Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 5 • Número 227
São Paulo, de 5 a 11 de julho de 2007
Sem transparência e sem consulta pública, a construção da terceira usina nuclear do país, Angra III, será retomada, segundo decisão do Conselho Nacional de Política Energética, apesar da oposição do Ministério do Meio Ambiente. Entre especialistas, há os que consideram Angra III um retrocesso à política energética brasileira, desperdiçando recursos públicos e aumentando a ameaça nuclear no Brasil. Mas há quem veja um pontapé para o desenvolvimento tecnológico nuclear nacional. Pág. 8
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Uma “guerra” em que só os pobres morrem Latuff
A controversa opção do governo pela energia nuclear
R$ 2,00
Repressão às fábricas ocupadas A pedido do INSS, a Justiça determinou a intervenção de três fábricas ocupadas, em junho. A Polícia Federal conseguiu controlar duas delas, a Cipla e a Interfibra (ambas em Joinvile/SC). Os trabalhadores da Flaskô, em Sumaré (SP), conseguiram resistir à intervenção. “Colocamos o interventor para correr”, disse um membro do Conselho de Fábrica. Mas Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) mandou cortar o fornecimento de energia da unidade. Pág. 3
Soldado da Força Nacional de Segurança
COMPLEXO DO ALEMÃO:
Gaza é aqui
Após a megaoperação que deixou um saldo de 21 mortos em um único dia no Complexo do Alemão, o governador do Rio de Janeiro se despiu de pudores para anunciar: “Estamos em guerra e vamos ganhá-la”. A julgar pelos números, para Sérgio Cabral (PMDB), “ganhar a guerra” significa aumentar o número de mortos. Pobres, de preferência. Na prática, a instituição da pena de morte de classe no Brasil. Somente no primeiro trimestre de 2007, 318 pessoas morreram em supostos confrontos com a polícia em todo o Estado – contra 228 no mesmo período do ano passado. Para organizações de Direitos Humanos, é um erro assumir que só há criminosos em comunidades pobres. Págs. 2 e 4
Eduardo Seidl
UFRGS institui reserva de cotas raciais
Antonio Lino
RESISTÊNCIA NEGRA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) aprova medida que reserva 30% das vagas no vestibular da graduação para estudantes da rede pública e para candidatos autodeclarados negros. Já indígenas terão direito a 10 vagas, que serão criadas em cursos específicos. “O Brasil foi construído pela diversidade, por que somente um segmento pode participar?”, avalia Vera Regina Triumpho, da Pastoral do Negro. Pág. 6
Tambor simboliza a força africana Constituído durante a escravidão, o tambor de crioula pode ser compreendido como um sistema de comunicação que – por não poder ser dito verbalmente, dada à repressão – era traduzido em expressões corporais. Nele, o canto e a percussão se somam à dança num resgate da comunhão e força dos ancestrais africanos. Radicado no Nordeste, especialmente no Maranhão, tornou-se patrimônio imaterial do Brasil. Pág. 12 Fabio Pozzebom ABr
A OMC, mais uma vez, não obteve sucesso na tentativa de avançar, com a Rodada Doha, negociações de liberalização do mercado global. No fim de junho, Brasil, Índia, União Européia e EUA reuniram-se na expectativa da solução do impasse. Os dois últimos cul-
João Zinclar
Sem concessões, impasse segue na Rodada Doha param os primeiros pelo fracasso mas, enquanto desejam uma ampla abertura do setor industrial dos países emergentes, não querem oferecer significativos cortes tarifários para a agricultura e nos subsídios concedidos a seus produtores locais. Pág. 11
Promiscuidade dos políticos e empreiteiras Em acampamento contra a tranposição, índios Truká realizam cerimônia
Ameaça à luta contra a transposição Sem notificar os manifestantes, o governo federal preparou a reintegração de posse de acampamento montado para barrar as obras da transposição, em Cabrobó, (PE). A decisão favorável ao despejo foi obtida três dias após o início da ação. Segundo Ruben Siqueira, da CPT, o fato de o governo ter feito o pedido de reintegração sem tentar dia-
logar com os manifestantes é praticar a política do “fato consumado; estão dando o projeto como certo”. Para críticos do projeto, a fruticultura irrigada será uma das principais beneficiárias da transposição. Empresas que produzem frutas em larga escala para exportação utilizam agrotóxicos, com prejuízos aos trabalhadores e o meio
ambiente. Em Limoeiro do Norte (CE), um trabalhador teve a perna amputada após contato com produtos químicos em uma plantação de banana. Págs. 4 e 5
Renan Calheiros, Operação Navalha. O ponto de contato desses dois escândalos recentes no Congresso Nacional é a relação pouco transparente entre parlamentares e construtoras. “Toda a crise revela que ainda estamos vivendo as ‘últimas dores do parto’ da democracia”, avalia Átila Roque, do Inesc. Em meio à disputa política, não faltam barganhas como, por exemplo chantagens em relação à votação do veto presidencial da Emenda 3, cujo resultado negativo pode ser prejudicial aos trabalhadores. Pág. 7
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editorial DESDE O dia 2 de maio, a Força de Segurança Nacional e as polícias carioca, civil e militar, fazem uma ofensiva sobre o Complexo do Alemão – uma rede de 12 favelas que abriga mais de 200 mil pessoas empobrecidas, vítimas do descaso do Estado, da opressão do narcotráfico e da violência de ambos. No dia 27 de junho, essas forças de segurança (sic) fizeram uma ofensiva sem precedentes naquele complexo. Dados oficiais da Secretaria de Segurança do Rio atestaram 19 mortos. A maioria das vítimas: jovens e negros. Relatos de moradores das favelas, ainda amedrontados com a violência policial, duplicaram o número de mortos e denunciaram execuções sumárias. Certamente, em defesa desses crimes, aparecerá sempre uma autoridade para dizer que “pensavam que eram narcotraficantes”. Após a ação, a polícia comemorou o resultado da operação. Se estivesse olhando para o rosto daquela população, não viria um olhar de agradecimento e alívio.
debate
A violência é reflexo da elite do país Moradores de favelas, pobres, índios, domésticas e prostitutas, sempre vítimas do sistema, serão apresentados como agentes da violência e da insegurança que impera em toda a sociedade brasileira E sim de medo, insegurança e revolta pelas mortes e violência praticadas. Quatro dias antes dessa ofensiva irracional, dia 23 de junho, a empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto foi espancada por cinco jovens universitários da classe média da Barra da Tijuca, enquanto esperava o ônibus que a levaria para sua casa. Um dos agressores justificou a violência porque acharam que “era só uma prostituta”. Em 1997, dia 20 de abril, Dia do Índio, jovens da clas-
se média de Brasília assassinaram o índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos enquanto ele dormia. Jogaram álcool e depois colocaram fogo. Também, em defesa da ação criminosa, alegaram pensar que aquele ser humano “era apenas um mendigo”. Moradores de favelas, pobres, índios, domésticas e prostitutas, sempre vítimas do sistema, serão apresentados como agentes da violência e da insegurança que impera em toda a sociedade brasileira. Diante dessa visão obtusa, a
própria elite cobra mais repressão policial, legislação mais rígida e ilude-se em assegurar sua própria segurança com gastos financeiros cada vez mais volumosos. Certamente no plebiscito pelo desarmamento, votaram contra. Aplaudiram a lei que criou a categoria de crimes hediondos. E, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, em 2004, a violência custou ao país R$ 92,2 bilhões – gastos com investimentos em segurança pública
crônica
Maria Orlanda Pinassi
Nada será como dantes no quartel-general de Abrantes Gama
Não restou outra alternativa senão a de recorrer à ilegalidade da ação diante da sistemática recusa de serem ouvidas as reivindicações, sobretudo, dos estudantes de baixa renda e suas avolumadas necessidades de moradia e bolsas de demanda social ciosamente implementado pelos governos federal e estaduais. É compreensível que questionemos e discordemos dos métodos empregados pelos estudantes, do modo enfático e petulante de manifestarem suas idéias. Mas, é preciso reconhecer que, de maneira atabalhoada, os estudantes têm sido os únicos a contestar com veemência e muita coragem os golpes sofridos.
Esse é o sentido político mais concreto das manifestações estudantis, cuja rebeldia é ameaçadora sim porque traz para o nosso paraíso acadêmico uma dimensão da realidade cruel da tão negada luta de classes Incompreensível é a ira desferida contra a rebeldia estudantil. Daí a pergunta: que certezas onipotentes a maturidade pode legar a muitos de nós, que outrora vivemos mais ou menos intensamente esse momento tão importante de nossas vidas, o direito de amiudar tão rapidamente a necessidade de contestar e experimentar a possibilidade de ser sujeito desses jovens que ocupam para lutar pela preservação de alguma dignidade das universidades públicas que hoje querem assaltar? Se nossas experiências juvenis fracassaram, façamos nós um mea culpa. A autocrítica costuma ser mais nobre do que descarregar o peso de nosso fracasso, de nosso niilismo e de nosso cinismo sobre os ombros dos jovens que tanto censuramos, que tanto condenamos.
Luiz Ricardo Leitão
As quadrilhas juvenis e senis de Pindorama
O movimento estudantil e a democracia acadêmica NA MADRUGADA de 20 de junho, um forte aparato policial – 16 viaturas, 3 ônibus da tropa de choque, outro de cadetes, 1 carro do corpo de bombeiros, 1 ambulância, um efetivo total de 250 soldados – invadiu as dependências da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp de Araraquara, cercou, constrangeu, prendeu e enquadrou, pela prática de “esbulho processório”, 90 e poucos estudantes que ocupavam pacificamente a sala da diretoria. De fato, nada será como dantes depois que a “normalidade democrática” foi restabelecida mediante a coerção e o silêncio das vozes dissonantes. Se o desfecho da reintegração de posse em Araraquara foi tão lamentável, em todas as partes parece ter sido generalizada a indiferença e a intolerância no tratamento com o Movimento Estudantil, impondo o extremo das ocupações ocorridas na Unesp, na Usp, na Unicamp, nas universidades federais de todo o país. Não restou outra alternativa senão a de recorrer à ilegalidade da ação diante da sistemática recusa de serem ouvidas as reivindicações, sobretudo, dos estudantes de baixa renda e suas avolumadas necessidades de moradia e bolsas de demanda social. Sob a retórica de que a universidade pública tem a função de “educar” e não prestar assistencialismos, os “auxílios”, quando concedidos, convertem-se cada vez mais em bolsas-trabalho e os alunos “beneficiados” em estagiários. Em vez de se recompor com dignidade o quadro de professores e de funcionários, a utilização de estudantes-trabalhadores precarizados e temporários é a faceta mais recorrente da realidade democrática e do discurso da legalidade contestados pelos movimentos de ocupação das universidades públicas. Ainda é cedo para se fazer projeções sobre o devir do Movimento Estudantil, mas o saldo positivo da sua atuação recente foi ter desnudado uma crise sem precedentes no setor. Foi ter revelado os imensos estragos já causados pela mercantilização da “ciência” habilmente apresentada como “flexibilização” das funções acadêmicas: ensino, pesquisa e extensão. Foi escancarar que empreendorismo e visão de mercado são as competências requeridas do professor universitário para ser bem sucedido e abocanhar os melhores e mais polpudos recursos dos órgãos financiadores das pesquisas demandadas pelo setor privado. Dentro dessa atual lógica, o mérito recai sobre os que venderam definitivamente a alma para o capital, corrompendo o sentido mais pleno do ato de educar. Infelizmente, a perda da autonomia, recentemente tão lamentada pelos incautos, saiu do horizonte no dia em que os mandarins das universidades públicas aceitaram instrumentalizar o conhecimento ali produzido para serem as sócias-menores das parcerias público-privadas. Essa é a verdadeira essência da contra-reforma universitária, projeto educacional protagonizado pelo Banco Mundial e
e privada e tratamento das vítimas. O governo Lula promete um pacote de R$ 3,2 bilhões para obras de infra-estruturas em favelas da capital fluminense. É elogiável a iniciativa de garantir melhores condições de vida à população e de resgatar uma dívida secular junto ao povo brasileiro. No entanto, melhorar a infra-estrutura das favelas não é uma política suficiente para diminuir a violência e combater a influência do narcotráfico junto á população carente, como quer o governo Lula. A violência social é um reflexo de como a nossa sociedade está organizada para privilegiar poucos. Essa violência é o resultado da velocidade e do nível de exploração como os ricos acumulam mais riquezas, propriedades e privilégios em nosso país. Resolver o problema da violência é, acima de tudo, promover uma política de distribuição de renda e riqueza em nosso país. Fora disso, é ficar refém dos causadores e promotores da violência: a elite brasileira.
A perspectiva desses estudantes não parece hedonista nem vislumbra algum futuro prometeico, com o qual imagino que muitos de nós sonhamos (e caímos do cavalo). Entre eles são muito poucos os que pertencem à elite econômica. E desde que adotaram políticas de ampliação do número de vagas e criação de novos cursos, principalmente noturnos, mais jovens têm a chance de ingressar, por mérito acadêmico, nas universidades públicas. Nessa medida, são eles que, desempregados, filhos de desempregados, pobres ou em processo de empobrecimento, estão contestando, dentro e fora da universidade, contra os efeitos nocivos – e subservientes ao capital – das contra-reformas trabalhista, previdenciária, universitária, impulsionadas pela burocracia e pelo poder constituído democraticamente desde o fim da ditadura militar. Caros, esse é o sentido político mais concreto das manifestações estudantis, cuja rebeldia é ameaçadora sim porque traz para o nosso paraíso acadêmico uma dimensão da realidade cruel da tão negada luta de classes. Fecho esse breve artigo com algumas palavras do poeta alemão Heinrich Heine escritas em 1832 num belo e atualíssimo texto intitulado Os revolucionários. Para pensar. “Há dezessete anos muitos escritores na Europa se esforçaram continuamente para livrar os filósofos da França da crítica de terem contribuído decisivamente para o desencadear da Revolução Francesa. Os eruditos de hoje querem novamente seu lugarzinho macio aos pés do Poder e se comportam tão servilmente, nesse intuito, que não mais podem ser considerados víboras e sim simplesmente vermes.” Maria Orlanda Pinassi é professora de sociologia da FCL, Unesp de Araraquara
EM MAIO de 1973, o assassinato de Aracelli Cabrera Crespo abalou o país. Aracelli era uma menina de nove anos incompletos, que vivia com os pais em Vitória (ES). Ela foi seqüestrada, drogada e estuprada por um grupo de jovens da alta classe média capixaba, que, ao final, assassinou a criança e desfigurou seu rosto com ácido. Os acusados foram julgados e condenados em 1980, mas a sentença acabou sendo anulada. Em novo julgamento, realizado em 1991, os réus vieram a ser absolvidos. O escritor José Louzeiro contou a história desse crime, em Aracelli, Meu Amor (1979), cuja trama reunia ingredientes bem comuns entre os herdeiros da burguesia de Pindorama: abuso sexual de menores, tráfico de drogas, corrupção e impunidade. Alguns dos playboys envolvidos no caso seguiriam a carreira política. Consta até que um deles mais tarde seria eleito o síndico do Condomínio Brasil, no Palácio do Planalto. Em Brasília, aliás, as quadrilhas juvenis prosperariam de modo estarrecedor: em 1997, um bando de mauricinhos ateou fogo no líder indígena Galdino Pataxó, que dormia em um ponto de ônibus de madrugada. Os jovens estavam de carro e, ao vê-lo deitado na calçada, decidiram comprar uma garrafa de álcool a fim de incinerar o ‘mendigo’. Um crime – literalmente – hediondo: por motivo torpe, premeditado e valendo-se de meios cruéis. Um dos assassinos, porém, era filho de um magistrado e a juíza que examinou o caso, estranhamente, não o “interpretou” assim: o delito deixou de ser inafiançável e seus autores receberam penas muito mais leves do que aquelas a que faziam jus.
