BDF_228

Page 1

Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 228

São Paulo, de 12 a 18 de julho de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Fotos: João Zinclar

CAMINHOS DA TRANSPOSIÇÃO:

a água

proibida Págs. 4 e 5

Dona Terezinha mora ao lado do Canal da Integreção em Jaguaribara, Ceará, mas só pode pegar água escondido: “Não podemos nem chegar perto do canal”. Com a Transposição, ela continuará sem água

Dois grandes projetos para a construção de hidrelétricas avançam no país. Em Rondônia, duas usinas no rio Madeira ganharam, no dia 10, a licença prévia do Ibama. Em São Paulo, a de Tijuco Alto está numa etapa anterior, a das audiências públicas. As iniciativas são baseadas num modelo de megaobras de usinas destinadas a gerar energia para indústrias com elevada demanda por eletricidade. Quem paga a conta são os consumidores residenciais, sujeitos a altas tarifas, as populações locais e o meio ambiente, ameaçados pelas inundações. Pág. 11

Até maio, a indústria brasileira cresceu 4,4% em relação a igual período do ano passado. Mas isso não vem significando o incremento do emprego e do salário. Segundo dados do IBGE, a taxa de desemprego nas grandes regiões metropolitanas do Brasil foi de 10,1% tam-

a diferença”, salienta José Dari Krein, da Unicamp. Além disso, o mercado de trabalho não absorve a quantidade de profissionais com educação universitária e, ao mesmo tempo, oferece vagas apenas de baixa qualificação, nivelando o salário por baixo. Pág. 4

bém em maio. A economia se expande, mas não gera postos de trabalho e renda conforme a necessidade da maior parcela da população. “O setor de bens de capital é pouco expressivo para a questão do emprego. Não é um crescimento de um ou dois anos que vai fazer

Roosewelt Pinheiro/ABr

Megaprojetos de usinas ameaçam comunidades e meio ambiente

Crescimento não favorece trabalhador

UNE busca se aproximar dos movimentos Duas resoluções foram tiradas de forma consensual no 50º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado entre os dias 4 e 8 em Brasília. A primeira é a determinação de aproximar a entidade dos demais movimentos sociais do país, construindo ações unitárias. A outra versa sobre a rejeição a novas privatizações e o apoio à campanha pela anulação do leilão da Vale do Rio Doce. Na ocasião, os cerca de 8 mil universitários participantes elegeram a nova direção da entidade, agora comandada por Lúcia Stumpf (na foto), da União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao PCdoB. Pág. 3

Raquel Chaves

comunidade luta pelo direito de acesso ao mar

A imaginação e a descoberta do mundo

Divulgação

ENTRE O ASSENTAMENTO E A PRAIA:

A realidade, como pano de fundo; a imaginação como linguagem. Esses são elementos da escritora Maria José Silveira, autora de obras infanto-juvenis, romances e contos. Em “O vôo da arara azul”, lançado em junho pela Editora Callis, ela convida os jovens a sobrevoarem um Brasil dividido entre a repressão militar e a militância política. Pág. 12

Pág. 7

Governo federal apóia repressão em favelas Faixa de praia próxima ao assentamento Maceió, município de Itapipoca (CE), a cerca de 190 quilômetros de Fortaleza

França apoiou genocídio em Ruanda A cumplicidade da França, do então presidente François Miterrand (1981-1995), com os massacres ocorridos em Ruanda, país do Leste da África, em 1994, ficou comprovada com a publicação, no jornal Le Monde, de uma série de documentos de Estado que antes eram confidenciais. Na época, o governo ruandês, em poder

da etnia hutu, preparou e executou, em cem dias, os assassinatos de pelo menos 800 mil tutsis e hutus contrários ao regime. Telegramas e memorandos diplomáticos sugerem que Miterrand teve conhecimento do planejamento do genocídio, iniciado anos antes, mas continuou apoiando os líderes de Ruan-

da, com armas, munições e treinamento militar. É a primeira vez que a forte suspeita desse suporte aos genocidas por parte da França é confirmada. Pág. 9

O ministro da Justiça, Tarso Genro, avisa que o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) prevê “ações de ocupação e retomada de territórios” para combater o tráfico de drogas. Ou seja, a Força Nacional de Segurança e as polícias estaduais continuarão a repetir ações como as que têm ocorrido no Complexo do Alemão. Em entrevista, o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ) diz ser preocupante que essa conduta seja incorporada e, portanto, legitimada pelo governo federal. “Quando se diz que se vai combater o tráfico e o faz apenas na favela, é porque você destinou aos setores pobres da sociedade o processo de culpabilização pelo crime.” Pág. 6


2

de 12 a 18 de julho de 2007

editorial O MODELO econômico brasileiro vai muito bem obrigado. Mas apenas para uma minoria. Há cerca de 200 grandes empresas, a maioria transnacionais e outras brasileiras, que controlam mais da metade da economia do país, respondem por 78% das exportações, estão subordinadas ao capital financeiro e obtêm lucros cada vez maiores. Têm crescido a 7,5% ao ano. Na agricultura, continua de vento em popa um processo de concentração da propriedade da terra, de venda de terras para o capital estrangeiro e, agora, com os projetos do etanol, de acelerada a entrada de capital internacional. Na política governamental, como denunciou em recente entrevista um pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada (Ipea) – ligado ao Ministério do Planejamento –, há uma ambivalência. De um lado, o Banco Central impõe uma política monetária que concentra riqueza, renda e favorece a internacionalização. De outro lado, há ministérios que se esforçam

debate

O Brasil precisa de um projeto popular Há uma falsa sensação nos jornais da burguesia de que a economia vai bem, porque a inflação está controlada e os ganhos do capital nunca foram tão altos com políticas sociais, mas que funcionam apenas como compensação social, sem conseguir de fato distribuir renda. Entre os assalariados, os que vivem do trabalho, há uma desigualdade social menor. Mas o fundamental é a diferença entre os rendimentos de capital (das empresas) e os do trabalho (dos trabalhadores) e essa diferença pró-capital tem aumentado cada vez mais. As taxas de juros são as mais altas do mundo. O preço dos serviços de energia elétrica, telefone e transporte publico estão também nesse mesmo patamar, isso sem comparar com o nível dos salários do

Brasil. Há, portanto, uma falsa sensação nos jornais da burguesia de que a economia vai bem, porque a inflação está controlada e os ganhos do capital nunca foram tão altos. Mas para a classe trabalhadora, a situação continua igual. Nenhum dos problemas fundamentais do povo, que poderiam ser resolvidos mesmo dentro do capitalismo, tiveram solução. O direito ao emprego, com direitos sociais. O direito à moradia. O direito ao acesso à universidade. O direito de trabalhar na terra e a democratização dos meios de comunicação e da cultura não avançaram.

E por que estamos nessa situação? Não basta procurar respostas simplistas ou dizer que tudo é culpa do governo. Aliás, o Estado brasileiro é administrado por três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), além das instâncias regionais, como governos estaduais e prefeitos. Em todas essas esferas, é evidente que as forças e os interesses populares são minoritários. A sociedade brasileira precisa de um verdadeiro mutirão de debate sobre um projeto de país. Algo que não se constrói apenas com boas propostas de intelectuais ou

crônica

Temístocles Marcelos

Energia limpa?

Já os agrocombustíveis têm sido apontados como a solução para a substituição dos combustíveis fósseis que, além de estarem escasseando, são a principal causa do aquecimento global. O biodiesel e o etanol, ao contrário, seriam uma fonte de energia limpa e renovável. A produção de biodiesel tem

Gama

O país poderá crescer 5% ao ano e iniciar um ciclo de crescimento econômico, mas não significará mais emprego, melhores salários e condições de vida. Será a mera reprodução do atual modelo crescido vertiginosamente desde o lançamento do Programa de Produção e Uso do Biodiesel, em 2005. Mas o Programa sofreu mudanças importantes desde o início de sua elaboração, dentre as quais se destaca a obrigatoriedade da mistura do diesel vegetal ao mineral. Com isso, abriram-se as portas ao agronegócio, em particular os produtores de soja, já que as matérias-primas provenientes da agricultura familiar são insuficientes para o cumprimento das metas. Também o caráter de inclusão social do Programa é questionável, pois o papel do agricultor familiar na cadeia produtiva do biodiesel está objetivamente limitado ao fornecimento de matéria-prima, em uma situação semelhante à encontrada nos chamados “sistemas de integração”, como a da cadeia do fumo e outras. O etanol está passando por um processo de boom ocasionado, em grande parte, pela demanda do mercado internacional. O Brasil é o segundo produtor mundial de etanol, mas o brasileiro, fabricado a partir da cana-de-açúcar, tem grande vantagem sobre o etanol estadunidense, produzido com milho. O recente acordo de cooperação com os Estados Unidos, firmado durante a visita de Bush em março, foi saudado pelos usineiros. O presidente da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo, Eduardo Carvalho, adianta que a meta do setor é dobrar a produção de etanol em seis anos, passando a produzir 34 bilhões de litros anuais. A Petrobras também adota uma perspectiva semelhante: pretende aumentar as exportações de etanol, atingindo 3,5 bilhões de litros em 2011, sendo a maior parte para o Japão. Mas nem todos compartilham dessa euforia. Para José Bautista Vidal, o acordo não traz nenhuma vantagem para o Brasil, que possui uma

tecnologia capaz de colocá-lo na liderança mundial: “Em vez de o Brasil tomar a iniciativa e criar instrumentos, empresas, criar a Companhia Brasileira de Bioenergia, os estadunidenses aproveitam e estão criando uma estrutura de poder a partir do álcool brasileiro”.

Nova estatal

Não é difícil antever as conseqüências nefastas de tais políticas. O país poderá crescer 5% ao ano e iniciar um ciclo de crescimento econômico, mas não significará mais emprego, melhores salários e condições de vida. Será a mera reprodução do atual modelo, que é socialmente injusto e concentrador de riqueza, além de ser catastrófico do ponto de vista ambiental e da soberania nacional. Significará um retrocesso enquanto nação, enquanto projeto de desenvolvimento simultaneamente econômico, social e ambiental. Esse é um debate crucial. Principalmente quando assistimos a uma verdadeira cruzada contra os licenciamentos ambientais, vistos como entraves ao “desenvolvimento”. Para nós, ao contrário, só existe desenvolvimento quando a justiça social e a sustentabilidade estão presentes e de forma entrelaçada. Mas tal opção exige políticas coerentes, que estabeleçam um novo paradigma, uma nova política econômica, um novo padrão de crescimento e uma nova política energética que priorize o povo e não as corporações e a burguesia agro-exportadora. Para chegar lá, talvez seja a hora de pensarmos seriamente na criação de uma estatal, com participação e controle da sociedade civil, voltada para o desenvolvimento e produção de energia limpa e renovável. Temístocles Neto é coordenador da Comissão Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT)

Leonardo Boff

Autoridade dos pais e violência dos filhos

Uma difícil equação: energia, desenvolvimento e meio ambiente A POLÍTICA energética brasileira vive um momento de grande impulso. Ao lado dos projetos de construção de novas usinas hidrelétricas (UHEs), como as de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira (em Rondônia), o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou a retomada e conclusão da usina nuclear de Angra III. O grande investimento no setor energético é explicado em parte pelas demandas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que exige a geração de 12.300 megawatts adicionais de energia até 2010. Além disso, o governo federal vem investindo enfaticamente na produção de agrocombustíveis, tendo firmado recentemente um acordo de cooperação técnica com os Estados Unidos para a produção de etanol. Parecem notícias auspiciosas. Mas uma análise mais cuidadosa, sob a perspectiva da sustentabilidade socioeconômica e ambiental, nos mostra que há muitos motivos para preocupação. A pressa com que o PAC foi elaborado e anunciado, sem um debate amplo com a sociedade civil, não permitiu que fossem escutadas e debatidas opiniões como as do professor Célio Bermann, da USP, que considera desnecessárias novas usinas hidrelétricas. Bastaria, segundo ele, a repotencialização de usinas existentes, além da redução do desperdício nas linhas de transmissão, para atingir as metas do PAC. Opinião semelhante é a do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), crítico ferrenho do modelo energético vigente. De acordo com o MAB, mais de 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras em conseqüência das barragens. Além disso, o movimento alerta que a construção das barragens projetadas para a Amazônia causarão uma emissão de cerca de 231 milhões de toneladas de gás carbônico por ano, o que corresponde a 75% da quantidade de emissão líquida total de gás carbônico no ano de 1999. Uma decisão mais polêmica é a retomada da construção de Angra III. Não só por seus riscos evidentes, mas por ser um empreendimento de alto custo, sem qualquer justificativa que comprove a sua necessidade. Para o coordenador de Planejamento Energético da Unidade de Pós-Graduação de Engenharia da UFRJ, Luiz Pinguelli Rosa, “Angra III não é prioridade”, assinalando o fato de que tanto as UHEs quanto Angra III só estarão aptos a produzir energia daqui a cinco ou seis anos. “E é daqui a três anos que poderá haver problemas de escassez de energia – que vai depender do crescimento econômico”, assinala.

artigos em jornais. É necessário conseguir aglutinar um amplo leque de forças sociais, populares, que pautem essa tarefa e levem o debate para toda a sociedade. Um processo que faça uma radiografia dos graves problemas econômicos e sociais que nos afetam. Que identifique suas raízes e proponha soluções concretas, para resolver os principais problemas do povo brasileiro. Somada à clareza de quais são os nossos problemas, nosso desafio é nos organizamos, criar condições para que o povo possa se mobilizar em grandes lutas sociais para implementar as soluções necessárias. Portanto, um projeto popular depende também essencialmente da participação, da mobilização das massas que lutem por suas idéias. Caso contrário, será apenas uma elaboração teórica sem viabilidade. Isso tudo é a construção de um projeto popular para o Brasil. Sua construção é uma tarefa das forças populares, das esquerdas – e não de governos.

