguns grandes bancos. Por isso, o jornal Brasil de Fato se engajará permanentemente nessa campanha promovendo o Plebiscito, debatendo em suas páginas, até que a Vale do Rio Doce volte para seu verdadeiro dono: o povo brasileiro.

Marcelo Barros

Festas juninas, ano novo indígena e o futuro EM TODO o Brasil, as festas juninas mobilizam multidões, especialmente entre as classes mais carentes. A quadrilha que, em outros tempos, era baile de nobreza em palácios europeus, agora, é realizada como dança caipira por crianças e adultos, em qualquer esquina do país. Os festejos juninos envolvem até pessoas que, comumente, não se interessam em participar de outros tipos de festa. Em algumas cidades, até grupos de periferia, considerados rebeldes à disciplina, dedicam-se com amor aos passos da dança e preparam o casamento caipira e as comidas típicas. Enquanto o Brasil é tomado por festas juninas, nos mesmos dias, o Altiplano Andino e as culturas indígenas da Bolívia, Peru e Equador retomam uma festa na qual se agradece ao Sol a fertilidade da Terra, a generosidade das chuvas e o cuidado com a água. Tanto as festas juninas quanto as celebrações indígenas do Inti Raimi vêm de tempos antigos nos quais se comemorava o renascimento do Sol. São equivalentes às festas que, na cultura européia, deram origem ao Natal e ao 1º de janeiro. Ao ver esses festejos tão singelos, dificilmente alguém imagina que eles possam ter algo a ver com a organização social e política dos povos indígenas e grupos marginalizados da sociedade. De fato, são festas tradicionais de caráter recreativo, com uma memória da religião popular. Entretanto, quando se observa a realidade mais profundamente, é um assunto que pode nos fazer refletir. A novidade é que não se trata nem de movimentos revolucionários marxistas, nem de partidos de esquerda. São movimentos de base, de caráter comunitário, organizados a partir das culturas ancestrais e de uma relação espiritual com a Terra e toda a natureza. Muitos deles começaram por associações de base que se reuniam apenas para prepararem danças folclóricas e festas de suas antigas crenças. De repente, esses grupos índios e camponeses assumiram não somente a consciência de sua dignidade humana, mas também do seu direito de serem cidadãos e darem outro rumo à política nacional. No Equador, expulsaram três presidentes da República que não cumpriam os compromissos para os quais havia sido eleitos. Na Bolívia, além de terem demitido presidentes, conseguiram eleger um índio para governar o país. Esse protagonismo ameríndio está se espalhando por todo o continente.

A revolução bolivariana e os movimentos de emancipação dos povos originários querem garantir que todas as pessoas possam ter um nível de vida simples, mas digna Na véspera de assumir a presidência da República, Evo Morales recebeu uma consagração indígena em Tiahuanaco. Ali ele falou: “Se nós sobrevivemos a cinco séculos de decretos de extermínio, certamente, é porque somos portadores de valores necessários para toda a humanidade”. Talvez ele não tenha sentido necessidade de explicar a que valores se referia, porque, para os que o escutavam, era um assunto claro. A revolução bolivariana e os movimentos de emancipação dos povos originários querem garantir que todas as pessoas possam ter um nível de vida simples, mas digna. Para isso, na Venezuela, Equador e Bolívia, o povo todo votou em uma nova constituição, conforme a qual, a terra deve ser repartida de forma justa, a água é considerada bem universal, ao qual todos os seres vivos têm direito e os filhos dos pobres têm direito à educação e ao lazer. O que nenhuma Constituição ou lei pode garantir é uma proposta espiritual que une xamãs indígenas e educadores universitários em todo o continente: reeducar-nos para uma relação mais amorosa com a Terra e com os espíritos que regem a Terra, re-aprendermos a viver em comunidade, re-valorizarmos as culturas locais e promovermos relações mais justas entre homem e mulher, como entre a humanidade e os animais. Quando grupos, clubes, escolas e associações de amigos se organizam para fazer uma festa junina, como, nos Andes, índios jogados à margem da vida se unem nos ritos de Inti Raimi, estão ensaiando, não apenas a quadrilha de uma noite, nem um rito de casamento caipira, no qual um pobre se torna juiz da roça, pároco do interior ou coronel. Através do lazer comunitário e das festas inseridas nas suas culturas, ensaiam o tempo novo da justiça e da cidadania para todos. É bom saber que, ao unir as pessoas e organizá-las para ser protagonistas de uma festa, se pode preparar e antecipar a vinda desse reino de justiça e paz. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, dos quais o mais recente é Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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brasil

RIO DE JANEIRO Membros da Força Nacional apontam fuzis para o interior das favelas e revistam até crianças em uniforme escolar; ação é em resposta à execução de dois policias militares por traficantes, que supostamente estariam escondidos naquela região Latuff do Rio de Janeiro (RJ) JÁ SE passaram 45 dias e nenhum resultado prático foi observado da ação policial nas comunidades do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro, localizadas na zona Norte do Rio de Janeiro. As operações começaram após a execução de dois policiais militares por traficantes que supostamente estariam escondidos naquela região. Sem prisões ou apreensões de armas ou drogas, o que se conseguiu até agora foi vitimar moradores, atingidos pelas chamadas “balas perdidas”. Quem vive naquelas comunidades enfrenta uma rotina de pavor, tendo que sair de casa para o trabalho ou a escola sob a mira de armas potentes tanto da polícia quanto de traficantes. As principais entradas do Complexo do Alemão foram tomadas por PMs, e mais recentemente por membros da Força Nacional de Segurança, que apontam fuzis para o interior das favelas e revistam moradores, incluindo até crianças em uniforme escolar. Essa “expedição punitiva” parece ter como alvo a liderança do tráfico local, já que o efetivo policial não quer tomar o Complexo e sim impedir o comércio de drogas para forçar os traficantes a entregarem os assassinos dos

Latuff

Ação policial no Complexo do Alemão já dura mais de 45 dias Quanto

80 pessoas baleadas, 21 delas fatalmente dois PMs. Assim, a honra da corporação estaria lavada, o contingente policial poderia voltar aos batalhões e o tráfico voltar à sua atividade normal. Situação semelhante verificou-se em 2006, quando assaltantes roubaram fuzis de um quartel do Exército. O Morro da Providência, onde as armas estariam escondidas, foi cercado por paraquedistas e, algum tempo depois, o Exército “descobriu” o paradeiro dos fuzis (falava-se inclusive numa negociação informal com o tráfico), e a tropa deixou a favela. A polícia argumenta que desentocar traficantes do Complexo do Alemão ou da Vila Cruzeiro causaria um grande número de vítimas inocentes. Essa pretensa preocupação da PM não impediu, porém, que mais de 80 pessoas fossem baleadas, 21 delas fatalmente, em troca de tiros. E mesmo quando a polícia invadiu e ocupou favelas, isso não significou o fim do tráfico. Até porque a presença de Postos de Policiamento Comunitários (PPCs) no interior das comunidades em nada inibiu a ação da bandidagem.

Equipe de jornalismo da TV Globo registra ação do exército, ainda sem resultados

O Estado do Rio aposta na política de confronto porque sabe que resolver o problema do tráfico passaria necessariamente pelo combate à corrupção. E daí seria necessário abrir um tampão de esgoto que ninguém quer mexer, até porque o crime e o Estado andam de mãos dadas, se misturam, são parte do mesmo corpo O que vemos no Rio de Janeiro é, mais uma vez, uma solene tentativa de se enxugar gelo. Já ficou provado que a resposta militar ao tráfico de drogas não tem sequer reduzido a atividade criminosa. O Estado do Rio aposta na política de confronto porque sabe que re-

solver o problema do tráfico passaria necessariamente pelo combate à corrupção. E daí seria necessário abrir um tampão de esgoto que ninguém quer mexer, até porque o crime e o Estado andam de mãos dadas, se misturam, são parte do mesmo corpo.

Um bom exemplo dessa promiscuidade foi a recente divulgação por parte da Polícia Federal de que constavam da folha de pagamento de banqueiros do jogo do bicho figuras como as ex-governadoras Rosinha Garotinho e Benedita da Silva e o ex-prefeito Luiz Paulo Conde, além

de deputados e policiais. O fato, que se ocorresse em Brasília causaria escândalo nacional, no Rio foi discretamente abafado. Por isso, é bem mais fácil comprar blindados novos da África do Sul, para a PM subir os morros e trocar tiros com traficantes varejistas pés-de-chinelo, do que investigar a fundo quais os colarinhos brancos que fazem chegar tão facilmente fuzis, metralhadoras, granadas e drogas às mãos de bandidos. Política de segurança? Que segurança? Certamente não é a segurança da população.

EDUCAÇÃO

Estudantes fazem encontro nacional na USP Dentre as propostas aprovadas na plenária, uma jornada de lutas em defesa da universidade pública Dafne Melo da Redação No dia 16, em frente da reitoria ocupada da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 800 estudantes de todo o país, majoritariamente de universidades públicas estaduais e federais, realizaram um Encontro Nacional de Estudantes. O objetivo foi unificar a luta em defesa do ensino público em todo o país. Mariana Martins, estudante de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), avalia que a plenária apareceu em um momento muito importante, em que ocorrem diversas greves estudantis e de docentes, além da ocupação de reitorias. “Foi um momento importante para organizar e dar coesão ao movimento”, conta. De acordo com a estudante, delegações vindas de universidades de Minas Gerais, Rio de Janeiro,

No início de agosto, estudantes irão promover uma semana nacional de ocupação de reitorias. Outras deliberações foram: construção de uma greve nacional em defesa do ensino público e a realização, em outubro, de uma marcha nacional em Brasília. Goiás, Santa Catarina, Paraná e Distrito Federal – além de São Paulo – compareceram à plenária, na qual foi aprovado um calendário de lutas para o segundo semestre. No início de agosto, estudantes irão promover uma semana nacional de ocupação de reitorias. Outras deliberações foram: construção de uma greve nacional em defesa do ensino público e a realização, em outubro, de uma marcha nacional em Brasília. Participarão das atividades todas as organizações que compõem a Frente Nacional de Lutas Contra a Reforma Universitária, como o Sindicato Nacio-

nal dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).

Ocupações

Uma das medidas a serem questionadas será o Decreto Federal nº 6.096, de 24 de abril, que criou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o Reuni. A medida é vista pelo Andes como uma tentativa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva de retirar a autonomia universitária das federais, a exemplo do que fez o governador José Serra (PSDB) com as estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp).