A Barra da Tijuca, no Rio, é uma versão ianque da perversidade de Brasília. Ali vive a burguesia emergente carioca, com seus templos de consumo e a arquitetura dita ‘pós-moderna’ que faz lembrar Miami ou qualquer outra cidade à beira-mar da Flórida (EUA) A Barra da Tijuca, no Rio, é uma versão ianque da perversidade de Brasília. Ali vive a burguesia emergente carioca, com seus templos de consumo e a arquitetura dita ‘pós-moderna’ que faz lembrar Miami ou qualquer outra cidade à beira-mar da Flórida (EUA). Não há lugar para a alteridade e a ideologia neoliberal orienta a práxis social da província. À noite, seus jovens rebentos saem em gangues motorizadas, à procura de diversão, nem sempre barata. “Distraem-se” com drogas e atos de violência gratuita. Suas vítimas prediletas são as prostitutas, que sofrem caladas as agressões dos playboys. O condado seguia sua rotina de exclusão e barbárie até o dia em que um desses bandos de classe média roubou e espancou a doméstica Sirlei Alves. Em vez de silenciar, ela denunciou o fato à Polícia, que logo prendeu os agressores, quatro deles estudantes de Direito (!). A exemplo de Brasília, em que os assassinos do líder indígena Pataxó ‘pretendiam’ apenas “assustar um mendigo”, a quadrilha da Barra declarou que Sueli fora confundida com uma “prostituta”. O empresário emergente Ludovico Bruno, pai de um agressor, declarou que não via motivos para a prisão do filho: “Botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter [!], junto com uns caras desses?” Lembrou-me de imediato o moleque Brás Cubas e seu pai, que, “à vista de gente”, repreendia o menino pelas travessuras, mas, às escondidas, dava-lhe beijos e abraços. Ou seja: cadeia não é para os filhos (e pais) da burguesia, mas sim para a “escória”, a “ralé”, que vive estrangulada nas favelas e periferias das nossas caóticas metrópoles... As gangues juvenis e senis de Brasília e Pindorama se congratulam com Ludovico. Renan, o “rei do gado”, e Roriz, “o rei das novilhas”, sorriem no Planalto. Aos seus pés, prostrada e com uma venda nos olhos, a velha Justiça também é açoitada pelos garanhões da República. Depois, contritos, eles choram perante as câmeras e rezam um terço na Catedral. A indignação, contudo, espraia-se muito além das divisas da Barra ou de Brasília. E o recado do humilde pedreiro, pai de Sirlei, lateja indignado em nossos corações: ele não teve dinheiro para comprar uma bicicleta, mas soube dar educação aos seus filhos. Já não será hora de ‘crianças’ e pais pagarem por seus crimes? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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Fábricas ocupadas sob ameaça do governo e dos patrões TRABALHO INSS obtém, na Justiça, ordem para intervir em três indústrias controladas pelos ex-empregados; enquanto isso, os maiores devedores seguem impunes Renato Godoy de Toledo da Redação OPERÁRIOS DE fábricas à beira da falência, com o desemprego cada vez mais próximo e salários e direitos trabalhistas atrasados. O caminho “natural” seria perder o emprego e ir para a Justiça, esperar por anos ou décadas para receber os seus direitos. Não foi o caminho escolhido pelos trabalhadores da Flaskô (em Sumaré/SP), Cipla e Interfibra (ambas de Joinvile/SC). Eles optaram pela ação direta: ocuparam as plantas, criaram conselhos de fábrica e passaram a conduzir a produção de forma autogestionária. Os trabalhadores dessas fábricas, todas produtoras de plástico, cumpriram o desafio inicial de manter a produção e garantir os salários e os direitos trabalhistas. Também conseguiram criar um fundo de solidariedade para os trabalhadores demitidos pela gestão anterior. Agora, deparam-se com a repressão da Polícia Federal (PF) e o lobby de associações patronais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast). Uma medida judicial determinou que as três fábricas fossem administradas por um interventor. O pedido de intervenção foi feito pelo INSS, por conta de dívidas que os trabalhadores herdaram da antiga gestão. Cerca de 100 Policiais Federais invadiram a Cipla e a Interfibra no dia 31 de maio. Na Flaskô, os interventores não conseguiram controlar a fábrica.
trabalho foi reduzida de 44 horas para 30 horas semanais, sem perdas salariais. Para ele, a decisão da Justiça é uma “aberração”. “Na sentença, o juiz deixa claro que tomou essa decisão para evitar que a ‘moda pegue’”, diz Santinho. Desde 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o Palácio do Planalto, o movimento das três fábricas ocupadas tem reivindicado que o presidente estatize as unidades e utilize os bens dos empresários para cobrir as dívidas. Mas o governo sugeriu que os trabalhadores formassem cooperativas, assumindo as dívidas dos seus ex-patrões. “Se nos tornássemos cooperativas, perderíamos todas os direitos trabalhistas, como o FGTS e o 13º salário”, avalia Santinho.
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Quanto
30 horas
é a jornada de trabalho empregada na Cipla, sem redução salarial, após cinco anos de controle dos trabalhadores
neradora do mundo, deve R$ 192 milhões. A maior papeleira do Brasil, a Klabin, R$ 186 milhões. Já a transnacional alemã Volkswagen tem dívidas de R$ 212 milhões ao sistema de seguridade social brasileiro. A SPTrans, empresa privada que tem a concessão do transporte público na cidade de São Paulo e que se beneficia de uma das maiores tarifas do país (R$2,30), possui um débito de R$ 848 milhões.
Da lista dos maiores inadimplentes com a Previdência; constam Vale do Rio Doce, Klabin e SPTrans; essas empresas também vão sofrer intervenção? Um processo seletivo
A repressão a essas fábricas por conta de dívidas com o INSS soa “estranha”. A página na internet do Ministério da Previdência divulga a cada trimestre a lista dos devedores do INSS. Empresas tidas como lucrativas e eficientes estão entre as primeiras nessa lista. A Companhia Vale do Rio Doce, segunda maior mi-
Conter o movimento
Segundo Pedro Santinho, coordenador do Conselho de Fábrica da Flaskô e membro do Movimento de Fábricas Ocupadas, nos quase 5 anos de controle dos trabalhadores na Cipla, o faturamento da empresa passou de R$ 600 mil para R$ 4 milhões mensais e a jornada de
No entanto, nunca houve nenhuma sinalização de intervenção nessas empresas; ao contrário, a Vale tem sido louvada nos noticiários como uma das empresas mais lucrativas do país. O Ministério da Previdência foi procurado para comentar o tema, mas afirmou que o caso compete à SuperReceita.
Resistência na Flaskô Apenas a fábrica resiste com os trabalhadores no comando, mas CPFL cortou fornecimento de energia da unidade da Redação Das três fábricas ocupadas, a Flaskô, que conta com 82 operários, continua sob controle dos trabalhadores, mas o cerco aos trabalhadores, segundo Pedro Santinho, coordenador do Conselho de Fábrica, está se fechando. A fábrica está ocupada desde 2003. No último dia 20 de junho, o interventor da Cipla-Interfibra, Rainoldo Uessler, foi até a sede da indústria acompanhado de seguranças para tentar tomar o controle da fábrica. “Colocamos ele para correr”, conta Pedro. No dia 27 de junho, a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) cortou o fornecimento de energia da fábrica, de uma forma, no mínimo, pouco usual. Ciente do grau de mobilização dos trabalhadores, a distribuidora de energia privatizada não foi até o local para efetuar o corte, mas o fez a distância. “Eles sabiam que se viessem aqui impediríamos o corte”, acredita. Até o fechamento desta edição, a Flaskô ainda estava com a produção interrompida por falta de energia. “Vamos tentar providenciar geradores para retomar o trabalho”. Um mandado de segurança impetrado, no dia 2 de julho, determinou que a CPFL restabeleça o fornecimento de energia. (RGT)
Estatal ou cooperativismo? Trabalhadores de fábricas recuperadas também defendem as cooperativas como melhor forma para se organizarem da Redação Trabalhadores das três fábricas ocupadas Flaskô (em Sumaré/SP), Cipla e Interfibra (ambas de Joinvile/SC) defendem a estatização como a melhor forma para manterem seus postos de trabalho. Essa posição, no entanto, não é a hegemônica nas fábricas recuperadas pelos ex-empregados. Alguns setores defendem o cooperativismo como forma de organizar a produção de maneira alternativa à lógica da competição de mercado. Nesse sentido, as cooperativas em regime de autogestão seriam mecanismos para a prática da chamada economia solidária, que trabalha com a noção de comércio justo. Luigi Verardo, do departamento de comunicação da Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão (Anteag) e Coordenador do Fórum Nacional de Economia Solidária, acredita que o cerne do debate sobre economia solidá-
ria não está na questão de tornar-se cooperativa ou não, mas sim na independência do trabalhador perante patrões e governos. “Não nos interessa deixar de ter patrão privado para ter patrão público”, defende Luigi, em resposta à reivindicação pela estatização.“Quem paga a banda escolhe a música”, completa. Sobre a questão da retirada de direitos, Luigi afirma que a maioria dos trabalhadores que deixaram de trabalhar com patrões, mesmo em regime de CLT, têm recebido muito mais como associados de cooperativas autogestionadas. “As cooperativas quando fazem a partilha entre os associados, geralmente, já descontam a contribuição do INSS – que é obrigatória – e seguro saúde”, relata Luigi. Se no senso comum a CLT significa garantia de direitos para os trabalhadores, no âmbito das cooperativas pode representar um desvio do caráter horizontal e autogestionário delas, segundo Luigi. “Tem cooperativa com 20 associados e 200 funcionários.
Os associados ganham R$ 3 mil por mês e os ‘CLTs’ ganham um salário mínimo. Isso é exploração, nós denunciamos isso”.
Resquício da ditadura
A Anteag considera, no entanto, a legislação brasileira para as cooperativas como “muito ruim” – ela foi redigida do ano de 1971, no governo militar de Emílio Garrastazu Médici, e surgiu para evitar o debate da reforma agrária, criando as cooperativas agrícolas. Está em debate no Congresso Nacional uma nova legislação, mas uma proposta do senador Osmar Dias (PDT-PR) pretende manter a mesma estrutura da ditadura militar. Nesse modelo, todas as cooperativas são submetidas à Organização de Cooperativas Brasileiras, que pode vetar arbitrariamente a abertura de uma nova organização desse tipo. Além disso, todas as cooperativas são vinculadas e têm de contribuir mensalmente ao sistema “S” (composto por Sesi, Senai, Senac e mais oito entidades). (RGT)
Trabalhadores enfrentam repressão policial e lobby de associações patronais
Apoio da Venezuela foi fundamental para fábricas Governo bolivariano fez acordos para subsidiar matérias-primas derivadas do petróleo para três fábricas recuperadas brasileiras da Redação O presidente venezuelano Hugo Chávez é um parceiro comercial e político do Movimento de Fábricas Ocupadas, constituído por Flaskô (em Sumaré/ SP), Cipla e Interfibra (ambas de Joinvile/SC). Em outubro de 2005, a capital venezuelana, Caracas, sediou o 1º Encontro Latino-Americano de Fábricas Recuperadas por Trabalhadores. Nele, Chávez deixou claro o seu apoio político às ocupações de fábricas em falência: “Fábrica quebrada deve ser fábrica ocupada pelos trabalhadores”, sentenciou. Para impulsionar o movimento, Chávez passou a subsidiar matéria-prima utilizada na Flaskô, Interfibra e Cipla. “Em troca levamos nosso know-how técnico à Venezuela, que está estatizando fábricas como a Petrocasa. O principal fornecedor de canos de PVC para a extração do petróleo eram os EUA, agora estamos ajudando a Venezuela a se livrar dessa dependência comercial com o imperialismo”, diz Pedro San-
tinho. Agora, com a intervenção na Cipla e Interfibra, a Venezuela anunciou que vai cessar o fornecimento de matériaprima a preços preferenciais. “Estava estabelecido que o acordo só valeria enquanto a Venezuela tivesse um governo democrático e as fábricas estivessem sob controle dos trabalhadores, sem nenhum interventor estatal ou jurídico. Foi um acordo entre os trabalhadores e o governo da Venezuela”, afirma Serge Goulart, coordenador dos Conselhos das Fábricas Ocupadas, que nesta semana retornou de Caracas, onde conversou sobre o acordo com dirigentes da estatal Petroquimica de Venezuela (PequiVen) e acertou a realização do 2º Encontro Latino-Americano de Fábricas Recuperadas por Trabalhadores. Goulart diz que o governo da Venezuela assegurou o acordo com a Flaskô, enquanto ela estiver sob controle dos trabalhadores e que voltaria a vender matéria-prima a preços menores à Interfibra e a Cipla, se o controle dessas voltasse aos trabalhadores. (RGT)
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Mega-operação comprova política de criminalização da pobreza Nicky Dracoulis_CC
SEGURANÇA PÚBLICA Desde maio, ações da Força Nacional de Segurança e das polícias estaduais já mataram 44 pessoas Dafne Melo da Redação NA QUARTA-feira, dia 27, Mariana*, 18 anos, não pôde sair para trabalhar. “Os tiros começaram por volta das nove da manhã e não pararam até uma da tarde. Não paravam de jeito nenhum. Minha mãe não me deixou sair de casa, mas nem tinha como sair mesmo. Depois, diminuíram, mas não pararam o dia todo.” A estudante, que preferiu não se identificar, conta que até sábado, poucas pessoas se aventuraram a sair nas ruas das favelas que formam o Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro. “Na feira não tinha ninguém, as pessoas não saíram nem para comprar comida”, conta. Apesar do medo, aos poucos, vão surgindo os relatos de abusos decorrentes da mega-operação realizada pelas polícias Militar e Civil e pela Força Nacional de Segurança (FNS). “Teve muita gente que apanhou, uma moça chegou na minha vila chorando dizendo que a polícia tinha batido nela”, completa. Ações arbitrárias como as do dia 27, que deixaram um saldo oficial de 21 mortos e 9 feridos, incluindo três menores de idade – não são exatamente novidade para os moradores do Complexo do Alemão. Ainda este ano, entre os dias 13 e 15 de fevereiro, as mesmas forças policiais realizaram uma incursão no Complexo, deixando um saldo de 6 mortos e 2 feridos.