OS FATOS recentes de filhos de famílias de classe média alta se entregarem à violência, surrando uma empregada doméstica, “imaginando ser uma prostituta” e envolvendo-se em violências com outros jovens, nos suscita a questão da autoridade dos pais como princípio criador de limites. Não podemos colocar toda a culpa na família e no pai. Ela possui hoje muitos substitutos e concorrentes que a sobredeterminam. Antes de tudo, a própria sociedade, desde sua fundação assentada sobre a violência, a magnificação da truculência feita pela televisão, a geral impunidade da corrupção quase generalizada no aparato de Estado e de outros crimes, a puberdade cada vez mais precoce, fazendo com que aos 15 anos, não ser raro o jovem já ter um corpo adulto, ultrapassando em até dez centímetros o de seus pais, considerando ainda a liberalização geral dos costumes, todo esse complexo de questões pesa sobre os pais e os jovens que estão na plenitude de sua vitalidade e descobrindo as virtualidades físicas de seu corpo.

A violência, a magnificação da truculência feita pela televisão, a puberdade cada vez mais precoce [...], todo esse complexo de questões pesa sobre os pais e os jovens que estão na plenitude de sua vitalidade e descobrindo as virtualidades físicas de seu corpo Importa também incorporar na interpretação do fenômeno uma visão filosofante da vida humana, presente nos grandes mestres da psicanálise, que se dão conta de que no interior das pessoas, desde bebês, funcionam forças tremendas de amor e de agressão e que, ao largo de toda vida, as devem trabalhar, na busca de um amadurecimento até fazerem-se pai e mãe de si mesmas e por isso levar uma vida autônoma e criativa. Essa tarefa da vida é carregada de tensões, fracassos e vitórias. Começa a despontar de forma vulcânica na adolescência. Não tomar em conta tal fato é fazer injustiça aos jovens e, no fundo, não entendê-los nem acompanhá-los no desabrochar de sua humanidade. Por outro lado, sabemos que a regra de ouro da educação é saber impor limites e às vezes até sancionar. Essa diligência incômoda, mas intransferível, cabe à figura do pai ou de quem lhe faz as vezes. Sobre isso queremos refletir rapidamente. A criança vem da experiência da mãe, do aconchego e da satisfação de seus desejos. Mas, ao crescer, dá-se conta de que há um outro mundo que não prolonga o da mãe. Aí há tensões, dificuldades e conflitos. As pessoas trabalham e, em função disso, têm que mostrar disposição para o sacrifício e acolher limites se quiserem alcançar seus objetivos. É tarefa do pai ajudar o filho/filha a fazer essa transposição. É o momento em que o filho/filha se desprende da mãe e se aproxima naturalmente do pai; pede ser amado por ele e esclarecido em suas indagações. É a hora de reconhecer a autoridade do pai e a aceitação dos limites que ele mostrar, próprios desse continente novo. Para isso, cobra disciplina e contenção dos impulsos dos filhos. Caso contrário, este entrará num confronto que o vai isolar e prejudicar.

A criança vem da experiência da mãe, do aconchego e da satisfação de seus desejos. Mas, ao crescer, dá-se conta de que há um outro mundo que não prolonga o da mãe. Aí há tensões, dificuldades e conflitos. Ele tem que aprender a conviver com os diferentes e os limites que estes impõem. É aqui que cabe, quando preciso, depois do diálogo e do aconselhamento, sancionar sem humilhar. As sanção visa o ato e não diretamente o adolescente. Sancionar não significa humilhar mas impor um limite a um comportamento que cria transtornos à convivência e que seria sancionado mesmo que tivesse sido praticado por outro. A missão dos pais é tão sublime e carregada de responsabilidades que não pode ser deixada ao mero espontaneísmo. Os pais precisam conversar com outros pais e estudar. Aconselho o livro de um dos maiores psicanalistas dessa área: D. Winnicott, “Tudo começa em casa” (1989). Leonardo Boff é teólogo

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


de 12 a 18 de julho de 2007

3

brasil

UNE busca fortalecer aproximação com os diversos movimentos sociais Roosewelt Pinheiro/ABr

ESTUDANTES Plebiscito da Vale e Jornada de Lutas pela Educação são as duas principais resoluções do 50º Congresso Mayrá Lima de Brasília (DF) O 50° CONGRESSO da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado entre os dias 4 e 8, na Universidade Nacional de Brasília (UnB), ficou marcado por dois posicionamentos políticos considerados consensuais entre todas as forças que disputam a entidade. O primeiro deles – e que deve ser a pauta prioritária da nova direção – convoca para agosto uma Jornada Nacional de Lutas a ser construída em conjunto com os movimentos sociais. A proposta é fazer passeatas, atos políticos e exigir um Programa Nacional de Assistência Estudantil com a destinação de 7% do PIB para o setor da educação. A pauta animou, inclusive, a oposição da UNE, que promete se organizar junto aos movimentos sociais e entidades classistas em torno das reivindicações. “Mesmo que não tenhamos a maioria no âmbito do que nos é mais importante, nós defendemos que a UNE participe das jornadas de mobilização com o MST, Conlutas, Intersindical...”, disse Vinicius Almeida, estudante de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da Frente de Oposição de Esquerda da UNE. A segunda resolução consensual foi a defesa das empresas estatais, colocando-se contra novas privatizações. Esse direcionamento se estendeu à aprovação do apoio ao movimento que pede a anulação do leilão que privatizou, em 1997, a Companhia Vale do Rio Doce. “Foi um congresso muito rico em que a UNE conseguiu colaborar com várias questões importantes, como a necessidade de participar do plebiscito da Vale, construindo uma aliança com os movimentos sociais não só

Em memória de Honestino Guimarães de Brasília (DF)

Estudantes decidiram lutar para que 7% do PIB seja destinado ao setor da educação

“A UNE vai intensificar a pressão junto ao Congresso Nacional para que o projeto da reforma [universitária] seja desengavetado e votado o mais rápido possível” dentro da Coordenação dos Movimentos Sociais [CMS], mas também em espaços como a Assembléia Popular. Fazendo um esforo para transformar o país”, explicou Lúcia Stumpf, nova presidente da entidade.

A disputa

Esses dois consensos fazem parte de uma exceção no conjunto de posições dentro da UNE. Os eixos de disputa, conjuntura nacional e internacional, educação, mo-

plo, é sempre um momento de grande tensão na plenária. Enquanto uns – como os militantes da Frente de Oposição de Esquerda da UNE, ligada ao Psol – defendem uma postura de desligamento total em relação ao presidente, a maioria dos estudantes – próximos ao PMDB, PT e PCdoB – prefere adotar um discurso mais ameno, onde reafirmam “a continuidade da pressão que deve ser exercida” frente ao governo federal. Mas é a reforma universitária o principal ponto da discórdia no Conune, sigla pela qual o Congresso é conhecido. Setores ligados ao Psol, ao Partido Comunista Revolucionário (PCR) e algumas ten-

vimento estudantil, América Latina e reforma universitária mereceram palavras de ordem e bandeiras que se somavam a defesas inflamadas que, na maioria das vezes, eram inaudíveis frente às bancadas que teimavam entoar seus gritos de ordem, acompanhados de jograis feitos pelos diversos militantes: a única forma de todo mundo saber o que está sendo dito por outra pessoa. O posicionamento frente ao governo Lula, por exem-

dência do próprio PT são completamente contra a proposta atual, que está parada no Congresso. No entanto, a maioria, organizada na União da Juventude Socialista (UJS), do PCdoB, e na juventude ligada ao PMDB e a outros setores petistas, conseguiu aprovar justamente o contrário. A UNE, segundo seus documentos, vai “intensificar a pressão junto ao Congresso Nacional para que o projeto da reforma seja desengavetado e votado o mais rápido possível. A UNE quer que a proposta volte à pauta dos parlamentares para garantir que, ainda este ano, a educação privada, por exemplo, possa contar com novas formas de regulamentação”.

O grande homenageado do 50° Congresso da UNE foi seu ex-presidente Honestino Guimarães, desaparecido político durante a ditadura. As manifestações começaram já no Senado Federal, onde ocorreu, no dia 4, uma sessão solene em comemoração aos 70 anos da UNE, que serão completados no dia 11 de agosto. Na Universidade Nacional de Brasília, um documentário sobre a vida de Honestino foi exibido. Na platéia, a mãe do líder estudantil, dona Maria Rosa Leite, estava acompanhada de seu outro filho, Norton Guimarães. Também estava presente o amigo José Luiz Guedes, que presidiu a UNE em 1966. Norton chegou a dizer uma frase do seu irmão que, segundo ele, resume o 50º Congresso: “sempre podem nos prender, podem nos bater, mas quando voltarmos seremos milhões”. “É isso que vocês representam, a força e persistência dos jovens”, completou. Honestino Guimarães era brasiliense e foi presidente da UNE no ano de 1970, mesmo sendo clandestino político. No dia 10 de outubro de 1973, segundo informações recebidas pela família, ele foi preso pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e, até hoje, não se sabe seu paradeiro. (ML)

Críticas ao Banco Central

UJS vence, novamente, as eleições para a direção da entidade

Estudantes foram além de questões diretamente ligadas à educação e discutiram temas como economia, meio ambiente, comunicações, violência e direitos humanos

Marcelo Casal Jr./Abr

Uma nova presidente de Brasília (DF) Cerca de 8 mil universitários dos 27 Estados do país participaram do 50º Congresso da UNE. Foram 4.302 delegados com direito a voto, eleitos de forma direta nas universidades do Brasil. Cada delegado compõe uma das dezenas de campos políticos, em geral, ligados a um partido, que apresentaram suas teses. No entanto, os direcionamentos políticos da entidade já são definidos muito antes de o Congresso começar. O número de delegados presentes – e a forma como cada um se organiza – possibilita que as forças políticas consigam saber, inclusive, qual será o novo presidente da UNE antes mesmo de as eleições serem realizadas. Para os próximos dois anos, a chapa liderada pela União da Juventude Socialista (UJS) conseguiu, novamente, emplacar seu candidato a presidente. Com 65% do total de votos, numa disputa entre 10 chapas, Lúcia Stumpf foi eleita para ser a quarta mulher a comandar a UNE. Antiga diretora de relações internacionais da entidade, Lúcia é estudante do sétimo período de jornalismo das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo (SP), e tem a tarefa de encaminhar, junto ao resto da diretoria executiva, o que foi decidido nas plenárias. O discurso é de “radicalização das lutas” e de “consolidação do movimento estudantil na UNE”. Assim ela diz pretender presidir a entidade pelos próximos dois anos. “A

Danilo Ferreira

de Brasília (DF)

Lúcia Stumpf presidirá a UNE pelos próximos dois anos

Quanto

2/3

das universidades brasileiras estiveram representadas no Congresso da UNE UNE é a entidade máxima de representação do movimento estudantil universitário brasileiro hoje. Mais de dois terços das universidades do país estão aqui. Este foi o maior congresso e o mais aprofundado da história. Debatemos

questões como o meio ambiente e as comunicações, e aprovamos uma jornada de lutas pela educação. Vamos lutar contra o machismo, em favor dos direitos da mulher, pela abertura de creches nas universidades. A prioridade da UNE é defender a melhoria das universidades públicas do país, a regulamentação do ensino privado e a garantia de políticas que garantam a permanência nos estudos dos alunos de baixa renda”, declarou Lúcia. (ML)

Dentre as várias questões discutidas no 50º Congresso da UNE (Conune), as críticas à política econômica do governo federal receberam um destaque especial. A figura central de descontentamento está no presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, considerado como o “tucano a ser destituído do governo”. O “Fora Meirelles” foi a pauta da passeata e do ato político do dia 6, que começou na Esplanada dos Ministérios e terminou com papéis picados sendo jogados pelos funcionários do Banco Central em frente ao prédio da instituição.