A ação do tucano continua sendo o grande alvo da luta da comunidade acadêmica nessas instituições. No dia 18, cerca de 200 estudantes da Unicamp decidiram ocupar a diretoria acadêmica da Unicamp (DAC). De acordo com veículos da grande imprensa, os alunos teriam tentado, primeiro, ocupar a reitoria. Diante da impossibilidade, optaram pelo DAC. Ricardo Alves, estudante de Ciências Sociais desmente essa informação. “Não tentamos ocupar a reitoria, na assembléia estudantil, definiu-se a ocupação da DAC”, garante. Segundo Alves, a ação busca pressionar o reitor da universidade, José Tadeu Jorge, a retificar seu posicionamento contrário aos decretos. Pouco após a publicação dos decretos, nos dois primeiros meses deste ano, Jorge se manifestou contra as medidas de Serra. Sua posição foi compartilhada no conselho universitário, que aprovou uma

moção contrária aos decretos. Depois, voltou atrás, ao assinar uma carta com reitores da USP e Unesp, minimizando os efeitos das novas leis. Posteriormente, com a publicação de um decreto declaratório, em que Serra recuou, modificando parte de seu pacote, os reitores se deram por satisfeitos. Para o conjunto dos estudantes, entretanto, a manutenção da Secretaria do Ensino Superior e a fragmentação da educação estadual ainda se constituem como ataques às universidades.

Mais reivindicações

Além disso, os estudantes da Unicamp reivindicam o cumprimento das promessas de reformas e construção de moradias estudantis, feitas pelo reitor em negociações que ocorreram em março, quando o movimento ocupou a reitoria. “Até agora, não houve andamento”, lamenta Ricardo Alves. Outros pontos da pauta são a não punição de participantes de ocupações e greves

nas estaduais paulistas e a contratação imediata de professores. Esta última, também uma reivindicação do movimento estudantil da USP. De acordo com o anuário estatístico da instituição, entre os anos de 1995 e 2005, o número de estudantes subiu de 46.918 para 80.589, enquanto o corpo docente variou de 5.056 para 5.222. Um aumento de 71,76% contra um de 3,28%. Mesmo assim, a reitora Suely Vilela se mantém irredutível em não negociar com os ocupantes da reitoria, mobilização que já se aproxima dos 50 dias. A situação é de impasse já que os estudantes, por outro lado, condicionam sua saída ao atendimento de uma série de reivindicações e, por isso, querem a reabertura da mesa de negociação. No dia 18, os alunos protocolaram uma carta para a direção da universidade em que informam as decisões da última assembléia estudantil e exigem um retorno da reitora.




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brasil Gama

Mais pedágios e lucros para as empreiteiras PRIVATIZAÇÃO Governo federal anuncia que vai leiloar sete trechos de rodovias federais; para secretário de transportes do Paraná, empreiteiras lucram com o patrimônio público Renato Godoy de Toledo da Redação EM JANEIRO, o governo federal anunciou que iria repensar a questão das privatizações das estradas. A decisão foi um “susto” para os empreiteiros, mas não passou disso, um susto. O Diário Oficial da União de 21 de maio publicou a notícia que os empreiteiros aguardavam: a concessão de sete trechos de rodovias federais (BRs), equivalentes a 2,6 mil quilômetros, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Desestatização. Nesses trechos, novos pedágios devem ser construídos, com tarifas entre R$ 2,60 e R$ 4,00. O leilão deve acontecer em outubro. As concessões são na BR153, entre as divisas de Minas Gerais e São Paulo e São Paulo e Paraná; na BR-116, de São Paulo a Curitiba e desta até a divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul; na BR-393, da divisa entre Minas Gerais e Rio de Janeiro até a entrada da rodovia Presidente Dutra; na BR-101, da divisa do Espírito Santo até a Ponte Rio-Niterói; na BR381 (Fernão Dias), entre Belo Horizonte e São Paulo; e nas BRs 376 e 101, entre Curitiba e Florianópolis. No seu primeiro mandato, o presidente Luís Inácio Lula da Silva viu a sua intenção de privatizar rodovias ser frustrada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que pediu maior cla-

reza acerca de qual seria o modelo da concessão. O Governo do Estado do Paraná, cuja malha viária será afetada por duas concessões (das BRs 116 e 376), tem uma posição contrária à medida do governo federal. Inclusive, em janeiro, quando a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, anunciou a interrupção do processo de concessão das rodovias, ela o fez após uma conversa com o governador Roberto Requião (PMDB). “Rechaçamos a medida politicamente. Vamos tentar barrá-la politicamente e na Justiça”, garante o secretário dos Transportes do Paraná, Rogério Tizzot. Para ele, a concessão representa a transferência de um patrimônio público para a exploração da iniciativa privada. Tizzot acredita que, se a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) fosse aplicada para o seu devido fim – o transporte –, as estradas federais estariam em condições muito melhores. A Cide incide sobre o combustível, ou seja, é paga pelos motoristas quando estes abastecem seus veículos. Desde que foi criada em 2003, o governo arrecadou R$ 39 bilhões via Cide, mas apenas R$ 5,5 bilhões foram investidos em conservação das rodovias. Boa parte desse desvio (80%) foi feito para realizar o superavit primário. O secretário assegura que toda a parcela da contribuição repassada ao

Quanto

38 novas praças

de pedágios devem ser construídas nos trechos privatizados

740 milhões

de reais foi o valor arrecadado pelas concessionárias no Paraná em 2006 somente com a cobrança de pedágio Paraná é aplicada na melhoria das estradas.

Modelo “peculiar”

O sistema de concessão de estradas no Brasil beneficia as empresas de uma maneira que não é vista em nenhum outro lugar do mundo, segundo Tizzot. “Em outros países, as concessionárias têm que utilizar dinheiro de seus caixas para construir novas rodovias alternativas e garantir a conservação. Aqui no Brasil não, elas ganham a concessão de estradas construídas com dinheiro público e lucram com o pedágio pago pelos usuários”, analisa. Segundo o secretário, as empresas que ganharam concessões de estradas no Paraná, durante o governo Jaime Lerner (DEM, 1995-2002), obtiveram R$ 740 milhões de receita via pedágio somente em 2006, enquanto a conservação das estradas representa um gasto de R$ 100 milhões. O secretário também afirma que os contratos com as

Empresas ganham concessões de estradas construídas com dinheiro público e lucram com pedágios

empresas em seu Estado foram feitos de forma viciada e benevolente para os concessionários. “Inicialmente, para cumprir o contrato do edital de licitação, as empreiteiras tiveram que realizar algumas obras e 70% dos gastos com essa obras vieram de recursos do BNDES. Agora, elas utilizam-se da verba que vem do

Um tiro no pé do PAC Novos pedágios devem onerar a produção e aumentar o preço do produto final da Redação A concessão de rodovias faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas, em sentido oposto ao que sugerem as linhas gerais do PAC, a criação de novas praças de pedágio deve onerar a produção e aumentar o preço final dos produtos que chegam ao consumidor. “Somente o setor agrícola no nosso Estado deixou R$ 100 milhões nas praças de pedágio no ano passado”, conclui o se-

cretário Rogério Tizzot. Para o economista Paulo Passarinho, a cobrança de pedágio e o retorno financeiro para agentes privados consiste em uma “deformação grave”. “As estradas devem ser parte da infra-estrutura do país, sem cobranças por isso. Um exemplo absurdo de cobrança temos aqui na BR-101 [Via Dutra, que dá acesso à Bacia de Campos, de onde se extrai a maior parte do petróleo brasileiro] que não deveria ter pedágio. Isso não contribui para o desenvolvimento do país”, protesta o economista. Segundo ele, as empreiteiras que vencerem as licitações deverão receber um incentivo do governo para investir em obras nas estradas. Essa verba deve vir dos cerca de R$ 52 bilhões que representam os investimentos realmente

Paraná pode pleitear concessão da Redação O Governo do Estado do Paraná demonstrou-se disposto a batalhar judicial e politicamente contra as novas concessões de rodovias federais. Mas, se a intenção do governo federal prevalecer, o governo estadual sinaliza que pode participar do leilão das estradas, a fim de impedir que as rodovias federais, que passam pelo Paraná, sejam controladas pela iniciativa privada. “Nossa posição política é contra o pedágio, mas se sair o processo de concessão, vamos habilitar empresas públicas para disputar o processo”, afirma o secretário Rogério Tizzot. Recentemente, o governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), sugeriu que, em vez de criar novos pedágios controlados pelo setor privado, o governo federal deveria criar pedágios públicos, em parceria com os Estados, com tarifas sociais, abaixo do valor cobrado pelas concessionárias. “Como o governo federal pretende criar pedágios, sugerimos que fossem públicos. Ainda achamos que o melhor ‘pedágio’ é a Cide”, diz. (RGT)

novos do PAC, já que, segundo Passarinho, dos R$ 502 bilhões que foram anunciados com o Programa, a maior parte condiz a obras em andamentos e que já haviam sido planejadas.

Defesa do superavit

Esses R$ 52 bilhões fazem parte dos Projetos Pilotos de Investimento (PPIs) que o governo brasileiro negociou com o FMI em 2004. À época, o FMI “permitiu” que cerca de 0,2% do superavit primário [que gira em torno de 4,25% do PIB, 0,5% a mais do que o FMI determinara] fosse aplicado em PPIs, que deveriam obrigatoriamente apresentar retorno financeiro ao governo. Agora, sem acordos com o FMI, o governo – “que continua aplicando a política dele espontaneamente” – aumentou o percentual dos PPIs para 0,5% e deve aplicá-los no setor de transportes, mas tendo as concessionárias como intermediárias. “O retorno financeiro deve se dar por meio dos pedágios e dos empréstimos que o governo deve conceder às concessionárias. Porém, o governo deveria ter uma contrapartida”, prevê Passarinho. Essa parcela do superavit que será “sacada” para as PPIs, teoricamente, reduzirá o superavit primário para 3,75%, mas o economista explica que o PAC tem medidas de contingenciamento, justamente para manter os 4,25%. “O PAC prevê a instituição, em dez anos, do deficit nominal zero [medida encampada pelo ex-deputado federal Delfim Neto]; a limitação dos gastos com a folha de pagamento no serviço público, em 1,5% ao ano, mais a reposição da inflação; e um novo cálculo de reajuste do salário mínimo [que será baseado no crescimento PIB de dois anos antes]”, explica. (RGT)

pedágio. Porém, não têm a obrigação de construir novos trechos, duplicar estradas etc. Além disso, algumas obras estão previstas para o fim do período de concessão [que é de 24 anos]. Há obras previstas para 2021”, observa. O Fórum contra os Pedágios promete criar um projeto de lei de iniciativa popular para regulamentar a questão dos pedágios e barrar a sua proliferação.

fatos em foco

“A criação de pedágios é como se uma pessoa comprasse uma mansão e não tivesse dinheiro para pagar a conta de água e luz. Nenhum partido político tocou na questão dos pedágios na última eleição”, afirma Acir Mezzadri, da coordenação nacional do Fórum, para quem as novas concessões devem criar cerca de 38 novos pedágios.