Execuções
Uma análise das guias de sepultamento revela que pelo menos 9 das vítimas morreram com tiros na cabeça, tórax e abdômen, regiões que indicam maior possibilidade de mortes por execução. A Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro (Seseg) afirma que todos as vítimas seriam criminosos. Entretanto, apenas 11 dos 19 mortos identificados tiveram seus antecedentes criminais divulgados. A operação, a maior já feita no Rio de Janeiro – que contou com 1.350 homens –, tinha como justificativa o cumprimento de mandados de prisão, apreensão de drogas e armas.
conta que viu inúmeras marcas de bala de revólver, inclusive em paredes de igrejas e creches. Sandra ainda relata que havia muitas marcas de sangue no chão, “como se pessoas feridas tivessem sido arrastadas”. A ativista diz que a julgar pelo relato de moradores, o número de mortes pode ter sido ainda maior do que o oficial. A grande pergunta que fica, porém, é a razão de ser dessas operações. “A criminalidade continua lá. Ninguém discorda do fato de que é preciso combater o tráfico, mas essas ações não tem sido bem sucedidas nesse sentido”, rebate Cahill. A estudante Mariana confirma a afirmação do membro da Anistia Internacional. “Não vejo nenhuma melhora, tudo continua igual”, pontua.
Declarações
O medo faz com que poucas pessoas se aventurem pelas ruas das favelas que formam o Complexo do Alemão
Quanto
13 favelas que reúnem 65 mil habitantes.
O Complexo do Alemão, localizado na zona Norte da cidade, é composto por: Morro Alemão, Grota, Nova Brasília, Alvorada, Alto Florestal, Itararé, Morro Baiana, Morro Mineiro, Morro da Esperança, Joaquim de Queiroz, Cruzeiro, Morro das Palmeiras e Morro do Adeus. A área atinge cinco bairros: Inhaúma, Bonsucesso, Ramos, Olaria e Penha Apesar de a imprensa ter dado maior destaque a essa ação, Sandra Carvalho, da Justiça Global, conta que, desde maio, já são 44 mortos e 80 feridos em decorrência da atuação da polícia e da FNS em complexos da zona Norte.
Repressão
Raquel Willadino, do Observatório das Favelas, acredita que o diferencial agora é que as ações no Complexo do Ale-
mão marcam um momento de articulação entre os governos estadual e federal, com integração da FNS à política de Segurança Pública estadual. “Parece-me que o que eles chamam de ‘pacificação de territórios’ é um modelo de intervenção que será padrão. É preocupante que governos assumam um modelo-padrão capaz de gerar 21 mortos em um único dia”, avalia. Raquel ainda aponta que os números de homicídios não chegam a constranger as autoridades, já que essas estatísticas têm sido usadas como prova de eficiência. “Eles assumiram oficialmente o discurso de guerra”, alerta. Após a mega-operação, o governador do Estado, Sérgio Cabral (PMDB) declarou: “Estamos em guerra e vamos ganhar essa guerra, não tenho a menor dúvida”. A julgar pelos números, para Cabral, “ganhar a guerra” significa aumentar o número de mortos. Dados oficiais do Instituto de Segurança Pública, ligado a Seseg, apontam que somente no primeiro trimestre de 2007 (janeiro a março), 318 pessoas morreram em supostos con-
morros no Rio, um dos maiores motivos de preocupação das organizações.
frontos com a polícia em todo Estado. Ano passado, no mesmo período, o número foi de 228 mortos. Para Sandra, da Justiça Global, por trás dessa realidade, há uma concepção errônea de combate ao crime organizado. “A política de Segurança Pública criminaliza a pobreza, e essas ações criam a idéia de que o tráfico de drogas e o crime se organizam apenas nas comunidades pobres”, defende. A ação da polícia, continua Sandra, não pode se resumir apenas à intervenções repressivas, mas deve englobar trabalho de inteligência que desintegre as redes de crime organizado, que contam com a participação tanto da polícia, quanto da Justiça. Tim Cahill, da Anistia Internacional, concorda: “precisamos de uma polícia eficaz, que não pode ser corrupta, discriminatória e abusiva”, salienta. “Não somos contra a entrada da polícia, mas sim contra a forma como isso está ocorrendo”, resume Raquel, do Observatório das Favelas. A previsão, segundo ela, é que as ações se estendam a outros
Denúncias
Tim Cahill conta que, ainda em maio, entidades de Direitos Humanos fizeram uma reunião com o governo estadual. “Reconhecem que há motivos para preocupação em relação à violação dos Direitos Humanos, mas não abrem mão das ações, alegando que são a única saída”, resume. Sandra Carvalho, que participou de uma nova reunião no dia 3 de julho, conta que essa continua sendo a postura. “Não recuam e afirmam que essas mega-operações irão persistir”, lamenta. Cahill diz que as autoridades também usam como argumento um suposto apoio da comunidade. “O que as pessoas têm nos colocado é exatamente o oposto. Temos recebido muitos relatos de espancamentos, execuções sumárias, práticas de tortura, inclusive com uso de eletrochoque, além de extorsões por parte de policiais”. O ativista, que esteve no Complexo após a ação do dia 27,
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a destinação de R$ 3,880 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o Rio de Janeiro, incluindo investimentos sociais em diversos complexos de favelas da cidade. Sandra aponta que essa é uma reivindicação histórica das comunidades, mas que outras iniciativas devem ser feitas, como uma reforma das polícias. “O que não dá é condicionar a liberação de verbas para gastos sociais a essas ações”, defende. Lula ainda desagradou ativistas ao afirmar que “tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz. A gente tem que enfrentá-los sabendo que muitas vezes eles estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria do povo que trabalha lá é de gente trabalhadora, de bem, que não pode ficar refém de uma minoria”. “É uma declaração, no mínimo, contraditória”, avalia Tim Cahill. Sandra lembra que a retórica de “não poder enfrentar bandidos com rosas”, também foi usada por Pedro Franco de Campos, Secretário de Segurança Pública de São Paulo, quando ocorreu o Massacre do Carandiru. *Nome fictício
SÃO FRANCISCO
Na surdina, governo planeja reintegração João Zinclar
TRANSPOSIÇÃO Representante local do Ministério da Integração Nacional confirmou no noite do dia 3 que a reintegração da área, em Cabrobó, ocupada por movimentos sociais e indígenas a uma semana ocorreria na manhã seguinte Tatiana Merlino da Redação O acampamento de movimentos sociais e indígenas que ocupam a área de onde sairá o ponto de captação das águas da transposição no eixo Norte do projeto, em Cabrobó (PE), já dura uma semana. Os manifestantes prometem continuar na área mesmo com a ameaça de despejo, confirmada com exclusividade ao Brasil de Fato na noite do dia 3 pela representante do Ministério da Integração Nacional, Elianeiva de Queiroz Viana. O governo federal obteve decisão favorável para o despejo no dia 29, mas até o fechamento desta edição os acampados não haviam sido notificados da decisão. No entanto, a representante do Ministério garante que a Justiça federal informou os manifestantes sobre a reintegração. Além de impedir a continuidade das obras, os manifestantes pretendem retomar o território, cuja posse é reivindicada pela etnia indígena Truká. Desde o início do acampamento, dia 26, nenhuma pes-
O povo indígena Truká quer impedir a continuidade das obras e retomar o território
soa do Ministério da Integração Nacional ou outra instância do governo esteve no local para tentar algum tipo de debate sobre as reivindicações dos acampados. De acordo com o sociólogo Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os manifestantes só aceitarão alguma negociação caso as obras sejam suspendidas. “Na verdade não
há obras aqui. O governo faz muito marketing. O que tem aqui são algumas máquinas e homens do Exército fazendo algumas medições.” Para Siqueira, o fato de o governo ter feito o pedido de reintegração de posse sem ter tentado estabelecer um diálogo com os opositores do projeto é praticar a política do “fato consumado. Eles estão
dando o projeto como certo, mas nós não”. Na opinião do sociólogo, o acampamento é um questionamento do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê que R$ 6,6 bilhões sejam investidos na transposição até 2010. “Estamos provocando o governo, que acha que conseguiu cooptar os movimentos sociais. Acredita-
mos que é possível sim barrar as obras”, assinala.
Demarcação terras
Segundo ele, o governo não pode iniciar as obras numa área que pertence ao povo indígena Truká. “Em vez de demarcarem a terra dos indígenas, vieram tentar fazer barganhas. Ainda trabalham na lógica de tentar trazer espelhinhos e quinquilharias para os índios, como faziam os portugueses. De novo, tentam preterir os indígenas do que chamam de processo de desenvolvimento do país.” Durante a semana, os acampados começaram a cobrir com terra um buraco aberto no terreno pelo Exército, que foi batizado de“buraco do Geddel”. O bispo de Barra, dom Luiz Cappio, esteve na região e chamou a obra de “farsa” e disse que os acampados devem resistir à transposição. Dia 30, houve uma manifestação do povo Truká pela passagem de dois anos do assassinato de dois índígenas da etnia. A ação iniciou dia 26 com 1.200 manifestantes – ligados a organizações sociais, movimentos populares, po-
vos e comunidades tradicionais dos Estados de Alagoas, Sergipe, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Ceará – e em menos de dois dias subiu para 1.500. No final de semana, várias caravanas que participaram da ocupação retornaram para suas regiões no sentido de aumentar a mobilização e reunir outros grupos para aderir à ocupação. Hoje, o acampamento conta com cerca de 700 pessoas, a maioria indígenas. De acordo com nota divulgada, os manifestantes do acampamento consideram lamentável a informação de que o Ministério da Integração Nacional deverá doar o material da campanha em favor de obras da transposição que será deflagrada pelos governadores do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará. “O ato é considerado manipulador e impossível de facilitar o debate amplo e democrático com a sociedade. O Ministério da Integração está sendo, na prática, ministério da desintegração, pois está espalhando a cizânia entre Estados irmãos e entre povos irmãos”, finaliza a nota.
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brasil Fotos: João Zinclar
Casos de contaminação, como o de Valderi (à esquerda), são freqüentes na região do Vale do Jaguaribe, área de concentração de fruticultores
Águas para o agronegócio RIO SÃO FRANCISCO Projeto de transposição alimentará produção de fruticultura para exportação que utiliza agrotóxicos em larga escala, com prejuízos para os trabalhadores e o meio ambiente
Tatiana Merlino enviada especial a Limoeiro do Norte (CE) AO SOAR do ronco do motor do carro, uma cabeça aparece na porta da casa branca. Olhos assustados acompanham o automóvel se aproximar e, quando estacionamos, o homem, pulando em uma perna só, pergunta, desconfiado: “Quem são vocês?”. Valderi Rodrigues tem dificuldade para se locomover. Há dois anos, a parte inferior de sua perna direita foi amputada. Depois de muito esforço, ele consegue se sentar em uma cadeira na varanda de sua casa e, mais calmo, começa a contar sua história. No final de 2005, Valderi foi contratado para trabalhar na Bananas do Nordeste (Banesa), empresa de fruticultura irrigada responsável pela produção de bananas para exportação localizada no município de Limoeiro do Norte, Ceará. Antes da contratação, os trabalhadores passam por um período de experiência de três meses. Nos primeiros 15 dias de trabalho, a empresa não forneceu botas para Valderi, que trabalhou de chinelo, num local onde periodicamente aplica-se agrotóxicos para a produção. Quando finalmente recebeu as botas, Valderi tinha adquirido uma micose – que atribui ao contato dos pés descalços com veneno – que “causava muita coceira nos dedos”.
Seis cirurgias
O contato diário da borracha das botas com a micose nos dedos do pé direito foi ficando insuportável e, dois meses e sete dias após o início do trabalho, o homem não aguentou mais usar o calçado. “Eu não conseguia dormir de tanta dor”, conta. O médico da empresa prescreveu apenas uma pomada para Valderi passar nos dedos, mas quando foi ao hospital em Limoeiro do Norte, já era tarde demais. Um dos dedos tinha gangrenado e teve que ser amputado. Feita a cirurgia, após alguns dias os pontos abriram. Num período de três meses foram seis cirurgias. Primeiro foi um dedo, depois outro. A infecção foi subindo e a parte inferior da perna direita foi amputada, com diagnóstico de gangrena em decorrência de doença vascular isquêmica. O trabalhador entrou, via sindicato dos trabalhadores rurais de Limoeiro do Norte, com um pedido de indenização por reparação de danos decorrente de acidente
de trabalho, mas a ação ainda não foi julgada. A Banesa alega que Valderi abandonou o serviço e que não houve acidente de trabalho. “Quando eu fui na empresa, me trataram feito cachorro. Quem me ajudou foram os trabalhadores, que juntaram um dinheiro e me deram para comprar comida”, diz ele. Hoje, aos 41 anos, Valderi não pode mais trabalhar. Enquanto aguarda a ação ser julgada, o homem vive de auxílio-doença e dos eventuais trabalhos que sua esposa faz, lavando roupa para fora.
Vítimas de agrotóxicos
Casos de contaminação por agrotóxico são freqüentes na região do Vale do Jaguaribe, onde concentramse a maioria dos fruticultores do Ceará. De acordo com dados do Núcleo de Epidemologia da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), houve mais de mil casos de internação por intoxicação no Estado do Ceará, sendo que a região do Vale do Jaguaribe é a de maior concentração
de vítimas de produtos tóxicos, principalmente os pesticidas para lavouras. Além da Banesa, que produz bananas, na cidade de Limoeiro do Norte, estão localizadas as empresas Del Monte, que produz abacaxi e melão para exportação, e a Frutacor, que produz bananas.
foram expulsas para as periferias da cidade. José Ricardo de Oliveira, da coordenação estadual do MST no Ceará, afirma que os moradores são as principais vítimas da expansão de grandes projetos irrigados de fruticultura voltada para a exportação.“A própria con-
Valderi Rodrigues teve a perna direita amputada depois de uma infecção adquirida com o uso de produtos químicos em uma plantação de banana Segundo o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Limoeiro do Norte, Ananias Silva, na região da Chapada do Apodi, o risco de contaminação é muito grande. “A chamada ‘modernização’ da indústria agrícola chegou com problemas para o meio ambiente e para a saúde dos trabalhadores”, analisa. Além dos prejuízos à saúde dos trabalhadores, famílias tiveram suas terras desapropriadas, passaram a ser funcionárias das empresas ou
taminação por agrotóxicos faz parte do processo de expansão, já que muitos utilizam como estratégia para tirar as pessoas da terra e, assim, expandir os domínios agrícolas”. De acordo com ele, a fruticultura irrigada será uma das principais beneficiárias da água da transposição, juntamente com a carcinicultura, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e a Siderúrgica Ceará Steel. Oliveira acredita que, com a chegada das águas da transposi-
ção em Limoeiro do Norte, a situação vai piorar. “A produção vai aumentar e, junto com ela, os problemas de saúde dos trabalhadores, a contaminação das águas, a expulsão dos moradores”.