Até mesmo o ator global Vitor Fasano participou do Congresso da UNE. Ele foi convidado para falar da defesa do meio ambiente Temas como meio ambiente e democratização da comunicação também ganharam força no 50º Conune e tiveram seminários próprios, com a participação até mesmo do ator global Vitor Fasano, membro do Movimento Amazônia para Sempre. Sobre o meio ambiente, a UNE reconheceu seu pouco acúmulo a respeito do tema e decidiu promover debates e seminários

com outras entidades e organizações para a defesa da biodiversidade nacional, em conjunto com uma campanha “A Amazônia é do Brasil”, pela defesa da floresta.

Mídia e violência

A entidade se mostrou crítica às políticas implantadas pelo Ministério das Comunicações e aprovou apoio a um sistema nacional de TV e rádio digital, além de se manter ao lado dos meios de comunicação alternativos. O uso de software livre e da licença Creative Commons (conjunto de licenças padronizadas para gestão aberta, livre e compartilhada de conteúdos e informação) também continuará a ser defendido. Sobre direitos humanos, na tentativa de evitar mortes de jovens da periferia por execução, foi aprovada a defesa da revogação da Lei de Crimes Hediondos e o fim do Caveirão, veículo utilizado em favelas do Rio de Janeiro pela Polícia Militar. O pedido de abertura dos arquivos da ditadura e punição dos envolvidos em crime de tortura foi mantido. Para os Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT), a UNE decidiu reeditar o projeto “Universidade Fora do Armário”, que trata do preconceito sobre orientação sexual. A plenária também decidiu instaurar o “1° Encontro de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais” como forma de discutir políticas para esse setor. (ML)


4

de 12 a 18 de julho de 2007

brasil

Luta contra transposição continua, garantem movimentos SÃO FRANCISCO Conferência do Consea aprova pedido para que governo federal suspenda imediatamente as obras João Zinclar

Tatiana Merlino da Redação MESMO APÓS o despejo do acampamento montado contra o início das obras da transposição do rio São Francisco, em Cabrobó (PE), dia 4, os movimentos opositores mantêm a luta contra o projeto. No dia seguinte à reintegração de posse da fazenda Mãe Rosa, os índios da etnia truká retomaram – com a ajuda de diversos movimentos sociais – outra área na região, a 8 quilômetros de Cabrobó. As reivindicações dos manifestantes são as mesmas do primeiro acampamento: a demarcação do território indígena e a paralisação das obras da transposição. A nova área ocupada é conhecida como fazenda do Tonho da Lalinha. Apesar de terem sofrido reintegração, os movimentos consideram que o acampamento que durou oito dias atingiu em parte seus objetivos. De acordo com Ruben Siqueira, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra da Bahia (CPT/BA), o acampamento conseguiu trazer novamente à tona a discussão de um assunto dado como encerrado. “O governo impõe esse projeto ao país, mas uma parte crescente da sociedade apóia a nossa luta e condena esse projeto”, diz o representante da CPT que afirma não estar descartado um novo acampamento para barrar as obras da transposição.

Obras paralisadas

Apesar do “marketing feito pelo governo”, Ruben assegura que as obras do Exército na região, que já eram praticamente nulas, agora estão paralisadas – muito em decorrência da ocupação da fazenda Mãe Rosa no dia 25 de junho. No dia 9, uma nova ocupação ocorreu na região. Dessa

Após o despejo do acampamento da fazenda Mãe Rosa, movimentos ocuparam outra área na região

Quanto

4%

Apenas da água que eventualmente venha a ser retirada do rio São Francisco, com a transposição, chegará aos que passam sede

vez, o povo indígena Tumbalalá, que vive na margem esquerda do rio São Francisco, realizou uma retomada de terras no município de Curaçá, na Bahia. O grupo protesta contra a transposição e quer a garantia da conclusão dos estudos

do Grupo Técnico de identificação de suas terras. A área da retomada fica próxima ao local onde está prevista a construção de duas barragens da obra da transposição. O povo Tumbalalá luta pela demarcação de suas terras há mais de 11 anos. Em 2003, a Funai montou um grupo para a identificação das terras, mas até hoje os trabalhos ainda não foram concluídos.

Suspensão das obras

Se de um lado os governadores dos Estados da bacia receptora deflagram uma campanha em defesa do pro-

jeto da transposição, de outro, 1.800 participantes da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar aprovaram, dia 10, um pedido para que o governo federal suspenda imediatamente as obras. Organizada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), a conferência tem representantes do governo e da sociedade civil, mas os governistas perderam na votação do documento final do encontro. Para o conselheiro Adriano Martins, a decisão revela o desejo da sociedade de que seja adotado um projeto que

se destine a melhorar a situação daqueles que sofrem mais com a falta d’ água. “A afirmação da água como direito fundamental, como um bem comum é indispensável para se pensar a segurança alimentar e nutricional”, defendeu. “Olhando o projeto atentamente percebemos que apenas 4% da água que seria retirada do rio chegaria a esses que passam sede”.

Direitos históricos

Em nota, os movimentos que participaram do acampamento afirmam que a imposição do projeto não res-

peitou os povos indígenas. “O desenvolvimento do Brasil nunca será verdadeiro nem legítimo se não reconhecer os direitos históricos dos povos indígenas”, diz o documento. De acordo com o texto, a repressão ao acampamento teve um aparato policial-militar semelhante ao de uma operação de guerra. “Foi irônico e trágico que ao mesmo tempo (em que havia o despejo) dois caminhões tenham sido assaltados perto dali, na BR-428. O crime prospera a despeito da maior presença repressiva do Estado.”

POLÍTICA ECONÔMICA

Economia cresce sem atender às Desemprego permanece renda achatada necessidades dos trabalhadores elevado, Taxa medida pelo IBGE em maio esteve em 10,1%; Produção industrial aumentou 4,4% nos primeiros cinco meses, mas a maior parte dos trabalhos gerados é de até três salários mínimos Eduardo Sales de Lima da Redação ATÉ MAIO, a indústria brasileira cresceu 4,4% em relação a igual período do ano passado. Apenas cinco setores contribuíram com 70,9% desse resultado, sobretudo os que produzem os chamados bens de capital, como computadores e veículos. Em 2006, a participação dos cinco setores mais importantes da indústria representaram 62,6% do crescimento.

mal nesses últimos anos. A partir dos anos 2000, há um acréscimo nas micro e pequenas empresas e também na indústria de transformação”, explica. A questão é que as vagas que surgem oferecem, em maioria, baixos salários. “O emprego de até três salários mínimos tem crescido fortemente e com uma dinâmica que depende diretamente dos gastos sociais do governo e, indiretamente, das exportações”, conclui Delgado. Segundo dados do IBGE, cresce tanto o nível de atividade de

“O setor de bens de capital é pouco expressivo para a questão do emprego. Não é um crescimento de um ou dois anos que vai fazer a diferença”, salienta José Dari Krein, da Unicamp Mas qual o reflexo do crescimento desse setor para a geração de empregos? “O setor de bens de capital é pouco expressivo para a questão do emprego. Não é um crescimento de um ou dois anos que vai fazer a diferença”, salienta José Dari Krein, da Unicamp. Além do crescimento desse setor, outro economista, Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também aponta o agronegócio como setor de baixíssima contribuição para emprego, apesar de obter lucros exorbitantes para os grandes empresários. “A parte positiva desse crescimento econômico é que tem acontecido um incremento no emprego for-

bens de capital para energia elétrica, quanto para construção, para transporte, para fins agrícolas e para fins industriais. Entre janeiro e maio deste ano, o setor de bens de capital já acumula um aumento de 16,5% na produção em comparação com o mesmo período de 2006. Em relação a maio do ano passado, a alta chega a 19,4%.

Flutuações

José Carlos Assis, economista assessor especial da Presidência do BNDES, analisa que o atual crescimento desses setores específicos da economia reflete oscilações momentâneas. “O que tem sido caracterizado

na economia brasileira nos últimos anos, sobretudo a partir das políticas monetárias e fiscais no fim da década de 1990, são flutuações de curto prazo. Ou seja, um ano o crescimento é muito baixo, às vezes é zero, no outro ano compensa, vai a 4%. Nada indica que isso seja sustentável. Evidentemente que, hoje, o fato de boa parte desse crescimento ter se concentrado nas indústrias de bens de capital é um bom indicador de tendência de que o investimento está subindo”, finaliza. Para Assis, a continuação da alta taxa de juros e a insistência na manutenção de grandes metas para o superavit primário revelam as forças recessivas no plano macroeconômico, o que é contrabalanceado justamente por esse “natural” aumento da produção industrial. “Se a economia está com uma taxa de crescimento muito baixa durante algum tempo, essa demanda vem acumulando. Há um momento em que ocorre um salto um pouco mais alto na produção corrente”, analisa Assis. Diferentemente da produção de máquinas, computadores e veículos, o setor dos bens intermediários, que representa 55% da produção industrial brasileira, subiu apenas 3,9%. Para especialistas, uma das razões desse pífio aumento é o fato de o impacto da valorização do real frente do dólar ter afetado o segmento. Tecidos e autopeças fazem parte desse grupo.

em dezembro de 2005, estava em de 8,3% Segundos dados do IBGE, a taxa de desemprego nas grandes regiões metropolitanas do Brasil, em dezembro de 2005, era de 8,3%. Em maio de 2007 ficou em 10,1%. A desocupação persiste, apesar do crescimento. Dados de 2005 revelam que há 96 milhões de brasileiros economicamente ativos. Desses, 33 milhões em empregos com carteira assinada. Apenas 17 milhões estão no emprego há mais de dois anos – ou seja, são estáveis. Entre 2001 e 2005, porém, a taxa de ocupação (proporção das pessoas de 10 anos ou mais que trabalham) elevou-se de 54,8% para 56,8%. Segundo o economista José Dari Krein, da Unicamp, os setores que criaram mais empregos são voltados para o mercado interno e tendem a contratar pessoas com menores salários, como alimentação. “Os setores básicos da indústria, voltados ao mercado interno, geram empregos pouco estruturados. Para reverter isso, deve haver um projeto de crescimento sustentável muito mais intenso do que vem ocorrendo e outras medidas que vão incorporando as pessoas no mercado de trabalho. Mais de 80% do proletariado ganha até dois salários mínimos.”, afirma Dari. A classe média também está sendo prejudicada. Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta a permanência de altas taxas de desemprego não apenas relacionadas aos mais pobres. O economista admite que as tendências do emprego seguem um

Quanto

80%dos trabalhadores recebem até dois salários mínimos

pouco na contramão de tudo que se havia dito no passado como sinônimo de melhoria do mercado de trabalho, como a educação e a capacitação. “O mercado de trabalho está tendo uma oferta muito grande de profissionais com educação universitária e, ao mesmo tempo, apresenta uma necessidade de profissionais com qualificação mais precária. Precisam de gente do ensino fundamental, mas tem oferta de mão-de-obra universitária, o que acaba nivelando por baixo o salário”, explica Delgado. Mesmo assim, o Estado parece almejar, ainda que suavemente, assumir as rédeas do cenário de desenvolvimento econômico. Segundo José Carlos de Assis, do BNDES, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi um passo importante para impulsionar o mercado do trabalho no Brasil. “Porque quebrou uma tendência. O governo vinha atuando sistematicamente em uma contenção absurda da inflação e o PAC muda a direção da economia”, aponta. Ele defende a necessidade de o governo federal seguir outros passos igualmente importantes em termos de ampliação do investimento público, pois “o investimento privado só aparece quando a demanda está muito alta”. (ESL)


de 12 a 18 de julho de 2007

5

brasil

População usa baldes para retirar a água de canal já construído

Fotos: João Zinclar

SEMI-ÁRIDO Pequenos agricultores cearenses, vizinhos do Canal da Integração, sofrem com a falta de recursos hídricos Tatiana Merlino enviada especial a Jaguaribara (CE) DEZ CARROS de polícia param bruscamente em frente da casa de Francisco Saldanha, em Jaguaribara (CE). O trabalhador rural se pergunta o que teria feito para mobilizar tamanho aparato. A resposta vem em seguida: – O senhor não pode mais pegar água do canal. Ela é para abastecer Fortaleza – diz um dos policiais. – Eu fui colocado aqui. Se tivesse outro lugar para pegar água, não tiraria daqui – responde o agricultor. Morador de uma área de reassentamento do Açude Castanhão, Saldanha, que é presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaguaribara, teve seu sítio desapropriado quando da construção da barragem e foi deslocado para uma área onde não há irrigação nem acesso à água. “Nossa única alternativa passou a ser o canal”, diz. Para dar de beber aos poucos animais que possui, Saldanha retirava água em baldes do Canal da Integração, até o dia em que os policiais estiveram em sua casa, e proibiram-no de retirar água dali.

