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Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 226

São Paulo, de 28 de junho a 4 de julho de 2007

A resistência contra o projeto de transposição do rio São Francisco ganhou novos contornos no dia 26 de junho. Dezenas de movimentos sociais e indígenas montaram um acampamento com mais de 1.500 pessoas para barrar as obras iniciadas pelo Exército. É do mesmo local que sairá o ponto de captação das águas da transposição, no eixo Norte, em Cabrobó (PE). As organizações pretendem também conquistar a retomada desse território, cuja posse é reivindicada pela etnia indígena Truká. (Pág. 4) As entidades populares criticam o projeto e afirmam que os verdadeiros beneficiários serão as empresas de agronegócio, como a de produção de camarão, e não os povos do Semi-Árido. A criação em viveiro consome de 50 mil litros de água por quilo – o necessário para suprir as necessidades de três pessoas durante um ano. (Pág. 5)

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Cerca de 15 etnias indígenas junto com movimentos sociais pretendem retomar território cuja posse é reivindicada pelos truká João Zinclar

Movimentos unem forças para barrar transposição

R$ 2,00

João Zinclar

Circulação Nacional

ÁGUAS DA TRANSPOSIÇÃO: Criação de camarão avança sobre mangue

Em Aracati (CE), o tamanho dos caranguejos tem diminuído consideravelmente; por três anos não nasceu um caranguejo sequer

Mel Hein

Crazymaq

Na Palestina, um conflito construído pelo imperialismo O confronto entre Hamas e Fatah na Faixa de Gaza, que resultou na tomada total do controle da região por parte do primeiro e a dissolução do governo de coalizão pelo segundo, foi estimulado, segundo analistas ouvidos pelo Brasil de Fato, pela comunidade internacional, especialmente EUA e Israel. Entre os meios utilizados, figuraram o bloqueio financeiro aos palestinos desde a vitória eleitoral do Hamas e o apoio ao Fatah, com dinheiro e armas. O objetivo: garantir no poder uma liderança que faça concessões aos israelenses e se alinhe aos interesses estadunidenses. Pág. 9

40 anos de Solidão Em junho, comemoramse os 40 anos da publicação de Cem anos de solidão, a mais importante obra do chamado realismo fantástico, romance do colombiano Gabriel García Márquez que precipitou o boom da literatura latinoamericana e inspirou vários escritores do mundo inteiro. Pág. 12 Agricultores de Moçambique ameaçados de serem expulsos de suas terras por transnacionais Pág. 10

Vale implanta “deserto verde” no MA Em Açailândia, Maranhão, a Companhia Vale do Rio Doce planta milhares de hectares de eucalipto. A árvore, transformada em carvão vegetal, tem sido usada para aquecer os altos-fornos siderúrgicos que transformam o minério de ferro em ferrogusa. Para tanto, estima-se

que a Vale obrigatoriamente tenha de ter à sua disposição 200 mil hectares de eucalipto por ano. Mas o mesmo eucalipto que serve como lenha é responsável pelo “deserto verde”, devido à grande quantidade de água que suga do solo. Por essas atitudes – que não levam em conta a

preocupação ambiental – e outras é que em setembro ocorrerá o Plebiscito Popular da Campanha pela Anulação do Leilão da Vale, que teve as suas quatro perguntas escolhidas. Em tempo, sob a mira de 62 ações populares, o leilão da Vale completa 10 anos este ano. Pág. 3 e 7


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editorial

Tragédia fabricada pelo imperialismo O VELHO sonho do general israelense Ariel Sharon está a um passo de se tornar realidade: o espectro da guerra civil ameaça mergulhar a nação palestina em mais sangue, sofrimento e lágrimas. Aparentemente, duas forças se opõem: de um lado, o grupo Fatah, liderado pelo presidente Mahmoud Abbas; de outro, o grupo Hamas, vencedor das eleições nacionais democráticas de 25 de janeiro de 2006 e representado no governo, até 14 de junho passado, pelo primeiro-ministro Ismail Hanieh, deposto por um ato unilateral de Abbas. Mas esse quadro representa apenas a aparência mais externa, mais imediata do conflito. A nação palestina foi empurrada para o abismo por tremendas pressões exercidas por uma santa aliança formada pela União Européia, Estados Unidos e Israel. Bastou o anúncio da vitória do Hamas, em 2006, para que todos decretassem boicote ao novo go-

debate

as forças progressistas internacionais têm o dever de denunciar o cerco imperialista sobre o povo palestino e apoiar todas as iniciativas que conduzam à reunificação do povo palestino, sobre as bases da luta pela expulsão de Israel dos territórios ocupados verno. Tal medida, por si só, explicita o caráter da “democracia” imperialista: ela só é aceitável quando a expressão das urnas condiz com os seus próprios interesses. A já miserável nação palestina foi submetida a um cruel estrangulamento econômico, social e político mediante o bloqueio de dinheiro, bens e recursos de todo o tipo. Essa operação se combinou com a humilhação diária imposta ao povo, por meio das incursões militares israelenses e a prisão de ministros, deputados e autoridades do Hamas livre e democraticamente eleitos. Em contrapartida, como desdobramento desse processo, mal o

presidente Abbas anunciou, em 17 de junho, o nome de Salim Faiad (ex-ministro da Fazenda) como substituto de Hanieh, o novo governo foi imediatamente reconhecido pela União Européia, Estados Unidos e Israel, assim concluindo uma primeira etapa do cerco iniciado em janeiro de 2006. De um ponto de vista histórico mais amplo, o quadro hoje consolidado teve o seu início no final dos anos de 1980, no auge da Intifada (“revolta das pedras”), quando Israel incentivou a formação do Hamas. A idéia era apoiar a criação de um grupo fundamentalista islâmico que enfraqueceria a Or-

ganização para a Libertação da Palestina (OLP), então liderada por Iasser Arafat. Por vias tortuosas, contraditórias e muitas vezes surpreendentes, a estratégia dá agora os seus frutos. A situação é absolutamente dramática. Os palestinos não têm ainda um Estado, mas têm dois governos: o do Fatah, formalmente reconhecido e representado pelo presidente Abbas, e o do Hamas, instalado na Faixa de Gaza, onde a organização é esmagadoramente representativa. Mas, assim como o Hamas é também fortemente apoiado na Cisjordânia, o Fatah conta com muitos

crônica

Mário Máestri

Arquivo Brasil de Fato

Perdemos um grande amigo e intelectual Geógrafo e historiador, Manuel Correia de Andrade nasceu em Vicência (Pernambuco), em 3 de agosto de 1922. Fez o curso secundário no Recife, onde também se formou em Direito, História e Geografia. Professor universitário aposentado, tem mais de cinqüenta livros publicados, entre os quais A terra e o homem do Nordeste (1963), considerado um clássico entre os estudos da geografia humana brasileira. Co vários estudos à frente do Departamento de História da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, do Recife, e era considerado um dos mais respeitados estudiosos da realidade nordestina. Entre 1956 e 1965, realizou cursos de pós-graduação em universidades do Brasil e da França. Também fez viagens de estudo à Itália, Bélgica, Grécia e Israel. Era membro do Conselho Científico do International Council for Research in Cooperative Development, com sede em Genebra, Suíça. Publicou, constantemente, artigos na imprensa pernambucana. O professor Manuel Correia de Andrade foi um dos grandes pensadores da questão agrária do Brasil e do Nordeste brasileiro. Ele conhecia como ninguém os problemas dos sem-terra e da região da cana nordestina. Sempre defendeu com coragem a necessidade da reforma agrária e manteve, ao longo dos seus 84 anos, a coerência com suas idéias e ideais.

EXATAMENTE NO primeiro dia do inverno, quando já começa a esfriar e quase todas as folhas que deveriam cair já caíram como as do meu pé de caqui, floresceu completamente a cerejeira japonesa em frente à minha janela. Há uma semana percebera que brotos estavam irrompendo, depois se desenvolveram com uma cor arrocheada e de repente, numa manhã, estavam quase todos abertos. Pela tarde do mesmo dia, 21 de junho, início do inverno, se abriram totalmente. Para mim que procuro ler sinais nas coisas pois elas têm sempre um outro lado e o invisível é parte do visível, foi uma revelação. Estou aqui escrevendo sobre a nova moralidade que urge viver no meio do aquecimento global já iniciado. Digo que se queremos salvar a biosfera e preservar nossa casa comum, habitável para toda a comunidade de vida, temos que resgatar, antes de qualquer outra medida, a dimensão do coração e a razão sensível. Se não sentirmos a Terra como nossa Grande Mãe que devemos cuidar como filhos e filhas bons e responsáveis serão insuficientes as necessárias iniciativas técnicas que tomarão as grandes empresas, os governos, outras instituições e as pessoas. Nascemos da generosidade do cosmos e da Terra que nos providenciaram as condições essenciais para a vida e sua evolução e será a mesma generosidade a nossa contrapartida.

...o instinto básico, já o reconhecia Freud, não é o de morte, mas o de vida, mesmo que passando pela morte. A vida que há 3,8 bilhões de anos irrompeu na Terra, passou por muitas dizimações. Elas nunca foram terminais. Foram crises que criaram oportunidades para a emergência de formas mais complexas de vida. A vida, é chamada para mais vida. Essa é a seta da evolução e a dinâmica do universo

presente a enorme e permanente importância da questão escravista. Seu livro A guerra dos Cabanos, de 1964, é um clássico da história da luta de cativos e brancos-pobres em Alagoas e Pernambuco, no período regencial. Ao igual que Celso Furtado, preocupou-se muito com o processo de constituição tardio, desigual e inconcluso da unidade nacional brasileira. Em 1999, publicou As raízes do separatismo no Brasil, de cintilante atualidade. Nesses tempos bicudos de homens públicos minúsculos, que o Nordeste também tem brindado o Brasil em número pra lá de avultado, são singulares a coerência e a elegância imprimidas pelo mestre Manuel Correia de Andrade a todos os atos de sua vida, sempre socialmente produtiva. Ao morrer, julgava-se um homem rico: possuía biblioteca de uns quarenta mil títulos e escrevera, ao todo, mais de cem livros e 250 artigos acadêmicos.

Essa florada da cerejeira japonesa que ocorre uma única vez ao ano, é um aceno que a própria Terra gratuitamente nos dá. Ela nos está dizendo: “mesmo que caiam todas as folhas, mesmo que os galhos pareçam ressequidos durante quase todo o ano, mesmo que impere a dúvida se morreu ou ainda está viva, de repente, eu ouso revelar o mistério que escondo: a capacidade de regeneração e a vontade de sorrir gaiamente, de irradiar beleza e provocar êxtase”. Algo semelhante deve ocorrer com a crise ecológica e com as ameaças que pesam sobre o destino futuro da biosfera e da vida humana. Estimo que não se trata de uma tragédia cujo fim seria funesto, mas de uma crise cujo termo é um novo estado de saúde e de consciência, mais vigoroso e mais alto. Logicamente, depende de nós transformar os sintomas de tragédia em sinais de crise acrisoladora. E o faremos, pois o instinto básico, já o reconhecia Freud, não é o de morte, mas o de vida, mesmo que passando pela morte. A vida, que há 3,8 bilhões de anos irrompeu na Terra, passou por muitas dizimações. Elas nunca foram terminais. Foram crises que criaram oportunidades para a emergência de formas mais complexas de vida. A vida é chamada para mais vida. Essa é a seta da evolução e a dinâmica do universo. As flores da cerejeira japonesa significam o sorriso radiante da Terra quando menos se esperava dela. Pois o inverno é tempo de recolhimento e de retirada sustentável para recobrar forças vitais que depois irromperão vitoriosas e deslumbrantes. A Mãe Terra nos quer transmitir uma mensagem: “apesar de todas as agressões que sofro, da respiração ofegante que tenho devido às contaminações atmosféricas, não obstante o sangue de meu corpo contaminado e os meus pés chagados por causa de venenos, ainda assim tenho energia vital escondida; ela não é infinita mas é suficientemente poderosa para resistir, para se regenerar e para voltar a sorrir. Apenas dêem-me, por piedade filial, um pouco de tempo para descansar e um gesto de amor e de cuidado para me fortalecer”.