Hamilton Octavio de Souza

Pura enganação As principais redes de TV foram convidadas pelo Ministério Público Federal a negociar com as organizações feministas propostas de pautas, programas e tratamento mais adequado aos temas relevantes para as mulheres, como a violência doméstica, desigualdade no trabalho, mortalidade materna etc. Após algumas reuniões, as TVs simplesmente recusaram o pedido. Assim funcionam a “liberdade de expressão” e a “democracia” na comunicação social. Maravilha capitalista

Paciência esgotada

Elite trabalhadora

Esquema medieval

Recado estudantil

Pecado original

A indústria automobilística, quase toda constituída por empresas estrangeiras, além de dispor de linhas de crédito do BNDES altamente compensadoras, com juros baixos (6,5% ao ano), conta agora também com financiamento de até 70% dos veículos destinados à exportação. O carro exportado dá muito mais lucro para a montadora – lucro tirado diretamente do bolso do trabalhador brasileiro. O fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, formado com contribuições dos servidores e do banco público, e que garante aos associados aposentadoria integral (diferentemente dos trabalhadores em empresas privadas), tem em caixa um superavit de R$ 36 bilhões, os quais, se divididos pelos associados, daria a bolada de R$ 342 mil para cada um. Esse é o Brasil maravilha A ocupação da reitoria da USP e de outras universidades públicas Brasil afora recolocou na ordem do dia questões ignoradas pelos governos do PSDB e do PT, entre as quais as velhas promessas não cumpridas de se dobrar o orçamento da educação, aumentar a participação da universidade pública no ensino superior, reforçar o salário do docente e construir residências estudantis. Tudo congelado!

Posição reveladora

O caso das denúncias contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB de Alagoas, independentemente do resultado que venha a ter, revelou para o Brasil que o PT não apenas fez uma aliança política de governo com o PMDB, mas aderiu também aos esquemas das oligarquias para evitar a investigação das falcatruas. Os senadores petistas fizeram de tudo para encobrir o caso.

Considerado um dos poucos políticos honestos e não envolvido em bandalheiras, o senador Pedro Simon, do PMDB do Rio Grande do Sul, desabafou na última semana: “É preciso que o povo seja, de fato, senhor da história. Sujeito, e não objeto. É preciso que a sociedade brasileira volte a exercitar a força das ruas. Um movimento, que poderia orientar-se sob o lema ‘Reage, Brasil”. Os 120 mil cortadores de cana-de-açúcar do Estado de São Paulo estão tentando unificar a pauta de reivindicações para negociar um acordo coletivo mais abrangente. Superexplorados no sistema de trabalho do corte da cana, por tonelada, eles querem a redução da jornada e um piso salarial bem acima da média atual, de R$ 450 por mês. A categoria ameaça entrar em greve. A humildade e a simpatia nunca foram os pontos fortes da ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Agora no Ministério do Turismo, ela conseguiu, com a frase “relaxa e goza”, dirigida aos milhares de prejudicados na crise dos aeroportos, propagar a sua fama para todo o território nacional. Quanto mais ela falar, mais as pessoas vão entender porque ela não foi reeleita em São Paulo.

Lobby financeiro

Mais uma picaretagem da base aliada no Congresso Nacional: o senador Valdir Raupp, do PMDB de Rondônia, apresentou projeto de lei para isentar os bancos da aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Como se sabe, os bancos são campeões de reclamações, especialmente pelo péssimo atendimento nas agências e pelas tarifas altíssimas sacadas diretamente das contas dos clientes. Pressionado pela população, no dia 19, Raupp veio à público anunciar a retirada do projeto.


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brasil

Reforma política em debate no Congresso é apenas eleitoral Marcello Casal JR_ABr

ENTREVISTA Para entidades da sociedade civil, projeto que tramita na Câmara não altera a questão do poder Tatiana Merlino da Redação ENQUANTO A reforma política volta ao debate na Câmara dos Deputados, entidades da sociedade civil organizadas, desde 2004, na Plataforma por uma Reforma Política Democrática e Participativa defendem uma transformação ampla, democrática e participativa do sistema político. Entre os principais pontos da proposta destacam-se o fortalecimento da democracia direta, da democracia participativa, o aperfeiçoamento da democracia representativa, a democratização da comunicação e da informação e a transparência e democratização do Poder Judiciário. Em entrevista, José Antonio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), critica a reforma que está sendo encaminhada, que “não é uma verdadeira reforma política, mas sim uma reforma eleitoral”. Para ele, os pontos que estão sendo debatidos – fidelidade partidária, financiamento público de campanha e eleição por lista fechada – estão muito aquém das reivindicações da Plataforma. Brasil de Fato – Como você avalia a reforma política que está sendo encaminhada pelo Congresso? José Antonio Moroni – Para nós, o que está sendo discutido no Congresso não é uma verdadeira reforma política. Ela trata de apenas alguns pontos de uma reforma eleitoral, mas não é a reforma política que nós entendemos e que estamos trabalhando. Para nós, a reforma política é a reforma do próprio poder, de quem o exerce, em nome de quem se exerce, quais os mecanismos que se tem de controle do poder. O que está sendo pautado neste momento é uma reforma eleitoral de alguns pontos do processo eleitoral e da vida partidária, porque tudo diz respeito a questão das eleições.

O empresário André Luiz dos Santos realiza protesto diante do Congresso Nacional

co, mas também a razão, por exemplo, da transferência de eleitores, a fiscalização dos meios de comunicação e vários outros itens. E acrescentamos nessa comissão, além dos partidos e da Justiça Eleitoral, representação da sociedade civil.

Não concordamos com cláusulas de barreira porque elas são instrumentos que os grandes partidos usam para aniquilar os pequenos e as minorias políticas. Qual a posição da Plataforma por uma Reforma Política Democrática e Participativa em relação ao que está sendo discutido? A gente concorda com a lista pré-ordenada, com alternância de sexo e respeito à questão étnico-racial. Concordamos com o financiamento público exclusivo de campanha, e que os partidos sejam financiados unicamente por contribuições de seus filiados e do fundo partidário. A gente discorda da cláusula de barreira e concordamos que a fidelidade seja programática. Hoje, na Câmara, como não conseguiram o consenso na questão da lista ordenada, estão tentando criar uma coisa meio híbrida, que tenha até a lista pré-ordenada, mas também que tenha a lista flexível, que vai acabar confundindo ainda mais o eleitor. O sistema já é ruim, remendado é pior ainda. Eu acho que se deve pensar a reforma eleitoral, mesmo com esses pontos mínimos que foram colocados, mas acaba sendo complicado para o Congresso porque bate diretamen-

te nos interesses dos parlamentares. Cada vez que se vai discutir a reforma política, o parlamentar pensa no que vai ganhar com isso ou o que vai perder. As pautas da Frente Parlamentar e a Plataforma não estão sendo discutidas. O que temos visto são apenas esses quatro pontos. Na verdade, o projeto coloca mais algumas coisas, por exemplo, a questão da criação de federações, a formação da comissão para a fiscalização do abuso de poder nas eleições no TSE, mas são coisas periféricas, não coisas centrais. Desses quatro pontos, a gente concorda com a lista, mas a lista pré-ordenada com a alternância de sexo e respeito à questão étnica-racial. Concordamos com o financiamento público exclusivo das campanhas. Não concordamos com cláusulas de barreira porque elas são instrumentos que os grandes partidos usam para aniquilar os pequenos e as minorias políticas. E sobre a fidelidade partidária a gente acha que deve haver fidelidade ao pro-

grama partidário, que é diferente de ter fidelidade à determinação do líder.

Com esse projeto em discussão, há possibilidades de pressionar para que alguns pontos da Plataforma sejam aceitos? Apenas no que diz respeito à questão eleitoral. Mas os outros pontos da plataforma, que são o fortalecimento da democracia direta, fortalecimento da democracia participativa, democratização da comunicação e da informação e democratização do Judiciário, não estão sendo nem tocados.

Quais foram as propostas de alteração do projeto que a Plataforma fez? Na questão da lista a gente acrescentou a alternância de sexo e respeito à questão étnico-racial. Na questão do financiamento público de campanha, o projeto original prevê que os partidos prestem contas 45 dias após receber o recurso e dez dias após as eleições. Nós colocamos a necessidade de prestar contas todo o dia 20 do mês e fazendo conciliação bancária. Dentro da lista, colocamos o fim da reserva de mercado, na qual as atuais parlamentares teriam prioridade na elaboração da lista, a gente é radicalmente contra isso. Apresentamos uma proposta de retirar isso. Na questão do controle social onde cria essa Comissão de Fiscalização do abuso econômico, que seria formado por partidos, federações, coligações e o TSE, ampliamos o poder dessa comissão para que não seja só em função do abuso econômi-

Qual o principal desafio da plataforma hoje? Há dois grandes desafios. O primeiro é criar realmente um movimento por uma reforma política ampla, democrática e participativa. Criar um movimento com maior densidade social e política na sociedade. A Plataforma já entrou em muitos movimentos. Isso descreve o descrédito atual com a política. As pessoas estão, pouco a pouco, desconsiderando essa luta institucional. O outro grande

desafio é criar força política para que o Congresso vá além da reforma eleitoral, mas isso só vai ser conquistado com muita mobilização. Como você avalia uma declaração da Transparência Brasil em relação a proibição de financiamento eleitoral privado, que seria um equívoco? A fundamentação que eles colocam de que isso não inviabilizaria o “caixa 2” para mim é um argumento pobre, porque a questão do financiamento público de campanha não é só para inviabilizar o caixa 2 e a corrupção, isso é um dos aspectos, mas há outro aspecto que é equalizar a disputa política. Criar condições mais iguais para disputa política entre os diferentes grupos. O financimento público serve principalmente para equalizar as campanhas, tornar as campanhas mais democráticas. Que os grupos minoritários tenham também condições financeiras para disputar as eleições.

Quem é José Antonio Moroni é filósofo, diretor de relações institucionais da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e membro do colegiado de gestão do Inesc.

SEMI-ÁRIDO

Movimentos prometem enfrentar transposição De forma tímida, o Exército começa a preparar terreno para obra; por sua vez, trabalhadores articulam resistência

Enquanto os movimentos sociais organizam mobilizações contra a transposição do São Francisco e criticam o governo por não ter debatido o projeto de maneira democrática, em Pernambuco, o Exército dá início ao desmatamento das áreas onde será a tomada das águas; tanto no eixo Leste, entre Petrolândia e Floresta, quanto no eixo Norte, em Cabrobó. De um lado, o governo vem negociando indenizações com comunidades que terão suas áreas desapropriadas e verbas de revitalização para prefeituras; de outro, os movimentos buscam “formas tanto jurídicas quanto de organização social para ver os mecanismos que ainda temos para ir para o enfrentamento”, afirma Alzeni Tomáz, da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP). O Exército está instalado na região desde o dia 5, e entre os dias 11 e 15, o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, visitou, sob pro-

testos de pescadores, índios, ambientalistas e representantes de movimentos sociais, 15 municípios de quatro Estados por onde passa o rio São Francisco.