Quanto

255

O canal terá quilômetros de extensão. Até agora, já foram construídos quilômetros

55

a água”, afirma. De acordo com ela, um de seus dois jumentos foi levado pelos seguranças porque estava solto perto do canal. “Eles ficaram apitando, depois levaram ele embora e nunca mais trouxeram de volta”. Além de ter perdido seu animal, Maria de Lourdes teve seu sítio dividido ao meio com a construção do canal. “Meus cajueiros ficaram do outro lado e é muito difícil para atravessar”, lamenta.

Francisco Saldanha, deslocado para área sem água e proibido pela polícia de tirá-la do canal

Desintegração

Apelidado pelas comunidades locais como “canal da desintegração”, por conta dos prejuízos que trouxe aos trabalhadores rurais da região, o Canal da Integração foi projetado para transportar as águas do Açude Castanhão, que receberá as águas provenientes do eixo norte da transposição do rio São Francisco, e irá reforçar o abastecimento da região metropolitana de

As famílias que tentam pegar água lá são ameaçadas de prisão e homens foram colocados em toda extensão para fazer a segurança. Chegaram até a instalar câmeras para vigiar o canal “Eles me disseram que, se quisesse reclamar, deveria ir até o prefeito. Mas esse projeto é do governo estadual e a responsabilidade é dele”, argumenta. Desde o dia que foi abordado pelos policiais, Saldanha nunca mais retirou água do canal. De acordo com ele, se os agricultores que vivem na região por onde passa o canal forem depender dessa água, “vão morrer de sede”. “Isso é um absurdo porque quando eles fazem a limpeza do canal, ele chega a sangrar e, enquanto isso, as pessoas passam por necessidades”, critica.

Vigiar e punir

Quando o Canal da Integração foi construído, em dezembro de 2004, a população cearense apareceria, no projeto, como uma das maiores beneficiadas dos R$ 900 milhões investidos. No entanto, apesar das promessas feitas no momento da desapropriação de terras para a construção da obra, os pequenos produtores estão sendo proibidos de captar água do canal. “As famílias que tentam pegar água lá são ameaçadas de prisão e homens foram colocados em toda extensão para fazer a segurança. Chegaram até a instalar câmeras para vigiar o canal”, afirma Diana Lúcia Vieira dos Santos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Fortaleza e do Complexo de Pecém. O canal tem 255 quilômetros de extensão e, até agora, já foram construídos 55 quilômetros, referentes ao trecho 1 da obra, que vai do Açude Castanhão até o município de Morada Nova. As obras relativas aos trechos 2, 3, 4 e 5 estão paralisadas desde novembro de 2006 por falta de recursos. Para pagar as despesas de manutenção do canal, a água será vendida, inclusive para a Companhia de Saneamento do Estado, que deverá cobrar esse custo da população. Financiado pelo governo do Ceará (35%), Banco Mundial (40%) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (25%), custo total da obra será de R$ 1 bilhão. As comunidades que vivem às margens do canal denunciam que ele servirá apenas aos interesses dos empresários do complexo industrial portuário do Pecém e de grandes projetos de fruticultura para irrigação. “Quando disseram que iam trazer água e desenvolvimento para a região, estavam iludindo o povo. Hoje, as comunidades continuam com carência de água”, afirma Diana, da CPT. Terezinha de Oliveira Rodrigues da Silva, moradora da comunidade de Baixo dos Cajueiros, em Jaguaribara,

Se hoje já reclamam quando vou buscar água de baldinho lá, imagina como vai ser quando chegar essa água [da transposição]. Não vamos nem poder olhar para ela As passarelas, com 1,20 metros de largura, construídas a cada 500 metros do canal, impedem a passagem de carroças no local, prejudicando o transporte dos agricultores. Maria de Lourdes Rodrigues da Silva, que mora na comunidade Lagoa Funda, também no município de Jaguaribara, conta que também foi repreendida por seguranças quando retirava água de balde no canal. “Eles disseram que o balde ia cair no canal e sujar

afirma ter medo da transposição do rio São Francisco. “Se hoje já reclamam quando vou buscar água de baldinho lá, imagina como vai ser quando chegar essa água. Não vamos nem poder olhar para elas”, diz. Logo após o término das obras, a mulher, que também teve parte de seu sítio desapropriado, colocou um cano ligando o canal até sua casa, “mas eles arrancam”. De acordo com ela, a família foi sondada para vender o resto da terra que tem.

Terezinha de Oliveira teme os efeitos da transposição do rio São Francisco

Para herdeiros do Castanhão, transposição trará mais prejuízo Obra, de 1985, transferiu comunidades que viviam à beira do rio para assentamentos com escassez de água enviada especial a Jaguaribara (CE) As comunidades que vivem próximas do Canal da Integração não se deixam enganar com a idéia de que a chegada das águas da transposição irá beneficiá-las. Ao contrário, elas temem as conseqüências do projeto pois já sofreram com os impactos sociais da construção, em 1985, do Açude Castanhão. “Ele deixou tantas mazelas que nosso povo não se ilude mais com esses grandes projetos. As promessas que estão fazendo hoje são as mesmas que foram feitas aqui na época da construção do açude”, recorda Diana Lucia Vieira dos Santos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Quando anunciou a construção da barragem do Castanhão, o governo prometeu a irrigação de 43 mil hectares de terra, alavancar a economia local por meio da agricultura, levar água para a capital Fortaleza e gerar energia. O resultado foi completamente diferente. As 4 mil pessoas atingidas pelo projeto não foram beneficiadas por uma política de reassentamento. “Elas foram jogadas em 20 reassentamentos sem estrutura, irrigação, emprego”, denuncia Francisco Orcélio Silva Muniz, da direção estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Proposta falaciosa

Muitas famílias da zona rural que estavam acostumadas a viver na beira do rio Jaguaribe foram realocadas em novas áreas sem ter conhecimento de como trabalhar na terra. “Eram pessoas que viviam na beira do rio, plantavam, tinham uma cultura de vazan-

tes. Quando houve essa mudança, a vida dessas pessoas ficou desestruturada econômica e socialmente”, analisa Muniz. De acordo com o dirigente do MAB, a proposta de desenvolvimento do governo era falaciosa. “Até agora estamos esperando esse desenvolvimento. Para nós, desenvolvimento é ter acesso à água, é ter projetos que possam trazer auto-sustentação econômica e financeira. É ter emprego e, na cidade, não tem. Aqui, temos ou funcionário público ou aposentado. A cidade é vazia. Questão de educação, saúde, é muito precário nos reassentamentos, não tem”, descreve. As comunidades da zona urbana que foram atingidas pelo Castanhão não participaram da tomada de decisões em relação aos impactos da obra. O governo do Ceará construiu uma nova cidade para os moradores de Jaguaribara, completamente diferente da antiga. “Aqui não tem emprego, nem o que fazer. Tem dias que não tenho dinheiro para fazer feira e nossa luz foi cortada várias vezes”, protesta Josefa Maria Alves, habitante do município.

Condições precárias

Segundo Zilda Torquato, moradora do assentamento Desterro, quando as famílias foram reassentadas, a precariedade era tão grande que, para ir a cidade mais próxima – a nova cidade ainda não havia sido construída –, os moradores tinham que caminhar 20 quilômetros a pé e depois pegar um ônibus até Jaguaribe. Para ela, que também é uma das lideranças do MAB, houve um empobrecimento das famílias que, de modo a sobreviver, tive-

ram que vender suas criações, vender lenha. “As casas só foram construídas depois de dois anos, com a pressão das famílias. No início, eu estava gestante, mas morava num armazém onde havia ratos e baratas”, lembra. Entre as reivindicações dos movimentos sociais que atuam na região, está a construção de adutoras ligando o Açude Castanhão aos reassentamentos. “Hoje, lutamos para sobreviver dentro desses reassentamentos e pela implantação de projetos de irrigação”, afirma a liderança do MAB, que lembra que 7% da água do Castanhão vai para a região da Chapada do Apodi [no Ceará e no Rio Grande do Norte], onde há empresas de fruticultura irrigada.

Mais desapropriações

De acordo com Muniz, do MAB, a região onde hoje vivem pequenos agricultores próximos ao Canal da Integração está ameaçadas de desapropriação. “Ainda há extensões de terra muito boas que não estão nas mãos dos grandes produtores, mas elas vão estar com a transposição. Com esse potencial hídrico para a região, os pequenos agricultores serão expulsos. Haverá mais gente sem terra, mais prejuízo”, prevê. Muniz afirma que a transposição vem para engordar os bolsos de quem já tem bastante dinheiro. Para Diana Lúcia Vieira dos Santos, da CPT, a maior prova de que esses grandes projetos não funcionam é o Castanhão. “Ele já mostrou que essas águas não são para nós, mas sim para os grandes. Nós, herdeiros do açude, temos todos motivos para sermos contra a transposição”, explica.


6

de 12 a 18 de julho de 2007

brasil

“O tráfico não começa nem termina na favela”, diz deputado SEGURANÇA PÚBLICA Para Marcelo Freixo (Psol), ações como a que ocorreu no Complexo do Alemão são ineficazes para o combate ao crime organizado e apenas aumentam a revolta das comunidades Nancy King

Nancy King

Brasil de Fato – Tarso Genro afirmou que estão previstas outras “megaoperações”. Qual sua opinião sobre isso? Marcelo Freixo – Se isso for verdade, o ministro terá que pegar o Plano Nacional de Segurança Pública de 2002, rasgá-lo e reescrevêlo. O que diz esse plano nada tem a ver com a ação que aconteceu no Complexo do Alemão. Se o governo federal anuncia que esse é o modelo padrão, terá que refazer o seu plano nacional porque é incompatível. Temos que saber se o que vale é a bravata política do momento para deixar a opinião pública mais favorável ou se é o documento de campanha, de governo. Primeiro, não houve ocupação. Não existe essa história de que o Estado retomou a ordem da favela, que retomou o controle. Isso é propaganda enganosa. O Estado fez uma megaoperação, matou pessoas, arrombou casas, saqueou comércio, prendeu 4 pessoas e saiu de lá. No dia seguinte, não havia um policial sequer dentro da favela. Não tem nenhuma presença do Estado caracterizada na favela. O tráfico continua da mesma maneira lá dentro. O que aumentou foi o nível de revolta das pessoas. É a legitimação do discurso da guerra? Esse discurso é parte do processo de criminalização da pobreza. Na guerra, no “vale tudo”, não há o parâmetro da lei. E se a guerra tem um espaço delimitado do território para acontecer, o território escolhido hoje é a favela. O Sérgio Cabral (governador do Rio pelo PMDB) diz: “quem viola os direitos humanos são os bandidos”. Ora, do bandido, eu espero bandidagem, o que não é possível é que a ação do Estado tenha como parâmetro a ação violenta do bandido. Quais outros inícios da criminalização da pobreza? A criminalização da pobreza ocorre com a consolidação do modelo neoliberal no Brasil. Ela é acompanhada de alguns pontos importantes, como o forte aumento da população carcerária. De 1995 a 2007, ela cresce 170%. São jovens pobres e negros que habitam favelas e periferias, o que é um claro indício dessa criminalização Há também uma justiça de classe. Operações como a Furação (da Polícia Federal) não conseguem manter ninguém preso por mais de um mês e, ao mesmo tempo, qualquer pessoa presa por um furto de celular fica dois anos na prisão. É uma Justiça que não fornece os mesmos prazos, os mesmos recursos para todas as pessoas e isso é marcado profundamente pela ques-

Carl Guderian CC

AS RECENTES declarações do ministro da Justiça, Tarso Genro, não deixam dúvidas. Ações policiais como a realizada no Complexo do Alemão, que deixou 44 mortos desde 2 de maio, 19 somente no dia 27 de junho, irão continuar. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o ministro afirmou que “a questão da pacificação e da reocupação do território é imprescindível”. As ações farão parte do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), ao qual será destinado, anualmente, uma verba de 1 bilhão. Em entrevista ao Brasil de Fato, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo (Psol), analisa os problemas decorrentes da efetivação dessas políticas.