Mário Maestri é historiador e professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo (RS). Correio eletrônico: maestri@via-rs.net

Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

Apesar de ter sido preso, quando jovem, duas vezes, por atividades políticas, Manuel Correia de Andrade jamais se envolveu sistematicamente na militância partidária, destacando-se sobretudo pela vida acadêmica e científica, longa, profícua e de profundo sentido social, na qual manteve, irredutível, as visões sociais de mundo que abraçara na juventude se publicado o livro em Pernambuco, ninguém teria tomado conhecimento”! Esse texto célebre seria proibido e apreendido, após 1964, por ordem da alta oficialidade do Exército. Apesar de ter sido preso, quando jovem, duas vezes, por atividades políticas, Manuel Correia de Andrade jamais se envolveu sistematicamente na militância partidária, destacando-se sobretudo pela vida acadêmica e científica, longa, profícua e de profundo sentido social, na qual manteve, irredutível, as visões sociais de mundo que abraçara na juventude. Mesmo se formando décadas antes do surgimento dos primeiros programas de pós-graduação no Brasil, destacou-se na direção de trabalhos de pós-graduação e na fundação e direção do mestrado em Economia (1970-75) e de Geografia (1975-79) e como professor dos programas de Sociologia e de Desenvolvimento Urbano, todos em Pernambuco. Conhecido sobretudo como geógrafo, Manuel Correia de Andrade era historiador criativo e perspicaz. Na interpretação do passado de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil, teve sempre

Leonardo Boff

E a Terra sorriu

A morte de um mestre NA MADRUGADA da sexta-feira, 22 de junho, faleceu, em Pernambuco, Manuel Correia de Andrade, aos 84 anos. O destacado geógrafo, historiador e cidadão brasileiro nasceu, em Pernambuco, em 3 de agosto de 1922, no engenho Jundiá, de sua família, no mesmo ano da fundação do Partido Comunista Brasileiro. Desde menino, foi sensível à realidade social, com a qual se deparou na própria propriedade rural familiar. No início dos anos de 1940, ao completar os estudos secundários, decidiu tornar-se sociólogo. Em 1933 e 1936, o também pernambucano Gilberto Freyre obtivera consagração nacional e mundial com Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos. Obrigado a estudar em Pernambuco devido a dificuldades econômicas familiares, Manuel Correia de Andrade ingressou na Escola de Direito de Recife e, três anos mais tarde, na Faculdade Particular de Geografia e História, fundada pelos jesuítas, hoje Universidade Católica de Pernambuco. Após formar-se, em Direito, em 1945, e Geografia e História, em 1947, dedicou-se a advogar, sobretudo para sindicatos operários, e à docência, nas disciplinas História e Geografia, no ensino médio e superior, em Recife. Em 1952, dedicou-se exclusivamente ao ensino e à pesquisa, atividades que abraçou, por toda a vida, com singular brilhantismo. Em entrevista publicada, em julhosetembro de 2000, na Revista Teoria e Debate, de São Paulo, com o seu bom humor proverbial, Manuel Correia de Andrade lembrou que foi introduzido ao marxismo pela mão de professor integralista, que apreciava a crítica social de Marx, apesar de impugnar suas propostas sociais. Na ocasião, destacou a importância que tiveram igualmente em sua formação Engels, Kautsky, Rosa Luxemburgo e Lenin. Lembrou também que encerrou seus rápidos meses de militância comunista, após a queda da ditadura getulista, por lhe exigirem que interrompesse a leitura de Minha vida, de León Trotksy, pensador pelo qual teve, nesses anos de formação, “verdadeiro embevecimento”. Porém, as obras do marxista russo chegaram-lhe às mãos por caminhos menos exóticos, entregues pelo primo Mário Pedrosa, o célebre intelectual e militante trotskista, também pernambucano. Entre os pensadores nacionais que mais o influenciaram, Manuel Correia de Andrade destacava Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Josué de Castro. A Gilberto Freyre, agradeceu sempre pela indicação do livro A interpretação econômica da história, do historiador estadunidense Seligmann, professor do sociólogo na Universidade da Colúmbia. Manuel Correia de Andrade destacou sempre a importância em sua formação do livro Evolução política do Brasil, do historiador marxista Caio Prado Júnior, de 1933, a quem era muito grato por lhe ter encomendado, prefaciado e publicado, na Editora Brasiliense, seu mais conhecido livro, A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste, livro mal-aceito nos meios acadêmicos da época pelo seu sentido social. Não sem maldade, lembrava que, se “tives-

simpatizantes em Gaza. Por isso, a divisão entre ambos ameaça produzir mais carnificina. Outra coisa é a história ainda não escrita. O novo governo Abbas Faiad, por mais que se preste a realizar os desejos imperialistas, não poderá resolver a questão central: o fim da ocupação israelense iniciada em 1967. Não destruirá o muro da vergonha construído por Israel. Não poderá assegurar à heróica nação palestina qualquer resposta às aspirações por uma vida tranqüila. Ao contrário: o caráter espúrio do novo governo tenderá a revelar rapidamente as suas limitações. Diante desse quadro, as forças progressistas internacionais têm o dever de denunciar o cerco imperialista sobre o povo palestino e apoiar todas as iniciativas que conduzam à reunificação do povo palestino, sobre as bases da luta pela expulsão de Israel dos territórios ocupados.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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brasil Arquivo

Ato público realizado no Rio de Janeiro pede a anulação da privatização da Vale do Rio Doce

As quatro perguntas sobre a Vale PLEBISCITO Na primeira semana de setembro, será realizado o Plebiscito Popular da Campanha pela Anulação do Leilão da Vale Pedro Carrano de Curitiba (PR) A CAMPANHA A Vale é Nossa, pela nulidade da venda da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) chega a um momento decisivo. Na primeira semana de setembro, será realizado o Plebiscito Popular que irá debater com as pessoas o destino da segunda maior mineradora do mundo. Este ano, o leilão da Vale completa 10 anos, sob a mira de 62 ações populares e acusações de irregularidades. O plebiscito é uma chance para discutir também os rumos do país. Em reunião plenária da Assembléia Popular, entre os

Quanto

62

Sob a mira de ações populares, o leilão da Vale completa 10 anos este ano. dias 16 e 17 de junho, os movimentos sociais escolheram as quatro perguntas da cédula do plebiscito. A primeira questão é sobre a retomada da Vale – cujo controle acionário pertence hoje a grupos privados – para que a população possa interferir no papel da empresa para o desenvolvimento do país. Diz a pergunta: Você concorda que a Companhia Vale do Rio Doce, patrimônio construído pe-

lo povo brasileiro, e privatizado em 1997, deve continuar nas mãos do capital privado? As outras 3 questões abordam temas relacionados, como: a dívida pública interna, a tarifa de energia elétrica, a reforma da previdência e a conseqüente perda de direitos dos trabalhadores.

Dívida pública

O tema da dívida, sem dúvida, está presente em todas as questões. Afinal, foi com a justificativa do pagamento da dívida pública interna que a Vale foi vendida, em 1997. Hoje, o governo pretende fazer a reforma da previdência, mas sem mexer na quantia do orçamento reservada para o

Foi com a justificativa do pagamento da dívida pública interna que a Vale foi vendida, em 1997; desnecessário dizer que o pagamento da dívida não aconteceu pagamento da dívida e a reserva de superavit primário. Um dado inesperado somase às mobilizações: pesquisa encomendada pelo DEM (exPFL), revelou que 50,3% dos brasileiros são favoráveis à retomada da Vale pelo governo brasileiro. O apoio à medida é maior ainda no Norte, onde 62,6% são favoráveis ao controle público da empresa. Nessa parte do país estão concentradas as principais atividades

da mineradora. Na região conhecida como a “Grande Carajás” fica a maior jazida de minério de ferro do mundo. A campanha A Vale é Nossa é a pauta unificadora de diferentes forças de esquerda, somadas a organizações e entidades de caráter progressista. É a prioridade dos movimentos sociais no segundo semestre de 2007. Mais de 62 organizações, entidades, sindicatos aderiram à campanha.

Agora, todos os Estados do país possuem ao menos um comitê estadual, afora os comitês locais formados, para organizar a urna e a participação popular no plebiscito. Entre os meses de junho e julho estão acontecendo os cursos de formação, a partir da elaboração de uma cartilha, para atingir o número de 1.000 lideranças em cada Estado, levando o tema até os trabalhadores. Existe, ademais, uma necessidade de divulgar o conteúdo da campanha nos jornais e boletins das organizações, massificando a campanha. Para isso, o material disponível para debate está na página www.avaleenossa.con.br.

Urnas estarão espalhadas em vários locais O objetivo do plebiscito é que urnas sejam montadas em sindicatos, fábricas, escolas, associações de moradores, igrejas e noutros espaços. Cada Estado tem autonomia para organizar o plebiscito e as urnas podem ser feitas

até mesmo artesanalmente. Para uma pessoa participar do plebiscito, qualquer documento basta. A recomendação é que os menores de 16 anos, crianças e adolescentes, votem em uma urna separada das demais.

Entre o papel do Estado e os papéis da dívida

Trabalhadores pagam até dez vezes mais que as empresas pela tarifa de energia

Mais dívida, menos direitos aos trabalhadores

Pergunta: Você concorda que a energia elétrica continue sendo explorada pelo capital privado, com o povo pagando até 8 vezes mais que as grandes empresas?

Pergunta: Você concorda com a proposta de reforma da previdência que retira direitos dos trabalhadores?

Pergunta: Você concorda que o governo continue priorizando o pagamento dos juros da dívida pública deixando de investir em trabalho, saúde, educação, moradia, saneamento, reforma agrária, água, energia, transporte, ambiente saudável? Estudo feito pela organização Auditoria Cidadã da Dívida mostra que houve um grande aumento da dívida pública interna desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), superando até mesmo a dívida externa. E foi justamente naquela época quando ocorreu a inclusão da companhia Vale do Rio Doce (CVRD) no Programa Nacional de Desestatização (PND). “A dívida foi o meio pelo qual os governos foram forçados a realizar as privatizações”, afirma Rodrigo Vieira Dávila, economista da organização. Além da privatização das estatais, outro ajuste exigido pelas organizações financeiras internacionais foi a alta taxa de juros. Ocorre então uma conversão da dívida externa em dívida interna. O economista Marcos Arruda, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), explica como se dá o mecanismo da dívida interna. No início do governo FHC, seu valor era de R$ 148 bilhões, porém, em 2002, ao final do governo, chegou à casa dos R$ 670 bilhões. Uma das justificativas da privatização da Vale era justamente o pagamento das dívidas, o que não aconteceu. Arruda explica que o Brasil possui uma economia aberta para a entrada de capital estrangeiro (com a entrada de moedas como dólar, euro, ienes etc.), atraídos pela maior taxa de juros mundial. O Banco Central brasileiro, por sua vez, tem a necessidade de converter essas moedas para real. Sem dinheiro suficiente para cobrir a entrada de capitais, o governo emite Títulos da Dívida interna para saldar o dinheiro que entra, explica Arruda. Por isso, a quantidade de reserva em moeda do Banco Central corresponde, na mesma quantidade, ao endividamento público do país, como explica Rodrigo Vieira de Ávila. Esta é uma das problemáticas que o plebiscito popular da Campanha A Vale é Nossa quer trabalhar: entre a riqueza produzida que fica para a população brasileira e o que se reverte para exportações ou para os credores da dívida. “O problema da dívida afeta diretamente a qualidade de vida e os direitos das pessoas. O plebiscito quer contrapor a dívida financeira, paga pelo governo, com as dívidas sociais e ambientais do nosso povo”, Arruda reflete.

O Brasil está na 5º colocação entre os países de energia mais cara do mundo, apesar de possuir uma das fontes mais baratas de energia, gerada na hidrelétrica. A contradição é que cerca de 500 empresas brasileiras pagam em média R$ 0,06 centavos o kilowatt, ao passo que o trabalhador paga 0,60 centavos o kilowatt. Essa é uma das problemáticas a ser refletida no corpo a corpo com a população. Apenas a Companhia Vale do Rio Doce consome 5% da energia do país. Outras empresas imperialistas consomem grandes quantidades de energia e vendem o excedente gerado em barragens construídas por elas. Empresas como a Novelis e Alcoa, fabricantes de alumínio, consomem 7% da energia do Estado de Minas Gerais, sendo que o produto está destinado à exportação, como denuncia Joceli Andrioli, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Os meios de comunicação massivos costumam co-

O povo brasileiro consome em média 170 kilowatts, valor bem abaixo do patamar considerado saudável para a população (em torno de 620 kw por mês) locar sobre o consumo das famílias a responsabilidade pela chance de um “apagão”. Mas, de acordo com o MAB, uma pesquisa realizada afirma que o povo brasileiro consome em média 170 kilowatts, valor bem abaixo do patamar considerado saudável para a população (em torno de 620 kw por mês). “A responsabilidade do setor residencial, juntando ricos e pobres, é de 25%, enquanto a indústria pesada é responsável por 50% do consumo de energia. As indústrias conhecidas como eletro-intensivas geram pouco emprego em comparação com a energia que consomem”, afirma Andrioli.

A entrega dos resultados do plebiscito será feita durante a II Assembléia Popular, de 22 a 25 de outubro de 2007, em Brasília. Um dos horizontes do plebiscito é fazer a entrega dos resultados aos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).

Uma das razões da inclusão do tema da previdência na cédula do Plebiscito Popular é a necessidade de mobilização dos movimentos sociais em 2007, o que ficou expresso no dia 23 de maio, quando os trabalhadores saíram às ruas para exigir do governo “nenhum direito a menos”. O tema da reforma da previdência tem inserção entre os trabalhadores, mas nos últimos tempos enfrentou uma campanha contrária por parte da Rede Globo. A emissora defende que a reforma da previdência vai alocar investimentos para gerar mais empregos. Mauro Puerro, da Conlutas, discorda desse argumento e contextualiza que o orçamento da União para setores essenciais, como educação, vem caindo (em 2006, somente 2,27% do orçamento da União foram gastos no setor). Nesse cenário, o corte de gastos da previdência acaba sendo o novo alvo do governo. Mas é como se a parte do orçamento separada para a dívida fosse invisível. Para se ter uma idéia, em 2006, enquanto 25,73% do orçamento geral da União foram gastos com a previdência, 36,7% foram destinados às chamadas despesas financeiras (como a amortização da dívida pública interna e a reserva de superavit primário). Entre tantos pontos prejudiciais aos trabalhadores incluídos no projeto de reforma da previdência, Puerro aponta desvinculação do piso das aposentadorias e dos benefícios assistenciais do salário mínimo. O sindicalista aponta também o aumento da idade mínima de aposentadoria, igualando o regime privado e o público; a elevação da diferença de idade entre homens e mulheres dos atuais cinco para dois anos, sendo então a idade mínima de aposentadoria para homens de 65 anos e, para as mulheres, 63 anos; além da eliminação do regime especial de trabalhadores e professores rurais.


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brasil

Acampamento exige fim das obras da transposição João Zinclar

RIO SÃO FRANCISCO Movimentos sociais e indígenas estão no local onde está prevista a captação das água do eixo Norte da transposição. Além de impedir a obra, manifestantes reivindicam a posse do território para a etnia indígena Truká. Tatiana Merlino, da Redação BARRAR AS obras da transposição do Rio São Francisco. É o que pretendem os 1.200 manifestantes que ocuparam, às 3h30 da madrugada do dia 26 de junho, a área de onde sairá o ponto de captação das águas da transposição no eixo Norte do projeto, em Cabrobó (PE). Na véspera da ocupação, o 2º Batalhão de Construção e Engenharia do Exército, que está instalado na região desde o dia 5 para construir o canal de aproximação, havia começado as obras de topografia. Além de “não permitir que a construção do canal avance”, o acampamento formado inicialmente por 15 etnias indígenas e movimentos sociais pretende retomar o território, cuja posse é reivindicada pela etnia indígena Truká. “Os povos indígenas não vão sair de lá. Todos se consideram irmãos e pretendem defender a terra dos truká, que foram expulsos da região no passado”, afirma Alzeni Tomáz, da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP). Segundo ela, em vez de homologar a terra como território indígena, o governo desapropriou a Fazenda Mãe Rosa para as obras e negociou uma indenização no valor de R$ 1,29 milhão ao fazendeiro Antonio Simões de Almeida. “O governo arquivou o processo de levantamento das áreas porque tinha interesse em usar a fazenda para o canal da transposição”, critica ela. Até o fechamento dessa edição, a Agência Brasil noticiou que o Ministério da Integração Nacional havia enviado um interlocutor a Cabrobó (PE) para dialogar com os manifestantes. No entanto, o ministro Geddel Vieira Lima cogita pedir na Justiça a reintegração de posse da área. Segundo ele, a fazenda ocupada já foi desapropriada para a execução das obras e, portanto, seria de propriedade da União.