Economia local
O professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam), Hidelbrando Santos, afirma que as empresas, além de utilizarem um modelo agrícola fundamentalmente baseado no uso de produtos químicos, não estabelecem relação com a economia local. “A relação se dá muito mais para fora da região tanto do ponto de vista do que é produzido e comercializado quanto do ponto de vista do que é gerado de riqueza na própria região”. explica. Além disso, a monocultura das frutas para exportação compromete o ecossistema, “porque são hectares e hectares de uma só fruta”. O abastecimento dos projetos se dá com o uso das águas
subterrâneas. De acordo com Santos, são 35 poços perfurados “para desenvolver essa fruticultura irrigada, que tem o foco voltado para o grande mercado”. Porém, explica “o desejo das empresas é de ter sobre a Chapada do Apodi 75 mil hectares com irrigação. Para isso, precisam da água da transposição”, afirma. Caso contrário, teriam que buscar água a mais de mil metros de profundidade, avalia, “e isso não é barato”. O professor afirma que, sem a transposição, há uma limitação de ordem técnica para a expansão da fruticultura na região. “Esse projeto é o que estava faltando para consolidar o quebra-cabeças bolado pelo governo e pela iniciativa privada para formar um grande território do agronegócio no país, juntando o Vale do Açu com o Vale do Jaguaribe”. Além disso, o professor questiona o modelo de desenvolvimento que “está sendo apresentado, que não trará desenvolvimento econômico e social para as populações locais”.
Transposição favorecerá grandes empreendimentos Projetos da siderúrgica Ceará Steel e a ampliação do Complexo Portuário de Pecem aguardam a chegada da água do São Francisco João Zinclar
enviada especial a Limoeiro do Norte (CE) A vida de João Gaspar dos Santos começou a mudar a partir de 2002. Nascido em São Gonçalo do Amarante, Ceará, a 50 quilômetros de Fortaleza, o homem de 40 anos já não pode mais pescar como antes. Desde a construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, em 2002, os pescadores não podem trabalhar na área próxima ao Porto. “Se a gente se aproxima, eles chegam a tomar o barco. Antes não era assim, a gente podia pescar em qualquer lugar”, lembra. Hoje, são obrigados a manter a distância de 300 metros do Porto.
“O consumo de água (da usina Ceará Steel) será equivalente ao que consome uma população de 90 mil pessoas”, diz pesquisadora Quando chegou a notícia de que o Porto seria construído, a comunidade de pescadores do local se animou, “porque disseram que ia ter emprego para todo mundo, mas acabaram trazendo gente da capital”. Antes do Porto, João morava com outras 90 famílias de pescadores numa vila. A área foi desapropriada e, hoje, as famílias foram deslocadas para um conjunto habitacional, longe
Pescadores são proibidos de se aproximarem do porto
da praia. “Eu vinha pescar a pé, agora tenho que andar 11 quilômetros de bicicleta”. No complexo Porto do Pecém, o destino final do projeto da transposição do Rio São Francisco, também houve um aumento da prostituição entre as mulheres da comunidade. “A construção da Usina Siderúrgica Ceará Stell vai agravar ainda mais a situação de fragmentação do tecido social daquela região”, afirma Magnólia Said, da organização não governamental Esplar. O Porto de Pecém, construído em 2002 na cidade de São Gonçalo do
Amarante, teve um custo de U$ 1,3 bilhão. Em 2005, recebeu R$ 150 milhões do BNDES para construção do PIER 3, que irá movimentar minérios, grãos e fertilizantes, entre outros produtos. As águas da transposição chegarão ao Pecém por meio do Canal da Integração, de 255 quilômetros, cujos primeiros 56 quilômetros já estão prontos.
Beneficiários
De acordo com Magnólia, quem vai se fortalecer com essas obras será a oligarquia rural. “A transposição vai trazer água do canal da in-
tegração, passando pelo Castanhão até chegar ao porto de Pecém. O projeto vai viabilizar também um volume de água imenso de que a siderúrgica necessita”. A Ceará Steel faz parte do Complexo do Pecém. Avaliada em U$ 760 milhões, tem financiamento de um consórcio formado por BNDES, BNB, empresa italiana Danieli, da Dongkuk Steel, da Coréia do Sul, e da Companhia Vale do Rio Doce. O projeto terá 80% de recursos externos. De acordo com a representante do Esplar, “a partir da Usina, espera-se elevar a exportação local de placas de aço em 41%. Para tal, o seu consumo de água será equivalente ao que consome uma população de 90 mil pessoas. Essa água virá da transposição”. Para a pesquisadora, no Estado, há mais de 16 anos está em curso um modelo de desenvolvimento sob o comando das famílias Gomes (Cid e Ciro, governador e deputado federal pelo PSB) e Jereissati (Tasso, senador pelo PSDB), do qual a siderúrgica faz parte. “O projeto é fundamental para a consolidação desse modelo, do qual o governo federal não tem mais vergonha de assumir que é defensor”. De acordo com Magnólia, o projeto da Ceará Steel faz parte de um modelo de “desintegração nacional que prejudica a vocação de desenvolvimento que há nos Estados que serão atingidos por esses projetos, como a transposição”. (TM)
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brasil
Federal gaúcha aprova cotas EduardoSeidl
ENSINO SUPERIOR Agora, 30% das vagas da UFRGS serão reservadas para negros e alunos da rede pública Adriano Marcello Santos de Porto Alegre (RS) A UNIVERSIDADE Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) decidiu, no dia 29, instituir o Programa de Ações Afirmativas. A medida reserva 30% do total de vagas no vestibular da graduação para estudantes da rede pública e para candidatos autodeclarados negros. Outras 10 novas vagas serão criadas exclusivamente para incluir estudantes indígenas, em cursos específicos. A decisão foi aprovada por mais da metade dos integrantes do Conselho Universitário (Consun), com 43 votos favoráveis e 27 contrários. Apesar da larga diferença de votos, o debate das cotas gerou polêmica. O reitor José Carlos Hennemann precisou reverter liminar concedida pela juíza Paula Back Bohn, da 2ª Vara da Justiça Federal, a pedido da estudante Cláudia Thompson. A representante dos estudantes da pós-graduação no Consun alegou descumprimento do prazo de cinco dias úteis para que os membros do Conselho pudessem avaliar a proposta. No entanto, a juíza recuou e reconsiderou o pedido, depois que o reitor provou que a reunião do Consun para deliberar sobre a política de cotas era a continuidade da anterior, iniciada no dia 15 de junho. Irritadas, as conselheiras Mara da Silveira Benfato, que também é professora, e Cláudia Thompson deixaram a reunião.
Após seis horas de reunião do Conselho Universitário (Consun), a decisão foi aprovada com 43 votos favoráveis e 27 contrários
“Com essa medida, a UFRGS poderá influenciar as particulares que fecham as portas especialmente para os negros”, desabafa Vera Triumpho, da Pastoral do Negro em uma lei. Esse é um debate que vai muito além do debate partidário, ideológico, é da democracia brasileira. Foi o próprio Estado que impôs durante séculos a exclusão dos negros. As ações reparatórias são políticas públicas que fazem história”, assinalou Olívio.
Cotas étnicas
A idéia inicial de reservar 40% das vagas foi modificada nas duas últimas semanas anteriores à reunião do Consun. “Procuramos adequar à proposta original às
Grupos racistas reagem com pichações
Mobilização
Durante a manhã, um grupo de 40 universitários prócotas, que passou a noite em vigília na entrada do prédio, ganhou apoio de outros estudantes, ativistas e movimentos sociais. Políticos favoráveis às cotas, como o senador Paulo Paim (PT-RS) e o ex-governador Olívio Dutra, também se juntaram aos manifestantes. “A democracia não pode ser apenas um belo texto
19 anos, estudante de Administração.
Retraído, um grupo de pouco mais de 15 universitários contrários a política de cotas, a maioria recém-ingressos na UFRGS, torciam para que a Justiça adiasse novamente a discussão. “As cotas são discriminatórias, é preciso haver restrição sim!”, declarou Bruno Vieira,
sugestões enviadas pelos integrantes do Conselho. Fechamos em 30% e propomos a redução do prazo de avaliação do Programa de Ações Afirmativas de 10 para 5 anos”, declarou Edílson Nabarro, vice-presidente da Comissão Especial para Implementação de Ações Afirmativas do Consun. A polêmica girou em torno da reserva de cotas étnico-raciais, em especial aquelas destinadas aos estudantes afro-descendentes. “Eu sou a favor das cotas sociais, e contra as raciais. Is-
“Voltem pra senzala” – essa foi a frase pintada em uma calçada próxima à Engenharia Civil Dias antes da votação do Conselho Universitário (Consun), no muro de um bar em frente à Faculdade de Direito, foi pichada uma suástica nazista com a frase “Negro só se for na cozinha do R.U. (restaurante universitário), cotas não!” Em outra rua próxima da Engenharia Civil, a calçada foi pintada com a frase “Voltem pra senzala”. O Diretório Central dos Estudantes (DCE/UFRGS) entregou ao Ministério Público Federal uma série de documentos sobre manifestações racistas de um grupo que agiria dentro da universidade. O mesmo que em 2005, durante a eleição para o DCE, enviou correspondência com conteúdo antisemita. (AMS)
de Porto Alegre (RS) O debate sobre as cotas étnico-raciais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ultrapassou a esfera universitária. A mídia corporativa supervalorizou as ações do pequeno grupo contrário às cotas. Trechos de uma mensagem aos conselheiros, enviada pelo grupo pró-cotas Levante Popular de Juventude, foram descontextualizados para criar um clima de desconfiança na opinião pública. Por outro lado, o número de artigos publicados por professores, intelectuais, artistas e jornalistas favoráveis à política de cotas foi maior.
fatos em foco
Negros: menores salários, mais desempregados Antônio Lima
de Porto Alegre (RS) As pessoas de origem africana já representaram metade da população do Rio Grande do Sul, no final do século 18. O Estado
Dos quase 11 milhões de gaúchos, apenas 5,2% se autodeclararam negros e 10, 4% pardos na última consulta realizada pelo IBGE foi o segundo Estado brasileiro em número de escravos na primeira metade do século 19, perdendo apenas para a Bahia. Praticamente metade dessa população foi morta durante a Guerra dos Farrapos (1835 a 1845) e a Guerra do Paraguai (1864-1870), chegando a 25% do total da população da província em 1858.
O tráfico interno de escravos para outros Estados também contribuiu para reduzir a população negra no Estado. Dos quase 11 milhões de gaúchos, apenas 5,2 % se autodeclararam negros e 10, 4% pardos na última consulta realizada pelo IBGE (2005). A atuação dos mecanismos discriminatórios que colocam os negros em desvantagem em relação aos não-negros fica bastante evidente no mercado de trabalho. Segundo a Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Porto Alegre (PED-RMPA), realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a População Idade Ativa (PIA) negra na região é estimada em 429 mil pessoas. Destas, 243 mil constituem a PEA (População Economicamente Ativa) ocupa-
dos ou desempregados no mercado de trabalho, e 186 mil encontram-se inativos. Enquanto que a proporção de negros na PEA é de 13,2%, a parcela de negros entre os ocupados é de 12,3%. Já entre a população desempregada, aumenta para 18,4%. O rendimento mensal médio dos negros é de R$ 673 enquanto que para os não-negros é de R$ 1.003. A pesquisa demonstra que os negros com maior nível de escolaridade ampliam consideravelmente as possibilidades de obtenção de um posto de trabalho e, sobretudo, de um emprego de melhor qualidade e com maior remuneração. A taxa de desemprego para os negros com ensino fundamental corresponde a elevados 22,6%; no entanto, entre aqueles que chegaram ao ensino superior, o desemprego cai para 9,2%. (AMS)
Para entender Consun – O Conselho Universitário é a instância máxima de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Consun/ UFRGS), com funções normativas, deliberativas e de planejamento da instituição. É constituído pelo reitor e vice-reitor, diretores das unidades, representantes do Diretório Central dos Estudantes (DCE), professores, funcionários, secretário estadual da Cultura, representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Federação da Indústria do Estado do Rio Grande do Sul (Feiras) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs)
Hamilton Octavio de Souza
Goela abaixo, mais uma vez
Metade da população negra no RS foi morta nas guerras dos Farrapos (1835 a 1845) e do Paraguai (1864-1870)
Pixação racista diante da UFRGS refere-se ao restaurante universitário
so é inconstitucional, mas aqui depende do juízo de cada um”, alegou Jair Ferreira, médico e diretor do Departamento de Epidemiologia da UFRGS, um dos poucos docentes contrários à proposta que manifestou publicamente sua opinião. Já o reitor da universidade comemorou a decisão e destacou a importância das cotas sociais. “Isso vai estimular os estudantes de escola pública, na medida em que amplia as oportunidades para o seu ingresso na universidade”, disse, na coletiva de imprensa depois do término da reunião. Integrante da Pastoral do Negro, Vera Regina Triumpho desabafou: “Com essa medida, a UFRGS poderá servir de modelo para as demais no Estado e influenciar as particulares que fecham as portas especialmente para os negros. O Brasil foi construído pela diversidade, porque somente um segmento pode participar? As cotas tornam o país mais humano. A exclusão precisa ser banida!”, afirma. As palavras dos representantes negros e indígenas falaram de inclusão, história, reparação, amadurecimento da democracia brasileira e levaram muitos às lágrimas. “O índio deixa de ser objeto de pesquisa”, declarou o indígena kaingang Zaquéu Jópry, sobre a importância da medida para o seu povo.