Nancy King

Dafne Melo da Redação

A maquete Morrinho, que ocupa 300 m² na comunidade Vila Pereira da Silva, o Pereirão, e recria a realidade dos morros cariocas, com bonecos representando moradores, soldados do tráfico e policiais

Quando se diz que vai combater o tráfico e o faz apenas na favela, é porque você destinou aos setores pobres da sociedade o processo de culpabilização pelo crime. É uma opção política tão de classe. É um modelo de policiamento calcado na ação brutal e no conceito de guerra apenas nas áreas pobres, faz uma associação direta entre pobreza e violência, o que não se comprova mundialmente, pois países mais pobres que o Brasil são menos violentos. Há mecanismos legais também como “auto de resistência”. Qualquer pessoa morta pela polícia é registrada como auto de resistência. A pessoa morreu porque reagiu e, assim, o policial sempre é a vítima e quem foi morto, sempre o algoz. São inúmeros os mecanismos que constroem essa gama pública de criminalização da pobreza. Qual foi a razão de ser dessa megaoperação, então? Houve o episódio da morte de dois policiais nas redondezas, dia 1° maio. O governo começou a cercar o Complexo dizendo que ia declarar guerra ao tráfico de drogas. Nós sabemos que o tráfico de drogas não nasce nem termina na favela. As drogas não são produzidas na favela, nem as armas. A maior parte do consumo não é feito lá. Quando se diz que vai combater o tráfico e o faz apenas na favela, é porque você destinou aos setores pobres da sociedade o processo de culpabilização pelo crime. Você não age na produção, no lucro ou no consumo, e atua no meio, na mãode-obra barata do tráfico. É

uma opção política. O tráfico é algo absolutamente lucrativo. Agora, isso ganha a opinião pública. O secretário de Segurança Pública foi aplaudido de pé em uma apresentação recente da Marisa Monte. Entraram, mataram 19, e fizeram o discurso da ordem. É isso que uma parcela absolutamente intolerante da sociedade quer ouvir. Uma sociedade que vive no medo, reproduz intolerância o tempo inteiro. O resultado disso é, com certeza, o aumento da violência. Não será eficaz. Então essas ações não objetivam acabar de fato com a tráfico, mas apenas acalmar a opinião pública? No fundo, eles sabem que o tráfico não será extinguido a partir do que acontece nas favelas. O lucro do tráfico de armas e de drogas está na favela? Suponha que até se consiga acabar com o tráfico no Complexo do Alemão. O que isso altera no que diz respeito ao tráfico no RJ ou no Brasil? Nada. Para combater verdadeiramente essa atividade, você precisa atingir setores da elite. O dinheiro gerado pelo tráfico está no mercado financeiro internacional, ou seja, o dinheiro do tráfico envolve o dinheiro das elites políticas e econômicas deste país. O que deve nortear a política de segurança pública? Qual é a

alternativa ao que estamos vendo? O próprio Plano Nacional de Segurança Pública do Lula. Efetivar o que já está no papel, mas o governo não cumpre. Primeiro, investir na Polícia Federal, em seu aumento efetivo, na criação de uma ouvidoria, o que não houve até agora. Estabelecer uma parceria com as Forças Armadas para a proteção de fronteiras, evitando tráfico de armas e drogas. Há um tripé fundamental para qualquer programa de segurança. Primeiro: criar instrumentos

para combater a corrupção policial. Segundo: investir na inteligência de ação preventiva, com gestão integrada de governos federal, estadual e até municipal. Terceiro: aproximar as comunidades do poder público, inclusive no que diz respeito a perspectivas de segurança pública para esses moradores. A política deve ser calcada na inclusão, e não no apartheid. Isso não é novidade, já foi feito em inúmeros países da Europa, por exemplo. Como na Irlanda, investimento forte em ouvidorias que combateu sistematicamente a corrupção e fez a ação policial avançar e o país conseguiu índices impressionantes de diminuição da criminalidade a partir do momento em que conseguiu reduzir a corrupção policial e aumentou a credibilidade dessa polícia.

fatos em foco

A guerra não está presente apenas na retórica do governador do Estado do Rio Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB). De acordo com Marcelo Braga, da Central dos Movimentos Populares (CMP) e da Rede de Movimentos Contra a Violência, as tropas da Força Nacional de Segurança (FNS) que foram para o Haiti, onde o Brasil lidera a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), passaram por treinamento no Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), da Polícia Militar do Estado. “Isso confirma que o Estado aplica uma tática de guerra nos morros. Lá é uma força de intervenção estrangeira; aqui se coloca o Exército contra o próprio povo”, avalia. Braga ainda aponta que quando parte das tropas retornam, voltam a atuar nos morros. O fato foi confirmado por oficiais do Exército, em declarações à imprensa. O coronel Cláudio Barroso Magno Filho, comandante das tropas brasileiras no país, confirmou a informação, declarando que, do ponto de vista operativo, o Haiti tem sido uma ‘escola’. A diferença, aponta Braga, é que não há ocupação de fato nas favelas, mas apenas repressão. “É a política de sempre. Pobres, negros e favelados morrendo. Em média, a polícia carioca mata 3 jovens por dia. Imagina se todos esses jovens estivessem na rua, exigindo seus direitos? Matam para fazer controle social”, denuncia o ativista. (DM)

Como estão as investigações em relação às 44 pessoas que morreram desde 2 de maio? Acredita que houve execuções? Tudo indica que sim, pois há pessoas mortas com tiros pelas costas, por exemplo. Mas o problema não está só nisso. As investigações até podem comprovar o excesso, mas o importante não é detectar apenas a ação abusiva de um policial ou outro, mas a política de segurança que permite isso. Quem deu essa ordem? Quem legitimou isso? Quem construiu essa relação entre o Estado e a favela? Não é só caçar o policial que executou, ele tem que ser punido de acordo com que a lei determina, é evidente, mas tem algo a mais que é a construção de uma política que agora é assumida pelo Ministro da Justiça do país.

Quem é Marcelo Freixo é deputado federal pelo Psol, eleito em 2006; Freixo é Coordenador da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. É também pesquisador da ONG Justiça Global.

Hamilton Octavio de Souza

Versão semiótica Depois que um indicador internacional revelou que o mesmo sanduíche Big Mac, da rede de lanchonetes Mc Donald’s, custa mais caro no Brasil (3,61 dólares) do que nos Estados Unidos (3,41 dólares), a imprensa “brasileira” tentou justificar a diferença com a sobrevalorização da moeda brasileira diante do dólar. Pura enganação: se a matéria-prima e o custo da mão-de-obra são mais baratos no Brasil, a diferença de preço só pode ser decorrente de uma margem de lucro maior. Bingo! Vale tudo

Criada no governo FHC para fiscalizar o sistema privatizado de Saúde, a Agência Nacional de Saúde tem deixado o “mercado” atuar livremente, o que significa que as empresas do setor enfiam a mão no dinheiro do povo, mas nem sempre prestam os serviços que deveriam prestar. Metade das 1.584 empresas privadas de assistência médica não está de acordo com as normas definidas em 2001.

Lobby anti-Chávez

Guerra e repressão contra os pobres

O problema da corrupção na polícia não ocorre só no Rio. É estrutural? É estrutural e não há controles sobre setores da polícia, o que não quer dizer que se possa generalizar. Não há controle externo sobre as polícias, as corporações são completamente soltas. Você consegue um controle maior nas áreas mais nobres da cidade, mas nos guetos, onde não há Estado, nem preocupação, nem visibilidade, esse controle é invisível. A corrupção policial se torna sócia do crime.

As manifestações públicas contra a entrada da Venezuela no Mercosul vão desde a “bíblia” do neoliberalismo, a revista inglesa The Economist, passam pela Confederação Nacional da Indústria e alguns sindicatos empresariais ligados à Fiesp e chegam até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seus ex-ministros e apoiadores. Todos, é claro, com o apoio da imprensa “brasileira”.

Esquemão federal

Os dados são da Associação dos Magistrados Brasileiros: de 1988 para cá nenhuma autoridade foi condenada no Supremo Tribunal Federal embora tenham sido protocoladas 130 ações; da mesma forma, dos 333 processos abertos, apenas cinco resultaram em condenações. O esquema corporativo e de autoproteção das elites é mais eficiente nos níveis mais altos da hierarquia dos Três Poderes.

Gastos esportivos

Segundo o jornal Correio Braziliense, no primeiro semestre deste ano o governo federal gastou mais nas obras dos jogos Pan Americanos, no Rio de Janeiro, do que nos programas sociais de seis ministérios. Foram R$ 124,6 milhões no Pan contra R$ 103,4 milhões nos ministérios, sendo R$ 43,8 na Saúde, R$ 34,9 na Educação, R$23,4 no Desenvolvimento Agrário, R$ 726 mil na Previdência Social, R$ 399 mil no Meio Ambiente, e R$ 178 mil no Desenvolvimento Social.

Bandeira arriada

Em 2006, os movimentos sociais de esquerda não embarcaram nas denúncias de corrupção contra o governo federal e os candidatos do PT, porque identificaram a manobra eleitoral da direita e da imprensa conservadora para enfraquecer a própria esquerda; agora, no entanto, o silêncio dos movimentos sobre o caso Renan Calheiros é no mínimo estranho. Qual o interesse em manter no Senado um “coronel” corrupto de Alagoas?

Central comunista

Em sua 7ª reunião, dia 8 de julho, o Comitê Central do PCdoB aprovou uma resolução que apóia a Corrente Sindical Classista a buscar “um novo caminho para fortalecer a luta dos trabalhadores e a ação unitária, classista e plural de suas entidades”. Em síntese, significa que a CSC deve se desligar da CUT e apostar na construção de uma nova central sindical – mais autônoma e mais combativa.

Ataque europeu

A imprensa européia, geralmente comprometida com as políticas protecionistas, anda batendo pesado no etanol brasileiro. A BBC inglesa reproduziu para todo o continente as denúncias do jornal espanhol El Mundo, sobre a prática danosa ao meio-ambiente no cultivo da cana, e do jornal italiano La Republica, sobre a existência de trabalho escravo nas usinas de etanol no Brasil. O jogo é mais duro do que parece.