Povos indígenas

No local da ocupação, os acampados pretendem cobrir com terra um buraco aber-

questão que diz respeito à Funai”. Elianeiva avaliou que o acampamento não está prejudicando o trabalho do Exército que, segundo ela, até agora teria feito “parte da definição da topografia, está estruturando o canteiro, mas ainda não iniciou o desmatamento”.

Reivindicações

Os 1.200 manifestantes querem impedir que a construção do canal avance

Quanto

1,29 milhão

de reais foi o que o governo federal pagou ao fazendeiro Antonio Simões de Almeida pela terra que é reivindicada pelos indígenas to no terreno pelo Exército. Vão também iniciar o plantio de árvores frutíferas, verduras e legumes para alimentar os integrantes do acampamento, que não tem prazo para encerrar, explica Alzeni. Entre os presentes, há representantes de movimentos sociais de toda a Bacia do São Francisco. Ao longo do dia, mais e mais pessoas das áreas próximas chegaram ao local, de acordo com a representante da CPP, e a perspectiva era de que somassem duas mil pessoas na noite do dia 26, fechamento desta edição. Os povos indígenas, que são 30 em todo o Nordeste, devem continuar a engrossar o acampamento.

Em um manifesto do acampamento intitulado “O Nordeste é viável sem transposição e com ética na política”, os movimentos afirmam que a região “não precisa desse projeto traiçoeiro chamado ‘integração de bacias’, a mesma antiga transposição”. De acordo com o documento, o processo de negociação do governo federal não foi “democrático nem republicano e desabona o projeto, seus promotores e lobistas: estudos de impac-

to ambiental formais e incompletos; críticas fundamentadas dos principais especialistas; desrespeito às decisões do Comitê de Bacia”.

Acordo descumprido

Organizada por movimentos como Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agriculto-

res (MPA), comunidades quilombolas e pescadores da bacia do São Francisco, a mobilização reivindica a implementação de alternativas e tecnologias apropriadas de convivência com o Semi-Árido, além do arquivamento do projeto de transposição. De acordo com os manifestantes, o governo descumpriu o acordo feito com dom Luiz Cappio, que encerrou greve de fome de 11 dias em novembro de 2005 sob a condição de se fazer um amplo debate nacional a respeito do assunto. Elianeiva Viana Odísio, responsável pelo Ministério da Integração Nacional na região, afirma que o manifesto do acampamento foi enviado ao ministro Geddel Viera Lima, “mas ainda não tivemos resposta.”. Segundo ela, “somos os olhos do ministro aqui, e o que vimos foi uma manifestação pacífica”. A representante do Ministério disse que não ia se pronunciar a respeito das reivindicações do povo truká porque, além de não estar sabendo disso, essa é uma

Outra demanda ressaltada pelos movimentos sociais é a recuperação do território para os índios truká. A terra foi negociada com a União pelo fazendeiro Antonio Simões de Almeida, que esteve no acampamento no dia 26. De acordo com Alzeni Tomaz, da CPP, Almeida afirmou, indignado, que nunca teve conhecimento de que os indígenas reivindicavam a área. “Eles já têm a ilha deles (a etnia vive na Ilha de Assunção, próximo a Cabrobó), mas querem viver de invadir o que é dos outros. Essa fazenda era minha e agora é da União, e não de índio semvergonha. Além disso, eles não querem produzir nada”, critica o fazendeiro em entrevista ao Brasil de Fato. De acordo com ele, o acampamento não vai conseguir parar a obra, pois o governo conseguirá a reintegração de posse do acampamento. Almeida, que já foi proprietário de terras na ilha onde vivem hoje os Truká, diz que os indígenas são “indolentes e só querem dinheiro”. O prefeito de Cabrobó, Eudes Caldas, também se opôs ao acampamento. Para ele, os manifestantes opositores ao projeto de transposição são pessoas que “não têm informações corretas” e estariam sendo manipuladas pelo “pessoal da Bahia que não quer que a água vá para os 12 milhões de beneficiários da obra. Não há justificativa. Eles alegam o quê? Que o rio vai secar? Esse pessoal não sabe o que está dizendo”, afirma. Sobre a reivindicação da posse da terra feita pelos indígenas truká, o prefeito ironizou: “Daqui a pouco eles vão querer o Brasil todo. Bom, se pensarmos o país, todo é território indígena, afinal, quando Pedro Álvares Cabral chegou aqui, só havia índios. Até minha casa é território indígena”.

POLÍTICA ECONÔMICA

Corte de gastos recorde para pagamento da dívida Valor economizado pelo poder público em abril equivale ao gasto previsto com educação para 2007 Renato Godoy de Toledo da redação O corte de investimentos sociais e gastos públicos bateu recordes em abril. A União – governo federal, estados, municípios e estatais – economizou R$ 23 bilhões no mês. Já nos primeiros 120 dias do ano, o total retido foi de R$ 50,7 bilhões. Essa economia representa um superavit primário de 6,5% do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, esse é o percentual de toda a riqueza produzida no país que foi retida pelo poder público. Os números foram divulgados pelo Banco Central (BC), no final de maio. O corte ficou muito acima da meta estabelecida para esse ano (3,8% do PIB). A economia, pela primeira vez, quase “cobriu” todo os gastos com juros e amortizações no período (R$ 51,1 bilhões). Com isso, o país ficou perto de atingir o chamado deficit nominal zero, que ocorre quando a receita é equivalente a todas as despesas. Baseado nos preceitos de “austeridade fiscal”, o deficit nominal zero é uma bandeira encampada por economistas conservadores e tem

Quanto

R$ 23 bilhões

foi o superavit primário de abril

“É uma questão de prioridades. Paga-se quase o mesmo para meia dúzia de banqueiros e para 20 milhões de trabalhadores aposentados”, afirma economista como defensor o ex-deputado federal Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda durante o regime militar. Os números do BC entusiasmaram os economistas ligados ao mercado, mas foram mal recebidos por aqueles preocupados com investimentos na área social e o desenvolvimento do país. O superavit tem sido um dos principais pilares da fase neoliberal da economia brasileira, em vigor desde o início dos anos de 1990, e é utiliza-

do como forma de ajuste fiscal para o pagamento de juros da dívida. Mas desde que o Banco Central passou a realizar estatísticas, em 1991, esse valor nunca havia sido alcançado. O mês de abril, tradicionalmente, representa os maiores índices de arrecadação de impostos federais e estaduais.

Mais corte?

A imprensa corporativa, o DEM e o PSDB comemoraram os resultados, mas apresentaram suas ressalvas. Para eles, o superavit poderia ter sido maior se o governo aproveitasse a “onda” de arreca-

dação de impostos e cortasse mais gastos públicos. Já para o economista Rodrigo Ávila, da Auditoria Cidadã da Dívida, os números são negativamente assustadores. “O pagamento de juros neste ano deve ser de 26,11% do PIB (mais de R$ 200 bilhões), quase equivalente a todo o gasto com a Previdência. É uma questão de prioridades. Paga-se quase o mesmo para meia dúzia de banqueiros e para 20 milhões de trabalhadores aposentados”, afirma. Dos R$ 23 bilhões que a União economizou em abril, R$ 14,9 bilhões vêm da esfe-

ra federal, o que é quase equivalente às verbas para a educação em todo o ano (cerca de R$ 17 bilhões). Recentemente, o governo federal lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e anunciou que, até 2010, R$ 8 bilhões seriam viabilizados para a aplicação do plano. Ou seja, quase dois “PDEs” poderiam ser criados com o superavit de apenas um mês. Esse é o primeiro ano do governo Lula em que a meta de superavit foi estipulada em 3,8% do PIB. Nos anos anteriores, a meta era de 4,25%, 0,5% a mais do que o governo

Fernando Henrique Cardoso aplicava a mando do FMI. No entanto, Ávila explica que a redução da meta de superavit não é real, pois ela se deu em função dos novos cálculos do PIB promovidos pelo IBGE. “Como temos apenas os dados do primeiro quadrimestre, não dá pra ter certeza de quanto será o superavit primário deste ano. Mas dá para notar uma tendência de alta”. Segundo o economista, parte do superavit primário vai para os credores e o restante o governo acumula em reservas, “para sinalizar aos credores que tem dinheiro para lhes pagar”.


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brasil

A quem interessa a transposição SÃO FRANCISCO Com consumo de 50 mil litros de água por quilo, a produção de camarão será uma das grandes beneficiadas Fotos: João Zinclar

Produção de camarão será uma das grandes beneficiadas das águas da transposição; nos manguezais caranguejos e sururus desapareceram

Tatiana Merlino Enviada especial a Aracati (CE) CARANGUEJOS JÁ não nascem mais no sítio Cumbe, no município de Aracati, a 159 km de Fortaleza (CE). A região de manguezal, antes berço de mariscos, crustáceos e peixes, hoje é uma área degradada, onde tanques de carcinicultura abandonados tomam conta da paisagem. As 135 famílias que lá vivem e sobreviviam catando caranguejos foram surpreendidas em 1997, quando empresas de criação de camarão em cativeiro chegaram à região prometendo desenvolvimento e geração de emprego para a comunidade local. Rapidamente, a maioria da população do sítio foi trabalhar nos viveiros. “Os que não foram tiveram sua área de trabalho afetada porque os caranguejos e sururus desapareceram”, afirma João Luís Joventino do Nascimento, morador do sítio e líder comunitário.

Impactos

Nada do que foi prometido pelos produtores de camarão aconteceu. Ao contrário. De acordo com Nascimento, entre as conseqüências causadas pela criação de camarão em cativeiro na região houve o desmatamento dos manguezais, poluição do rio e das gamboas, diminuição da pesca e empobrecimento da comunidade. “Em decorrência da utilização do metabissulfito de sódio – substância utilizada como conservante da coloração do camarão – que é despejado nos rios, durante três anos, não nasceu um caranguejo sequer”, conta ele. Em 2002, com a chegada de um pacote tecnológico com uma espécie exótica de camarão, importada da Indonésia, a produção teve problemas, e os camarões começaram a apresentar doenças. Aos poucos, a população impactada pela atividade começou a denunciar aos órgãos públicos as agressões ao meio ambiente e os impactos da produção para a comunidade. Hoje, a maioria dos criadores abandonou a região e o maior empreendimento do Estado do Ceará é de propriedade do atual prefeito, Expedito Ferreira da Costa. A Comércio de Pescado Aracatiense Ltda., a Compescal, hoje mantém apenas quatro viveiros funcionando parcialmente. De herança, deixou dezenas de viveiros abandonados e terras degradadas.

Consumo de água

Além de trazer impactos socioambientais para as regiões de mangue, a produção de camarão em viveiro consome uma quantidade enorme de água. De acordo com estudos, para se criar um quilo de camarão, são necessários 50 mil litros de água, “quantidade equivalente de água é suficiente para abastecer três pessoas durante o ano inteiro”, compara Roberto Malvezzi, Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), citando dados da Agenda 21 da Água pela qual uma pessoa precisa de

Quanto

300% foi quanto

cresceu a produção de camarão no Brasil de 1997 até 2003; o país é o 6º maior exportador mundial

40 litros de água por dia para sobreviver. Ainda de acordo com a pesquisa “Avaliação da demanda hídrica da carcinicultura em águas interiores”, realizada pela professora Maria Cléa Brito de Figueiredo, entre as barragens Castanhão e Itaiçaba, no Ceará, a cultura de camarões consome cerca de 58.874 m³ por hectare. A atividade ganha – com folga – até da cultura do arroz, que é uma das que mais consomem água: o arroz atinge um volume de 33.000 m³ por hectare. No Rio Grande do Norte, onde também há grande produção de camarões, existem cerca de 10 mil hectares com projetos de carcinicultura, que chegam a demandar cerca de 8 m³/s de água, segundo o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Abner.

Propaganda enganosa

Críticos do projeto da transposição do rio São Francis-

“Dizer que a água da transposição é para consumo humano é uma falácia. A transposição será feita para o agronegócio, para a irrigação, para a carcinicultura”, afirma líder comunitário de Aracati (CE) co denunciam que, diferentemente do que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva propagandeia – que a obra irá matar a sede de 12 milhões de nordestinos –, os verdadeiros beneficiários do projeto serão as empresas de agronegócio: a irrigação da fruticultura para exportação, a carcinicultura e o pólo siderúrgico-portuário do porto do Pecém, em Fortaleza. O próprio texto do governo diz que 70% das águas transpostas serão para agricultura (irrigação e carcinicultura), 26% para usos urbano-industriais e apenas 4% para abastecimento humano (o objetivo alegado pela propaganda do governo). “Dizer que a água da transposição é para consumo humano é uma falácia. A transposição será feita para o agronegócio, para a irrigação, para a carcinicultura”, afirma João Luís Joventino do Nascimento. De acordo com Luciana Queiroz, assessora do Projeto Populações e Manguezais do Instituto Terramar, com a transposição, além dos vivei-

ros existentes nos estados do Ceará e Rio Grande do Norte, haverá uma especulação de terra em torno das áreas próximas aos canais. “A tradição dessa cultura é a insustentabilidade e a migração para novas áreas. Com certeza, estão de olhos nos locais próximos aos canais, onde haverá facilidade de água e solos novos, já que com o tempo, os solos onde se cultiva camarão ficam imprestáveis”, afirma. A chegada de doenças na produção, avalia a pesquisadora, é uma resposta do ecossistema, já que o problema é o cultivo de muitos organismos no mesmo espaço. A primeira doença que apareceu nos viveiros de camarão foi a mionecrose muscular. “O camarão fica amolecido, uma parte do corpo morre e a outra fica viva. Esse tipo de doença aparece em decorrência dessa grande produtividade num espaço pequeno”, explica Luciana.