Depois de ignorar as vozes dos povos atingidos pela transposição e pelas hidrelétricas do rio Madeira, o governo agora quer construir goela abaixo quatro hidrelétricas no rio Ribeira de Iguape, no Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo. O principal beneficiado da destruição de 11 mil hectares de Mata Atlântica é o Grupo Votorantin, de Antônio Ermírio de Moraes. O expediente se repete. De maneira orquestrada, o Ibama acaba de marcar audiência pública em dia e horário inóspitos para que apenas se cumpra o protocolo exigido por lei: um dia após o feriado, dia 10, às 18 horas. Ação imperial – 1
Mobilização estatal
Ação imperial – 2
Concentração garantida
Falsa democracia
Caveirão, não
Meia informação
Tucanagem petista
A divulgação de documentos da CIA – agência de espionagem dos Estados Unidos – revela que muitas ações terroristas consideradas anteriormente como sendo fruto da “teoria da conspiração”, na verdade, fizeram parte da conspiração real do imperialismo contra as lutas das esquerdas. Por exemplo, os atentados contra Fidel Castro e outras lideranças populares em várias partes do mundo. A advogada estadunidense Eva Golinger, autora de vários livros sobre a CIA, escreveu recentemente um artigo no qual denuncia a articulação do governo dos Estados Unidos com a imprensa latino-americana para justificar uma ação direta contra o governo Hugo Chávez, na Venezuela. Segundo a advogada, a ONG Repórteres Sem Fronteiras tem contribuído com essa escalada de falsidades. Concessionária do serviço público de radiodifusão, a Rede Globo não apenas mantém um número ilegal e inconstitucional de emissoras, distorce o noticiário conforme seus interesses, mas também costuma agir de forma antidemocrática: dias atrás impediu a entrada em suas instalações, no Rio de Janeiro, dos candidatos da Chapa Luta Fenaj, que disputa a direção da federação dos jornalistas. O jornal Folha de S. Paulo deu com destaque que a entrada de capital especulativo aumentou cinco vezes no primeiro quadrimestre deste ano, pulou de 4,8 bilhões de dólares, no mesmo período de 2006, para 24,1 bilhões. Só não explicou que isso acontece porque o Brasil paga o juro mais alto do mundo, não cobra impostos e o dinheiro é livre para sair a qualquer momento. Maior mamata!
Na luta por reajuste salarial e melhores condições de trabalho, os petroleiros aprovaram indicativo de paralisação para a próxima assembléia, no dia 5. Se entrarem em greve, será a primeira grande mobilização da categoria depois da greve de 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso autorizou a utilização das Forças Armadas para reprimir o movimento dos petroleiros. Tudo renasce. O número de milionários cresceu 10%, em 2006, no Brasil. É a quantidade de pessoas que tem disponível pelo menos um milhão de dólares em caixa para gastar como bem entender. O Brasil tem um total estimado de 120 mil milionários. O crescimento comprova que a concentração da renda continua firme. Os programas assistenciais não mudam a desigualdade produzida no capitalismo. Professores, advogados, estudantes e intelectuais de todo o Brasil estão participando de um abaixo-assinado contra o Caveirão, o carro de guerra blindado que a polícia do Rio de Janeiro utiliza para aterrorizar e assassinar moradores de favelas. Quem quizer combater esse crime deve enviar mensagem para isabel_mansur@yahoo.com.br e autorizar a inclusão de seu nome no abaixo-assinado. O último tucano a subir no poleiro do governo federal petista foi o ex-ministro Ronaldo Sardenberg, que assumiu a Agência Nacional de Telecomunicações – função estratégica para os interesses da oligarquia que controla o sistema de radiodifusão no Brasil. No discurso de posse, enfatizou que vai fortalecer a agência – exatamente o contrário do que o PT defendia antes de virar governo.
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Crise no Congresso expõe poder político das empreiteiras
José Cruz ABr
POLÍTICA Escândalos revelam relações corruptas de parlamentares com construtoras que, agora, estão de olho nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Mayrá Lima de Brasília (DF) A PROMÍSCUA relação entre parlamentares e empreiteiras está, mais uma vez, no centro de uma crise no Congresso Nacional. Em tempos de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que reserva bilhões em novos empreendimentos, as obras públicas são o alvo de denúncias que envolvem construtoras, o Legislativo, desvios de dinheiro e a ação de lobistas. Um dos atingidos por essa nova onda pode levar a crise a repercutir negativamente na aliança PMDB-PT, vista pelo presidente Lula como fundamental para a garantia da governabilidade do seu segundo mandato. O presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (PMDBAL), é ameaçado por quebra de decoro parlamentar, acusado de receber dinheiro do lobista Cláudio Gontijo, da construtora Mendes Júnior, para pagar pensão e aluguel para a jornalista Mônica Veloso, com quem o presidente do Senado tem uma filha, além de ter usado notas frias de venda de gado para justificar sua renda. Não é a primeira vez que o Congresso Nacional sofre com problemas entre lobistas de empreiteiras e esquemas de corrupção. Há dois meses, perdura o escândalo envolvendo a Construtora Gautama, acusada de fraudar licitações de obras públicas, além de desvio de dinheiro. Seu dono, Zuleido Soares Veras, possui ligação com vários políticos que facilitavam as licitações em favor da Gautama, ao mesmo tempo em que superfaturava as obras e desviava o dinheiro que sobrava. Dados da página “Transparência Brasil” mostram que, em 2005, a Gautama, que recebeu R$ 9,4 milhões do Or-
Manifestantes do PSOL pedem a cassação dos senadores Renan Calheiros (PMDB-AL) e Joaquim Roriz (PMDB-DF) em protesto realizado diante do Congresso Nacional
“Esse caso (de Renan Calheiros) revela a crise institucional que o Estado vive. A confusão entre público e privado é um componente”, afirma Ávila Roque, do Inesc çamento da União, foi contratada pelo Departamento Nacional de Infra-Estrutura (Dnit) para restauração e construção de rodovias federais. O levantamento do “Portal da Transparência” afirma que, entre as obras, estão trechos de rodovias na Bahia e Amazonas. No ano passado, com contratos de R$ 18,7 milhões, também por meio do Dnit, a construtora atuou na reforma de estradas na Bahia e na construção de outros trechos no Amazonas.
Crise institucional
“Toda a crise dentro do Senado revela que ainda estamos vivendo as ‘últimas dores do parto da democracia’”, avalia Átila Roque, membro do colegiado do Instituto Nacional de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc). Ele explica que as denúncias contra Re-
nan são muito simbólicas no que diz respeito à promiscuidade entre lobistas e parlamentares. “Esse caso revela a crise institucional que o Estado vive. A confusão entre público e privado é um componente”, afirma. Os irmãos Calheiros (Renan, presidente do Senado, Olavo e Renildo, ambos deputados), juntamente com o exgovernador de Alagoas Teotônio Vilela (PSDB), já direcionaram mais de R$ 38 milhões do Orçamento da União por meio de emendas individuais desde o início do governo Lula – com um aproveitamento de 76%, quase o dobro da média dos demais parlamentares, que é de 42%. Se contarmos com as emendas da bancada de Alagoas, controladas pelo senador, o valor do orçamento já liberado por sua influência sobe pa-
O risco da barganha com a agenda do Congresso Renan ameaça levar ao plenário temas polêmicos para o Planalto; CUT faz mobilização para parlamentares reafirmarem veto presidencial à Emenda 3 de Brasília Se em princípio o Planalto optou por manter-se distante do processo contra o presidente do Renan Calheiros (PMDB-AL), essa posição mudou consideravelmente diante da possibilidade de a crise atingir a agenda do Senado. Projetos polêmicos e importantes para o Executivo devem ser colocados em pauta nesses próximos dias, como prometera o próprio Renan. Um dos temas mais polêmicos é o veto presidencial da Emenda 3 da Super-Receita, que restringe a atuação do fiscal do trabalho
e transfere para a Justiça a definição do vínculo trabalhista. Para as centrais sindicais, essa medida representa um ataque aos direitos dos trabalhadores. Caso o veto seja levado ao plenário do Senado, há riscos de o governo perder a batalha, sobretudo se houver algum desentendimento no caminho do Senado até o Planalto. Outro veto a ser analisado é o da recriação da Sudam e da Sudene. Os parlamentares do Norte e do Nordeste não gostaram da interferência do Executivo e estão dispostos a derrubar os vetos numa junção suprapartidária liderada pelo deputado estadual Ciro Gomes (PSB-CE). Com essas movimentações, Renan Calheiros manda o seu recado incômodo para o Planalto e coloca como fundamental para o Executivo a sua presença na presidência do Senado.
Ocupação
Para o secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Quintino Severo, a organização não aceitará que qualquer chantagem atrapalhe questões de interesse dos trabalhadores, como a
manutenção do veto à Emenda 3, pauta que levará a Central a preparar para este dia 4 de julho (após o fechamento desta edição) uma ocupação do Congresso Nacional. “Nós não podemos concordar com isso. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tem que se esclarecer essa questão nebulosa. Nós não vamos aceitar que as duas casas derrubem o veto. Queremos fazer o debate em relação à lisura do processo, em relação à ética e a transparência nas investigações”, explicou Quintino. O secretário-geral da CUT prefere não acreditar que a possibilidade de a Emenda 3 servir de moeda de troca se consolide. “Com a fragilidade que o Renan está, não vai colocar uma matéria dessas em votação. Evidentemente se ele usar o instrumento da chantagem, vai fragilizar, sim. Queremos que esse veto seja mantido e, no caso de qualquer derrota da classe trabalhadora, a expectativa é de uma reação significativa, até por que a CUT não está sozinha. Temos o apoio das outras centrais sindicais”, disse. (ML)
ra R$ 304 milhões, sendo que a maior parte foi empenhada (paga) nos últimos dois anos – mesmo período em que Renan Calheiros foi presidente do Senado. A Mendes Junior, que estaria “pagando as contas” de Calheiros por meio de um lobista, é a mesma empresa que toca as obras do Porto de Maceió, em Alagoas, base do presidente do Senado.
Fatura da aliança
Diante da importância de Renan Calheiros dentro do Senado, onde o governo federal tem sua base aliada mais frágil, a oposição encontrou uma nova forma de desestabilizar o governo no Congresso Nacional. E os governistas passaram a se movimentar prejudicando os trabalhos do Conselho de Ética do Senado. “Esse caso do Renan consubstancia tudo. É um vexame
que ele sequer tenha se licenciado da Presidência do Senado. É um vexame que ele conte com tanto beneplácito de senadores do PT, que conte com tanta tolerância do próprio presidente da República que, inclusive, se movimenta para garantir que nada aconteça. É como se houvesse realmente esse pacto, sem a preocupação com o mal que isso está causando para as instituições”, avalia Átila Roque. O próprio Calheiros articula com senadores aliados para que seu processo seja enterrado. A estratégia é restringir o julgamento à acusação que um lobista ajudava a pagar suas despesas, ao mesmo tempo em que empurra a responsabilidade para a jornalista Mônica Veloso, acusando-a de chantagem. Quanto às notas frias, Calheiros deseja que o processo saia do Senado e vá direto para o Supremo Tribunal Federal (STF), onde o julgamento se arrastaria por anos. “O Judiciário é uma verdadeira caixa-preta. Está mais
encastelado e menos submetido ao crivo público do que o Parlamento, mas ele faz parte da equação. A cultura do privilégio, autoritarismo não se mexe. Há interesses que você não pode tocar, porque iria romper o pacto oligárquico, do poder, das elites. É um pacto da manutenção do poder”, afirma o historiador, acrescentando que, até hoje, o Supremo não julgou nenhum processo contra quem tem direito a foro privilegiado. Por outro, o Planalto já obrigou a renúncia do senador Sibá Machado (PT-AC) da presidência do Conselho de Ética. Ao mesmo tempo, Lula enquadrou os senadores petistas em torno da defesa de Calheiros. O resultado foi a eleição do senador Leomar Quintanilha (PMDBTO), cujo primeiro ato, como pretendia Renan, foi desconvidar o relator do caso, Renato Casagrande (PSB-ES), visto com cautela pelos governistas, por fechar com muitas teses da oposição.
O caso Joaquim Roriz Acusado de desvio de dinheiro público, o maior “coronel” do DF não tem apoio de peemedebistas e de outros senadores Um outro senador do PMDB está “ajudando” a estratégia do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), de desviar a atenção da opinião pública: o senador Joaquim Roriz (PMDB-DF). Ex-governador do Distrito Federal, ele é acusado por quebra de decoro parlamentar diante da participação da partilha de um cheque de R$ 2,23 milhões, sacados no Banco de Brasília (BRB), feito com a interferência do então presidente da instituição, Tarcísio Franklim de Moura. O dinheiro teria sido transportado num carro forte para a partilha. No entanto, o senador, que passou sete dias recluso em sua casa após às denúncias da Polícia Federal na Operação Aquarela, justifica que tudo não passou de um empréstimo no valor de R$ 300 mil, tomado ao empresário Nenê Constantino, da empresa aérea Gol. O dinheiro teria sido usado na compra de um embrião bovino na Universidade de Marília (Unimar). “Imaginem, senhoras e senhores senadores, povo
José Cruz ABr
Roriz: “empréstimo” de R$ 300 mil para compra de embrião
do Distrito Federal, brasileiros, se pedir dinheiro emprestado é falta de decoro. Meu Deus! A que ponto chegamos”, disse em declaração ao plenário do Senado. Roriz, ao contrário de Calheiros, não conta com apoio de senadores de seu próprio partido e, pelo que tudo indica, vai enfrentar a representação do PSOL, apresentada no dia 28. Para o líder da legenda na Câmara, deputado Chico Alencar (PSOL-RJ),
há uma clara falta de nitidez entre a fronteira do mandato público e os negócios privados. “A política no Brasil está cada vez mais privatizada, as campanhas cada vez mais milionárias e não há vontade política para mudar isso. As maiorias sociais perdem representação política. Eles alegam amizades sempre com lobistas, com empresas donas de aviação civil, amizades que trazem dinheiro”, declarou.
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brasil
Angra III, uma usina de polêmicas ENERGIA Segundo decisão do Conselho de Política Energética, projeto será concluído até 2013; críticos denunciam a ausência de viabilidade econômica, energética e ambiental Marcello Casal Jr./ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação
Ativistas da organização não governamental Greenpeace se fantasiam com máscara do presidente Lula para protestar contra a construção de usina nuclear de Angra III
Segundo o brigadeiro, a construção de Angra III, além de impulsionar indústrias de tecnologia, agrega valor a um minério farto em território nacional. O Brasil tem a sexta maior reserva do mundo de urânio, sobretudo nas jazidas de Caetité (BA) e
Araxá (MG). Esse minério, no futuro, poderia ser exportado enriquecido, com alto valor tecnológico. Já Joaquim Francisco de Carvalho, especialista em engenharia nuclear e ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear), discorda do
argumento do brigadeiro quanto à necessidade de uma usina para o aperfeiçoamento da tecnologia nuclear. Segundo ele, nada impede que a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), de Resende (RJ), seja completada (algumas etapas da produção de combus-
Tecnologia nuclear
O Greenpeace alerta para a existência de uma característica que perpassa todo o programa nuclear brasileiro: a falta de transparência pública. “O Programa Nuclear Brasileiro surgiu durante a ditadura militar e até hoje tem um vínculo muito forte com as Forças Armadas”, ressalta Leonardi. Em defesa da realização de Angra III, setores nacionalistas das forças armadas apontam sua construção como um novo impulso ao desenvolvimento da tecnologia nuclear. O brigadeiro Sérgio Ferolla considera a usina como algo essencialmente estratégico para o país. “Temos urânio e sabemos enriquecê-lo, coisa que poucos países do mundo fazem”, enfatiza. Com investimentos já realizados de US$ 750 milhões em equipamentos comprados e guardados há mais de uma década na Central Nuclear de Angra, e com US$ 20 milhões anuais para a manutenção, o Brigadeiro afirma que não construir Angra III será “jogar dinheiro fora”. De acordo com o Plano Nacional de Energia, além de Angra III, o país precisará, no mínimo, de mais quatro centrais nucleares, de mil megawatts cada, até 2030. Para Ferolla, isso descentralizaria a produção de energia nuclear no país. “Entre as futuras usinas, estão previstas uma no Nordeste, próxima ao rio São Francisco, no interior de São Paulo e no Oeste do Brasil”, destaca.
tível nuclear ainda são realizadas no Canadá) e que o governo compre parte de sua produção, para acumular um estoque estratégico de urânio enriquecido a 3%, que é impróprio para construir bombas.