Apenas fachada

A liberação das usinas hidrelétricas do rio Madeira – desejada pela Companhia Vale do Rio Doce, empresários em geral, políticos em geral e a presidência da República – comprova que o Ministério do Meio Ambiente não passa de uma fachada civilizada num país dominado pelos interesses selvagens do capital. Mais uma vitória dos predadores da Amazônia!


de 12 a 18 de julho de 2007

7

brasil Fotos: Raquel Chaves

Em Itapipoca (CE), acampamento luta pela sobrevivência MOBILIZAÇÃO Ameaçados de perderem o acesso ao mar, de onde conseguem o seu sustento, assentados de Itapipoca (CE) montam acampamento para impedir que área seja tomada por empreendimento turístico Débora Dias de Itapipoca (CE) ERA AINDA madrugada quando cerca de 200 famílias levaram palha e madeira e montaram o acampamento Nossa Terra na faixa de praia próxima ao assentamento Maceió, município de Itapipoca (CE), a cerca de 190 quilômetros de Fortaleza. Há cinco anos, a comunidade local trava uma batalha na Justiça contra a instalação de um empreendimento turístico do empresário português Júlio Trindade, o “Júlio Pirata” como é conhecido o presidente da Fundação Pirata Marinheiros. As ações se acirraram com o início da perfuração de poços e eletrificação no local. O projeto prevê a construção de uma pousada um albergue, com capacidade para 90 hóspedes, e vai utilizar, no total, 165 hectares (leia mais no texto ao lado). Como estratégia de resistência, para impedir que qualquer obra seja realizada, desde 22 de fevereiro deste ano, a comunidade se alterna em três equipes para garantir a ocupação permanente da área de praia. Um primeiro acampamento foi feito na propriedade do empresário, mas retirado por força policial ainda em fevereiro. Logo em seguida, outro foi erguido mais próximo ao mar. “Todos ajudam. Os que não podem dormir colaboram de outras formas. Estamos juntos para manter o que é nosso”, explica Fran-

cisco Gaspar, pescador e integrante da comunidade. Em ação judicial, os assentados pedem a anulação do título de propriedade de terras do empresário e a garantia de acesso ao mar. Denunciam ainda que parte do terreno de 200 hectares reivindicado por Júlio Pirata é área de Marinha, uma vez que tem como limite o oceano. Declaram a área como fundamental para a sobrevivência do assentamento, que tem a agricultura e a pesca como atividades principais. No local, ainda sem qualquer edificação, fica o porto das embarcações de pesca, é realizada a coleta de algas marinhas pelos moradores para a venda, além de ser espaço de lazer das cerca de 800 famílias do assentamento e entorno.

INTIMIDAÇÕES

A presença constante de seguranças particulares e até policiais no assentamento também é denunciada. “As comunidades envolvidas têm sofrido intimidações, inclusive através de milícia armada, por se manifestarem decididamente contrárias à apropriação privada da faixa de terra litorânea para fins de turismo excludente”, diz trecho da nota divulgada por um conjunto de entidades solidárias à causa, entre elas, Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará (FDZCC), o Movimento Nacional dos Pescadores (Monape) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Mas quem mora no local diz que a conseqüência mais direta do conflito são as tentativas de cooptação e divisão dos assentados. “Onde ele chega (Pirata), quer desunir a comunidade. Tem um pequeno grupo daqui que defende o projeto deles. Conquista as pessoas com promessa de empregos, dá dinheiro mesmo”, conta Maria das Graças Nascimento, assentada. “Aqui, somos todos uma família, somos uma coisa só”, reforça a agricultora Maria Ferreira dos Santos. Segundo ela, é forte o sentimento de manter as famílias no local, principalmente os jovens, impedindo migrações para os centros urbanos. “Filho nosso não vai morar em favela, para ficar perto da violência ou se marginalizar”, acrescenta Maria das Graças. Elas contam que, desde que o conflito teve início, formouse um clima de tensão e desconfiança, principalmente com quem chega de fora. Mas também é crescente a força e a articulação do grupo, que conta com o apoio de diversas outras comunidades e movimentos cearenses, como o Fórum dos Pescadores e Pescadoras do Litoral Cearense (FPPLC), o Fórum Cearense de Mulheres (FCM), a Articulação de Mulheres Pescadoras do Ceará e a Associação Comunitária dos Moradores do Assentamento Maceió (Ascima). “A terra é a nossa mãe, o mar nosso pai. Sem um deles, ficamos órfãos. Essa é a nossa resistência e a nossa luta”, ensina Graça.

“Quem venceu o Tasso Jereissati, não perde para o Pirata” Essa é a palavra de ordem hoje do assentamento Maceió; a área foi conquistada em 1984 após disputa com o atual senador pelo PSDB e ex-governador do Ceará de Itapipoca (CE) Difícil dizer desde quando as famílias do assentamento Maceió vivem naquela terra. Maria das Graças Nascimento, 58, conta que os bisavós já moravam lá. Assim como os mais antigos na lembrança da agricultora, que também se assume como rendeira de ofício. Com seis filhos e um neto, ela também colhe algas marinhas compradas por uma empresa estrangeira. A renda é pouca por conta dos lucros do atravessador, mas ajuda, principalmente para as mulheres da comunidade. Graça conta que nasceu em “terra de patrão”. Toda área era propriedade de uma família, os Soares. “Os moradores tinham que dar dois, três dias de trabalho para o patrão. Não podiam plantar coqueiro, cajueiro, nem fazer casa de tijolo”, relata. Ela lembra de um morador que resolveu criar ovelha, plantar árvores e fazer um chiqueiro perto de casa. Mas logo foi descoberto pelo dono da terra e as benfeitorias desfeitas. “No dia dessa derru-

Faixa de areia onde as famílias montaram o acampamento Nossa Terra

Projeto tem apoio de empresários do turismo Empreendimento foi elaborado por Joaquim Cartaxo, atual secretário das Cidades do Estado do Ceará de Itapipoca (CE) O projeto Praia do Pirata conta com o apoio de entidades e organizações empresariais do setor do turístico cearense e de setores do governo estadual. Foi elaborado pelo arquiteto e hoje titular da Secretaria das Cidades do Estado, Joaquim Cartaxo, há seis anos. A esposa de Cartaxo, Fátima Bandeira, é diretora-geral da Fundação Pirata.

Em nota, grupo do empresário Júlio Pirata diz que está sendo vítima de “injúria” e “acusações infundadas” O projeto prevê uma pousada de 16 apartamento em área de 42 mil metros quadrados e um albergue com capacidade para 90 hóspedes em uma área de 34 mil metros quadrados de terreno. A construção vai utilizar, no total, 165 hectares. Em 16 de maio, o empreendimento foi aprovado pelo Fórum de Turismo do Ceará e vai ser encaminhado ao Conselho de Turismo do Estado. O Secretário de Turismo do Município de Itapipoca, Paulo Maciel, declara que a prefeitura é a favor do projeto. A assessoria de imprensa do grupo Pirata divulgou a nota “De mãos dadas com a verdade”. O texto afirma que o projeto e o

empresário estão sendo alvos de “injúrias e acusações infundadas” por parte de “instituições que se apresentam como representativas do movimento social organizado”. O empresário diz que o terreno foi adquirido em 1988, com escritura registrada em cartório e referendada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ele argumenta que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) não constatou irregularidade quanto ao uso e preservação dos terrenos de marinha, quando não há ocupação em faixa de terra. O grupo destaca o apoio de entidades locais, como a Federação dos Pescadores do Estado do Ceará (Fepesce), as Colônias de Pesca Z-18 e Z-3. Afirma ainda que o acesso dos pescadores à praia foi assegurado em acordo firmado desde o ano de 2002 com essas entidades. “Bem como, o apoio e compromisso com a melhoria das condições de pesca, através da construção de pontos de apoio no empreendimento (turístico)”, acrescenta. A nota registra que a área foi alvo de “depredação” por pessoas contrárias ao projeto. Com isso, justifica a contratação de empresa de segurança privada para a área. O empreendimento mais conhecido do grupo é o Pirata Bar, em Fortaleza. Mantém ainda a Fundação Pirata Marinheiros, entidade sem-fins lucrativos, fundada em 1991, com atuação nos municípios cearenses de Itapipoca, Fortaleza e Amontada. (DD)

Turismo sustentável versus grandes empreendimentos Maria das Graças Nascimento: bisavós já viviam ali

“Espero vocês, na festa da vitória”, convida a assentada Maria das Graças, cujos bisavôs já moravam no local ba, foi um dilúvio só. Era trovão, chuva, tiro”.

Desapropriação

As sementes de organização já estavam plantadas. O Estatuto da Terra fomentou as discussões sobre os direitos dos moradores a partir do fim da década de 1970. A comunidade contou com apoio da diocese de Itapipoca e da ONG Cetra, já nos anos de 1980. Os direitos de posse da comunidade foram garantidos por meio da desapropriação da terra feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e criação do assentamento Maceió em 1984. São 5.844,72 hectares conquistados onde hoje vivem cerca de 800 famílias. Atualmente, corre a palavra de ordem no local: “Quem venceu o Tasso Jereissati, não perde para o Pirata”.

Ainda na década de 1970, a terra foi dividida em herança e depois vendida para Jereissati, que mais tarde seria eleito governador do Ceará, em 1986 – hoje, é senador pelo PSDB. “Foi uma luta nessa época, de negociação mesmo. Diziam que ninguém podia mais trabalhar na terra, que agora era do Tasso”. Com sensibilidade, Graça demonstra a fortaleza em que o assentamento se transformou. Como principal conquista, a resistência. “Hoje podemos ter nossas benfeitorias. Tem cajueiro, coqueiro, todos têm moradia. Pode ter canoa, material para o pescado. Ninguém passa necessidade. Tem os problemas, mas eles se resolvem”. No fim da conversa, ela convida: “Espero vocês, na festa da vitória”. (DD)

Comunidade organiza evento para apresentar alternativa de desenvolvimento que responda às necessidades locais de Itapipoca (CE) A luta dos assentados de Maceió pelo direito de ter acesso ao mar não se resume ao acampamento montado para impedir as obras do projeto de Júlio Pirata. No dia 1º de julho, a comunidade do assentamento organizou o primeiro evento de promoção do turismo ecologicamente sustentável no local, em parceria com movimentos sociais e entidades de defesa da zona costeira. A proposta foi apresentar uma alternativa coerente com as necessidades da comunidade local ao turismo dos grandes empreendimentos, que impulsiona a especulação imobiliária e exclui as populações locais. Na programação, prática de esportes locais, trilhas, passeios de jangada, apresentação de grupos musicais, danças, teatro. A organização esperava cerca de 800 pessoas, mas a meta foi superada. Para chegar à praia, foram disponibilizados ônibus saindo de Fortaleza. Por R$ 15,00, os visitantes recebiam um kit com três águas de coco, bolos de milho e goma, pamonha, tapioca, mugunzá, almoço e uma pequena lembrança de artesanato. Da alimentação ao lazer, o cuidado em mostrar que é possível receber bem os visitantes, sem agredir o meio ambiente ou

Encontro busca alternativa coerente

trazer prejuízos e danos aos que moram na região. Para o pescador e assentado do Maceió, Francisco Gaspar, esse é o verdadeiro desenvolvimento para os moradores do local. “Queremos mostrar como podemos fazer um turismo ecologicamente sustentável, feito pelo nosso assentamento, sem precisar que venha alguém de fora”, explica. De acordo com ele, o objetivo é realizar eventos permanentes na área a partir dessa primeira experiência. (DD)


8

de 12 a 18 de julho de 2007

brasil

Dez anos de mais uma história de impunidade

Cartaz da Campanha

VIOLÊNCIA Documentário “Armas não atiram rosas” relembra o assassinato de dois trabalhadores sem-terra na Zona da Mata de Pernambuco; movimentos sociais cobram reabertura do inquérito policial Pedro Carrano de Curitiba (PR) FAZIA MENOS de um dia que os trabalhadores do Movimento Sem Terra (MST) se instalaram em uma fazenda de engenho de nome Camarazal, ao norte da Zona da Mata de Pernambuco, uma região onde o monocultivo da cana devastou a Mata Atlântica ao longo da História. A ocupação foi no dia 9 de junho de 1997. A área havia sido considerada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e os trabalhadores então a ocuparam para acelerar o processo de desapropriação. Testemunhas afirmam que viram o proprietário do engenho, Rui Costa Ramos de Andrade Lima, passar na frente do acampamento durante a tarde da ocupação. De madrugada, 30 pistoleiros atacaram o acampamento, atingiram a balas duas mulheres, feriram crianças, torturaram e assassinaram Augusto Pedro da Silva e Inácio José da Silva. Os pistoleiros atearam fogo nos barracos e destruíram todo o acampamento. Essa página da história do MST – ocorrida apenas um ano depois do massacre de Eldorado dos Carajás (PA) – completou seu décimo aniversário em 2007 e ainda não foi solucionada pela Justiça. A antiga fazenda pouco depois se tornaria um assentamento, batizado com o nome dos dois companheiros assassinados: Pedro Inácio. Testemunha do que ficou conhecido como o “Massacre de Camarazal”, Natalício Cândido da Silva foi um sobrevivente daquela madrugada. Ele conta que os assassinos levaram seus corpos para dentro de um carro e os dois agricultores foram encontrados dias depois, atirados no rio Capibaribe, na cidade vizinha de Paudalho. O sem-terra conta que o embate continua contra os senhores de engenho locais e a cultura da cana. Foram desapropriados até o momento 6 engenhos de açúcar, mas ainda existem

mais de 20 nos arredores do assentamento. O assassinato dos dois semterra segue vivo na memória coletiva, assim como as balas do crime ficaram até hoje dentro do corpo de trabalhadoras atingidas. Para Natalício, a memória dos seus companheiros mortos no Massacre de Camarazal é preservada com as mobilizações junto ao Poder Judiciário contra a impunidade. A memória é feita também de minutos de silêncio cada vez que as 79 famílias do assentamento Pedro Inácio celebram alguma atividade.