Novo fôlego

Se em condições normais a utilização de água é enorme, “com as doenças a quan-

tidade é maior ainda. Quando aparece uma doença, recircular a água é uma alternativa de manejo”, afirma Luciana. De acordo com ela, as águas da transposição dariam um novo fôlego aos produtores de camarão, “porque possibilitaria um recomeçar da atividade que hoje se encontra em declínio no Ceará”. A atividade da carcinicultura existe no Brasil desde a década de 1970. No entanto, a produção era de baixa densidade, ou seja, com poucos organismos por metro quadrado. “Naquela época eram quatro organismos por metro quadrado, e hoje, com a ganância, são mais de 80 por metro quadrado”, diz Luciana. Em 2003, apenas o Estado do Ceará exportou 90 mil toneladas de camarão, e o Brasil tornou-se o sétimo produtor de camarão do mundo. “Isso reflete diretamente na quantidade de ração utilizada, na quantidade de água circulada e em efluentes contaminados. Além disso, o que os produtores não vêem é que isso não garante a sustentabi-

lidade da atividade, porque as doenças chegam. O Brasil é o sexto produtor mundial de camarão em cativeiro com 15 mil hectares de viveiros implantados, registrando crescimento superior a 300% de 1997 até 2003, segundo dados da Associação Brasileira dos Criadores de Camarão (ABCC). Os números da atividade levaram o país a se tornar o maior produtor da América Latina. Os Estados do Rio Grande do Norte e Ceará são os principais produtores. Apesar de o Ceará ocupar o segundo lugar na produção nacional, é o primeiro em produtividade, com 7.676 quilos por hectare/ano. No entanto, a ocorrência de doenças virais recentes tem preocupado os criadores, com perdas de até 80% registradas no rio Jaguaribe.

Para entender Carcinicultura – Produção de camarão em viveiros instalados em manguezais, com graves impactos ambientais – já que muitas espécies precisam dessas áreas para se reproduzir. No Equador, organizações ambientais estimam que a criação de camarão já comprometeu metade das formações de mangue do país (150 mil hectares).

Produção de camarão ameaça ecossistema e comunidades tradicionais Segundo levantamento feito pelo Ibama, a pedido dos movimentos sociais, metade dos viveiros no Ceará desrespeitava a legislação ambiental Enviada especial a Aracati (CE) Os produtores e empresários ligados à carcinicultura argumentam que um dos grandes benefícios da atividade é geração de emprego, melhoria de infra-estrutura e qualidade de vida. Mas, de acordo com a engenheira de pesca Luciana Queiroz, assessora do Projeto Populações e Manguezais do Instituto Terramar, os empregos gerados pela produção de camarão ocorrem apenas no período do desmatamento do manguezal. “Eles (os empresários) pa-

Em abril, um trabalhador foi assassinado por seguranças da empresa de camarão Acqua Clara, quando entrou na fazenda para pegar um atalho gam R$ 10 para os pescadores e, depois, só vão procurá-los novamente no período da despesca, 125 dias depois”, critica. De acordo com ela, durante a despesca, os trabalhadores manipulam uma substância tóxica, o metabissulfito de sódio. “Eles não utilizam nenhum equipamen-

Criadores de camarão abandonam a cidade de Aracati, e hoje tanques de carcinicultura abandonados tomam conta da região

to de proteção para manusear esse produto, nem luva, nem bota, e esse tipo de substância química pode causar sérios problemas inflamatórios e até mortes”.

Água contaminada

O sítio Cumbe está localizado na foz do Rio Jaguaribe e é responsável pelo abastecimento de água de Aracati, com uma população de 50 mil habitantes. “Só que a água está contaminada. O metabissulfito de sódio é jogado diretamente no rio”, afirma Luciana. João Luís Joventino do Nascimento, morador do sítio Cumbe e professor da escola da comunidade, denuncia que as empresas mentem ao chegaram no local. “Os empresários diziam que estavam trazendo desenvolvimento e emprego, mas num hectare de man-

guezal vivem dez famílias, enquanto um hectare de carcinicultura não gera nem 2 empregos”, diz. Tanto no sítio Cumbe quanto em outras regiões que foram apropriadas pelas empresas de carcinicultura, a relação da comunidade com o manguezal foi rompida. Os viveiros de camarão são cercados e seguranças particulares fazem a vigilância da fazenda, impedindo os moradores de entrarem. “É justamente no encontro da água doce e do mar que o manguezal floresce e abastece a vida daqueles que vivem da pesca”. No sítio Cumbe, o acesso ao cemitério da comunidade foi fechado por uma cerca e, em alguns locais, trabalhadores que ousam ultrapassálas chegam a ser assassinados, como aconteceu com Francisco Cordeiro da Rocha, morador da comu-

nidade das Camboas, no município de Paraipaba. Em abril, o trabalhador foi assassinado por seguranças da empresa de camarão Acqua Clara, quando entrou na fazenda para pegar um atalho.

Irregularidades

Após denúncias de movimentos sociais que atuam na região, em novembro de 2005, o Ministério Público Federal determinou que o Ibama realizasse um estudo completo sobre os impactos ambientais da carcinicultura. De acordo com o relatório, dos 245 projetos existentes no Ceará, 79,5% estavam localizados em Áreas de Preservação Permanente (APPs) em margens de rio e 51,8% (127 fazendas) estavam em situação irregular quanto ao licenciamento ambiental. (TM)


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brasil Fernando Henrique CC

Com vitórias, ocupação da USP termina EDUCAÇÃO Estudantes afirmam que o novo desafio é criar outras formas de continuar a luta pela universidade pública Dafne Melo da Redação 50 DIAS. Esse foi o tempo necessário para que a direção da Universidade de São Paulo (USP) cedesse e atendesse parte das reivindicações dos estudantes, que ocupavam a reitoria desde o dia 3 de maio. A reitora Suely Vilela, em diversos momentos, afirmou que sequer entraria em negociação enquanto o prédio não fosse desocupado. Na quinta-feira (21), porém, voltou atrás e, por meio de um documento intitulado “Termo de Compromisso Entre a Reitoria e o Movimento Estudantil da USP”, aceitou as condicionantes propostas pelos estudantes no dia 12. Eram elas: não punições administrativas de participantes da ocupação e da greve, audiência pública para discutir o Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp) e reconhecimento da legitimidade do 5º Congresso Geral da USP, a ser realizado em 2008. Nesse fórum, será discutido um novo estatuto para a Universidade. Outro ponto importante é a manutenção da contra-proposta da reitora feita em 8 de maio. Dentre elas, a construção de moradias estudantis que garantam mais 334 vagas (198 no campus da capital, 68 em Ribeirão Preto e 68 vagas em São Carlos). Os alunos exigiam, inicialmente, 594 moradias. A destinação de 500 mil reais para reformas nas atuais moradias já foi autorizada.

A contra-proposta da reitoria ainda garante café da manhã e alimentação aos domingos, circulação dos ônibus internos do campus nos fins de semana e a realização de um debate sobre um novo prazo de jubilamento.

Resultados

De acordo com João Victor Pavesi, estudante de Geografia, os pontos mais incertos foram a reforma de prédios e a contratação de novos docentes. Em ambos os casos, os assuntos deverão ser primeiramente discutidos em cada unidade para depois a reitoria acatar as propostas. O “Termo de Compromisso” foi apresentado aos alunos por uma comissão formada por cinco docentes, chamados pela própria reitoria para intermediar as negociações. Formavam o grupo os professores István Jancsó (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB), Francisco de Oliveira (Ciências Sociais), João Adolfo Hansen (Letras), Paulo Arantes (Filosofia) e Luis Renato Martins (Escola de Comunicação e Artes – ECA). Para boa parte do movimento, outra importante vitória foi conquistada ainda no fim de maio: a publicação de um decreto declaratório, assinado por José Serra (PSDB), que modificou boa parte dos decretos anteriores, que atacavam a autonomia universitária. Entretanto, persiste a manutenção da Secretaria do Ensino Superior, que tem à frente José Aristodemo Pinotti, reitor da Unicamp no

governo estadual de Paulo Maluf durante a ditadura militar e proprietário da universidade privada UniFMU. Para Pavesi, fatos como esse mostram que as conquistas estão longe de serem suficientes, já que, dado o avanço no processo de sucateamento da universidade pública, as reivindicações se acumulam e, por isso, a luta deve continuar. “Hoje, na ocupação, as pessoas estão limpando e recolhendo tudo e há um certo clima de melancolia e reflexão porque a questão agora é como continuar a luta, como não deixar o movimento cair”, avalia.

Polícia no campus

Pavesi conta que, além das propostas de Suely Vilela, um dos fatores que contribuíram para que os estudantes optassem por sair do prédio foi a intervenção da polícia militar no campus da Unesp de Araraquara, dia 13. “As pessoas começaram a ficar com medo, achando que a Tropa de Choque poderia vir a qualquer momento”, explica. Na cidade do interior paulista, estudantes da Unesp ocupavam a diretoria da Faculdade de Ciências e Letras. As negociações estavam fluindo, dizem os ocupantes, o que os fez encarar com surpresa a chegada de 16 viaturas da Polícia Militar, três ônibus da Tropa de Choque vindos da capital, um ônibus de cadetes, além de bombeiros e enfermaria. De acordo com nota divulgada pelos estudantes, o total de oficiais envolvidos na operação chegou a 250. Os

Após 50 dias de paralisação, alunos e professores retornarão às salas de aulas

O movimento estudantil não é mais estudantil: é popular, é operário, é humorístico, é intelectual (...) enfim, é de todos alunos não ofereceram resistência, e não houve nenhum ferido.

Avaliação

Para a grande maioria dos estudantes e funcionários que participaram da ocupação, as vitórias não se limitam apenas às reivindicações

E a autonomia das federais? Reuni, novo programa do governo federal, aprofunda processo de sucateamento, aponta professor da Redação O artigo 207 da Constituição brasileira não deixa dúvidas: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Entretanto, como diversos outros artigos presentes na chamada “Constituição Cidadã”, o artigo 207 não se concretizou para a esmagadora maioria das universidades públicas brasileiras. “Podemos afirmar, sem medo de errar, que as federais não gozam de autonomia”, afirma Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da

Constituição, deu-se início à implementação do projeto neoliberal no país, o que impossibilitou a efetivação de diversas de suas determinações, incluindo a que se refere à universidade, não só pela resistência em destinar recursos para a área social, mas também porque não é de interesse das grandes nações capitalistas desenvolvidas que países pobres sigam um modelo autônomo de universidade. “O Banco Mundial defende, para países da América Latina, por exemplo, o que eles chamam da ‘desconstrução de um pernicioso modelo europeu de universidade’, ou seja, universidade com autonomia, com indissociabilidade entre ensino, pesquisa, extensão. De fato, agora temos uma universidade que pouco tem a ver com esse modelo”, aponta o professor da UFRJ.

Reuni

Dentro dessa lógica, o governo federal editou o Decreto nº 6.096, de 24 de abril, que institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o Reuni.

Hoje, as 53 instituições de ensino superior federais têm seu financiamento definido pelo Ministério da Educação (MEC), ou seja, não gozam de autonomia Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Hoje, as 53 instituições de ensino superior federais têm seu financiamento definido pelo Ministério da Educação (MEC) . “Então, as universidades dependem dos recursos que vão para o Ministério e das prioridades que ele define”, completa Leher.

Bom para os outros

O professor argumenta que logo após a promulgação da

“O Programa tem como meta global a elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para 90% e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para 18 [alunos]”, diz o texto do decreto. Na prática, visa praticamente dobrar o número de alunos das federais. Não há, porém, garantias de investimentos. O decreto cita a destinação de verbas reser-

vadas “a cada universidade federal, na medida da elaboração e apresentação dos respectivos planos de reestruturação, a fim de suportar as despesas decorrentes das iniciativas propostas”, mas não garante a disponibilidade de recursos. “O atendimento dos planos é condicionado à capacidade orçamentária e operacional do Ministério da Educação”, define. Ficará a critério de cada universidade a decisão de aderir ou não ao Reuni. Entretanto, aponta Leher, como essa é a única possibilidade de as instituições terem algum investimento adicional, devem aderir. O decreto determina que o montante disponibilizado será de até 20% a mais em relação aos recursos hoje disponíveis, excluindo os gastos com salários de aposentados. Leher calcula que, na melhor das hipóteses, a quantia seria de 1 bilhão de reais para todas as 53 instituições. “É uma gota no oceano, 21 milhões por ano para cada uma”, diz. O professor ainda lembra que, de 1995 para cá, o número de discentes cresceu 80%, enquanto o de docentes não ultrapassou os 10%.

Autocensura

Leher conta ainda que na UFRJ alguns departamentos, como o de Pedagogia, estão elaborando planos de reestruturação para serem entregues à reitoria, pautados em outros valores, como o diálogo e cooperação com movimentos sociais, e exigindo todo o investimento necessário. O receio, entretanto, é que a diretoria da universidade simplesmente rejeite aqueles projetos que não se enquadrem nos parâmetros do MEC, em vez de transmitir a reivindicação ao governo. “Se isso acontecer, será um absurdo, pois vamos ter reitores fazendo autocensura”, conlcui Leher. (DM)

atendidas. Os 50 dias divididos entre reuniões, plenárias, assembléias e debates foram uma experiência difícil, mas enriquecedora. “Entramos em contato com estudantes de outros cursos, de campi do interior, foi um espaço único de vivência que oxigenou a universidade”, opina João Victor Pavesi.

fatos em foco

“O movimento estudantil mudou, e luta, em conjunto. O movimento estudantil não é mais estudantil: é popular, é operário, é humorístico, é intelectual (...) enfim, é de todos. Com nova cara e muito gás nesse sábado (um dia após a desocupação) as coisas não voltaram ao normal, estão no seu mais puro processo de mudança. Cabe a todos participar dessa mudança para transformarmos o conhecimento em algo acessível a todos”, diz nota publicada no blog da ocupação.