Marcello Casal JR_ABr

Luís Brasilino e Tatiana Merlino da Redação

Decisão política

Em resposta às críticas, o ministro disse que a obra é uma “decisão política de governo” e que não adianta os opositores do projeto tentarem barrar a obra, porque“quem governa é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão política cabe ao governo e já foi tomada”. Conforme o ministro, a única forma de a transposição do rio ser barrada é por meio de decisão judicial. A obra enfrenta 14 recursos judiciais no Supremo Tribunal Federal. Em nota, a Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco criticou a viagem do ministro, a qual chamou de“cooptação de lideranças e políticos regionais” e acusou o governo federal de “intransigência” e “autoritarismo”, por não ouvir “a vontade do povo” em relação à transposição do rio. Ainda

segundo o texto, “a estratégia tem o nome de ‘Travessia para o futuro’, porém as táticas são as mais retrógradas possíveis, e vão desde a compra de prefeitos a apresentação de projetos a comunidades, tendo como pano de fundo a justificativa do projeto de transposição”.

Indenizações

Frei Luiz Cappio, um dos principais opositores da transposição

Segundo Alzeni Tomáz, tanto o Exército, quanto o Ministério estão com equipes nas regiões “para fazer o lobby da transposição. Eles estão induzindo pessoas e vendendo as facilidades, só que o povo já começou a desconfiar da forma como estão fazendo”. De acordo com ela, o governo está negociando valores de indenização sem critérios. “Tem áreas onde negociam R$ 100 o hectare para um fazendeiro, e em outro a R$ 50 o hectare de terra para pequenos agricultores. Isso está gerando um problema. A comunidade está insatisfeita”, diz. Além disso, como o governo está anunciando a retirada das comunidades, muitas estão saindo sem ter recebi-

do indenização, acusa. “Mesmo as pessoas que acreditam na transposição estão completamente desorientadas”, revela Alzeni. Outra questão levantada por ela, é em relação às prefeituras. “O Ministério está oferecendo dinheiro às prefeituras em troca de apoio à transposição. E lógico que os prefeitos interessados em dinheiro estão achando bom”, denuncia.

Protestos

Em relação aos empregos a situação também é complicada. De acordo com Alzeni, o Ministério da Integração tinha anunciado que, no eixo Leste, seriam criados 480 empregos. “No entanto, o coronel do Exército já avisou que irá fazer um concurso. Então as pessoas começaram a desconfiar”, relata. Para Alzeni, houve poucos protestos contra a passagem do ministro porque as comunidades acreditam que é “ tão sem importância o cara que nem vale a pena a gente se mobilizar para gritar ‘fora Geddel’. Até porque a gente vai desmoralizá-lo no momento certo”, anuncia.


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brasil

Transposição não levará água às regiões mais secas do Ceará

Fotos: João Zinclar

SEMI-ÁRIDO Excluído do desenho dos eixos da transposição, o Sertão dos Inhamuns deveria fazer parte das regiões beneficiadas pelas águas do rio São Francisco, caso o projeto fosse realmente para a matar a sede do nordestino Tatiana Merlino, enviada especial a Aiuaba (CE) LATA D’ÁGUA na cabeça, lá vai Lizia, caminhando a passos curtos, rumo ao açude. Todos os dias são necessárias oito viagens carregando uma lata cheia d’água para abastecer a casa onde vive com o marido e seis filhos. Sorriso no rosto, pele escura e pernas grossas, a mulher de 37 anos acorda todos os dias às cinco da manhã, faz o café da família e às seis está na cidade. Durante uma hora ela trabalha como gari. Às sete está de volta e segue rumo ao pequeno açude que abastece as 46 famílias do sítio Espírito Santo, município de Antonina do Norte (Ceará). “Uso essa água para beber, cozinhar e tomar banho”, conta Lizia, um pouco ofegante em sua quarta viagem com a lata na cabeça.

ros pipa fazem parte da vida de Lizia desde a infância. Desde cedo, ela também aprendeu a não confiar nos políticos que em “períodos eleitorais aparecem para prometer água encanada, que nunca vem”. Dentre os seis anos em que vive na região, em dois o açude secou e a comunidade passou a ser abastecida por carro pipa. Sobre o projeto da transposição do rio São Francisco, Lizia acha que “é uma boa, mas a água não vem para cá. Precisava vir, né?” lamenta. Mas, “enquanto isso não acontece, a gente se vira, Deus ajuda”.

Esperando chuva

Na área rural da cidade vizinha, Aiuaba, vive Maria Avelina Bantim, de 62 anos. Ela e Lizia não se conhecem, mas vivem dramas semelhantes: a luta pelo acesso à água. Dentro da casa de taipa, Maria e o marido esperam a chegada da chuva ou do carro-pipa que a

“Esse projeto é mentiroso, falso porque ele usa o imaginário dessa população que é carente de água desde a sua existência”, protesta Maria Angelita Maciel, representante da CPT É uma manhã de sábado e, sob um sol forte, dezenas de moradores do sítio Espírito Santo amontoam-se em volta do açude. Mulheres lavam roupa, homens levam animais para beber água, mulheres e crianças fazem longas viagens com latas, baldes, jarras e tudo que puderem encher. “Não tem essa história de dizer: hoje estou cansada e não vou pegar água, não. O rojão sempre foi esse”, conta Lizia, que gasta cerca de 1h30 por dia no trajeto casa-açude, açude-casa. A dificuldade de acesso à água não é novidade para a mulher. As longas caminhadas em busca de água e os car-

família solicitou em janeiro para abastecer o que chama de cisterna. Há três anos, a família contratou o serviço de um pedreiro para construir um depósito de água, que fica a céu aberto. O resto de água existente no local (amarelada e cheia de moscas) abastece a família para beber, cozinhar e tomar banho. Antes da construção da tal cisterna, a vida de Maria era mais difícil ainda. Para poder beber água e tomar banho, todos os dias a mulher andava por meia hora até chegar ao açude Gameleira. “A gente sofre muito com a falta de água. Aqui é a região mais so-

Maria Avelina espera a chuva ou o carro-pipa

Quanto

1h30 é o tempo que Lizia gasta todos os dias pegando água

frida e mais seca do Ceará”, diz a mulher. Como a maioria das famílias da região, Maria e o marido vivem da agricultura de subsistência e, quando chove, conseguem plantar feijão, castanha e milho. “Ainda temos feijão e milho. Quando acabar, é só rezando”, diz. Sobre a transposição do rio São Francisco, Maria diz: “Faz tempo que ouvi falar disso, mas acho difícil vir para cá. Acho que é porque aqui é longe, né?”.

Propaganda enganosa

A cidade onde Maria vive fica em uma das regiões mais pobres e secas do Ceará, o Sertão dos Inhamuns, que ainda compreende os municípios de Arneiroz, Catarina, Parambu, Saboeiro e Tauá. O local sofre com os impactos das secas periódicas e com as seqüelas sobre a produção e, conseqüentemente, sobre a qualidade de vida do sertanejo. De acordo com críticos do projeto da transposição, ao contrário do que diz a propaganda feita pelo governo (de que a transposição iria beneficiar 12 milhões de pessoas e resolver o problema da seca no Nordeste), as águas não chegariam às áreas já beneficiadas por açudes: “Essa água vai passar longe de áreas realmente secas do estado do Ceará, como o Sertão dos Inhamuns, o Sertão Central e do Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte”, afirma Maria Angelita Maciel, representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Crato. “Esse projeto é mentiroso, falso porque ele usa o imaginário dessa população que é carente de água desde a sua existência”, completa. De acordo com Maria Angelita, “os pobres dos Inhamuns, do Sertão Central e do Pernambuco vão continuar com lata d’água na cabeça com esse projeto de transposição. Pior: haverá a justificativa de que o problema de seca foi resolvido com a obra”, acredita. Para a representante da CPT, se fosse para matar a sede da população, “não se discutiria esse projeto. Teríamos que criar uma alternativa mais local, mais próxima. Temos que desmistificar esse projeto porque esses caras são mentirosos”, finaliza.

A rotina de Lizia inclui oito viagens diárias ao açude para abastecer a casa

Má distribuição está na raiz da falta de água Na região, existem diversos reservatórios de água; contudo, 40% da área rural precisa ser abastecida com carro pipa enviada especial a Aiuaba (CE) Jailson de Castro Feitosa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aiuaba (CE), no Sertão dos Inhamuns, conta que o município possui diversos reservatórios, “pequenos, médios e grandes”. “No entanto, há regiões onde realmente não há água de jeito nenhum”, diz. De acordo com ele, cerca de 40% da área rural do município precisa de abastecimento de carro pipa nos períodos

de seca. “Essa é a região mais carente de água do Estado. Se fossem feitos poços e cisternas, nosso problema seria resolvido”, afirma. No entanto, Feitosa não entende por qual motivo a água da transposição vai para locais do Estado onde já existe água suficiente, como a região do Cariri. “Se o projeto é realmente para matar a sede do povo nordestino, por que a água não vem para cá?” questiona. Para ele, a resposta só pode ser uma: “há interesses políticos por trás dessa obra”. Antônio Roberto de Araújo Souza, da Associação Cristã de Base (ASC), entidade responsável pela implantação de cisternas no sertão cearense, lembra que a região dos Inhamuns é marcada por pequenos reservatórios de água, e os existentes, são responsáveis pelo abastecimento de cidades maiores. “As áreas rurais, que são imensas, convivem constan-

Construção de poços e cisternas resolveria problema

temente com a falta de água. Se a transposição é para matar a sede da população mais carente por que essa água não vai passar por essa região?”, cobra.