Custo marginal médio para a expansão do sistema hidrelétrico é de aproximadamente R$ 80/MWh, enquanto o custo de Angra III está em torno de R$ 144/MWh
Prejuízo maior
Rodrigo Baleia
A CONSTRUÇÃO da terceira usina nuclear do país, Angra III, será retomada segundo a decisão do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), aprovada em 25 de junho, apesar da oposição do Ministério do Meio Ambiente (MMA). A estatal Eletronuclear pretende iniciar as obras em setembro ou outubro, dependendo da licença ambiental do Ibama, estimase que entre em operação em 2013. Com as três usinas em funcionamento, o Brasil terá pouco mais de 4,5% de sua matriz baseada na energia nuclear. A decisão precisa ainda ser ratificada pelo presidente Lula. “Se Lula disser sim para Angra III, fará um retrocesso à política energética e vai reacender o Programa Nuclear Brasileiro, desperdiçando recursos públicos e aumentando a ameaça nuclear no Brasil. Ele tem a opção de dizer não à Angra III e investir em tecnologia limpa, como eólica e solar, que vai gerar mais energia com menos tempo, menos recursos e sem lixo radioativo”, argumenta o ambientalista do Greenpeace, Guilherme Leonardi. Sem transparência, o debate que envolve a construção de Angra III vem inserido dentro da tese do risco da falta de energia para o desenvolvimento do Brasil. Empresários e, agora, boa parte do governo, representado sobretudo pelo Ministério de Ciências e Tecnologia (MCT) e pelo Ministério de Minas e Energia (MME), justificam a aceleração da construção da usina nuclear devido à pendência ambiental que envolve as usinas de Santo Antonio e Jirau, do Complexo do Rio Madeira. Mas, mesmo que seja aprovada, Angra III não compensa a falta dessas hidrelétricas: a usina pode gerar 1,353 mil megawatts (MW), enquanto cada uma das hidrelétricas tem potencial superior a 3 mil megawats (MW). Atualmente, as indústrias eletrointensivas – ligadas à indústria de cimento, à produção siderúrgica e à produção de alumínio – estão entre os principais investidores no setor elétrico do país, segundo o especialista em energia Célio Bermann.
Críticos apontam falta de transparência pública do programa
Segundo Joaquim, o principal argumento dos defensores de Angra III é o de que já foram gastos US$ 750 milhões na obra, quantia que será desperdiçada, caso se rejeite a conclusão do projeto. “Esse argumento é superficial, pois, se Angra III entrar em operação, o prejuízo aumentará na medida da diferença entre seus custos de geração e os das hidrelétricas. Cálculos feitos por técnicos do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) indicam que o custo marginal médio para a expansão do sistema hidrelétrico é de aproximadamente R$ 80/ MWh, enquanto o custo de Angra III está em torno de R$ 144/MWh”, aponta. De acordo com ele, essa conta pode ser ainda mais desfavorável para as usinas nucleares se os cálculos fossem feitos de forma “transparente”, descontando os subsí-
dios ocultos. Para Joaquim, é melhor esquecer o que já foi gasto que ver o prejuízo aumentar em bola de neve. Outra questão que divide opiniões é possibilidade de renovar quadros, treinar pessoal e dar continuidade ao programa nuclear brasileiro. Joaquim compara a construção de Angra III à compra de uma moderna aeronave, que pode ser muito bem pilotata por pilotos formados no Brasil. Porém, esses pilotos não têm preparo para projetar e construir aviões. Para ele, a capacitação brasileira para fazer o projeto básico, desenvolver os materiais, desenhar e construir uma usina nuclear só virá quando o governo, em vez de comprar projetos feitos no exterior, como o de Angra III, entregar aos nossos centros de excelência a responsabilidade de desenvolver e construir um protótipo e, em seguida, desenvolvê-lo para escala industrial. “Especialmente, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo (IPEN) e o Centro Tecnológico da Marinha, em Aramar (CTM/SP), nos quais desenvolveu-se a tecnologia brasileira de enriquecimento de urânio”, exemplifica.
Alemanha desiste, Brasil aposta Países ricos como Estados Unidos, França, Japão e Alemanha ainda não encontraram destinação definitiva para os rejeitos das usinas nucleares Marcello Casal Jr./ABr
da redação Enquanto o Brasil tem outros projetos de construção de usinas nucleares em três décadas, o governo alemão pretende fechar de vez as suas. Um dos motivos são os problemas com relação ao destino final dos rejeitos radioativos, ainda sem solução definitiva. Há 40 anos, os cientistas procuram locais seguros para estocar permanentemente o lixo altamente radioativo, mas decidiram cessar paulatinamente a
“Não há uma solução para o lixo radioativo que permanece perigoso por centenas de milhares de anos”, explica Guilherme Leonardi, do Greenpeace produção de energia nuclear. Hoje, eles estocam os resíduos nucleares em Gorleben, em túneis a 860 metros de profundidade. Em outros países também não há destino realmente seguro e definitivo. Os Estados Unidos têm colo-
Sindicato dos trabalhadores na indústria de energia elétrica apóia construção de Angra III
cado seus rejeitos em Yucca Mountain, no estado de Nevada. No Japão, o lixo radioativo é reprocessado na França e no Reino Unido por uma tecnologia que reduz o seu tamanho. Depois, é levado para um depósito em Rokkasho, na Provín-
cia de Aomori, Norte do país asiático. Na França, onde 58 reatores produzem 80% da energia consumida, o lixo é despejado em fossas abissais do Pacífico Sul. “A questão de lixo radioativo é tratada de forma provisória tam-
bém pelas autoridades brasileiras. Angra I e Angra II ainda não possuem depósitos definitivos. Em lugar nenhum do mundo existe uma solução para o lixo radioativo que permanece perigoso por centenas de milhares de anos”, explica Guilherme Leonardi, do Greenpeace. Relatório da ONG, lançado em fevereiro deste ano, mostra que é possível chegarmos até 2050 suprindo nossa demanda energética e ainda economizando R$ 117 bilhões, caso optemos por energias limpas. “Só as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) não são suficientes. Mas com um ‘mix’ de PCH, de biomassa, eólica e solar é possível suprir nossa demanda com economia de recursos e sem esses problemas ambientais que Angra III, termoelétricas e grandes hidrelétricas trazem”, explica Leonardi. Segundo ele, se os mais de R$ 7 bilhões para a construção de Angra III fossem investidos em energia eólica poderiam gerar o dobro da capacidade de Angra III em um terço do tempo, abrindo 32 vezes mais empregos, sem todos os problemas do lixo radioativo e da possibilidade de acidentes. (ESL)
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áfrica Dafne Melo
A armadilha do agronegócio contra os agricultores do Mali Membro da Coordenação Nacional das Organizações Camponesas do Mali critica União Européia por manipular preço de produtos agrícolas de seu país Eduardo Sales de Lima de Brasília (DF)
Auto-suficiência na produção não garante soberania alimentar
ÁFRICA DO SUL
Depois de quatro semanas, termina greve do setor público A maior central sindical do país decidiu aceitar a proposta final do governo, que ofereceu, entre outras coisas, um aumento salarial de 7,5% Igor Ojeda da Redação O CONGRESSO dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu, na sigla em inglês), decidiu, no dia 28, aceitar a última proposta de um aumento salarial de 7,5% e encerrar a greve do setor público, que já durava quase um mês. Os grevistas queriam 9%. No início das paralisações, o governo oferecia 6%, enquanto os trabalhadores pediam 12%. É a maior greve no país desde o fim do regime do apartheid, em 1994, chegando a envolver cerca de 700 mil servidores. Durante o período, foram realizadas diversas manifestações e protestos maciços. Segundo Asanda A. Fongqo, chefe de comunicação da Organização Democrática dos Enfermeiros da África do Sul (Denosa, em inglês), não houve um vencedor claro nas negociações entre grevistas e governo, especialmente em termos de porcentagens.
Na África do Sul, o índice de desemprego entre brancos é de 4,5%. Entre mestiços, é de 19,4%. Já entre os negros, atinge 30,5% “Nossa demanda inicial era de 12%, e depois a revisamos primeiro para 10%, depois para 9%. No entanto, tiveram alguns pontos positivos no acordo, principalmente: melhoria no auxílio médico, aumento na pensão habitacional, a adoção do Regime Específico Ocupacional [que prevê uma estrutura salarial revisada e planos de carreira] e um acordo de dois anos em oposição ao de quatro, como era antes”, explicou ao Brasil de Fato. A oferta do governo inclui a readmissão dos cerca de 600 trabalhadores que haviam sido demitidos por participarem da greve. À imprensa, Noluthando Mayende-Sibiya, presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação, Saúde e Associados (Nehawu, na sigla em inglês), afirmou que a greve – que teve início no dia 1º de junho – foi “um momento decisivo de mudança nas vidas dos trabalhadores do setor público”.
E acrescentou: “Essa combinação de unidade e militância significa que o empregador nunca mais vai ousar nos tratar com a insensível indiferença que eles mostraram no passado e durante essa disputa, até que eles foram forçados a se comprometeram quando confrontados pela militância e a determinação de sua força de trabalho”. No entanto, os sindicatos ligados à Educação afirmaram não estarem felizes com a oferta final e que irão seguir com as negociações com o governo. No dia 25, dois sindicatos independentes haviam saído da greve, acusando o Cosatu – maior central sindical sul-africana – de “ávida e oportunista”, afirmando que a proposta de 7,5% de aumento era “fantástica”. A central demorou alguns dias para aceitar esse percentual.
Crise neoliberal
Nos últimos dez anos, os servidores públicos têm enfrentado uma expressiva queda de seu padrão de vida. O país tem passado por uma reestruturação neoliberal do setor, cujas conseqüências são privatizações, terceirização e encolhimento dos serviços públicos. Além disso, enquanto os salários dos trabalhadores permanecem baixos, a inflação sobe a cada ano. A economia sul-africana vem crescendo seguidamente desde 2003. Nesse ano, seu Produto Interno Bruto (PIB) foi 3% maior em relação ao ano anterior. Em 2004 e 2005, o crescimento foi de 4,5% e 4,9%, respectivamente. No ano passado, chegou a 5,5%. No entanto, a população vem se beneficiando pouco desse desempenho. Cerca de metade dos sul-africanos vivem abaixo da linha da pobreza, e o desemprego oficial foi de 25,5% em 2006. Os negros e as mulheres, em especial, são os que mais sofrem, mostrando que a discriminação racial e de gênero ainda é muito alta. Dados do Labour Force Survey (LFS), instituição do governo, mostram que o índice de desemprego entre os brancos é de 4,5%. Entre os mestiços, de 19,4%. Entre os negros, atinge 30,5%. O contraste é ainda maior entre os percentuais de mulheres negras desempregadas e homens brancos: 36,4% contra 4,4%.
EM MALI, 85% da população é formada por camponeses. E apesar de o país ser auto-suficiente na produção de alimentos, seu povo ainda não desfruta da soberania alimentar – uma aspiração transformada em lei em agosto de 2006, ainda não posta em prática. “Não há sem-terra no Mali”, explica Ismael Coulibaly, membro da Coordenação Nacional das Organizações Camponesas (CNOP) desse país. As dificuldades são outras. Técnicas: como as de aperfeiçoar o plantio, o armazenamento e a distribuição do arroz e do algodão, maiores produções agrícolas do país. E políticas: como o fato de a França forçar constantemente a baixa do preço do algodão; e a atuação de funcionários do FMI no país que defendem o interesse de investidores nas jazidas de ouro descobertas em Mali no final dos anos de 1990. Em entrevista, Coulibaly, que participou como convidado 5ºCongresso do MST, discorre sobre os desafios atuais do Mali. Esse país de 13 milhões de habitantes, localizado no Oeste do continente africano, que tem como principais parceiros comerciais a Costa do Marfim, a França, a China e a Bélgica, apresenta duas regiões totalmente distintas. O Norte, árido pertencente ao Deserto do Saara (habitado por nômades tuaregues); e o Sul, verde e fértil, banhado por duas bacias hidrográficas: a do Rio Níger e a do Rio Senegal (onde se concentra a maior parte da população).