Hamilton Octavio de Souza

Liberou geral O Conselho Nacional de Justiça, órgão criado para fiscalizar as bandalheiras do Poder Judiciário, decidiu arquivar o processo contra o desembargador Dorival Guimarães Pereira, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que em 2000 recebeu uma caminhonete S-10 em troca de uma sentença favorável ao Sindicato dos Empregados do Comércio de Belo Horizonte. A falta grave foi comprovada, mas o TJ mineiro arquivou o caso e o CNJ julgou a ação improcedente. Pizzaria já! Poleiro tucano

O novo grupo que assumiu a direção da TV Cultura de São Paulo, indicado pelo governador José Serra, do PSDB, anda espalhando que encontrou desmandos administrativos e desvios de recursos públicos na emissora, que era comandada por outro grupo tucano ligado ao ex-governador Geraldo Alckmin. Não é o caso de a Curadoria das Fundações, o Ministério Público e a Assembléia Legislativa apurarem direitinho qual é o estrago?

Vale persegue

A Justiça do Trabalho do Espírito Santo condenou a Companhia Vale do Rio Doce – privatizada fraudulentamente no governo FHC – por discriminar e perseguir trabalhadores que moveram ações trabalhistas contra ela. A Vale mantinha uma lista de trabalhadores que não podiam ser contratados pelas empresas prestadoras de serviços (terceirizadas) para ela. A Justiça determinou indenização de R$ 800 mil – revertida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador.

Democratização já

O Brasil precisa urgentemente fiscalizar o sistema público de radiodifusão, especialmente porque as concessões de rádio e TV estão sendo desviadas de suas finalidades públicas para favorecer interesses privados de uma minoria. Até o final deste ano vencem os prazos das concessões de 28 emissoras de TV e de 153 emissoras de rádio. O que a Anatel, o Ministério das Comunicações e o Congresso Nacional vão fazer com essas concessões?

Omissão criminosa

Em artigo sobre a gravíssima situação da prostituição infantil no Brasil, o médico e professor Dioclécio Campos Júnior, da Universidade de Brasília, afirma o seguinte: “Já passa da hora de o Estado prover educação infantil, ensino fundamental e médio de qualidade, em tempo

integral, para todas as crianças. Única prioridade capaz de erradicar as prostituições da vida brasileira”.

Segundas intenções

Em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos, sobre a construção de usinas hidrelétricas no rio Madeira, o professor Luiz Fernando Novoa Garzón, da Unicamp, disse: “Há uma manipulação muito grande da informação e até mesmo da comunidade científica, no sentido de que se ofereça à sociedade brasileira alternativas que, no fundo, são do grande empresariado e que requerem energia em larga escala, em curto prazo, sem medir conseqüências, sem compromisso com a população brasileira e com o projeto nacional de desenvolvimento”.

Articulação golpista

O jornalista chileno Hernán Uribe, em artigo veiculado pela Agência Latino-Americana de Informação (ALAI), comenta que o jornal “El Mercúrio”, de Santiago, publica diariamente vasto material de crítica ao governo de Hugo Chávez, da Venezuela, mas não noticiou uma linha sequer sobre as denúncias que relacionam vários jornalistas venezuelanos com a CIA (agência de inteligência), dos Estados Unidos. Qualquer semelhança com alguns jornais brasileiros não será coincidência.

Jogo perigoso

A desmoralização do Congresso Nacional e das instâncias políticas de decisão, com seguidas denúncias envolvendo parlamentares e governantes, e ao mesmo tempo a transformação da Polícia Federal em pólo avançado da moralidade pública, pode colocar em risco a insipiente democracia brasileira devido à inversão dos papéis. Tanto é que o diretor da PF defende abertamente a quebra da privacidade para “delinqüentes”. Mas quem define quem são os delinqüentes?


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brasil

Companhia Vale do Rio Doce aposta em “deserto verde” Fábio Pozzebom/ABr

MONOCULTURA Plantação de eucalipto se espalha pelo Maranhão e prejudica agricultura familiar Eduardo Sales de Lima de Brasília (DF) ALÉM DAS pastagens que se sucedem ao longo das margens da Estrada de Ferro Carajás, plantações de eucalipto são vastamente observadas quando a cidade maranhense de Açailândia se aproxima. Plantado em milhares de hectares pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)– que controla os preços do minério de ferro na região –, o eucalipto, transformado em carvão vegetal, é usado para aquecer os altos-fornos siderúrgicos que transformam o minério de ferro em ferro-gusa. Ao todo, o Pólo Siderúrgico de Carajás é composto por 14 usinas. Sete delas localizadas em Marabá, no Pará, e as outras sete no Maranhão, das quais cinco no Pequiá, distrito de Açailândia. Açailândia é uma cidade estratégica para a Companhia Vale do Rio Doce, gigante mundial do setor de mineração, cujo lucro superou R$ 10 bilhões no ano de 2006. Nesse município do extremo Oeste do Maranhão, a Estrada de Ferro Carajás – que escoa o minério de ferro extraído de Carajás – liga-se com o trecho da Ferrovia Norte-Sul, operado pela empresa por meio de uma concessão do governo federal, que, quando finalizada, irá ligar Goiânia (GO) a Belém (PA). Raimundo Cruz Neto, agrônomo e cientista social, que também exerceu o cargo de vereador da cidade de Marabá (PA), entre os anos de 2001 e 2004, atesta que a produção de carvão teve início nas proximidades dos distritos industriais, em áreas de floresta adquiridas pelas siderúrgicas ou por terceiros que produziam e vendiam o carvão.

A floresta de eucalipto fornece matéria-prima para a produção de carvão vegetal, usado pela indústria siderúrgica

cos. Ocorreu uma chuva ácida que acabou com a plantação. Poucas pessoas conseguiram colher seus legumes”, conta Valdenes, explicando que as famílias de Nova Conquista plantam arroz, feijão, milho e macaxeira. “Nossa luta é contra o eucalipto, para que não se tire o sossego de tanta gente do assentamento”, conclui

30 mil hectares

Em 2003, a CVRD incorporou na totalidade a empresa Celmar S.A. – Indústria de Celulose e Papel, com os seus milhares de hectares de florestas renováveis de eucalipto, que seriam aportados principalmente na Ferro Gusa Carajás S.A., localiza-

A Vale do Rio Doce, com outras empresas, criaram a Celmar. A partir daí, começaram a plantar eucalipto”, relata Raimundo da em Imperatriz (MA). Inicialmente, a Celmar, fundada em 1992, tinha como objetivo apenas produzir papel. Antes, a produção de carvão era feita somente por famílias de trabalhadores trazidas dos Estados do Espírito Santo e Bahia. “Em 1989, foi lançado por Fernando Collor um programa dos Pólos Florestais da Região de Carajás. A Vale do Rio Doce, com outras empresas, criaram a Celmar. A par-

tir daí, começaram a plantar eucalipto”, relata Raimundo, que também faz parte do Fórum Carajás. Segundo o agrônomo e cientista social, a CVRD possui em torno de 30 mil hectares de eucalipto só no Estado do Maranhão. Mais um fator da concentração do poder da CVRD é o fato de que a empresa ser única fornecedora de minério de ferro para as siderúrgicas e as obriga a aceitarem os reajustes, sobretudo por conta da valorização internacional do produto. Segundo o agrônomo, o consumo de carvão vegetal pelas siderúrgicas do Pólo Carajás (Pará e Maranhão) em 2005 foi em torno de 3 milhões de toneladas. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) informou que seriam necessários 550 mil hectares de floresta para gerar o volume de carvão consumido pelas siderúrgicas somente naquele ano.

Insustentável

O Ministério do Meio Ambiente quer estimular o plantio de eucalipto por pequenos produtores no Leste do Pará e Oeste do Maranhão. O dire-

tor do Programa Nacional de Florestas, Tasso Azevedo, disse, em maio, que a intenção do ministério é a de transformar a região de Carajás no segundo distrito florestal sustentável do país. O primeiro, na região da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), deve ser implementado ainda neste ano. “O Sistema Florestal Brasileiro (SFB) apresentou para a região de Carajás uma proposta de um Distrito Florestal. Trata-se de uma área de 28 milhões de hectares. Seriam plantados um milhão de hectares de eucalipto para sustentar as usinas de produção de ferro-gusa nos pólos de Marabá e Açailândia, onde existem o maior número de siderúrgicas”, relata Raimundo. Ele considera isso uma afronta, pois o BNDES se propõe a financiar as siderúrgicas, e as siderúrgicas, por sua vez, financiam os agricultores a produzir eucalipto para fornecer o carvão, e, ressalta, “além de substituir a floresta nativa por eucalipto, é utilizada grande quantidade de agrotóxicos”. Somado a isso, um pé de eucalipto chega a consumir, em média, 20 litros de água por dia, como comprovam estudos.

O minério de ferro extraído na região é escoado pela Estrada de Ferro Carajás

Quanto

200 mil hectares

de eucalipto por ano são necessários para produzir ferro-gusa.

de. É um prejuízo tanto ambiental quanto cultural, porque as pessoas saem de suas cidades, ficam pulando de município em município procurando o que fazer”, denuncia Ivonete. De acordo com a pesquisadora, entre os anos de 1996 e 2000, mais de 7 mil famílias deixaram o campo em Eunápolis, na Bahia, devido a expansão dos eucaliptais. Dos 21 municípios do Sul da Bahia, apenas um não possui plantação de eucaliptos.

Retomar a luta pela floresta Segundo agrônomo, para evitar a proliferação do eucalipto os agricultores e ambientalistas precisam ampliar a visão política Eduardo Sales de Lima de Brasília (DF) Reprodução

“Posteriormente, se espalhou para um raio de até 200 km do eixo do corredor da Estrada de Ferro Carajás até atingir, hoje, o Cerrado a oeste e ao sul do Maranhão”, afirma. Para a produção de uma tonelada de ferro-gusa a proporção aproximada é de uma tonelada de carvão. Em média, os fornos consomem 12 milhões de metros cúbicos de lenha por ano. A área afetada por essa exploração é de até 200 mil hectares por ano. Valdenes Rodrigues de Souza, 22, do assentamento Nova Conquista, na região de Açailândia, vive ao lado de mais 300 famílias. “Vivemos em meio aos eucaliptos. De Açailândia até o assentamento, é meia hora de paisagem de eucaliptos, de um lado e do outro”, descreve. O rapaz, que atualmente faz o curso de técnico agrícola pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e participa de reuniões periódicas sobre os desafios de desenvolver diversas culturas em meio aos eucaliptos, diz que o uso intensivo de agrotóxicos utilizado para manter esse tipo de plantio acaba afetando as famílias do seu assentamento. “A plantação de eucalipto nos prejudica porque precisa de muitos agrotóxicos. Ela é pulverizada por meio de aviões. Há uns dois anos, a colheita do assentamento foi muito pouca devido aos agrotóxi-

Como um alerta do que tende a se intensificar no Sudeste do Pará e no Oeste do Maranhão, Ivonete Gonçalves, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes) relata as implicações práticas da produção de eucalipto na vida do trabalhador rural. Informa que no Sul baiano, as “papeleiras” fazem um contrato com a pessoa, fornecem as mudas, fornecem os venenos, fornecem os técnicos e a pessoa só pode vender para a empresa com a qual assinou o contrato. “Isso não é fomentar. Esses trabalhadores acabam ficando no prejuízo, porque para voltar a ter outro tipo de cultura nessa terra demora um tempo muito gran-

Nossa luta é contra o eucalipto, para que não se tire o sossego de tanta gente do assentamento

Nos Estados do Maranhão e no Pará, Raimundo Cruz Neto, ex-vereador de Marabá (PA), admite que as siderúrgicas possuem, além do governo federal, o apoio de muitos prefeitos. Segundo ele, vários prefeitos da região solicitam a Brasília que seus municípios sejam inseridos dentro dos projetos de Distrito Florestal. O agrônomo e cientista social critica os dirigentes ambientais por trabalharem pelo viés desenvolvimentista, alimentando projetos de visão economicista nas comunidades. “Deixaram de fazer a luta mais política na busca de recursos para a implantação de projetos de cooperativas, sem enfrentar o avanço do capital na Região Amazônica”, completa. Cruz Neto afirma que os créditos concedidos aos assentados foram destinados a desmatar a floresta, plantar capim e criar gado. “Isso não os deu sustentabilidade. Queremos que eles não se incorporem a essa lógica. O discurso do Estado e das empresas é que eles terão uma renda o mais rápido possível”, diz. Os sindicatos rurais da região precisam ser mais combativos, de acordo com Raimundo, embora existam 420 assentamentos com mais de 80 mil famílias envolvidas em assentamentos só no Sul e no Sudeste do Estado. “Com a situação dos agricultores passando a sustentar as indústrias, eles perdem o pouco de autonomia que têm e ainda vão perder a oportunidade de construir o campesinato para aquela região. Teremos os agricultores agregados às indústrias, vivendo a ideologia da burguesia agrária e não se constituindo como classe”, adverte. (colaborou Ana Mielki)


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Na luta, não se envelhece

mo um assaltante de bancos, irmão Antônio viu negado o apoio da congregação dos maristas, fato que demarcou, definitivamente, sua opção de vida pelos pobres. “Nem a congregação religiosa nem os alunos que eu tinha, de classe média e alta, entenderam que eu pudesse continuar a trabalhar com eles. Então, decidi trabalhar na outra ponta. Fui para a periferia e fiquei livre de amarras”, relembra, em entrevista ao Brasil de Fato (leia entrevista abaixo). De lá para cá, radicalizou sua atuação junto aos mais pobres, especialmente nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ajudou a criar a Romaria da Terra, nascida em 1978, ano da primeira ocupação de terra realizada pelo o que seria, depois, o MST.