Para Souza, como a “ região é a mais seca do sertão cearense e a água vai passar por áreas do Estado onde já existem reservatórios – como a região do vale do Jaguari-

“As áreas rurais, que são imensas, convivem constantemente com a falta de água. Se a transposição é para matar a sede da população mais carente por que essa água não vai passar por essa região?”, questiona Antônio Roberto de Araújo Souza, da Associação Cristã de Base be, o Cariri e regiões como o Brejo Santo – essa é mais uma justificativa para a inviabilidade da transposição. Esse projeto é extremamente contraditório e inviável”. Os

verdadeiros beneficiários da água da transposição, acredita, serão os grandes proprietários de terra, que já estão com as melhores terras ao lado de onde a transposição vai passar. Uma das justificativas utilizadas pelo governo para as águas não chegarem a um local tão necessitado, é que, do ponto de vista topográfico, seria inviável levar água ao Sertão dos Inhamuns por esta ser uma região muito alta, o que elevaria os custos da obra. Para Souza, a explicação não procede. “Isso é desculpa furada, afinal, para a água chegar ao Ceará também vai ter que atravessar a Chapada do Araripe, essa água será elevada, e todos sabemos que do São Francisco até o Ceará não há apenas declives. Há montanhas, altos e baixos e mesmo assim vão viabilizar. Levar água para os Inhamun daria no mesmo”, completa. (TM)


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áfrica

Mesmo depois do fim do apartheid, democracia ainda é para poucos Ndofaya

ÁFRICA DO SUL Modelo neoliberal adotado nos últimos dez anos agrava as condições de vida dos trabalhadores Igor Ojeda da Redação EM GREVE geral desde o dia 1º, centenas de milhares de servidores públicos da África do Sul, organizados em torno do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu), preparam-se para aceitar uma nova proposta de aumento salarial por parte do governo do presidente Thabo Mbeki. Os trabalhadores, em sua maioria dos setores de Educação e Saúde, realizam, desde o início da paralisação – uma das maiores da história da África do Sul –, marchas e protestos por todo o país exigindo o atendimento de diversas reivindicações, entre elas um incremento nos seus salários de 10% (a demanda inicial era de 12%). O governo, que oferecia 6%, já acena com 7,25%, ainda considerado insuficiente pelos grevistas (veja matéria nesta página), que chamam a atenção para a queda do padrão de vida dos trabalhadores públicos. “Eles têm enfrentado uma massiva e brutal reestruturação do setor público nos últimos 10 anos. Essa reestruturação neoliberal tem causado a privatização ora parcial ora absoluta dos bens do Estado, terceirização de serviços de apoio e encolhimento dos serviços públicos”, explica ao Brasil de Fato Tebogo T. Phadu, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação, Saúde e Associados (Nehawu, na sigla em inglês). Segundo ele, a política salarial do governo é ditada pela política monetária conservadora do Reserve Bank (o Banco Central). “Por isso, a política governamental tem sido geralmente de salários ‘antivida’ para a maioria dos trabalhadores e muito generosos para a elite”, diz.

Relações estremecidas entre CNA e Cosatu da Redação Colonizada por holandeses e britânicos, a África do Sul viveu por quase meio século (de 1948 a 1994) sob o regime do apartheid (que em africânder, língua falada no país, significa “vida separada”), estrutura política e social organizada legalmente para garantir o domínio da minoria branca e a segregação da maioria negra, impedida de exercer uma série de direitos. Durante o período, a principal organização política de oposição foi o Congresso Nacional Africano (CNA), considerado ilegal até 1990, ano em que o apartheid começa a ser desmantelado e um dos líderes do CNA, Nelson Mandela, é libertado da prisão (onde estava desde 1962). Após eleições realizadas em abril de 1994, Mandela torna-se o primeiro presidente negro da história da África do Sul, em uma aliança com o Partido Comunista e o Cosatu. Em 1999, foi sucedido por Thabo Mbeki, reeleito em 2004 e atual mandatário, também pelo CNA. O governo de Mbeki, mais claramente a partir de 2001, passou a adotar uma política econômica neoliberal, o que fez estremecer a relação com o Cosatu. No final de 2004, um dos principais líderes da Central, Zwelinzima Vavi, criticou o CNA devido a um programa lançado para diminuir as desigualdades causadas pelo apartheid. Vavi reclamou que o projeto favorecia alguns da elite negra e não atingia as massas. Desde então, o governo enfrenta inúmeros protestos. O Cosatu acusa o CNA de não fazer nada para melhorar o padrão de vida dos pobres. No fim do ano, o partido irá escolher um novo líder, que sucederá Mbeki. (IO)

Entre outras reivindicações, os servidores em greve querem 10% de aumento

Para grevistas, oferta do governo é um “insulto”

Rob Rees

Contraste social

Como conseqüência, de acordo com Phadu, a relação salarial entre servidores públicos de elite e os trabalhadores médios é de 1:29. Ou seja, os primeiros ganham 29 vezes mais que os segundos. Em 1998, a proporção era de 1:18. Asanda A. Fongqo, chefe de comunicação da Organização Democrática dos Enfermeiros da África do Sul (Denosa, em inglês), concorda: “muitas das políticas sociais e econômicas do governo não têm como alvo a classe trabalhadora e os pobres. Nós sentimos que o contraste entre os ricos e pobres ainda não foi eliminado, dada nossa história política”, protesta, em entrevista ao Brasil de Fato. Para ela, os baixos salários dos servidores públicos do país não são suficientes para acompanhar os aumentos nos preços dos alimentos, mensalidades escolares, moradia, transporte etc. A inflação no país vem subindo nos últimos anos. Em 2005, foi de 3,4%; em 2006, 4,7%. Já o índice medido em abril de 2007 (desde abril de 2006) alcançou os 7%. Além disso, explica, “há falta de enfermeiros, que estão extremamente sobrecarregados”. Por isso mesmo, a adesão da categoria à greve foi alta. Muitos hospitais em todo o país tiveram um alto percentual de seus funcionários parados. Antes do início das paralisações, o governo havia obtido na Justiça do Trabalho uma determinação proibindo a participação dos trabalhadores de setores essenciais (policiais, funcionários da saúde, bombeiros etc). No dia 11, cumpriu a ameaça e demitiu cerca de 600 enfermeiros e enfermeiras, o que causou a revolta dos grevistas. “Durante anos, pedimos ao governo a assinatura de um acordo de serviço mínimo para os trabalhadores da Saúde em caso de paralisação, mas foi recusado. Des-

Rob Rees

da Redação A última oferta salarial do governo para os grevistas, um aumento de 7,25% agora e um de 1% acima da inflação para 2008, “representa um insulto para os trabalhadores”. A revolta de Tebogo T. Phadu, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação, Saúde e Associados (Nehawu), é explicada pelo índice de inflação medido entre abril de 2006 a abril de 2007, que atingiu 7%.

O índice de desemprego entre os brancos é de 4,5%. Entre os negros, atinge 30,5%. A discrepância entre o percentual de mulheres negras desempregadas e homens brancos é gritante: 36,4% contra 4,4% se modo, eles estão privados de seu direito constitucional à greve”, observa Asanda. No entanto, com as negociações prestes a resultar em um acordo, o governo já acena com a possibilidade de recontratar os demitidos da Saúde. Durante a greve, os sindicatos do setor estabeleceram que entre 20% e 25% de seus trabalhadores participariam de serviços como atendimento intensivo e emergências.

Discriminação

A economia sul-africana vem crescendo seguidamente desde 2003. Nesse ano, seu Produto Interno Bruto (PIB) foi 3% maior em relação ao ano anterior. Em 2004 e 2005, o crescimento foi de 4,5% e 4,9%, respectivamente. No ano passado, chegou a 5,5%. No entanto, a população vem se beneficiando pouco desse boom econômico. Cerca de metade dos sul-africanos vivem abaixo da linha da pobreza, e o desemprego oficial foi de 25,5% em 2006.

Dados do Labour Force Survey (LFS), instituição do governo, mostra que a informalidade no país, excluindo os trabalhadores em agricultura, é de 25,7%. As mulheres são mais atingidas que os homens: 30,7% contra 21,2%. Segundo Phadu, os trabalhadores negros foram os mais duramente atingidos pela reestruturação neoliberal, “especialmente as mulheres, que ocupam muito da base da hierarquia salarial. As taxas de emprego discriminadas por raça mostram que as feridas causadas no país pelo apartheid ainda permanecem abertas. O índice de desemprego entre os brancos é de 4,5%. Entre os mestiços, de 19,4%. Entre os negros, atinge 30,5%. A discrepância entre o percentual de mulheres negras desempregadas e homens brancos é gritante: 36,4% contra 4,4%. “Esse é um contexto de uma crise de desemprego e a correspondente pobreza para milhões de sul-africanos negros”, lamenta Phadu.

“A objeção às nossas demandas é mais política, no sentido de que pode minar alguns dos pilares-chave da política macroeconômica, especialmente a política de ataque à inflação, que vai contra um salário digno” Segundo ele, a demanda original dos servidores, de 12% (agora está em 10%), é realista. “Houve crescimento sucessivo na economia, o que fez aumentar de tal modo as receitas que o governo, de forma bem escandalosa, celebrou o excedente no orça-

mento este ano. A objeção às nossas demandas é mais política, no sentido de que pode minar alguns dos pilares-chave da política macroeconômica, especialmente a política de ataque à inflação, que vai contra um salário digno”, enfatiza. O pacote oferecido pelo governo inclui ainda um incremento, a partir de julho de 50% nos salários de algumas categorias, como a dos enfermeiros, um maior subsídio para os integrantes do plano de saúde do governo e aumento de quase 100% nos auxílios-moradia. No entanto, segundo Phadu, nenhum movimento é percebido em relação a alguns pontos importantes das pautas de reivindicações. Uma delas é a redução da discrepância salarial entre os servidores públicos. De acordo com ele, os trabalhadores de elite ganham 29 vezes mais que o servidor médio. Os grevistas exigem que essa proporção diminua para 1:25 em 2007 e para 1:12 nos próximos anos. “Algumas das propostas do governo procuram alargá-las”, diz. Outra importante demanda é o preenchimento dos cargos vagos, que chegam a 40% em setores essenciais como Saúde e Educação. De acordo com Phadu, “o governo não diz nada sobre isso, embora esteja publicamente falando sobre ‘construir um Estado desenvolvido’ ”. (IO)

Contra os manifestantes, a política de guerra da Redação A repressão contra os trabalhadores do setor público por forças de segurança governamentais vem recebendo duras críticas por parte dos sindicatos. No dia 4, Jan Kotze, dirigente do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu) chegou a afirmar que a violência policial estava superando a do tempo do apartheid. Uma semana depois do início da greve, o governo enviou às ruas do país 2.500 homens do Exército, vestidos com coletes à prova de balas e carregando armas automáticas, para conter os conflitos entre os grevistas e os que desejavam seguir trabalhando. Em algumas das vezes, as forças de segurança atiraram com balas de borracha contra a multidão, deixando feridos. Para Tebogo T. Phadu, do Nehawu, o propósito do governo é intimidar os tra-

balhadores. “Nós testemunhamos a brutalidade policial em várias instâncias (nos locais onde a polícia abriu fogo contra os grevistas) e assédio aos ativistas e líderes de nosso sindicato através de prisões-relâmpago. A maioria está convicta de que tais táticas, acompanhada pela propaganda da mídia contra a greve, procuram quebrar a determinação dos trabalhadores de intensificarem as paralisações”, condena. Segundo ele, a mídia passa a idéia de que os grevistas estão intimidando os não-grevistas em níveis inéditos. “Mas, até agora, ninguém foi preso e nenhum caso foi aberto por causa disso. Claro que somos contra a intimidação vinda dos trabalhadores, mas acreditamos que isso tem sido geralmente exagerado”, ressalta Phadu, que faz questão de enfatizar que a greve é pacífica e disciplinada e a maioria dos policiais, no geral, cooperam com os servidores. (IO)