Inquérito

Os dez anos do Massacre estão sendo recordados com o lançamento do documentário “Armas não atiram rosas”, realizado pelo MST, junto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A película foi lançada no Recife, no dia 6 de julho, na sede do Ministério Público Estadual, como forma de pressão para que o inquérito seja reaberto e os resultados se tornem públicos. Maria Luíza Mendonça, uma das autoras do documentário “Armas não atiram rosas”, esteve presente no local dos crimes e narra que a região da Zona da Mata passou por um ciclo de expansão da monocultura da cana, desde os anos de 1970. A monocultura, segundo Maria Luíza, acabou com cerca de 40 mil lotes de pequenos produtores. Mas os engenhos de álcool entraram em decadência, com o fim do programa do governo conhecido como o PróÁlcool, que incentivava este tipo de cultivo. Daí a contradição entre as fazendas improdutivas e a grande quantidade de trabalhadores em busca da terra. Em meio a isso, os latifundiários tentam manter o seu status político e econômico. “Os donos de engenho, mesmo sem nenhuma produção, não perdem a influência política nem a sua legitimidade no Estado. E utilizam da violência para manter o seu poder”, comenta Joba Alves, da dire-

Qual o Caminho? Zé Pinto *

“Pena que as armas não atiram rosas, Assim, Eldorado seria um Jardim. Pena que o aroma não era de flores, Pois Camarazal não cheira a jasmim. Carandiru chora prisões inclementes, Candelária clama risos inocentes. O vento percorre cidades e campos E os pés imigrantes procuram seu canto E um velho poeta falou a essa gente, De portas na cara, de longas estradas, De quem uma casa nem tem pra morar. Justiça? Procuram, Mas onde é que está? Pois sempre escutam, do lado de lá, Um riso satânico de quem não tem planos, De por na cadeia quem manda matar. Matar nosso corpo, matar o sorriso, Matar o juízo de se libertar. Mas qual o caminho? Me vi perguntar. Que essa agonia não jogue semente, Na encruzilhada do desanimar. Mas numa canção juntar nossas mãos,Pra juntos trilharmos a mesma estrada, Plantando na marra uma poesia Que nos leve um dia ao mundo dos livres.” * poema que compõe o filme “Armas não atiram rosas”

ção do MST, em Pernambuco. Nos últimos anos, porém, a produção da cana voltou a se expandir no local, em uma associação entre as usinas e o capital dos grandes bancos, característica do chamado agronegócio.“Camarazal mudou o tom da luta pela terra em Pernambuco, os latifundiários mostraram que estavam dispostos a tudo”, avalia Maria Luíza.

Serviço Armas não atiram rosas Duração: 14 min Direção: Maria Luísa Mendonça e Thalles Gomes Roteiro: Joba Alves, Marluce

Melo, Maria Luísa Mendonça e Thalles Gomes Produção: Cássia Bechara, Ana Emília Borba e Natália Paulino Trilha sonora: Grupo Galante e Ivan Vilella

Para adquirir o vídeo em DVD, envie um e-mail para rede@social.org.br ou acesse o endereço: http://www.youtube.com/ watch?v=1p5RrTrTJFY

Inquérito foi arquivado após dois meses de Curitiba (PR) Passados dez anos do massacre, Camarazal segue ainda sem solução e o risco é o de que se passem mais dez anos, quando por lei encerrariam as possibilidades de um julgamento dos assassinos dos sem-terra Augusto Pedro da Silva e Inácio José da Silva. Roberto Rainha, advogado da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, analisa que os homicídios passaram por um curto processo de inquérito – apenas dois meses –, arquivado em seguida. “Trata-se de um processo de omissão por parte do Ministério Público, dos investigadores da polícia local e do Estado brasileiro”, acusa. Rainha classifica o Massacre de Camarazal como um despejo realizado pelo próprio proprietário do engenho, sem que a Justiça houvesse emitido ordem de reintegração de posse. A realidade de despejos forçados e perseguição aos trabalhadores do campo com o uso de milícias privadas não se alterou nesse período. Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que 1.716 fa-

mílias de agricultores foram despejadas no ano de 2006, no Estado de Pernambuco. No Brasil, apenas o Pará (2.294 famílias) e o Mato Grosso do Sul (1.800 famílias) tiveram um número maior de famílias afetadas. De 1997 para cá, segundo o mesmo estudo, o número de ocorrências de conflitos no campo pulou de 195, em 1997, para 761, em 2006. A impunidade salta aos olhos: de 1995 a 2006, quando 468 trabalhadores rurais foram assassinados, 109 no Nordeste e 39 em Pernambuco. Todos permanecem impunes, segundo informação do documentário “Armas não atiram rosas”. Uma das medidas do corpo jurídico da Rede Social que atua no caso é enviar para a Organização dos Estados Americanos (OEA) uma petição denunciando o Estado brasileiro por omissão. O próprio Estado reconheceu, em 2003, a responsabilidade no caso e agora o objetivo é que a investigação e o julgamento do Massacre de Camarazal sejam reiniciados, incriminando os responsáveis. “Embora se procure a OEA, a pressão é para que o caso seja julgado no Brasil”, ressalta Maria Luíza Mendonça, da Rede Social.

ENERGIA

Jornal Brasil de Fato e Via Campesina organizam debates sobre produção de agrocombustíveis O primeiro evento será realizado dia 12, em Cascavel (PR), e o segundo, dia 18, em Belo Horizonte (MG), com patrocínio da Petrobras Pedro Carrano de Curitiba (PR) O jornal Brasil de Fato e a Via Campesina vão promover, nos próximos meses, um ciclo de debates sobre a produção de agrocombustíveis no Brasil, com patrocínio da Petrobras. A primeira atividade será realizada na cidade de Cascavel (Paraná), no dia 12, durante a Jornada de Agroecologia, organizada pelos movimentos camponeses. Já o segundo evento está agendado para o dia 18, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

ton Viana, editor-chefe do jornal Brasil de Fato. O pano de fundo dessa iniciativa é a Lei nº 11.097/ 2005 que torna obrigatória, a partir de 2008, a adição de 2% de óleo diesel vegetal ao óleo diesel de petróleo comercializado no território nacional. Esse percentual deverá subir para 5% em 2013. O ciclo de debates – intitulado “Agroenergia no Brasil: suas Potencialidades e Desafios” – prevê a realização de, pelo menos, quatro encontros. Em todos, a metodologia será a mesma: haverá um representante dos movimentos sociais, outro da Petrobras e

“Sem a participação do Estado, os camponeses não têm condições de se inserir na produção de biodiesel”, afirma frei Sérgio Görgen “A questão dos agrocombustíveis está na pauta da sociedade brasileira. Como publicação comprometida com os movimentos sociais, consideramos fundamental aprofundar esse debate entre as organizações e a Petrobras”, explica Nil-

um pesquisador do tema. Para o evento realizado em Cascavel, está prevista a participação do engenheiro agrônomo Horácio Martins Carvalho, frei Sérgio Antônio Görgen (Via Campesina) e Hélio Seidel (Petrobras).

Para frei Sérgio Antônio Görgen, dirigente da Via Campesina no Brasil, o debate com a Petrobras tem o seu foco na perspectiva do pequeno produtor, sujeito diretamente interessado na produção do biodiesel. “Temos que discutir a função da empresa pública nesta época de transição energética”, explica frei Sérgio. A estatal é a maior produtora de diesel no território nacional e responde por 85% do total fabricado. O biodiesel é um combustível biodegradável que pode ser fabricado a partir de diferentes espécies vegetais, dentre elas, mamona, dendê (palma), girassol e soja. Pode substituir totalmente ou parcialmente o óleo diesel do petróleo em veículos automotores (como caminhões ou carros) e em motores para geração de energia, por exemplo.

Ampliar o debate

De acordo com frei Sérgio, entre os três principais objetivos do ciclo de debates está o de fazer com que as bases dos movimentos so-

ciais que compõem a Via Campesina tenham acesso à discussão sobre a produção de energia de matriz vegetal. Além disso, o ciclo de debates tem o intuito de chegar até a sociedade, ao tratar de temas urgentes como a atual crise do modelo energético e o aquecimento global. Por fim, frei Sérgio aponta a necessidade de estudar e entender o que ele chama de “projeto do grande capital em relação à biomassa”. “Precisamos conhecer o que o agronegócio está planejando quanto à produção de etanol e biodiesel”, afirma. Frei Sérgio enxerga a Petrobras como um espaço com o qual a Via Campesina há três anos vem debatendo sobre o modelo no qual vai se dar a produção energética do biodiesel, embora cada um tenha um projeto e uma visão autônoma sobre o assunto. “A Petrobras é um interlocutor importante e sem a participação do Estado os camponeses não têm condições de se inserir na produção de biodiesel”, afirma. Por meio de sua assessoria de imprensa, a empresa estatal in-

formou que considera o biodiesel uma “alternativa de combustível vital para o transporte e a geração de energia elétrica num futuro próximo.” O Planejamento Estratégico da companhia estabelece uma meta a ser atingida em 2010 de 481 mil m3/ano de biodiesel. Atualmente, a empresa está implantando as primeiras unidades de produção do agrocombustível em Candeias (BA), Montes Claros (MG) e Quixadá (CE). Na opinião de frei Sérgio, o sistema de produção do pequeno produtor é o único modelo viável hoje em dia para a produção de energia, porque destina pequenas áreas para a produção de matérias-primas vegetais para a energia, em conjunto com a produção de alimentos e a preservação da natureza. “Nos sistemas camponeses, a produção de alimentos não compete com a produção de matéria-prima para a energia”, atesta. A expansão das empresas do agronegócio, segundo o frei, deveria ser contida por uma legislação referente à biomassa, que garanta a sobrevivência do pequeno agricultor.


9

de 12 a 18 de julho de 2007

áfrica d_proffer

Memorial na Igreja Ntarama, onde cerca de 5 mil tutsis foram massacrados

França de François Mitterrand foi cúmplice do genocídio em Ruanda DIREITOS HUMANOS Jornal francês divulga documentos que provam que o governo do então presidente François Mitterrand, do Partido Socialista, sabia da preparação dos massacres; mesmo assim, manteve o apoio ao regime ruandês reprodução

Igor Ojeda da Redação DOCUMENTOS secretos do governo da França, divulgados no começo do mês, revelaram que o país, sob o comando do então presidente François Mitterrand (1981-1995), seguiu apoiando os líderes de Ruanda, responsáveis pelo genocídio que matou entre 800 mil e um milhão de pessoas entre abril e julho de 1994, mesmo ciente de que o massacre era iminente e estava sendo planejado com antecedência. Na época, o governo do país do Leste da África, comandado pela etnia hutu, preparou e executou o assassinato de civis da etnia tutsi e de hutus contrários ao presidente. Embora as causas do genocídio contenham elementos étnicos, muitos analistas apontam que estes foram exacerbados, de forma pensada, em nome de questões políticas. É a primeira vez que a forte suspeita desse suporte aos executores do massacre por parte da França é confirmada. Os documentos foram obtidos por advogados de seis tutsis sobreviventes, que estão processando o país europeu por “cumplicidade com o genocídio”, no Tribunal Militar de Paris. Telegramas e memorandos antes confidenciais, publicados pelo jornal francês Le Monde no dia 3, sugerem que o ex-presidente (morto em 1996, em decorrência de um câncer) estava obcecado com a ameaça da influência anglo-saxã sobre Ruanda, de língua francesa. Um dos argumentos que os líderes do chamado Poder Hutu usaram para “convencer” os civis hutus a se voltarem contra os tutsis foi o perigo representado pela Frente Patriótica Ruandesa (FPR), guerrilha formada por refugiados dessa última etnia que viviam há muitos anos em Uganda, de língua inglesa, e que tinha como objetivo destituir o governo de Ruanda (veja mais em matéria nesta página).