Daniel Cassol

PERFIL Companheiros e companheiras de caminhada se reúnem para celebrar os 80 anos do irmão Antônio Cechin, que dedicou a vida à luta do povo Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) MODESTO. E bem-humorado, como sempre foi na vida, o irmão Antonio Cechin negava ser merecedor das homenagens na festa de seus 80 anos, ocorrida na tarde do dia 24, em Porto Alegre. “É muita cera para pouco defunto”, dizia para cada companheira ou companheiro que vinha abraçá-lo. Ele desdenhava de si mesmo, mas o contrário era provado a cada testemunho: da menção à sua condição de precursor da Teologia da Libertação aos agradecimentos pela ajuda na construção de moradias em uma comunidade da periferia, as mensagens deixavam claro que o aniversariante era um histórico – e ainda atuante – lutador do povo. “Quem quiser ver a Teologia da Libertação atuante entre os pobres e constatar que ela não está morta, venham acompanhar os trabalhos do irmão Antônio Cecchin”, escreveu o teólogo Leonardo Boff. Pois vamos. Aos 80 anos, Cechin assessora grupos de catadores de material reciclável e comunidades eclesiais de base do Rio Grande do Sul, coordena a Pastoral da Ecologia da Regional Sul-3 da CNBB e ainda puxa a frente nas atividades que trouxeram à tona a memória de Sepé Tiaraju e dos Sete Povos das Missões Jesuíticas.

Trajetória de luta Cechin discursa em Porto Alegre durante a marcha Guarani

Não é exagero dizer que o irmão Antonio Cechin influenciou uma geração de lutadores sociais gaúchos e brasileiros e estimulou a criação de diversas de organizações populares Nascido em Santa Maria (RS), em 17 de junho de 1927, Cechin era filho de pequenos agricultores que trabalhavam numa chácara dos irmãos maristas. Numa família pobre de 15 filhos, sua opção foi seguir o rumo de outros oito irmãos e entrar para a vida religiosa. Tornou-se Irmão Marista. Aos 18 anos, já lecionava no Colégio Rosário, de Porto Alegre. Graduou-se em Letras Clássicas e em Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1959, rumou para Paris para se especializar em Economia e Humanismo. De lá, foi trabalhar no Vaticano, como secretário do Promotor Geral da Fé, até o ano de 1961. Sob o papado de João XXIII, acompanhou as preparações e as primeiras nomeações de teólogos que participariam do Concílio Vaticano II.

Na volta ao Brasil, começou a aplicar novos métodos de educação catequética, já influenciado, no Brasil, por intelectuais como Paulo Freire. Em 1968, a uma semana da Conferência de Medellín, apresentou um trabalho sobre os materiais usados na catequese latino-americana, durante um congresso internacional sobre o tema. O estudo foi base para a construção, em parceria com a irmã e companheira Matilde Cechin, das chamadas Fichas Catequéticas, posteriormente consideradas subversivas pela ditadura militar.

Porões da ditadura

Por sugestão de Dom Helder Câmara, criou, ao lado do padre Orestes Stragliotto, a regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB) em Porto Alegre. Estourado o golpe militar, teve duas experiências nos porões da ditadura, que acabaram marcando definitivamente sua trajetória política. O ano era 1969. A polícia política encontrou um livro, dentro do qual havia uma carta com o endereço de irmão Antônio, destinada a Frei Betto. Pelas mãos do atual bispo de João Pessoa (PB), Marcelo Cavalheiros, a carta iria até um colégio em São Leopoldo, onde Frei Betto participava de um curso. Cechin e Betto foram presos. Sua irmã Matilde acionou o então arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, que conseguiu tirar Cechin da cadeia. A segunda prisão, desta vez com torturas, ocorreu dois anos depois. Apresentado à sociedade co-

Não é exagero dizer que o irmão Antonio Cechin influenciou uma geração de lutadores sociais gaúchos e brasileiros e estimulou a criação de diversas organizações populares. Participou da criação da Romaria das Águas e do Movimento Nacional Fé e Política, além de ter dedicado quase a vida inteira na busca pelo reconhecimento do líder guarani Sepé Tiaraju como um santo popular. As pessoas presentes em sua festa de aniversário, no domingo (24), são o reflexo da trajetória de luta de irmão Antônio. “Havia gente de todos os meios onde trabalhei no transcurso dos meus últimos 50 anos. Pessoas que têm a mesma linha, engajadas em transformar o mundo. Estão articulados na luta, sem estar articulados num grande sindicato ou movimento”, afirma. Cercado por mulheres de um grupo de cultura afrobrasileira, Cechin se sentiu “levitando”, a despeito do peso dos 80 anos. “Eu me sinto com toda a energia. Com este trabalho, a gente não envelhece”.

Depoimentos “Sempre preocupado com os pobres, especialmente os mais pobres entre os pobres, sempre crítico às estruturas de poder, incluídas as da igreja católica, irmão Antônio sempre foi reconhecido por todos como teólogo, como educador popular, como profeta” Silvino Heck, assessor especial da presidência da República “Podem ter caído, como caíram sobre ele, todo tipo de adversidade, e as mais duras foram aquelas vindas dos próprios irmãos de fé, mas ele sempre manteve a mesma postura e linearidade. Fiel sempre, abandonar nunca” Leonardo Boff, teólogo da libertação “Sempre me impressionou, entre as suas inúmeras qualidades, a defesa que fez da necessidade do trabalho de base, miúdo, de casa em casa. Aquele que, de fato, conscientiza e liberta os trabalhadores” João Pedro Stedile, dirigente do MST “A instituição religiosa não conseguiu assimilá-lo, porque não quis deixarse capturar para dentro dela. Guardou a rebeldia profética e testemunhal da entrega à causa dos marginalizados” João Batista Libânio, teólogo. “Tu, Antônio bem-mal dito, marista sempre arredio, advogado nunca exercido, desfazedor e fazedor de catecismos, és nomeado postulador de todos os santos índios!” Dom Pedro Casaldáliga

ENTREVISTA Arquivo CPT-RS

“Precisamos de gente preparada para trabalhar com o povo” Para Antonio Cechin, o presidente Lula perdeu o contato com o povo depois de tanto tempo no poder de Porto Alegre (RS) Nesta entrevista, irmão Antonio Cechin faz uma análise da atuação da Igreja Católica junto aos movimentos sociais e avisa que, ao contrário do que pensa o Papa Bento XVI, a Teologia Libertação está viva. Ele também alerta para a necessidade de fortalecer o trabalho de base e buscar o diálogo com os setores mais empobrecidos da sociedade. Brasil de Fato – A Igreja Católica está mais afastada dos pobres? Antonio Cechin – A Igreja Católica não existe. O que existe são diferentes modelos de Igreja. O modelo protagonizado pelo Vaticano nunca vai mudar. Na América Latina, a partir do método “ver, julgar e agir” da Teologia da Libertação, temos uma teologia contextualizada. Mesmo que o papa ache que a Teologia da Libertação esteja ultrapassada, nosso modelo vai continuar. O senhor contribui com grupos culturais e religiosos afrobrasileiros, catadores, mística feminina. Qual é o desafio de trabalhar com esses grupos? Na minha caminhada, radicalizei minha opção pelos pobres. Depois de trabalhar em diversas vilas, com gente

que vinha do interior e conservava seus valores, de repente estou em movimentos da periferia, dos verdadeiramente excluídos. São moradores de rua, catadores, que devido ao aumento da pobreza, aumentaram e vão aumentando extraordinariamente. É toda uma nova metodologia com esses grupos, que são pessoas completamente desintegradas, exigem de nós uma dedicação muito maior. Um catador necessita de qualquer minuto de trabalho num galpão de lixo, e não tem tempo de ir numa escola de formação. Mas aos poucos vai se conseguindo. Tendo completado 80 anos, ainda na luta do povo, o que achou das declarações do presidente Lula, de que ser de esquerda é coisa de jovem? Tem aquela frase de que todo o poder corrompe. O Lula, de tanto estar no poder, perdeu completamente o contato com a realidade. Na minha festa de aniversário, me senti levitando de alegria, cercado de militantes com os quais convivi. Com esse trabalho, a gente não envelhece. Eu me sinto com toda a energia e alegre de poder continuar. Em qualquer idade, uma vez que se mantém a opção pela transformação do mundo, a gente até esquece que está envelhecendo.

Qual é a comparação que se pode fazer da militância hoje, em relação há décadas atrás? Hoje, há menos gente trabalhando na base. A política absorveu muitos líderes que despertaram. Nas ilhas de Porto Alegre, onde eu atuo, as poucas lideranças que a gente consegue formar logo são absorvidas pela política, pelas atividades ligadas a obras sociais, ONGs que dão emprego para as lideranças. É um pessoal que nos falta nas comunidades. A grande dificuldade é termos gente preparada, que vá para o meio do povo, que ajude a organizar, como fazíamos nos tempos áureos das CEBs. Hoje, não temos mais aquele operário de porta de fábrica, eles andam vestidos de fraque, batendo na porta do poder. Aquele trabalho “pé no chão” é praticamente inexistente. E qual era a força das CEBs, nos seus tempos áureos? Tínhamos um entusiasmo de demarcar os lugares onde estavam os pobres do campo e da cidade. Andávamos à procura de religiosos que se deslocassem do centro para morar nas periferias. Havia uma presença forte de elementos da igreja na periferia. Hoje, as congregações religiosas, dentro da crítica que foi feita à Teologia da libertação, reco-

Romaria da Terra em Itaiba, no ano de 1987

Mesmo que o papa ache que a Teologia da Libertação esteja ultrapassada, nosso modelo vai continuar lheram esse pessoal das periferias para os conventos e para o centro das cidades. Então, não há mais a chamada inserção no meio pobre. Na sua trajetória política, o que representou a prisão no período da ditadura? Eu era uma pessoa de centro, trabalhava na universidade e no Colégio Rosário (tradicional colégio marista de Porto Alegre). Quando preso, fui apresentado, ao lado do Frei Betto, como um assaltante de bancos. Nem a congregação religiosa nem os alunos que eu tinha, de classe média e alta, entendiam que um comunista, assaltante de bancos, pudesse continuar a fazer um trabalho com eles. Então decidi trabalhar

na outra ponta. Fui para a periferia, exatamente por falta de apoio da minha congregação religiosa, e fiquei livre de amarras. E aí vi que existe uma área de trabalho imensa a ser explorada. Eu, como religioso, digo para todo mundo: se o bispo não abre espaço, se o pároco também é conservador, sempre tem uma capela numa periferia, que não tem ninguém atendendo. Se não tem nem isso, sempre há as casas, onde posso chegar e começar uma reunião. Como na igreja primitiva, nos tempos de Jesus, que começou através de reuniões de vizinhos. Essa descoberta desses espaços é sensacional. Nunca podemos nos queixar da igreja conservadora, porque sempre existem espaços para se trabalhar.

Quem é Precursor da Teologia da Libertação, Antônio Cechin, ainda atuante aos 80 anos, assessora grupos de catadores de material reciclável e comunidades eclesiais de base do Rio Grande do Sul, coordena a Pastoral da Ecologia da Regional Sul-3 da CNBB e ainda esteve à frente das atividades que trouxeram à tona a memória de Sepé Tiaraju e dos Sete Povos das Missões Jesuíticas


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internacional Reprodução

Acordo de paz com Israel foi decisivo para início do conflito Confrontos de junho entre Hamas e Fatah levaram à tomada da Faixa de Gaza por parte do primeiro e a dissolução do governo de coalizão pelo segundo da Redação

Combatente do Hamas diante de muro com imagem do líder palestino Yasser Arafat, morto em 2004

Um conflito calculado

PALESTINA Confrontos entre os grupos Hamas e Fatah na Faixa de Gaza tiveram EUA e Israel como dois dos principais responsáveis, apontam analistas Igor Ojeda da Redação A PALESTINA vive, desde o dia 15, a inusitada situação de ter dois primeiros-ministros. Um deles é Ismail Haniyeh, do Hamas, que chegou ao poder após seu partido vencer as eleições legislativas de janeiro de 2006. O outro, que foi nomeado pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, do Fatah, é Salam Fayyad, cujo partido, o Terceira Via, obteve apenas 2,4% dos votos no pleito de 2006. Hamas e Fatah confrontaram-se intensamente – causando inúmeras mortes – durante vários dias na Faixa de Gaza, até o grupo de Haniyeh tomar o controle total do território, no dia 14. Abbas, então, dissolveu o governo de coalizão, nomeou Fayyad como novo primeiroministro e instalou um gabinete de emergência na Cisjordânia.

Quanto

350 milhões

dos cerca de 700 milhões de dólares que deveriam ser direcionados aos palestinos, mas estavam retidos por Israel, foram liberados por Ehud Olmert após a dissolução do governo de coalizão por Abbas Segundo Haitham Sabbah, refugiado palestino, nascido no Kuait, o projeto de criar um governo pelestino favorável aos interesses dos EUA e de Israel está sendo apoiado “pelo governo corrupto da ANP, apoiado pelo líder dos esquadrões da morte em Gaza, Muhammad Dahlan” (veja box nessa página). O bloqueio dos recursos externos, essenciais para o orçamento palestino, seria um dos meios para alcançar o objetivo. “Os governos que fizeram isso acharam que,

Salam Fayyad, nomeado primeiro-ministro por Mahmoud Abbas, do Fatah, é ex-funcionário do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI)

Conflito calculado

Mas é justamente o Ocidente que é visto, por analistas ouvidos pelo Brasil de Fato, como um dos responsáveis pelo conflito entre o Hamas e o Fatah e o conseqüente colapso do governo de coalizão palestino. “Enquanto alguns dos elementos do confronto entre os dois grupos são exclusivamente palestinos, muitos deles foram construídos sob o comando das inteligências e dos governos de Israel e dos EUA”, afirma Ramzy Baroud, jornalista palestino-estadunidense. O objetivo seria causar o desgaste do governo do Hamas e fortalecer o do Fatah, mais afeito a seus interesses. Segundo ele, havia determinação suficiente dos dois lados para prevenirem os embates, o que ficou mostrado pelo acordo assinado na cidade saudita de Meca em fevereiro deste ano, que resultou na formação de um governo de unidade nacional.

ao colocarem o povo numa situação de dificuldade e miséria ainda maiores do que já vive, ele se voltaria contra o Hamas e se colocaria a favor do Fatah. Não deu certo. Isso

Papel importante

Apoio ao Fatah

Ao mesmo tempo que as potências boicotavam o Hamas, trabalhavam para fortalecer o grupo do presidente Mahmoud Abbas. “Há notícias de que o Fatah recebia parte do dinheiro internacional e o restante que iria para o governo presidido pelo Haniyeh foi cortado totalmente. A comunidade internacional fez uma escolha”, analisa Mirhan. Para ele, a estratégia foi equivocada, e o que deveria ter sido feito era aceitar o resultado da eleição de janeiro de 2006, reconhecer o novo governo e negociar com o Hamas. Reprodução

A comunidade internacional, notadamente os EUA e Israel, abençoaram imediatamente o novo governo, e anunciaram a retomada da ajuda financeira à ANP. Esta estava congelada desde a vitória eleitoral do Hamas, que não foi reconhecida sob o argumento de que a organização não reconhecia o direito de Israel à existência. No dia 23, o premiê israelense, Ehud Olmert, comunicou a liberação de 350 milhões de dólares dos cerca de 700 milhões de dólares oriundos de impostos que deveriam ser direcionados aos palestinos mas que, em retaliação, estavam retidos. Fayyad, ex-ministro das Finanças e ex-funcionário do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), é de confiança do Ocidente.

manteve o desgaste do Fatah e fortaleceu o Hamas”, explica o sociólogo e arabista Lejeune Mirhan. Segundo Sabbah, as conseqüências ao povo da Palestina foram desastrosas: “Os palestinos vivem em dois campos de concentração gigantes: Gaza e Cisjordânia. Eles não estão seguros em relação aos mísseis de Israel ou do Hamas, nem em relação às bombas e assassinos do Fatah. Vivem sob ameaça de morte 24 horas por dia, gastam todo o tempo em funerais, com fome e escutando as bombas explodindo em algum lugar. A comunidade internacional favoreceu esse genocídio ao permitir que Israel roubasse os fundos da ANP e também ao imporem um cerco financeiro à população, deixando-a faminta”, protesta.