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internacional João Alexandre Peschanski

Trabalhadores e pobres sob ataque nos EUA ENTREVISTA Para o sociólogo Michael Burawoy, sindicatos estadunidenses passam por um processo de redefinição, que leva alguns a abandonar os canais tradicionais de participação política e apostar no trabalho de base João Alexandre Peschanski de São Paulo (SP) O PRESIDENTE estadunidense, George W. Bush, promove uma política de colonização dentro dos Estados Unidos. A frase, aparentemente, não faz sentido. Geralmente, associa-se colonização ao que Washington faz no Afeganistão ou no Iraque, ou seja, em outros países. Mas, explica o sociólogo Michael Burawoy, em entrevista ao Brasil de Fato, Bush está mantendo uma política de ocupação dentro do próprio país que ele governa. Isso se traduz pela segregação de grandes parcelas da população, geralmente negras – ou afro-estadunidenses, como se chamam – , às quais são negados direitos sociais e que vivem confinadas em bairros, com altas taxas de desemprego e violência, sem que o governo adote medidas para transformar essa situação. “O governo levou os afro-estadunidenses pobres a se transformar em uma subclasse, estigmatizada, segregada e, de certo modo, humilhada”, afirma Burawoy. Para ele, a expressão máxima dessa situação é a forma como Bush lidou com as pessoas afetadas pelo furacão Katrina, que atingiu o Sul dos Estados Unidos, especialmente a cidade de Nova Orleans, em agosto de 2005. Estima-se que 1.600 pessoas tenham morrido em virtude da catástrofe – e, diz o sociólogo, da falta de apoio do governo, que “não fez nada” para evitar que essas mortes ocorressem e que militarizou a região. A violenta política interna de Bush levou a uma redefinição dos movimentos de trabalhadores, especialmente os sindicatos. Estes, por exemplo, tiveram de se abrir mais às pautas dos imigrantes latino-americanos, que concentram cada vez mais empregos, especialmente no setor de serviços, e que têm enfrentado, de modo inovador, as políticas antitrabalhistas de Washington. Mas o panorama da organização social no governo Bush é sombrio, revela Burawoy: apenas 12% dos trabalhadores estadunidenses são sindicalizados.

O governo [estadunidense] praticamente acabou com as políticas de assistência social, que evidentemente beneficiavam a população mais pobre. É um processo de tirar a cidadania de parte da população, geralmente negra e de baixa renda O sociólogo esteve este mês no Brasil, dando palestras em diversas universidades. Uma delas – a mais especial, de acordo com ele – foi sobre o Katrina, no dia 7, no auditório da reitoria da Universidade de São Paulo (USP), ocupada pelos estudantes. Iniciou sua fala contando que a Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde leciona, foi muito ativa em protestos nos anos de 1960 e que, portanto, se sentia em casa. Recebeu aplausos dos estudantes. Brasil de Fato – Você está atualmente pesquisando os impactos sociais do furacão Katrina. O que o motivou? Michael Burawoy – O que ocorreu em Nova Orleans, com o governo deixando que morressem centenas de pessoas, sem resgatar, gerando uma situação de desespero acentuado e horror, é a expressão máxima da sociedade que existe hoje dominantemente nos Estados Unidos. Precisa-se entender o que aconteceu na perspectiva das pessoas de lá, geralmente afro-estadunidenses. Sentiram que foram abandonadas por seu governo, o que agravou a con-

seqüência da catástrofe. Sentiram que não estavam sendo tratadas como seres humanos, mas como criminosas, já que o governo enviou militares para esses lugares, não para ajudar no resgate das pessoas, mas para impedir que ocorressem saques e roubos. Depois, tornaram-se refugiadas em seu próprio país: foram deslocadas para lugares onde não eram aceitas, discriminadas, e, quando quiseram voltar, souberam que não podiam mais. O exemplo mais claro disso é um projeto habitacional para pessoas de baixa renda, ou seja, afro-estadunidenses, pouco atingido pelo furacão, mas que foi demolido pelo governo. Por quê? Para que os habitantes antigos não voltassem. Aliás, há evidências de que o governo sabia dos impactos sociais de uma catástrofe como o Katrina anos antes e não fez nada. Por quê? Para que pudesse controlar e reconstruir a cidade de seu modo. O interesse do governo é claro: a Louisiana concentra grande parte do petróleo marítimo dos Estados Unidos, que está sob administração de Washington, não do Estado. Nova Orleans se tornou palco de uma intervenção, militarizada, massiva dos Estados Unidos para preservar os interesses do governo federal – isso faz com que, para muitas das pessoas atingidas pelo Katrina, a cidade em que moravam lhes seja proibida, pois, na lógica de Washington, os afro-estadunidenses pobres geram desordem em um espaço que o governo quer manter sob seu controle. É como se fosse uma colonização interna, o governo dos Estados Unidos colonizando uma região dentro do país. De que maneira isso ocorre em outros lugares nos Estados Unidos? O governo praticamente acabou com as políticas de assistência social, que evidentemente beneficiavam a população mais pobre. É um processo de tirar a cidadania de parte da população, geralmente negra e de baixa renda, que chamo de descivilização. O governo faz isso intensificando a segregação racial e social. E a lógica de Washington é não contribuir para o desenvolvimento das áreas pobres, mas excluí-las, apartá-las, dos Estados Unidos, mesmo que isso seja feito com força militar. Qual a situação dos imigrantes latino-americanos? Passa por um processo diferente. O governo levou os afro-estadunidenses pobres a se transformar em uma subclasse, estigmatizada, segregada e, de certo modo, humilhada. No que diz respeito aos latinos, como os chamamos, eles criaram vínculos de solidariedade dentro de suas comunidades para resistir às políticas do governo e reivindicar melhores condições de vida. Estão participando do movimento operário, de modo ativo, e modificando toda a estrutura de organização sindical. Os afro-estadunidenses, em virtude do processo político ao qual foram submetidos, violento, se fecharam, o que se percebe por terem até uma forma de falar própria, dificilmente compreensível por pessoas que não freqüentam as áreas onde vivem. Não é possível unir os pobres afro-estadunidenses e os latinos em uma mesma organização social, como um sindicato, quando estão em uma mesma categoria profissional? Muito difícil. Inicialmente, não só pelas diferenças que existem nas comuni-

Manifestação em defesa de direitos trabalhistas realizada em Boston (EUA)

dades em que há predominantemente habitantes afro-estadunidenses ou imigrantes latino-americanos. Há muito preconceito por parte dos empregadores – os Estados Unidos são um país com alto índice de racismo. “Há empregos para latinos e outros para negros”, dizem. Geralmente, vêem nos latino-americanos capacidade de esforçar-se e, para os afro-estadunidenses, há poucas oportunidades. Mas havia outro grande entrave, que diz mais respeito aos latinos: durante todo o século 20, os sindicatos lhes foram quase totalmente fechados. O discurso dominante da AFL-CIO, até mais ou menos o ano de 2000, pautava o que chamava de competição global, que denunciava que o governo apoiava a imigração, mesmo clandestina, de latinoamericanos, pois estes aceitariam trabalhar recebendo menos do que os estadunidenses e teriam uma aversão à organização sindical. Os latinos não tinham espaço dentro das organizações trabalhadoras e a ofensiva do governo contra os direitos trabalhistas se intensificava, que garantia mais e mais benefícios a grandes corporações. Isso mudou? Mudou, mas não por iniciativa da direção da AFL-CIO. Há muitas categorias nos Estados Unidos em que os latinos têm a maioria dos empregos: trabalho de limpeza, auxílio domiciliar, segurança, hotelaria... Geralmente, empregos no setor de serviços, cujos sindicatos, é importante notar, faziam parte da central. A partir do fim da década de 1990, começaram a haver muitas mobilizações dos trabalhadores dessas categorias, mobilizações inovadoras e vitoriosas, que modificaram a estrutura sindical estadunidense. Por exemplo, os trabalhadores na área de limpeza. São conhecidos sociologicamente como empregados invisíveis, pois fazem a faxina em grandes corporações à noite, quando a maioria das outras pessoas que trabalham lá não está. As pessoas saem de seus escritórios, sujos, e, quando voltam, como se fosse por milagre, encontram tudo limpo. Os invisíveis se tornaram visíveis: fizeram manifestações no período de expediente dos outros trabalhadores da corporação. A lógica do protesto deles foi surpreendente: mais do que seguir o repertório comum da AFLCIO, organizaram atos em que simbolicamente humilhavam seus empregadores. Isso foi poderoso. A AFL-CIO modificou seu discurso a partir disso? Mudou pela influência do sindicato que organizava os trabalhadores de serviços, o Sindicato Internacional dos Empregados em Serviços [da sigla em in-

Reprodução

Quem é Michael Burawoy é professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Entre outros assuntos, dá aulas sobre a teoria do filósofo marxista Antonio Gramsci, sobre a situação da Rússia após a derrocada do regime soviético e sobre a questão do trabalho. Atualmente, desenvolve um projeto, intitulado Sociologia Pública, cujo objetivo é aproximar os sociólogos dos anseios da população estadunidense e fazer com que essa disciplina acadêmica contribua para a melhoria das condições de vida dos pobres. É autor e organizador de vários livros, dentre os quais Manufacturing Consent (1979) e Global Ethnography (2000).

glês, SEIU]. Essa organização, da qual aliás John Sweeney fora presidente, assumiu a simbologia e a política desses protestos de invisíveis, fazendo com que se tornassem a tônica de sua atuação. O SEIU fez com que se repensasse toda a prática sindical e acabou tendo impacto na AFL-CIO. Mas, mesmo assim, em 2004, houve uma cisão entre essa central, com organizações de trabalhadores mais tradicionais, e sindicatos ligados a SEIU, que montaram uma federação, chamada Change to Win [Mudar para vencer, em inglês]. A principal diferença é que a AFL-CIO, por mais que tenha se aproximado dos latinos, continua apostando muito nos canais institucionais de participação política, enquanto a Change to Win coloca seus esforços na organização de base. Mas é preciso notar que a taxa de sindicalização dos trabalhadores é baixíssima: 12%. Quando se considera apenas os trabalhadores em empresas privadas, a taxa é ainda mais baixa. Por que a taxa é tão baixa? Muitos trabalhadores, na área da siderurgia especialmente, não se sindicalizam porque consideram que os sindicatos agem contra seus interesses. Sentem que as reivindicações das organizações são radicais demais e que, com isso, desestabilizam o local do emprego. Essa lógica mina qualquer possibilidade de se criar solidariedade entre os operários, pois eles querem o mínimo: manter seu emprego, a qualquer custo. E, para isso, pensam, a indústria siderúrgica estadunidense tem de ser competitiva num contexto global e que isso só vai ser possível se os trabalhadores não tiverem muitos benefícios. O governo promove grandes campanhas de propaganda, que acabam levando a esse tipo de mentalidade.