Os camponeses estão organizados para enfrentar o agronegócio? Em Mali, não existe o agronegócio como vocês, brasileiros, o conhecem. Mas mesmo com nossa lei consolidada, já sabemos que eles estão chegando. Por isso, consolidamos esses dispositivos constitucionais em nível fundiário e, conseqüentemente, econômico, para criar barreiras contra a implantação do agronegócio e sua entrada no país. A China está se aproximando do Mali? Sim, a China também está chegando no Mali. Eu posso falar que é uma invasão mundial da China, sobretudo nos pequenos comércios, como o das quinquilharias, dos
Como um camponês pobre do Mali vai competir com um agricultor rico que recebe subsídios da Europa? Brasil de Fato – Como o governo federal de seu país trabalha para cumprir a Lei de Soberania Alimentar para a população? Ismael Coulibaly – Após várias peripécias, o Mali introduziu efetivamente a palavra “soberania alimentar” na sua lei de orientação agrícola. Tivemos muitas dificuldades com os técnicos do governo para que essa palavra fosse aceita. O governo falava de “auto-suficiência alimentar”. Para nós, era insuficiente. Queríamos mesmo o termo “soberania alimentar”. E depois de várias discussões, o conceito foi aceito aos poucos e começamos a desenvolvê-lo nas reuniões, e hoje ele existe até o nível da lei. Até o chefe de Estado, Armadu Tumani Touré, durante a inauguração do Fórum da Soberania Alimentar, destacou esse conceito. No entanto, a gente ainda não está conseguindo alcançar a verdadeira soberania alimentar como ela está presente na lei. Ela não está sendo colocada na prática. Existem monoculturas em Mali? Ainda não, apesar de o Estado investir amplamente no plantio do algodão. Não há uma invasão total do algodão em nossas terras, pois exigimos que cada camponês cultive 3 hectares de cereais ao mesmo tempo que plante 1 hectare de algodão. Os agricultores são formados para isso, recebem ajuda para isso e a política é seguida. Em Mali, há escritórios da Monsanto e da Syngenta que têm feito lobby para retirar a lei que proíbe a produção de algodão transgênico.
medicamentos e na rede hoteleira. Eles estão comprando e fazendo hotéis. Mas isso não está atrapalhando as nossas propostas de lei. Quais as principais barreiras econômicas e sociais em Mali? No mundo da agricultura, o nosso problema maior é a valorização das nossas terras. Não estamos conseguindo ter o domínio da água e do material agrícola. Fora isso, existem os velhos problemas do mercado porque a Europa está cada vez mais fechada e nos impõe normas “alucinantes”. Acordos e parcerias econômicas que vão nos conduzir daqui a dois ou três anos à abertura da fronteira dos dois lados. Mas não estamos prontos para iniciar uma aventura como essa. Como é que um camponês pobre do Mali vai competir com um agricultor rico que recebe subsídios da Europa? Que é pago para produzir, e mesmo se a sua produção não for comprada, ele recebe dinheiro? Qual a estratégia européia? Sentimos a armadilha e começamos a informar, a educar nossos camponeses a partir da base sobre os reais desafios. O que está em jogo. O que são esses “APEs” ( Acordo de Parceria Econômica) e o que estão escondendo. Porque, da maneira como estão sendo apresentados, as pessoas pensam que é bom abrir as fronteiras. Muitos acreditam que teremos os “maravilhosos” produtos da Europa mais baratos, mas é isso que vai matar nossa economia. O que acontecerá com os nossos criadores de gado, com o leite que produzem? O que acontecerá com os nossos ce-
reais frente à invasão dos produtores de trigo. E a produção da farinha? Como que nós vamos conseguir controlar as normas na casa dos camponeses se nós não temos os meios técnicos para isso. Ao mesmo tempo que o preço do algodão cai todos os dias. É contraditório, mas nossos legumes e frutas não podem ultrapassar as fronteiras porque dizem que nossos alimentos têm bichos. Eles querem que o consumidor europeu tome seu café da manhã e saiba que a fruta que come é de tal árvore, de tal região, e que saiba quantos anos a árvore tem. Isso é alucinante. Por causa disso, nos adiantamos, e o governo nos entendeu porque, após termos organizado uma formação com os nossos camponeses, o governo organizou uma outra formação conosco para nos avisar de certas coisas, nos dar informações e para informar também a sociedade civil. Esse é o início da solução. Qual o aprendizado dentro do 5º Congresso do MST? Qual experiência pode ser aproveitada? Há muitas coisas que eu posso levar daqui para lá. É difícil fazer uma seleção. Aqui eu aprendi a desnudar as formas do capitalismo, a ter visões diferentes de fazer política, como trabalhar com projetos de educação, e foi principalmente por essa razão que eu vim para cá. É muito bom educar sua base. Isso vai nos permitir evitar muitos problemas. Fiquei muito impressionado pela capacidade de mobilização e a disciplina no meio do MST. O Exército para estar forte tem que estar disciplinado. A Escola Itinerante Paulo Freire me comoveu muito. A idéia é ensinar para as nossas crianças nossas próprias realidades. Nós, na escola francesa, aprendíamos coisas de que não precisávamos. É triste, mas eu conheço melhor a literatura francesa que a minha própria literatura. Aprendi muitas coisas e agora elas estão se confrontando na minha cabeça. Fui bombardeado.
Para entender APE – Até dezembro de 2007, os países da União Européia e do Grupo de países da África, do Caribe e do Pacífico irão negociar Acordos de Parceria Econômica (APE). As negociações, que se iniciaram em setembro de 2002, poderão diferir entre países e regiões, mas respeitarão as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses acordos comerciais livres serão implementados até 2020, a partir de 2008. Os países poderão estabelecer acordos individuais com a União Européia.
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Moreira Mariz/Agência Senado
américa latina
Sessão do Parlamento do Mercosul, realizada na sede do Congresso Nacional do Uruguai, país que também ocupará a presidência rotativa do bloco no segundo semestre deste ano
GEOPOLÍTICA Oposição das elites e da mídia corporativa à entrada da Venezuela no Mercosul expõe as contradições desse órgão
América Latina em busca de espaços concretos de integração Pedro Carrano de Curitiba (PR) A 33ª REUNIÃO de Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, realizada em Assunção (Paraguai), entre os dias 28 e 29 de junho, evidenciou mais uma vez as crescentes contradições internas do bloco comercial constituído na década de 1990 por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Transnacionais, a elite política e os meios de comunicação corporativos desses países cobram prioridade para negociações de acordos com os países ricos, sobretudo Estados Unidos e União Européia, em detrimento da tentativa de integração regional. Defendem também uma pauta para o bloco comercial essencialmente focada na ampliação do comércio e redução de tarifas de importação. A rejeição à entrada da Venezuela no bloco comercial foi repetida em coro por essa oposição, que viu no ingresso de Hugo Chávez um risco para o fortalecimento de uma nova orientação ao Mercosul:
Ao se opor aos venezuelanos, os empresários estariam deixando os princípios morais falar mais alto do que os cifrões adquiridos com o país fronteiriço, avalia o deputado Dr. Rosinha (PT-PR) uma integração que avance nas áreas sociais e políticas. Outra iniciativa nessa direção é a discussão da entrada de Bolívia e Equador no Mercosul, dois países hoje geridos por presidentes identificados com visões políticas mais progressistas. Ao mesmo tempo, o bloco comercial hegemonizado por Brasil e Argentina cada vez mais tem uma sombra no continente, com o avanço da proposta da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) como uma alternativa de integração e soberania dos povos e governos de enfrentamento contra o capitalismo (veja quadro ao lado).
O lobby político
Embora o caso da Rádio Caracas Televisión (RCTV) não estivesse na pauta do encontro de estadistas do Mer-
cosul, esteve na da mídia corporativa, que bateu no assunto, assim como enfatizou a ausência de Chávez na reunião (o venezuelano viajou à Rússia para fechar um acordo com Vladimir Putin). A entrada da Venezuela no bloco – sócio pleno em processo de adesão – depende da aprovação dos congressos brasileiro e paraguaio. Argentina e Uruguai retificaram a decisão. No Brasil, o empresariado criou uma indisposição para a entrada do país caribenho. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) enviou um ofício aos membros da comissão de Relações Exteriores do Senado, dizendose preocupada com a adesão da Venezuela. O deputado Dr. Rosinha (PT-PR), vice-presidente do parlamento do Mercosul, enxerga uma hipocrisia dos se-
tores da mídia e do empresariado que se colocam contra a Venezuela. Os empresários, fato curioso, estariam deixando os princípios morais falar em mais alto do que os cifrões adquiridos com o país fronteiriço. Afinal, em 2006, as empresas nacionais lucraram US$ 3,6 bilhões com os venezuelanos — 60% a mais do que em 2005. De janeiro a maio deste ano, as exportações do Brasil para a Venezuela cresceram 31% em relação ao mesmo período de 2006. Desse total, mais de US$ 3,2 bilhões correspondem a produtos industrializados, como informa a página na internet do deputado. O economista Reinaldo Gonçalves avalia que a economia venezuelana, ao lado da argentina, detém hoje o maior crescimento econômico na América do Sul. O vínculo com os outros países pode reforçar a frágil produção de mercadorias da Venezuela para o próprio mercado interno. Para os demais países associados, os hidrocarbonetos vindos do país caribenho reduzem a dependência energética.
Alba, alternativa à hegemonia de EUA e Europa Modelo de integração tem foco no mercado interno e na defesa da soberania; movimentos sociais participam de sua construção de Curitiba (PR) O famigerado “fracasso” da Rodada de Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC); a sinalização de que os países hegemônicos não devem reduzir os subsídios à agricultura, enquanto defendem a divisão entre países industrializados e exportadores de matérias-primas; tudo isso debilita os esforços do Mercosul. Na ótica de Nildo Ouriques, Coordenador do OLA (Observatório Latino Americano)/ UFSC, a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) avança em meio a esse cenário, ainda que o governo Lula dê às costas para essa janela histórica.
ra nunca iria abrir seus mercados, isso jamais será feito. Os países centrais não abrem seus mercados. Nesse contexto, o plano B é a Alba”, opina Ouriques. A Alba tem sido construída por quatro Estados nacionais: Cuba, Venezuela, Equador e Bolívia. Esse processo, para Ouriques, não se dá apenas no marco da solidariedade, mas também da construção da soberania e de um projeto de país. O papel principal da Alba é o enfrentamento aos monopólios. Como premissas básicas desse modelo de integração, o pesquisador aponta o foco no mercado interno, a disposição para enfrentar o cenário internacional desigual e o controle do território.
Segundo Roberto Baggio, do MST, a Alba cumpre o objetivo histórico de integração da luta dos povos, o que limita o espaço de atuação das transnacionais no continente Depois da fracassada tentativa de implementar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) no continente, os EUA têm apostado nos acordos bilaterais com os países da América Latina. Estes acordos, como os que o Uruguai vem buscando com o país ao Norte, inviabilizam ainda mais o Mercosul. “Adam Smith já havia escrito sobre isto, advertindo na época que a Inglater-
Movimentos sociais
Nos países onde não há possibilidade institucional para a Alba, marcados por governos voltados aos acordos de livre-comércio, como é o caso do México, Colômbia, Peru e de países da América Central e do Caribe, Ouriques pensa que a construção da Alba se faz com os movimentos sociais, governos locais autônomos, fábricas
ocupadas pelos trabalhadores. Cita a experiência dos operários da Cipla, em Santa Catarina, que possuem um convênio dos operários com as experiências realizadas na Venezuela. Os movimentos sociais participam do processo, resguardando a autonomia. Aproveitam o acúmulo de lutas que, embora ainda não tenham resultado na tomada do poder, contribuem para a necessidade histórica da integração das lutas. Essa é a opinião de Roberto Baggio, coordenador do MST no Paraná, para quem “Existe uma riqueza de iniciativas populares, um acúmulo político, popular, nas demandas econômicas, sociais, no método da formação política, nos plebiscitos populares, que contribuem para o conjunto de mudanças estruturais necessárias”, afirma. Na voz de Baggio, essa criação coletiva da Alba deve dar mais um passo em reunião no próximo ano. Para ele, essa aliança de países cumpre um objetivo histórico de integração da luta dos povos, o que limita o espaço de atuação das transnacionais em busca dos recursos naturais em todo o continente. Baggio aponta que há 50 anos já vem se dando a construção de uma “Alba silenciosa” em Cuba. “Existe um recurso humano nobre, qualificado, nos marcos da solidariedade, que Cuba fez com o continente e com o mundo”, comenta. (PC)
Rosinha, por sua vez, relata que existe uma pressão por parte de grupos empresariais sobre a pauta do Mercosul, ação que se completa com a ofensiva dos meios de comunicação. O Parlamento do Mercosul, concretizado há pouco tempo, ainda é incipiente, na avaliação de Rosinha. “Ainda não podemos fazer uma avaliação quanto às posições políticas do Parlamento”, afirma.
Outro Mercosul?
Maureen Santos, da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), que esteve presente na Cumbre de Los Pueblos del Sur, realizada em Assunção paralelamente à cúpula dos chefes do Mercosul, pensa que o bloco comercial não pode ser descartado. Ela comenta que esse evento dos movimentos sociais não possuía o caráter de negação do Mercosul e enfatizou a necessidade de uma integração regional, daí a importância da entrada de países como Equador e Bolívia. Esse processo, segundo Maureen, poderia mudar um quadro existente desde o
Números do Mercosul 234,5 milhões de habitantes somam os países do Mercosul.
75% do Produto Interno Bruto (PIB) da América do Sul. US$ 2,97 bilhões, valor do superavit do Brasil com a Venezuela em 2006. nascimento do Mercosul. Criado nos anos de 1990, na época de ápice do neoliberalismo no continente, o bloco ganhou a impressão digital do comércio, em vez de preocupar-se com a integração dos povos. “Durante a marcha do encontro, chegamos perto da reunião da Cúpula, entregamos documento para presidentes e representantes de Estado, para mudar a agenda do Mercosul, pautada essencialmente no econômico e comercial: é uma tentativa de mudança desse espaço”, comenta.
Uma construção coletiva Conselho Político da Alba envolve governos e movimentos sociais de Curitiba (PR) Para Roberto Baggio, da coordenação do MST no Paraná, o conselho político da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) está em construção, que se dá envolvendo governos (nas diferentes esferas – federal, estatal e municipal, dependendo da conjuntura) e os movimentos sociais. A construção dessa integração se dá em três frentes: na relação entre dois Estados, como vem acontecendo desde 2004, na relação entre Venezuela e Cuba, por exemplo, ou então entre um Estado e um governo local, ou mesmo entre um Estado diretamente com os movimentos sociais de outro país. “É de fato uma grande alternativa na perspectiva de integração dos povos. Do ponto de vista dos movimentos sociais, trata-se de uma proposta em construção, que não está fechada. E a riqueza está no conjunto de plataformas assumida pelo conjunto dos povos. A Alba é uma ferramenta de aglutinar”, afirma. A 5ª Reunião da Alba, rea-
lizada em Tintorero, na Venezuela, no final de abril, com a presença de 12 chefes de Estado e de movimentos sociais, mostrou que a Alternativa Bolivariana está se dando em pautas concretas, de acordo com a capacidade de cada país e a redução de desigualdades entre eles. A Venezuela se propôs a vender petróleo aos países que integram a Alba (inclusive ao Haiti, mesmo que não pertença ainda ao grupo) em condições favoráveis: prazo de 90 dias para o pagamento de 50%. Dos 50% restantes, 25% com um prazo de 25 anos para pagar e os outros 25% seriam colocados num fundo da Alba para créditos a pequenos projetos. Outras propostas entregues pelos movimentos sociais aos presidentes dos países, durante o encontro, foram: o apoio à Telesur e a criação de uma Agência de Notícias da Alba; atenção do Banco do Sul às questões sociais; apoio à luta do povo da Costa Rica contra a implementação do TLC. Também houve o compromisso para a erradicação do analfabetismo e do cultivo de transgênicos. (PC)
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internacional
Uma vez mais, o fracasso Igor Ojeda da Redação
“RECIPROCIDADE menos que total.” Esse é o princípio que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) concordaram em adotar nas conversações sobre bens industriais. Ou seja, as nações desenvolvidas devem se comprometer com mais obrigações que as emergentes nas negociações tarifárias para o setor. As distintas fases de desenvolvimento das economias entre o primeiro e o segundo grupo justificaria tal medida. Mas os países ricos, digamos, pouco se importam com isso. Em junho, seus dois principais representantes, EUA e União Européia (UE), reuniram-se na cidade de Potsdam, na Alemanha, com dois representantes das nações em desenvolvimento, Brasil e Índia, para uma tentativa de retomada da Rodada Doha, negociações no âmbito da OMC para a liberalização comercial entre seus integrantes. Os dois últimos, no entanto, retiraram-se das negociações após a continuação do impasse. As duas moedas de troca principais são a agricultura e a indústria. Mas, enquanto EUA e UE desejam uma ampla abertura do setor industrial dos países emergentes, não querem oferecer, na mesma proporção, cortes tarifários no setor agrícola e nos altos subsídios concedidos a seus produtores locais. A OMC tentará reverter o fracasso das conversações até meados de julho. “Na verdade, a reunião de Potsdam voltou a explicitar um problema que já existia. Dada a dificuldade dos vários lados de fazerem concessões de fato, só há duas opções: ou fechar um acordo que não signifique concessão de nenhum lado, uma coisa de fachada, simplesmente para dizer que as
Fotos: Annette Boutellier/WEF
OMC Países ricos exigem abertura radical por parte das nações em desenvolvimento, mas oferecem muito pouco em troca Quanto
26%
é quanto EUA e UE estão dispostos a cortar de suas tarifas de importação
64,5% é quanto
Brasil e Índia seria obrigados a reduzir
Cortes desiguais
negociações continuam num novo patamar, ou então continuar negociando”, analisa Adhemar Mineiro, economista da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).