O homem da CIA e do Mossad da Redação Antigo chefe de segurança da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Muhammad Dahlan é apontado pelo jornalista Ramzy Baroud e pelo refugiado palestino Haitham Sabbah como um dos fomentadores do conflito entre Hamas e Fatah. “O gesto ousado de Mahmoud Abbas (presidente da ANP) em assinar os acordos de Meca foi rejeitado e mais tarde sabotado por alguns homens de sua própria segurança, liderados por Dahlan, que continuou a criar problemas e a incentivar uma guerra civil, tentativas que funcionaram muito bem e levaram aos acontecimentos de junho”, esclarece Baroud. De acordo com Sabbah, não é segredo que suas forças tentaram assassinar muitos líderes do Hamas (incluindo o primeiro-ministro Ismail Haniyeh) e se empenharam em atrapalhar o trabalho do governo de coalizão em Gaza e na Cisjordânia. “Todo palestino sabe que esse milionário – originalmente de um dos campos de refugiados de Gaza – é um homem da CIA e do Mossad” (agências de inteligência dos EUA e de Israel, respectivamente), completa. Em uma entrevista à agência de notícias Reuters no dia 19, Dahlan afirmou que o Hamas havia caído em uma armadilha armada por Israel. (IO)

O refugiado palestino Haitham Sabbah não perdoa ninguém: “os dois partidos se comportam como gângsters. Nenhum deles atuou sob a cobertura da lei ou da Constituição. Ambos mataram e seqüestraram pessoas inocentes. Ambos cometeram crimes contra a humanidade e violaram direitos humanos”, diz, ao referir-se aos confrontos de junho entre Hamas e Fatah, que levaram à tomada da Faixa de Gaza por parte do primeiro e a dissolução do governo de coalizão pelo segundo. O Fatah – sigla em árabe para Movimento de Libertação Nacional Palestina – foi criado por Yasser Arafat e por Khalil al-Wazir. A partir de 1967, tornou-se a principal força política da Palestina. Já o Hamas – sigla para Movimento de Resistência Islâmica – foi criado em 1987 em Gaza, preconizando a luta contra Israel, por todos os meios. Mesmo assim, em seus primórdios, recebia ajuda financeira do Estado judeu, com o objetivo de ser uma contraposição à forte liderança de Arafat.

De acordo com Sabbah, desde a vitória do grupo de Ismail Haniyeh, os EUA, Israel e a UE vêm apoiando o Fatah também com armas. “Em janeiro de 2006, o vice-conselheiro Nacional de Segurança estadunidense, Elliot Abrams, saudou um grupo de empresários palestinos mencionando um ‘golpe duro’ contra o recém-eleito governo do Hamas através de uma expulsão violenta de sua liderança, com armas fornecidas pelos EUA”, diz. Após a dissolução do governo de coalizão, os EUA comunicaram que continuariam o treinamento das forças palestinas na Cisjordânia, ou seja, aquelas comandadas pelo Fatah. No dia 25, Ehud Olmert anunciou a libertação de 250 prisioneiros do grupo e sinalizou ter intenções de iniciar novas negociações nos próximos meses, “sob a condição de que Abbas lute contra o Hamas”. Um governo do Fatah seria muito mais conveniente. Para Lejeune Mirhan, o objetivo é ter na ANP uma liderança domesticada, que faça concessões à Israel. “O grande debate hoje gira em torno do status de Jerusalém, o retorno dos refugiados políticos, a volta das fronteiras como eram em 1967 e a convivência de dois Estados no mesmo território. Abbas poderia ceder em dois ou três desses pontos, e aceitar um Estado quebrado, sem ligação física, mantendo na Cisjordânia 240 mil judeus assentados. A comunidade internacional está cometendo um erro. Só vai haver paz com a volta das fronteiras de 1967”, lamenta. Agora, segundo o arabista, correse o risco de uma guerra civil. Disputa que, em sua opinião, o Hamas leva vantagem, por controlar uma região que tem continuidade territorial, ao contrário da Cisjordânia, em poder do Fatah.

“Podemos classificar o Hamas como um grupo mais de ultra-esquerda, chamado de fundamentalista, com visões sectárias na análise de conjuntura, de maneira que não estabelece praticamente nenhum tipo de aliança com outras forças. O Fatah tem uma orientação política bastante moderada de centro-esquerda, socialdemocrata, que também não vê no Hamas possibilidade de fazer aliança. Então, isso leva a um impasse”, explica o sociólogo e arabista Lejeune Mirhan. Segundo o jornalista estadunidense-palestino Ramzy Baroud, o Fatah, historicamente, teve um papel significativo ao garantir a ligação dos palestinos com sua própria luta, em vez de se concentrarem em disputas internas. Assim, desde a década de 1960, explica, o grupo reivindica uma posição superior na condução da política local, cuja principal instituição à época era a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). “Com o Fatah sendo o ‘único representante do povo palestino’ por tantos anos, a ascensão do Hamas nunca foi aceita como parte do jogo, e este não desejava se juntar à OLP como um grupo marginal”, complementa. Ainda de acordo com ele, o momento que pode ser designado como o início dos enfrentamentos entre os dois grupos foi a assinatura do Acordo de Paz de Oslo entre Arafat e o então primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, em 1993, na capital da Noruega. O tratado previa, entre outras coisas, a retirada das Forças Armadas de Israel da Faixa de Gaza e o direito dos palestinos ao autogoverno. No entanto, mantinha algumas áreas ainda sob controle israelense e postergava questões fundamentais como Jerusalém, refugiados, assentamentos judeus e fronteiras.

Divisor de águas

“Oslo enfureceu muitos palestinos, secularistas e, de qualquer forma, não apenas as fileiras do Hamas. Para o movimento islâmico, no entanto, as concessões representaram um momento divisor de águas. O Hamas tomou as ruas de Gaza, e a polícia da ANP, coordenada ou sob a pressão dos israelenses, começou uma campanha brutal de supressão contra o grupo”, analisa Baroud. No entanto, a liderança de quatro décadas do Fatah causou um desgaste natural na relação com a população. Além disso, pesaram decisivamente para tal os inúmeros casos de corrupção envolvendo o grupo. “As elites e uns poucos ricos sustentaram uma sociedade governada por meio da brutalidade, nepotismo e favoritismo e foi, sem pudor, administrada com a ajuda de Israel”, lamenta Baroud, para quem o Hamas, por seu passado anticorrupção e de luta agressiva contra Israel, fez com que merecesse a responsabilidade de governar a Palestina, do ponto de vista do palestino médio. (IO)


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áfrica Carlos Matos

Camponeses, que representam 80% da população do país, vivem a ameaça da chegada das transnacionais

Agricultores de Moçambique em alerta contra transnacionais ENTREVISTA Governo do país, localizado no Sul do continente africano, abriu recentemente suas portas para que as transnacionais possam explorar a comercialização da páprica (tipo de pimentão) e da cana; medida pode desencadear a expulsão dos camponeses de suas terras Pedro Carrano de Curitiba (PR) O AGRICULTOR João Palate representou a Via Campesina de Moçambique no 5º Congresso Nacional do MST. Em entrevista realizada durante o encontro, Palate enfatizou a necessidade de um trabalho de base com os camponeses de Moçambique para alertá-los sobre a chegada das transnacionais do campo, colocando em perigo a agricultura familiar, base alimentar e cultural das numerosas famílias moçambicanas. Na voz de Palate, uma das necessidades dos movimentos de resistência africanos é estudar os conteúdos do imperialismo. Brasil de Fato: Quais são os desafios da Via Campesina em Moçambique? João Palate – Em Moçambique, a Via Campesina está a trabalhar para que os camponeses estejam em uma liberdade total. E o que significa isso? Para que os camponeses tenham soberania alimentar. Essa é a primeira questão que a Via Campesina defende em Moçambique. E também defende que seja uma soberania social, a qual todo o povo esteja associado. Desejamos a paz, a solidariedade e a justiça, esses são os principais desafios da Via Campesina em Moçambique.

Nós, moçambicanos, precisamos aprender os conteúdos e as estratégias do imperialismo. Não percebemos muito bem o que é imperialismo por causa da nossa independência, obtida pelos movimentos socialistas Em Moçambique, a luta dos camponeses é pelo direito de não perder suas terras? O direito dos camponeses é uma das reivindicações, o direito dos camponeses para trabalhar a terra e ter condições para trabalhar a terra. A segunda é a defesa de que essa terra não possa ser retirada do camponês, de maneira que o governo não pode aceitar que venham os investidores estrangeiros, tirando de qualquer maneira os camponeses da terra. Então, nos organizamos para que isso não aconteça, ninguém pode sofrer por causa da terra, porque todos precisamos da terra fértil. Mas existe um processo de perda de terras por parte dos camponeses, por ação do Estado ou de empresas transnacionais? Ainda não existe muita perda de terras para grandes empresas, mas já existe essa tendência para que o camponês perca as terras. E o governo não defende muito essa questão. Conflitos já aconteceram,

devido a pequenas empresas que têm o potencial de crescer. Estamos nos organizando para que isso não aconteça, mas existe uma tendência. Isso ocasiona uma migração das pessoas do campo? Há muito trabalho nesse sentido de sensibilizar o camponês para perceber essa questão, os resultados não são previsíveis, mas as organizações sociais no campo trabalham para isso. Porém tem limites de fundo. Existe no momento uma pressão sobre o governo para disponibilizar fundos para essa mobilização no campo. Passamos, entre 1964 e 1975, por uma guerra de independência e logo, entre 1976 e 1992, por uma guerra de etnias, e a população do campo foi a principal afetada. E quanto à questão do contágio de HIV entre a população rural? Moçambique é uma nação africana com altos índices de analfabetismo. O primeiro trabalho de prevenção vem na forma midiática, mas isso não chega até os camponeses. Ademais, o país tem o litoral que é um corredor de ligação com outros cinco países, que também apresentam um alto índice de HIV entre a população. Consideramos que até agora não houve boa política, outros países dão financiamento para essa atividade, mas o que amenizou por enquanto a situação foi a assistência de organizações sociais. Porém, existem grandes problemas de preconceito. Em Moçambique, os camponeses são donos de suas sementes? Já as perdemos. Tradicionalmente, compartimos as sementes, mas temos sofrido calamidades climáticas, como secas e passamos a receber doações de sementes que não são nossas, recebemos sementes que não se reproduzem e não podem ser utilizadas para o próximo ano, estão manipuladas. As famílias de Moçambique são numerosas e dependem da agricultura. Unimos duas coisas: um ciclo curto de produção de hortaliças, para o mercado, porém os cereais são para alimentar a família, são produtos de primeira necessidade. Muitas vezes as informações que chegam de Moçambique nos falam da saúde e do saneamento básico em condições de total abandono. Isso afeta muito os camponeses, são problemas de políticas públicas que não estão claras, temos o grande problema da falta de investimento no campo, 80% das pessoas vivem no campo, mas tudo está na cidade. Por isso há mortes por parto, mulheres que nunca tiveram assistência pré-natal e crianças que crescem sem passar por tratamento. Não há política de combate à malária. Hoje em dia, fala-se no crescimento da econo-

Um exemplo da força popular ocorreu em Moçambique, em 2004, quando houve eleições e o povo não participou. De mais de 20 milhões de eleitores, apenas 3 milhões votaram, uma resistência muito silenciosa que o povo fez, ao modo dos moçambicanos mia de Moçambique, mas que se dá pelas empresas transnacionais, apoiado nas fábricas de alumínio e gás e, recentemente, o investimento no turismo. De toda a produção agrícola de Moçambique, 98% é feita pelos camponeses. Exportamos a castanha, o amendoim, mas quem produz tem que vender aos intermediários ou empresas instaladas noutros países. O Estado também rouba os camponeses, pagando um preço muito baixo para o algodão e o tabaco, sem discutir com eles o valor pago. Como você avalia o 5º Congresso do MST? A nós, africanos, nos deu mais visão sobre quais são as armas do imperialismo, pois nossos estudiosos não investigam isso. Precisamos aprender os conteúdos e as estratégias do imperialismo. Os moçambicanos não percebemos muito bem o que é imperialismo por causa da nossa independência, vencida pelos movimentos socialistas. Apesar disso, aos poucos prevaleceu uma visão mais capitalista, apareceram transnacionais comprando fábricas. Mas, no campo, a princípio, as grandes empresas não encontraram um ambiente bom porque não havia empresas grandes para explorar, apenas peque-

Quem é João Palate, agricultor do Sul de Moçambique, é membro da Via Campesina e da Unac (União Nacional de Camponeses), organização que congrega cerca de 80 mil camponeses.

nas empresas que faziam parcerias com camponeses. Recentemente, o governo abriu o país para que as transnacionais explorassem a páprica (tipo de pimentão), cana etc. Por isso tudo o povo de Moçambique ainda está adormecido. Quais possibilidades para a resistência o senhor enxerga em Moçambique e na África? Há um trabalho de transformação a ser feito, para que o camponês perceba os conteúdos, faça a luta e não espere do governo. Um exemplo da força popular ocorreu em Moçambique, em 2004, quando houve eleições e o povo não participou. De mais de 20 milhões de eleitores, apenas 3 milhões votaram, uma resistência muito silenciosa que o povo fez, ao modo dos moçambicanos. Suas lutas são feitas de um modo pacífico, mas mostrou que há possibilidade.