Para entender

Capas de livros escritos ou organizados por Burawoy

AFL-CIO – principal central sindical estadunidense, formada pela união da Federação Estadunidense de Trabalhadores (da sigla em inglês, AFL) e do Congresso de Organizações Industriais (da sigla em inglês, CIO), em 1955. Reúne 54 sindicatos; seu presidente é John Sweeney.


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américa latina

Correa propõe não explorar petróleo; e quer receber por isso Presidenciaecuador Finding Species

EQUADOR Presidente propõe compensação financeira internacional para manter recurso no subsolo e preservar área rica em biodiversidade Igor Ojeda da Redação O EQUADOR quer manter, embaixo da terra, o petróleo de uma de suas jazidas. Mais: o país deseja uma compensação financeira por isso. A ousada proposta foi feita oficialmente no dia 5, dia mundial do meio-ambiente, pelo presidente Rafael Correa. O objetivo é conservar uma das maiores biodiversidades do planeta, a do parque Yasuní, onde está localizado o campo petrolífero Ishpingo, Tambococha, Tiputini (ITT). Além disso, a proposta visa respeitar o direito de povos indígenas da região e reduzir a emissão de gás carbônico (CO²), um dos principais causadores do aquecimento global. “A proposta é um novo modelo econômico, de uma economia pós-petroleira”, disse à imprensa Ana Albán, ministra equatoriana do Ambiente. A idéia é que o Estado emita bônus pelo petróleo que permanecer no solo, em troca de nunca extraí-lo. A expectativa do governo é conseguir 50% do que obteria com a exploração do ITT, cujas reservas estão estimadas em cerca de um bilhão de barris. Ou seja, 350 milhões de dólares (de 700 milhões previstos) anuais, por cinco ou seis anos. Com base nesse montante, se criaria um fundo de capitalização com a finalidade de gerar um ingresso permanente de recursos, que seriam empregados no desenvolvimento nacional.

Biodiversidade

“Vivemos em um mundo onde o capitalismo gerou contradições tão grandes que

Índias Huaorani protestam contra os avanços de companhias petrolíferas na floresta de Yasuní; ao lado, Rafael Correa, presidente do Equador

Em apenas um hectare de floresta do parque Yasuní, existem quase tantas espécies de árvores e arbustos quanto em todo o território dos EUA e o Canadá juntos a sobrevivência está em jogo e o aquecimento global é uma agenda prioritária”, explica Esperanza Martínez, da Oilwatch Equador (rede de resistência às atividades petrolíferas nos países tropicais e uma das elaboradoras do texto do projeto), ao ser perguntada pelo Brasil de Fato sobre quais as chances de adesão à proposta, que, segundo ela, também está ligada à conservação da biodiversidade do Yasuní, localizado na Amazônia, e à proteção aos indígenas da área. “Acredito que temos uma grande oportunidade”, diz. As três categorias de potenciais doadores são: organizações não governamentais e agências de cooperação; pessoas físicas, do Equador e de fora; e governos. De acordo com um estudo científico de 2004, o Yasuní abriga a maior diversidade biológica do mundo. Alguns pesquisadores afirmam, por exemplo, que, em apenas um hectare de floresta do parque,

existem quase tantas espécies de árvores e arbustos quanto em todo o território dos Estados Unidos e do Canadá juntos. Em 1989, a região passou a ser considerada Reserva Mundial de Biosfera pela Unesco, título que determina que, para se garantir o equilíbrio e a não contaminação, só podem ser desenvolvidas “atividades cooperativas compatíveis com práticas ecológicas racionais, como a educação relativa ao meio ambiente, a recreação, o turismo ecológico e a investigação aplicada básica”.

Águas tóxicas

De acordo com o Oilwatch, o impacto mais grave da atividade petroleira para o local seria a descarga de águas tóxicas. Citando dados da estatal Petroecuador, a entidade explica que nos campos da empresa há uma relação de quatro barris dessa água para cada barril de petróleo. Normalmente, tenta-se reinjetar essa água no solo, mas grande

ARGENTINA

Para atender exigência dos EUA, congresso aprova lei antiterror Movimentos sociais protestam e diz que objetivo da lei é ampliar a repressão e criminalizar a luta O Congresso da Argentina aprovou, em tempo recorde, uma lei antiterrorista. A lei, que tramitou apenas oito dias no congresso, foi aprovada dia 13. Para os movimentos sociais do país, isso ocorrreu para que o governo de Nestor Kirchner pudesse responder a uma exigência do governo dos Estados Unidos e do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que haviam adiantado que considerariam a Argentina como “país não confiável para os investimentos” se não sancionasse uma norma que castigasse o terrorismo antes de 23 de junho. Em comunicado, os movimentos sociais declararam que Kirchner tem manifestado em diversas oportunidades seu compromisso na luta contra o chamado “terrorismo”. Com sua iniciativa, a República Argentina aprovou, em 30 de março de 2005, a Convenção Interamericana contra o Terrorismo e o Convênio Internacional para a Repressão do Financiamento do Terrorismo. Kirchner também tem ampliado a capacidade operacional do Departamento Unidade de Investigações Antiterroristas pertencente a Polícia Federal Argentina, organismo criado durante a presidência de

Menem, o qual conta com um centro de detenção especial – uma prisão à margem da lei – para “terroristas”.

Convocatória

Os movimentos sociais do país convocam todos para unir esforços com os organismos de direitos humanos, organizações sociais, partidos políticos, intelectuais, estudantes, trabalhadores empregados e desempregados para repudiar e impedir a aplicação da Lei Antiterrorista. Querem também ampliar a luta pela sua anulação e dos tratados internacionais que lhe servem de base, por meio de atividades, mobilizações e todo tipo de ações políticas. Para as entidades, essa lei “tem como objetivo ampliar o poder de repressão por meio de uma ferramenta legal que aumenta enormemente as atribuições das forças policiais, de inteligência, juízes e promotores e que é suficientemente severa para com os que lutam e mais aberta possível em relação às ações que possam ficar marcadas como “terroristas”. Além disso, eles acreditam que essa Lei Antiterrorista se enquadra dentro da doutrina jurídica mais retrógrada e fascista, reproduzindo a doutrina do “Direito

Penal do Inimigo” e do “Direito Penal do Autor”. Com isso, as entidades asseguram que serão criados delitos que não penalizam o ato, e, sim, o autor pelo fato de ser um lutador, trabalhador, ou por pertencer a uma organização política, social, gremista ou de direitos humanos. “É nessa conjuntura que se utiliza a figura da associação ilícita, que tem sido usada tanto por governos de fato quanto por constitucionais para reprimir trabalhadores e o povo”, denuncia o comunicado. Os termos utilizados na lei dão ampla interpretação sobre o que é uma organização terrorista. As organizações populares consideram que o texto da lei não está claro e que essa ferramenta repressiva trata como “terrorista” todo aquele que faça parte de uma organização que luta por reivindicações de qualquer tipo, que tente por meio da prática de delitos, como obstrução de ruas, obrigar um governo ou organismo internacional a realizar um ato ou abster-se de fazêlo, sempre que a organização tenha um plano de ação destinado à propagação do ódio étnico, religioso ou político. (www.adital.com.br)

parte dela vai parar nos rios. Além disso, a área é território do povo indígena Huaorani, que abriga alguns clãs que vivem em isolamento voluntário, produzindo o suficiente para a sobrevivência. A Petrobras opera um campo no parque, próximo ao ITT: o bloco 31. A estatal brasileira é muito criticada por organizações equatorianas por atuar como qualquer outra transnacional, causando danos ambientais e às comunidades locais. Para Esperanza, o bloco 31 não tem sentido do ponto de vista econômico, mas é uma porta de entrada para o ITT. “A empresa tem demonstrado não ter nenhum interesse pelo ambien-

te, nenhuma sensibilidade por uma proposta que já foi qualificada como inovadora não só para o país mas também para o planeta”, lamenta.

Soberania alimentar

Outro objetivo que está por trás do projeto de se manter o petróleo do campo ITT no subsolo é o fim da dependência da economia equatoriana em relação à exploração do produto. “Os fundos [garantidos pelo mecanismo dos bônus] deveriam estar destinados a uma proposta que contribua para liberar o país da dependência e permita soluções certeiras em relação à pobreza. Uma proposta poderia ser criar um bônus para apoiar a agricultura familiar auto-sustentável, considerando que a base da soberania energética é justamente a soberania alimentar”, diz texto elaborado pela Oilwatch.

Segundo Esperanza, isso significa que os fundos não podem se destinar, por exemplo, aos agrocombustíveis, à mineração ou a outros projetos petrolíferos. Além disso, seriam evitados, para o parque Yasuní, os danos já causados pela exploração petroleira em outros campos do país. “Esses impactos têm a ver com a destruição de ecossistemas, do tecido social das comunidades indígenas e camponesas e inclusive da economia nacional. Rios contaminados, desmatamento, câncer, povos extintos... são o dia-a-dia do Equador petroleiro”, relata Esperanza. Caso a proposta de não retirar o petróleo do ITT não vingue, a segunda opção é sua exploração pela estatal equatoriana, “com tecnologia de ponta e minimizando os impactos ambientais”, destacou o presidente Rafael Correa.