Limites domésticos
Segundo ele, outro obstáculo significativo para o sucesso da Rodada Doha são os limites impostos pelas regulações domésticas de cada país. “Então, parece que, do jeito que está equacionada hoje, a negociação chega no limite”, diz. No dia 30, por exemplo, o Congresso estadunidense decidiu não renovar um mecanismo conhecido como “fast track”, que dava ao governo a possibilidade de negociar acordos comerciais sem a aprovação e eventuais mudanças por parte dos legisladores. Em Potsdam, o máximo que os EUA ofereceram em relação aos seus subsídios à agricultura foi o chamado “corte n’água”. Em artigo, o jornalista e economista da Malásia Martin Khor, diretor da Third World Network (Rede Terceiro Mundo, em inglês), explica que a proposta era de que o apoio dos EUA aos agricultores se restringisse ao limite máximo de 17 bilhões de dólares ao ano. Porém, tal quantia é superior que a média nos últimos anos e bem maior que os 11 bilhões de dólares de 2006. No entanto, nas negociações de Nama (bens industriais, na linguagem da OMC), a contrapartida exigida aos países em desenvolvimento pelos EUA
tamente qualificada. “Se é para abrir determinados segmentos da economia nacional, que possa levá-los à falência, à redução do emprego, à concentração ainda mais de capital nas mão de poucos oligopólios, nós somos contra”, explica. De acordo com ele, setores de ponta, como a indústria química e eletrônica, seriam os mais afetados.
No sentido horário, Susan Schwab (EUA), Peter Mandelson (UE), Kamal Nath (Índia) e Celso Amorim (Brasil)
As duas moedas de troca principais são a agricultura e a indústria. Mas, enquanto EUA e UE desejam uma ampla abertura do setor industrial dos países emergentes, não querem oferecer, na mesma proporção, cortes tarifários no setor agrícola e a União Européia é bem maior. Segundo Khor, ambos propuseram que Brasil e Índia aceitassem um coeficiente 18 na Fórmula Suíça para o corte de tarifas. EUA e UE teriam um coeficiente 10. A Fórmula Suíça propõe um processo de corte linear de todas as tarifas de um país. Isso permitiria uma redução maior de tarifas mais altas, e cortes menores para tarifas mais bai-
xas. Muitos criticam, no entanto, que sua aplicação não permite a flexibilidade que deveria existir no caso dos países mais pobres, que possuem uma economia mais frágil. Não se poderia, por exemplo, adotar tratamentos diferenciados para produtos mais vulneráveis ou, futuramente, porcentagens tarifárias mais altas em períodos em que um setor precise ser protegido.
João Felício, secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), alerta que uma abertura comercial nesses termos por parte do Brasil, mesmo que tenha como contrapartida amplas concessões européias e estadunidenses na agricultura, seria altamente prejudicial à indústria brasileira, devido à competição internacional que se seguiria, al-
Em seu artigo, Martin Khor analisa o que os coeficientes propostos pelos países ricos para bens industriais significariam em termos de porcentagens. Segundo ele, a tarifa máxima de importação adotada na indústria européia é de 3,9%. Aplicando o coeficiente 10, ela iria para 2,8%, um corte de 28%. A mesma operação realizada nas tarifas estadunidenses causaria uma redução de 24%: de 3,2% para 2,4%. Por outro lado, um coeficiente 18 aplicado nas tarifas brasileiras as fariam passar de um máximo de 30,8% para um máximo de 11,4%. Ou seja, um corte de 63%. Para a Índia, a redução seria de 66% (de 34,3% para 11,8%). Trocando em miúdos: a proposta de EUA e UE é que eles cortem suas tarifas de importação em uma média de 26%, enquanto Brasil e Índia seriam obrigados a reduzi-las, em média, em 64,5%. No dia 18, a Rebrip enviou uma carta ao ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, criticando a não-transparência nas negociações da Rodada Doha e a busca de sua conclusão em parâmetros não aceitáveis, pois, ao atenderem “os interesses de uma agricultura voltada para o setor externo”, significariam um “enorme potencial de perdas para a agricultura familiar e camponesa, para o emprego e a renda de vários setores da indústria brasileira.
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cultura Divulgação
Expressão da
resistência negra
ANÁLISE Tambor de crioula é reconhecido como patrimônio imaterial do brasileiro Valdenira Barros O TAMBOR de crioula tem uma voz íntima, pronunciada em sinais transmitidos por gerações de negros que souberam ver nessa festa um sinônimo de liberdade. Na ilha de São Luís, os tambores se firmaram trilhando caminhos silenciosos, muitas vezes irmanados aos grupos de bumba-meu-boi, porque a gente do boi é a mesma do tambor e as festas do povo são festas de “ajuntamento”, de comunhão de significados. Mas o tambor tem a sua fala diferenciada, o seu jeito de convidar para a dança, para o arrebatamento. O chamado do tambor atendeu ao desejo de liberdade que somente a transcendência do seu toque permitia. Elo entre mundos que a escravidão relegou ao esquecimento, o tambor possibilitou a sobrevivência de ligações ancestrais, favorecendo a lembrança de línguas, rituais, danças, elementos vinculados ao rastro da presença de um passado transformado em resistência. Ser do tambor significava assumir uma irmandade sustentada por laços que iam além do entendimento das aparências, penetrando em um mundo que sobreviveu durante séculos nas sombras de reuniões noturnas. Para muitos senhores de escravos uma festa bruta, de homens que se entregavam a instintos primitivos. Para os do tambor, um canto que atingia a alma e possibilitava o reencontro com os espíritos africanos de força. No tambor, o vôo para uma noite livre, onde o povo negro reencontra o domínio de corpos castigados pelo excesso de trabalho pesado. Os pés ganham a leveza dos giros que levam longe, transmitindo uma freqüência que atrai espíritos desejosos por palpitações vertiginosas. As mãos viram poderosos instrumentos de percussão, alimentados pela quentura do couro dos tambores e pela dormência da cachaça.
A voz do tambor se negou a ficar muda. Permaneceu resguardada na fala dos corpos, dos gestos, dos passos que reconheciam nos batuques a essência de uma liberdade perdida nos limites da escravidão física. O tambor não permitiu o aprisionamento da alma e garantiu a resistência espiritual necessária à transcendência das torturas materiais. Seu Leôncio Baca, herdeiro de um tambor dos seus antepassados, diz: “o tambor tem mistério, mistério invisível”. Na memória dos mais velhos, a gratidão e o respeito ao tambor que não deixou a alegria sumir dos espíritos. O tambor é dos negros. Foram eles que trouxeram consigo das terras africanas essa sonoridade que desde sempre os ligou com as forças sagradas. São eles que continuam a nos ensinar a reconhecer as festas como uma expressão irredutível da vida. O tambor tocado, batido no Maranhão é de crioula, de São Benedito, de Avereketi, de Princesa Isabel, dos pretos velhos, de promessa, de satisfação, de oferenda, mas, acima de tudo, é dos negros que souberam multiplicar os motivos e os desejos contidos no tambor.
Origens
As narrativas da origem do tambor de crioula, via de regra, se referem ou a São Be-
nedito ou ao período da escravidão. São Benedito, o santo protetor dos negros, aparece no teatro das memórias como um escravo que foi à mata, cortou um tronco de árvore e ensinou os outros negros a fazer e a tocar o tambor. Outras vezes ele surge como o cozinheiro do monastério que levava comida escondida em suas vestes para os pobres. Mas, em muitos casos, não há uma narrativa geral sobre o tambor e sua origem ancestral e sim a história específica de determinado grupo de tambor, demonstrando que, naquilo que costumamos chamar de cultura popular, há espaço para a individualidade, a diferenciação. Nesse caso, os nomes são índices interessantes. Muitas vezes o tambor é chamado pelo nome do líder da brincadeira, aquele que é o guardião da parelha de tambor; então, temos Tambor de Leôncio, Tambor de Apolônio. Às vezes, o tambor é simplesmente chamado de Tambor. Alguns fazem uma homenagem a São Benedito, Proteção de São Benedito, Carinho de São Benedito. Há situações em que o nome segue a indicação da localização da sede do tambor como Correio de São Benedito, por ficar próximo a uma agência dos correios. Mas é preciso que se diga que, via de regra, o tambor
Às vezes, o tambor é simplesmente chamado de Tambor. Há situações em que o nome segue a indicação da localização da sede do tambor como Correio de São Benedito, por ficar próximo a uma agência dos correios tem um nome, outorgado em muitos casos numa cerimônia de batismo com a presença de padrinhos e “familiares” do tambor. As memórias dos integrantes do tambor preenchem os sentidos de uma memória mais geral que vai sendo tecida com as experiências de vida trazidas pelo tempo. A fala do tambor é a fala de um e também a fala de muitos, mesclada nessa língua geral construída pela passagem das gerações. No repertório dessas lembranças, cenários de festas, nomes dos lugares onde se aprendeu a tocar, nomes de lideranças que já partiram, nomes de árvores com a madeira apropriada para a confecção dos instrumentos, palavras que costumam ser pronunciadas no auge da empolgação de uma roda, toadas e o desejo permanente de ouvir e sentir o som do tambor.
Círculos
A roda significa o lugar, a encenação criada para a apresentação, realização do tambor. Se levarmos para um sentido mais geral, a roda é a forma de inserção nos mais variados ambientes. O tam-
Se as palavras que acompanham e interpretam o tambor compõe um universo próprio, a memória inscrita no corpo parece reter as lembranças mais profundas. Desde a escravidão, todo um sistema de comunicação que não podia ser dito verbalmente é traduzido em expressões corporais
bor circula a sua roda em aniversários, festejos religiosos, batizados, dias santos. A sua lógica é a do movimento, da circularidade de espaços, motivos e empolgações. Não só o espaço de apresentação é circular, como as saias das mulheres têm que ser amplas para em determinado momento rodarem, assim como a frente, a “face” dos tambores é redonda. As toadas também circulam, tendo as mais reconhecidas e amplamente divulgadas entre os grupos. A dinâmica da circularidade orienta as performances das apresentações. Tanto o toque quanto a dança seguem o princípio da alternância. Tambor não se faz só. Os integrantes do grupo sabem que a dança, assim como o toque, é de todos. Deve haver uma circulação entre os que dançam e os que tocam, apesar de haver o reconhecimento daqueles que são apontados como os que “arrepiam” na dança ou sabem fazer o tambor falar com mais força.
Transcendente
Se as palavras que acompanham e interpretam o tambor compõem um universo próprio, a memória inscrita no corpo parece reter as lembranças mais profundas. Desde a escravidão, todo um sistema de comunicação que não podia ser dito verbalmente é traduzido em expressões corporais. Ler os sinais dessa outra fala é um desafio
No Maranhão, existem mais de 60 grupos de tambor de crioula No dia 18 de junho, o ministro Gilberto Gil (Cultura) anunciou, em São Luís (MA), o registro do tambor de crioula no Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro. A decisão foi baseada em estudo do Inventário de Referências Culturais da Ilha de São Luís (INRC), que integra um conjunto de ações governamentais implementadas em todo o território nacional pelo Iphan, cujo objetivo é, em última instância, a valorização da diversidade cultural brasileira. A manifestação escolhida como objeto do INRC da ilha de São Luís foi o tambor de crioula. Trata-se de uma das referências culturais maranhenses mais significativas, ocorrendo em São Luís e em boa parte do território do Maranhão, sendo uma manifestação de matriz afro-brasileira, com origens que remetem ao período da escravidão.
Os estudos mais amplos de que se tem notícia sobre o tambor de crioula foram feitos por uma equipe coordenada pelo professor Sérgio Figueiredo Ferreti, em 1977 e 1978. Na época, presumia-se a existência de 15 a 18 grupos de tambor em São Luís. Atualmente, o INRC localizou cerca de 51 grupos na capital e nove no interior do Estado, sabendo-se da existência de mais grupos. Esse trabalho procurou gerar conhecimento e informações sobre o tambor de crioula por meio de entrevistas com pessoas integrantes dos grupos pesquisados e observação participante nas localidades onde estes atuam. A pesquisa obteve como resultado um maior conhecimento sobre a realidade dos grupos maranhenses de tambor de crioula, o que acabou por configurar a necessidade do pedido do registro dessa manifestação como patrimônio imaterial brasileiro.
para os não iniciados no jogo de representações da memória que sobreviveu à opressão branca. O transe é um dos mistérios da linguagem do tambor. Nele, os corpos somam matéria e espírito duplicados em entidades que particularizam uma essência divina que vem de outros tempos e lugares. No transe, os corpos têm um “dono”, um “guia” que transforma os indivíduos em algo pertencente ao mundo dos espíritos, expressando uma personalidade através do domínio do corpo. Uma vez incorporado, a pessoa ultrapassa a fronteira do mundo dos homens e encontra o mundo dos encantados. Isso surge sem mais assombros no meio do tambor, pois este é dos santos, das entidades.
Chama
O fogo tem a função de “esquentar”, manter os tambores afinados para o toque. Geralmente é acesa uma fogueira ao lado do local onde haverá a roda, sendo esse um dos ritos iniciais para se começar um tambor. A quentura do fogo deve acompanhar o tambor que precisa retirar das chamas a força para se expressar. Os saberes do mundo dos tambores pertencem àqueles que incorporaram desde cedo uma dedicação sem igual. O tambor tem que ser cuidado, sentido, amado, desejado, venerado. Para ser desse mundo, é preciso mais do que vontade, é preciso um compromisso que, por vezes, ultrapassa a fronteira da morte. Por isso, as histórias de quem faz o tambor são de quem as narra, mas também são de outros, os muitos outros que compõe a irmandade do tambor. Para os mais velhos do tambor, este não desaparecerá jamais, seguirá se reinventando, multiplicando-se em formas que desconfiam das simplificações apressadas e sorriem da inocência dos que não enxergam a profundidade dessa arte. Valdenira Barros é fotógrafa e professora do curso de comunicação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)