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Texaco perde ação contra o Equador

Rini Hartman_CC

américa latina

POLUIÇÃO Corte Federal de Nova York transfere o caso à Corte equatoriana; juiz que emitiu resolução diz que empresa deverá submeter-se às leis equatorianas da Redação A PRETENSÃO da empresa Chevron Texaco de obrigar o governo equatoriano a submeter-se a uma sentença, para evadir a jurisdição das Cortes de Justiça equatorianas, no processo em que 30 mil equatorianos acusam-na por danos ambientais e sociais, foi negada no dia 21 pela Corte Federal de Nova York. Foi um grande revés para a petroleira, já que ela perdeu uma de suas melhores possibilidades de repassar ao Estado equatoriano os custos de suas más práticas.

Quanto

30 mil equatoria-

nos acusam a Texaco por danos ambientais e sociais

se decidido pelo início do estudo global, que diagnosticará o dano causado pela Texaco nas províncias de Sucumbíos e Orellana, por suas operações com hidrocarbonetos, e quantificará o montante econômico que a petroleira deverá pagar, com base no que dispõe a lei do Equador.

A Texaco criou o pior desastre relacionado com petróleo do planeta, ao despejar dejetos tóxicos diretamente sobre os delicados solos da floresta tropical úmida Agora, o caso será resolvido na Corte Superior de Nova Loja, capital da província amazônica equatoriana de Sucumbíos. Segundo o juiz federal do Distrito Sul de Nova York, Leonard Sand, que emitiu a resolução, a empresa deverá submeter-se às leis equatorianas e às decisões tomadas pela Corte local. Sand reconheceu a jurisdição e competência da Justiça equatoriana nessa demanda, pois não existe acordo de operação conjunta entre o governo equatoriano e a Texaco, logo não há nenhuma possibilidade de arbitragem. O presidente da Corte Superior de Nova Loja já havia

Para Luis Yanza, coordenador da Assembléia de Afetados, a decisão “produziu grande comoção na Texaco, que durante os últimos anos tentou por todos os meios retardar o julgamento e evadir suas responsabilidades, pretendendo desconhecer a jurisdição equatoriana”.

Catástrofe na selva

Em um informe intitulado “Catástrofe na Selva: Fraude e Engano da Texaco no Equador”, elaborado, em maio deste ano, especialistas disseram que a empresa criou o que se constitui o pior desastre relacionado com petróleo jamais

ocorrido no planeta. “Ao longo desse tempo, a Texaco violou práticas da indústria, assim como leis equatorianas e estadunidenses, ao reverter 18 bilhões de galões de dejetos tóxicos diretamente sobre os delicados solos da floresta tropical úmida para economizar em custos de produção”. As fraudes realizados pela Texaco incluem: pagamento de menos de 1% do custo total da limpeza, tendo ainda convencido o Equador de que estava limpando 37,5% dos danos; a existência de mais de 200 piscinas de dejetos tóxicos que havia coberto com terra para excluí-las da limpeza; a criação e aplicação de seus próprios modelos para a limpeza, ignorando os requerimentos da lei e os usos e práticas da indústria; além de nunca ter limpado 92 piscinas de dejetos tóxicos que estava obrigada a tratar no acordo de limpeza. Ademais, enganou o governo equatoriano, conseguindo que este “certificasse” sua limpeza apresentando resultados de laboratório desorientadores; quando os resultados estão revelando o inevitável: todos os sítios “supostamente cuidados” pela Texaco contém extensos níveis de toxinas perigosas à vida. Isso foi comprovado pelas mostras de água e solo apresentadas à Corte de Lago Agrio pelos próprios cientistas da Texaco, assim como por cientistas da parte demandante. (da Adital, www.adital.org.br)

Desastre é apontado por especialistas como o pior envolvendo petróleo

ARGENTINA

Direita governará Buenos Aires Empresário e presidente do clube argentino Boca Juniors, Mauricio Macri foi eleito prefeito da capital argentina Eduardo Sales de Lima da Redação O empresário Mauricio Macri venceu com 61% dos votos o segundo turno das eleições realizadas em Buenos Aires, em 24 de junho. Derrotou Daniel Filmus, o candidato do presidente argentino Néstor Kirchner, que obteve 39% dos votos. Analistas consideram que os portenhos votaram por busca de novos rostos na política e acrescentam que boa parte dos eleitores foi influenciada pelo atual êxito do Boca Juniors na Copa Libertadores. Macri é presidente do clube, o mais popular da Argentina. O politico é filho de um dos maiores empresários do país, Francisco Macri, italiano radicado na Argentina, que construiu uma fortuna durante o regime militar. O grupo econômico manteve também estreita relação com o governo de Carlos Menem. Em 1997, recebeu a concessão do Correo Argentino que, depois, foi revogada pelo atual presidente Néstor Kirchner em 2003. Hoje, os Macri possuem negócios em diversos segmentos na Argentina, no Brasil e na Colômbia: administração de rodovias, empreiteiras, distribuição de gás natural e transmissão de energia elétrica; informática. Filmus, atual ministro argentino de Edu-

cação, qualificou seu rival de autoritário e advertiu que representa as políticas neoliberais que “danaram” o país. Macri negou as acusações e prometeu uma alternativa de oposição ao governo nacional, centrada na gestão independente da Casa Rosada. O empresário nunca ocupou um cargo executivo na política. Ele nasceu em Tandil, província de Buenos Aires. É engenheiro civil e desde 1985 administra as diversas empresas de sua família (Sideco, Socma, Sevel). Como executivo da Sevel, foi processado por contrabando agravado, acusado de dar calotes no Estado argentino. A empresa exportava seus produtos para o Uruguai e, na seqüência, importava-os, lucrando com a manobra. Em 2005, Macri criou, junto com Ricardo López Murphy e outros políticos, o Partido Proposta Republicana (PRO). Seu triunfo foi interpretado como um revés para Kirchner, a quatro meses das eleições presidenciais. Sugere, também, que o empresário tem tudo para se tornar uma referência da oposição ao governo federal, atualmente débil e dividida. Para analistas argentinos, o projeto de Macri é para 2011, e não para as eleições nacionais de outubro deste ano. O empresário assumirá a prefeitura de Buenos Aires em 10 de dezembro e terá apoio da maior parte da legislatura. (Com Agências Internacionais).


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cultura

A história do menino

que viu

soldados

Gama

passarem

ANÁLISE No quadragésimo aniversário de Cem anos de solidão, uma oportunidade para se lembrar as crianças que testemunham o “progresso” de nossos dias Silvia Beatriz Adoue MUITOS ANOS depois, o menino lembraria que, sentado na soleira da casa dos avôs, viu soldados passarem, que o cumprimentaram despreocupados. O piá não suspeitava, não podia suspeitar, o que eles iriam fazer. Ele era novinho demais, ele era confiado, ele não tinha experiência. O gesto amigável ocultava os motivos da presença desses militares na cidade pacata. Depois, as imagens daquela cena retornariam uma e outra vez. A inocência traída pelos acontecimentos que se seguiram talvez tenha sido motivo para o relato que marcou toda a literatura latino-americana do século 20. Corria o ano de 1928, e os trabalhadores vindos como em aluvião à cidade de Aracataca, dos diferentes cantos da Colômbia, atraídos pela United Fruit Company, já levavam 28 dias de greve. Eles queriam: seguro coletivo, indenização por acidente de trabalho, descanso dominical, suspensão dos comissariados dentro da região, pagamento semanal em lugar de quinzenal, contratos coletivos, um hospital para cada 400 trabalhadores e um médico para cada 200 e higienização dos acampamentos. Em total, 9 reivindicações apresentadas pelos seus representantes, comunistas e anarcosindicalistas. A United Fruit Company tinha chegado ao local em 1905, encontrando escoamento da produção de bananas para exportação pela rede ferroviária e pelo desvio dos rios Aracataca, San Joaquín e Ají, realizado pela própria companhia. O “progresso” propiciado pelo monocultivo para exportação apresentava então seu rosto mais sinistro. Ao longo da linha do trem e do rio, seguiam os ninhos de metralhadoras. Os trabalhadores tinham sido convocados para dialogar com as autoridades, que chegariam de trem. Quem chegou foi o general Carlos Cortés Vargas, com 300 soldados, ameaçando abrir fogo se os mais de 3 mil manifestantes não se dispersassem. Como ninguém arredara pé, o general deu mais um minuto. “Pode ficar com o minuto que falta”, se ouviu uma voz no meio ao silêncio. E então começou o massacre. O governo só admitiu 9 mortos, um por cada reivindicação. Ao dia seguinte tinham sumido com os cadáveres. 100, 300, 1.000. O número ocultado aumentava nos cochichos, nas denúncias, entre as que se contavam a do avô do piá da história. A controvérsia sobre a quantidade de mortos é assunto da historiografia colombiana. Carlos Arango, no livro Sobreviviente de las bananeras, cita testemunhos dos motoristas que carregaram os cadáveres para as lanchas que os jogariam no mar.

A empresa sofreu um processo parlamentar, iniciativa do liberal Jorge Eliecer Gaitán. Um ano depois, as cotas de exportação diminuíram, como resultado da crise das bolsas, e a United Fruit Company se retirou da região, deixando atrás de si, além de um rasto de morte e desemprego, uma enchente renitente, resultante da canalização dos rios.

Colcha de retalhos

O menino, de nome Gabriel, cresceu ouvindo falar daquela jornada, fragmentos de memória dos sobreviventes se superpondo feito colcha de retalhos. Se a lembrança foi reconstruída ou imaginada, alimentada pelo relato familiar, não importa. Se não for realista, com certeza é verdadeira. E foi motivo para sua literatura. Quase 40 anos depois, o menino já crescido publicou Cem anos de solidão, onde a Aracataca do piá é chamada de Macondo. Dentro do romance, a descrição minuciosa do massacre aparece em 4 páginas do 15º dos 20 capítulos que o compõem. O ritmo da narrativa é o da respiração dos manifestantes. Os acontecimentos são relatados como foram observados por um menininho que o personagem José Arcádio tinha colocado acima dos seus ombros, para ver melhor. (Veja box ao lado) O olhar da criança instala no enredo toda a carga de inocência esmagada que torna assustador aquele lugar frente à estação, antes tão familiar e amigável, onde a mãe a levava, durante os festejos da cidade, para comer animaizinhos de caramelo. O mundo conhecido já não era confiável, era um engano. E mentira era o progresso, a chegada alegre do trem. Na história, o trem que antes trouxe os migrantes e carregava bananas, agora leva os cadáveres para atirar no mar: 3 mil. E esse número é colocado no lugar daquele ocultado pelo governo. A literatura restituindo a história escamoteada. Esse trecho aparece dentro do romance como uma pedra, um corpo estranho que faz virar o enredo. A partir do episódio do massacre, a natureza cobra revanche pela destruição que o “progresso” trouxe à região. Chove durante 4 anos, 11 meses e 2 dias, e tudo apodrece. Parece que a história anda para trás. As plantas abrem gretas nas casas, as formigas comem tudo que encontram pelo caminho.

Realismo maravilhoso Neste mês de junho, faz 40 anos da publicação de Cem anos de solidão. Serviu, logo após ser lançado, para que Gabo, o menino já crescido, e sua mulher pudessem saldar a dívida de 6 meses que mantinham com o dono da vendinha. Depois, o romance virou uma espécie de “máquina literária”, inspirando a obra posterior do seu autor e de escritores

de todo o continente. A crítica acolheu o livro como o principal expoente do registro realista maravilhoso. A indústria editorial aproveitou o êxito junto aos leitores para lançar livros de outros autores da região e faturar acima do que se chamou “o boom da literatura latino-americana”. A dimensão testemunhal da obra foi passando a um segundo plano nas sucessivas leituras e nos ensaios críticos escritos desde a academia, que prepararam as novas gerações de leitores. Mas hoje quero lembrar que Cem anos de solidão é a história da lembrança do menino que viu soldados passarem. E que passou o resto da sua vida refletindo sobre o quê vem a ser o “progresso” para nossa terra e para nosso povo. Esse menino, Gabriel García Márquez, já está com 80 anos. Mas há muitos meninos pela América Latina afora. Como os sem-terrinha que levaram suas reivindicações a Brasília na semana passada. Eles também observam e refletem sobre o “progresso” que outras “united fruits” dizem trazer, ameaçando a sobrevivência do povo e da terra. Eles podem, junto às suas mães, pais e companheiros, fazer outro enredo para a história da sua terra. E eles podem e querem aprender a contá-la com sua própria voz. Assim como fez o menino que viu soldados passarem quase 80 anos atrás. Silvia Beatriz Adoue é mestre em Integração na América Latina, pelo PROLAM-USP, doutoranda em Literatura Hispano-americana, pela FFLCH (USP), e professora do curso de Letras do Ceuclar

Fragmentos – Cem Anos Rurais José Arcádio Segundo, suando gelo, desceu o menino dos ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes de disparar”, murmurou ela. José Arcádio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida levantou a voz. - Cornos! -gritou-. Podem levar de presente o minuto que falta. Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear e se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro, entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe”. Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclisma, arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico. Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcádio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da mul-

tidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: - Atirem-se no chão! Atirem-se no chão! Já as primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas de metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido contrário, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde também as metralhadoras disparavam sem trégua. Estavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os braços em cruz, num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José Arcádio Segundo no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes que o tropel colossal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada, com a luz do alto céu de sêca e com o puto mundo onde Úrsula Iguarán tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo. (páginas 269 a 1970) GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970. Tradução de Eliane Zagury


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