MÉXICO

Camponeses são vítimas de violência Ação violenta da polícia estatal para expulsar indígenas deixa dezenas de feridos e um desaparecido Camponeses indígenas e integrantes da organização “Los Dorados de Villa” são vítimas de repressão e violência no México. A denúncia é da Liga Mexicana pela Defesa dos Direitos Humanos (Limddh), que, por meio de comunicado, reivindica às autoridades mexicanas a intervenção nos casos de violência ocorridos em Ixhuatlán de Madero, Veracruz, dia 14. Segundo a Limddh, aproximadamente 47 pessoas foram presas e uma está desaparecida após uma ação violenta da polícia estatal em uma tentativa de desalojar camponeses indígenas dos 513 hectares terras que ocupavam desde o dia 10 de junho, em “Lomas del Dorado”, Ixhuatlán de Madero. Os ocupantes são integrantes da organização “Dorados de Villa” e aderentes da “A Outra Campanha”, uma iniciativa política civil de zapatistas que consiste, entre outras coisas, na construção de espaços de comunicação, de ação política e de encontro com movimentos sociais de todo o território mexicano. “Em três minutos chegaram 10 patrulhas e um caminhão. Na entrada começaram a atirar e entraram no acampamento. Nós não tínhamos formas de defesa, então tratamos de escapar. Eles seguiram disparando contra nós. Agarraram vários companhei-

ros. Tudo foi armado pelos ricos que têm as nossas terras”, denunciou a Liga. O conflito por essas terras teve início há 23 anos, quando uma resolução presidencial de 19 de janeiro de 1938, a qual dizia que aquelas eram terras públicas, determinou que o exército mexicano desalojasse os camponeses do local. Em 1941, as terras teriam sido concedidas às comunidades de Tzocohuite e Lomas del Dorado, mas a distribuição de 2. 472 hectares que ainda estavam nas mãos da família de Josefina Faisal Domínguez nunca teria sido realizada. Em 16 de janeiro deste ano, os camponeses entregaram ao governo de Fidel Herrera um ofício em que solicitam terras para trabalhar. Depois disso, os indígenas estiveram diversas vezes na capital na tentativa de conseguir um encontro com autoridades locais para solucionar o caso, mas não obtiveram êxito. No comunicado enviado ao governo mexicano, entre outras reivindicações está a garantia da integridade física e psicológica e as garantias de segurança jurídica aos 47 detentos; que sejam investigados os casos relatados e que seja assegurada a aplicação do que está disposto na Declaração sobre os defensores dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral da Nações Unidas em dezembro de 1998. (www.adital.com.br)


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cultura Leonardo Melgarejo

Eduardo Sales de Lima de Brasília (DF) NA SOCIEDADE ocidental, o termo “mística” está comumente ligado à magia, às dimensões cósmicas e coisas do tipo. Mas, dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), esse signo remete a algo muito mais profundo, ao “mistério”, ao “inexplicável”, à motivação subjetiva que move o camponês a permanecer na luta por uma sociedade justa. Na cartilha “O MST: a luta pela reforma agrária e por mudanças sociais no Brasil”, o dirigente nacional do movimento, Ademar Bogo, explica a mística: trata-se de uma condição de vida que se estrutura por meio das relações entre as pessoas e as coisas no mundo material e as idéias e a utopia no mundo ideal. O trabalhador camponês planta e colhe um sentimento canalizado em direção a um ideal alcançável. A mística ajuda a construir, dessa maneira, a identidade cultural e organizativa do povo sem terra. Concretamente, ela pode ser praticada e observada em dois planos: na luta cotidiana e na expressão artística dos sem-terra. Geralmente, antes de encontros de formação

O conceito de que o lutadores sociais são seres de razões, mas também de emoções, ou seja, a combinação entre a objetividade e a subjetividade, é, talvez, a grande contribuição dos trabalhadores do campo ao pensamento marxista e confraternização, como o 5º Congresso do MST, realizado entre os dias 11 e 15 em Brasília (DF), as apresentações se configuram como um instrumento pedagógico capaz de contribuir na construção da identidade cultural e na formação política dos sem-terra. Terezinha Pereira de Souza, do assentamento Santa Rosa, do Mato Grosso do Sul, atesta: “A mística nos renova para a luta”. De acordo com Rafael Villas-Boas, integrante do coletivo de cultura do MST, as expressões artísticas do movimento se caracterizam como a “celebração do mistério”. “O mistério é a revolução, a necessidade de autotransformação coletiva e a mudança de significações de formas de poder, das relações de trabalho, da relação do ser humano com a natureza”, explica.

Subjetividade

Charles Trocate, da coordenação nacional do MST no Pará, afirma que a mística é, talvez, a grande contribuição dos trabalhadores do

Carlos Ruggi

A celebração do mistério

Trabalhadores sem terra cantam o hino nacional em mística realizada durante o 5º Congresso do MST

campo ao pensamento marxista. “Primeiro, porque há uma negativa em todo processo de luta da importância da subjetividade, da importância da vontade subjetiva. E o MST, ao longo de sua história, foi construindo o conceito de que nós somos seres de razões, mas também somos seres de emoções. E não há outro momento de explicitarmos o nosso projeto político senão no momento em que estamos emocionados por aquilo que nós fazemos e por aquilo que nós acreditamos”, explica. Trocate lembra que, para o movimento, o sentido de utopia criado pelo escritor inglês Thomas Morus, em 1516, que dizia que a utopia se inseria no espaço do “não lugar”, deve mudar. “A utopia não é o lugar nenhum. Para nós, utopia é exatamente as idéias que nós estamos realizando. A mística contempla esse universo das idéias que estamos pondo em prática, seja na ocupação, seja na formação, seja nas várias formas de mobilizações sociais

que nosso movimento realiza”, diz. O integrante da coordenação nacional do MST destaca que estar no mundo não se resume à contemplação, mas a um sentido de fazer permanentemente. E, nesse fazer contínuo, o movimento foi se desenvolvendo ao longo de sua construção histórica. “Nós não precisamos negar Cristo, Marx, Lenin, Paulo Freire, Darci Ribeiro, Caio Prado ou Florestan Fernandes. Esse universo de pensamento filosófico, sociológico e religioso vai conformando a organização que somos. Aí a idéia de que somos o resultado de outras construções”, conclui Trocate.

Fé revolucionária

No passado, muitas críticas de setores de esquerda consideravam que a mística estava ligada historicamente ao idealismo, o que não caracterizaria o MST como um movimento de esquerda, mas sim religioso, inspirado sobretudo na teologia da libertação. Esse argumento, porém, se torna inconsistente quando o

dia-a-dia do movimento demonstra seu caráter essencialmente político. A fé, ligada aos mistérios do cristianismo, da terra e do brotar dos alimentos se une à fé revolucionária, que impulsiona a luta. “O MST é esse grande sujeito coletivo que incorporou o povo brasileiro, nós não temos distinção de cor, raça ou sexo. Existe o preto, o branco, o amarelo, o indígena, o cafuzo. Esse sentido popular, de povo brasileiro, faz com que a gente tenha presente diferentes manifestações na nossa organização e na materialização da nossa luta”, afirma Trocate. Para ele, esse sentido abarca uma religiosidade prática, que inclui os sujeitos históricos que pretendem realizar a felicidade aqui e não esperar que ela venha em outro estágio da história ou em outro “grau de existência”. Os trabalhadores rurais do MST, segundo Trocate, possuem a fé revolucionária. “A fé revolucionária é exatamente a idéia de que nós fazemos parte de uma organização e que temos um tempo histórico para realizar tarefas imprescindíveis, como, por exemplo, a tarefa de entregar este país para a próxima geração sem o problema do latifúndio, com a reforma agrária realizada”, garante.

Ensaios e encenações, expressões da luta Movimento difunde a cultura, politizando seus millitantes de Brasília (DF)

Mística apresenta signos que unificam sentimentos

“Para além da ‘celebração do mistério’, a mística representa um resgate da expressão cultural de cada região do país, sobretudo das raízes indígenas e negras”, afirma Marílson Silva, do assentamento Padre Henrique, no Sul da Bahia. E foi dentro dessa expressão cultural que, no dia 11, uma apresentação de quarenta minutos relembrou a história do MST: militantes travestidos de policiais, “cuspindo fogo” e carregando bonecos gigantes anunciavam o início do 5º Congresso do Movimento. Evelaine Martins, integrante do coletivo de cultura do MST, explica que o papel de todas as atividades ligadas à cultura é criar a mística dentro do Movimento. “Ela é muito mais que as apresentações simbólicas. Ela é o combustível que nos anima a lutar, dentro de uma identidade. Por meio de signos, a gente unifica nossos sentimentos”, revela. Rafael Villas-Boas, do mesmo coletivo, lembra que não é à toa que elas antecendem as discussões políticas. Ele conta que as místicas foram se massificando e crescendo do ponto de vista quantitativo. “Quase não existe no Brasil espaço para comportar um congresso como esse, com quase 18 mil pessoas. Um congresso dessa dimensão exige uma estrutura estética compatível. Na organização, não há como ser espontaneísta e fazer a coisa de última hora”, pondera. Rafael aponta que o 5º Congresso foi um marco para o Movimento no âmbito evolutivo e da logística das encenações, uma vez que envolveu a confluência de tecnologias audiovisuais e a construção prévia de adereços, como os bonecos gigantes. Por meio de uma imensa estrutura, as místicas do 5º Congresso contaram com centenas de semterra. A dinâmica organizativa dos ensaios e das próprias apresentações se diferenciam bastante dos espetáculos tradicionais. “Temos diretores de cena trabalhando, equipes de palco, equipe de audiovisual e tudo é articulado por um núcleo de coordenação. Mas, coletivamente, há sempre espaços em que as coisas são discutidas e que po-

dem ser alteradas durante o ensaio”, diz o integrante do coletivo de cultura. Ele afirma que o ensaio é equivalente à assembléia, o espaço político em que as idéias podem ser discutidas. “Não é mais aquela coisa de três pensam e 300 fazem. Há uma outra estrutura de relações”, explica.

Mais que artistas “No domingo [dia 10] eles ensaiaram sem luz, no escuro, sem achar ruim. São militantes que têm outro tipo de interesse. O pessoal está produzindo isso tudo há umas duas semanas em oficinas nos seus Estados, às vezes em condições precárias de alimentação. Vêm para cá e encontram condições de trabalho também precário e a mística passa a assumir um papel de formação política”, expõe Rafael, sobre o “sacrifício” que os trabalhadores do movimento fazem para criar a arte. Segundo Charles Trocate, da coordenação nacional do MST no Pará, o artista é o sujeito histórico que consegue transformar uma realidade em memória e a memória em sentimento. “Para nós, o artista não é aquele que individualmente vai galgando de baixo até se tornar famoso, gravar discos, escrever livros; mas é aquele que, no dia-adia de nossa militância, desenvolve esse sentido que a arte deve sempre ter, de fazer as pessoas mudarem seus hábitos, de fazer as pessoas terem várias visões do mundo, não só uma, sectária, fechada, mas que contemple e que seja agente dessa manifestação”, afirma. Para o dirigente, o artista é o indivíduo histórico que se dá conta do presente e se estimula pelo presente, buscando ter uma estética, uma técnica, de modo a construir uma inteligência a serviço da transformação da realidade. Para Evelaine Martins, o artista, por mais que seja amigo do Movimento, não vai partir do olhar de fora. “[Este] também é importante para saber como que essas pessoas nos identificam, mas o que nos dá força é esse símbolo interno que nos realimenta e isso se dá a partir da produção interna. Um dos sentidos revolucionários de nossa organização é esse, que todo mundo possa se manifestar por meio de outras linguagens que não sejam só a fala”, afirma. (ESL)


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