Mitterrand: obcecado com a influência anglo-saxã em Ruanda

Um conflito artificial Quanto

1 milhão

Cerca de de pessoas foram mortas em cem dias, entre abril e julho de 1994; uma média de 10 mil por dia outro memorando, dessa vez do diretor de Assuntos Africanos do Ministério de Relações Exteriores da França, Paul Dijoud, pede um fortalecimento complementar da presença militar francesa em Ruanda, pois “a guerra está pior e mais dura”. Como conseqüência, o fornecimento de armas aumentou. Em 19 de janeiro de 1993, outra mensagem diplomática, enviada pelo embaixador, não deixa dúvidas a respeito da ameaça de um genocídio planejado pelo governo ruandês ser

Um telegrama enviado ao governo francês três meses antes do início do genocídio alertava: “A população da capital facilitaria a eliminação de mil tutsis dentro da primeira hora depois do começo dos conflitos” Alertas desprezados

Um telegrama diplomático de outubro de 1990 – quase quatro anos antes do genocídio, quando a FPR entrou em território ruandês pela primeira vez –, enviado ao governo francês pelo adido de defesa do país em Kigali, capital de Ruanda, já alertava sobre o “número crescente de prisões arbitrárias de tutsis e pessoas próximas a elas. (...) É para se temer que a situação possa se degenerar em uma guerra étnica”. No dia seguinte, o então embaixador da França em Ruanda, Georges Martres, avisava: “Os hutus civis organizados pelo MRND (partido do presidente) intensificaram a procura de tutsis suspeitos nas colinas. Os massacres chamam a atenção no distrito de Kibilira”. Mesmo com tais avisos, o governo francês decidiu enviar militares à Ruanda para o treinamento das Forças Armadas do país. No começo do ano seguinte, as operações foram reforçadas. Em março de 1992,

posto em execução. O documento cita a afirmação de um informante local de que o presidente do país, Juvénal Habyarimana, havia sugerido “conduzir um genocídio sistemático usando, se necessário, a assistência do Exército, além de implicar a população local nos assassinatos”. Em um recado de 15 de fevereiro de 1993, Bruno Delaye, conselheiro do governo responsável pela África, alerta que a FPR é “capaz de tomar Kigali (a capital)”, e cita as dificuldades existentes na região, favoráveis ao mundo anglo-saxão, além da existência no país africano de um “sistema excelente de propaganda, apoiado por assassinatos horríveis cometidos por extremistas hutus”. Em 3 de março do mesmo ano, o general Christian Quesnot, comandante especial do Exército francês, propõe a Miterrand a incriminação da guerrilha através de uma “forte e imediata reorientação da informação da mídia francesa a respeito de nossa política em Ruanda,

lembrando os ataques severos aos direitos humanos cometidos pela FPR: massacre sistemático de civis, limpeza étnica, deslocamento da população etc”.

Uma hora, mil mortes

Três meses antes do início do genocídio, em 12 de janeiro de 1994, um telegrama diplomático enviado pelo embaixador em Kigali é taxativo: o plano começaria com uma provocação às tropas da FPR na capital, para estimular um ataque. “As vítimas ruandesas, que certamente surgiriam como conseqüência de uma reação como essa, seriam então uma razão boa o suficiente para uma eliminação física dos tutsis na capital. De acordo com o porta-voz da Unamir (a missão da ONU no país), 1.700 homens da milícia Interahamwe teriam recebido treinamento militar e teriam sido armados para tal propósito, com a ajuda do comando das Forças Armadas de Ruanda. A população da capital facilitaria a eliminação de mil tutsis dentro da primeira hora depois do começo dos conflitos”. Levando-se em consideração que, em cem dias, foram assassinadas 800 mil pessoas, chega-se ao número de pouco mais de 300 mortes a cada hora. No entanto, como a maior parte das vítimas foi dizimada nas primeiras semanas do massacre, é bem provável que a meta tenha sido alcançada. Em 6 de abril, a derrubada do avião do presidente Juvénal Habyarimana serviu como estopim. O genocídio se inicia. No fim do mesmo mês, Jean-Michael Marlaud, novo embaixador francês em Ruanda, sustenta a tese de que o conflito era espontâneo, e não planejado: “Enquanto a FPR tentar tomar o poder, eles (os hutus) irão reagir com massacres étnicos”. No dia 24 de maio, o general Quesnot alerta para o perigo que a FPR representaria para a estabilidade da região, afirmando que a guerrilha seria uma espécie de “Khmer Negro”, uma referência ao Khmer Vermelho, partido comunista do Camboja acusado de matar, entre 1974 e 1978, quando esteve no poder, cerca de 2 milhões de pessoas.

da Redação Protetorado alemão desde 1890, Ruanda foi entregue à Bélgica após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e permaneceu sob seu controle até 1962. A distinção entre as etnias tutsi e hutu foi exacerbada de forma artificial, segundo alguns analistas, pelos colonizadores belgas, através do destaque de diferenças físicas sutis, como, por exemplo, largura do nariz e altura. Os próprios ruandeses muitas vezes só se distinguiam uns aos outros pela carteira de identidade: antes do genocídio, ela trazia o nome da etnia a qual pertencia seu portador. “Eleitos” pelos belgas, que os consideravam superiores, os tutsis formavam uma elite política e econômica no país, enquanto os tutsis plebeus e hutus geralmente viviam na pobreza e sofriam inúmeras violências. Em 1959, estes últimos, através de uma série de ações e revoltas, tomaram o poder do reino ruandês e, em 1960, o país tornou-se uma República, por meio de um referendo organizado pela ONU. Após a independência, a França passou a se interessar pela nação do Leste africano, vista como um reduto frente às influências das vizinhas Uganda e Quênia, de língua inglesa. Em 1973, o hutu Juvénal Habyarimana toma o poder e mantém um governo de partido único até 1990, quando resolve instituir, após pressões internas e externas, o multipartidarismo no país. Desde a ascensão dos hutus ao poder, no entanto, os tutsis passaram a ser vítimas de uma série de massacres, assassinatos, estupros e queima de casas. Por essa razão, muitos deles, ao longo dos anos, refugiaram-se nos países e vizinhos e, inclusive, na Europa e nos EUA. Em 1986, exilados que viviam em Uganda fundaram a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), com o objetivo de tomar o poder e garantir o direito de retornar ao país.

Propaganda

Em 1990, a FPR começou a lançar ataques contra o governo de Ruanda, fazendo com que este pedisse apoio à França. O país de François Miterrand atendeu prontamente, enviando armas e soldados. Os líderes ruandeses, então, começaram a pôr em marcha um eficiente sistema de propaganda. Especialmente por meio de um jornal impresso e de uma rádio popular de grande alcance, passaram a afirmar continuamente que o objetivo da FPR era a eliminação física dos hutus, e que os tutsis vivendo no país apoiavam tal plano. Confrontos se seguiram até agosto de 1993, quando governo e guerrilha assinaram, em Arusha, na Tanzânia, um acordo de paz, que previa uma gestão compartilhada. Porém, o conflito seguiu. Em 6 de abril de 1994, o avião em que Habyarimana viajava foi derrubado. Essa data é considerada como o marco inicial dos massacres, que contaram com ampla participação civil. Inclusive armas rústicas, como facões e machadinhas, foram bastante utilizadas. Em cem dias, estima-se que pelo menos 800 mil tutsis e hutus contrários ao regime foram assassinados. Muitos ruandeses acusam a ONU de apenas observar o genocídio acontecer, e a França, além disso, de apoiar o regime responsável por ele. O país europeu argumenta que o envolvimento militar em Ruanda tinha como objetivo não o apoio ao presidente Habyarimana, mas sim ajudar na partilha de poder entre hutus e tutsis e conter o avanço da FPR, sob o comando de Paul Kagame, atual presidente. No ano passado, o país africano cortou relações diplomáticas com a França após um juiz francês ter acusado Kagame de ter ordenado o assassinato do ex-presidente Habyarimana. (IO)


10

de 12 a 18 de julho de 2007

internacional

A profecia de Alan Greenspan Reprodução

ECONOMIA Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão Jorge Beinstein ACABA DE ser conhecida a cifra definitiva do crescimento da economia dos Estados Unidos durante o primeiro trimestre de 2007. O dado inicial avaliado em 1,3% ao ano foi reduzido para 0,6%. Trata-se da taxa mais baixa dos últimos quatro anos, que confirma a tendência à desaceleração já iniciada no último trimestre de 2006. Quando, em fevereiro deste ano, Alan Greenspan, ex-titular do Federal Reserve (o Banco Central estadunidense), anunciou a possibilidade de os EUA entrarem em recessão antes do final de 2007 (sua observação coincidiu com a derrubada da Bolsa desatada pela queda da Bolsa de Xangai), choveram os desmentidos de especialistas e autoridades monetárias dos países centrais. Mas a realidade não pode ser exorcizada com manipulações midiáticas: a acumulação de deficits, a degradação do dólar e, sobretudo, o esvaziamento da bolha imobiliária tornavam inevitável o desenlace. A bolha imobiliária, peça-chave da estratégia econômica da administração Bush junto com a avalanche de gastos militares (com a loucura militarista que a acompanhou), e as reduções fiscais conseguiram tirar a economia estadunidense do estancamento inflando um consumo não respaldado pelo desenvolvimento produtivo local (a decadência do sistema industrial dos EUA já tem muitos anos). Somaram-se as dívidas internas e externas, os créditos fáceis (os destinados à moradia, em especial, cresceram de maneira desmesurada), o deficit energético, que se expandiu... no fim de 2006, a dívida total estadunidense (pública, empresarial e pessoal) chegava a 48 trilhões de dólares: mais de três vezes o Produto Interno Bruto e superior ao Produto Bruto Mundial. As dívidas com o exterior alcançavam 10 trilhões de dólares... a corda não podia ser estendida indefinidamente.

Tudo ruim

A estratégia do governo Bush pode ser sintetizada como a combinação de duas operações que, apoiando-se mutuamente, deveriam ter relançado e consolidado o poderio imperial dos EUA: a expansão rápida de uma bolha consumista-financeira para produzir uma forte decolagem econômica, associada a uma ofensiva militar sobre a Eurásia que lhes dariam a hegemonia energética global e, com isso, a primazia financeira, encurralando as outras potências (China, União Européia, Rússia). O governo Bush apostou, a partir de 2001, em uma contundente vitória de suas Forças Armadas que lhe permitiria controlar militarmente a faixa territorial que vai dos Bálcãs, no Mediterrâneo Oriental, até o Paquistão, atravessando Turquia, Síria, Iraque, Irã, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, a bacia do Mar Cáspio, Afeganistão, revestindo-a de instalações militares que vigiariam um complexo de protetorados em forma de leque.

O governo Bush apostou, a partir de 2001, em uma contundente vitória de suas Forças Armadas que lhe permitiria controlar militarmente a faixa territorial que vai dos Bálcãs, no Mediterrâneo Oriental, até o Paquistão Os preparativos da ofensiva haviam se desenvolvido ao longo dos anos de 1990, sob governos republicanos e democratas: a primeira Guerra do Golfo, os intermináveis bombardeios sobre o Iraque durante toda a década, a Guerra de Kosovo. Tratou-se de uma “política de Estado” que incluiu os dois partidos governantes e o conjunto do sistema de poder. Eles sabiam que a bolha econômica lançada paralelamente à ofensiva militar não podia se sustentar por muito tempo. Os desajustes financeiros se acumulariam e a bolha de créditos dando guarida à especulação imobiliária terminaria por se esvaziar: 2005-2006 apareceria como uma barreira temporal intransponível. Mas, nesse momento, apostavam os falcões, a vitória militar do Império permitiria redefinir as regras do jogo econômico do planeta, os cowboys do Pentágono chegariam bem a tempo para auxiliar os magos das finanças. Mas tudo saiu mal; os cowboys se atolaram no Iraque, a ofensiva fulminante sobre a Eurásia fracassou na primeira batalha importante, e enquanto isso o globo especulativo entrou em crise e nenhum punho de ferro pôde salvá-lo.

Sinal de alerta

Desde 2005, especialistas de caráter ideológico muito diverso começaram a alertar acerca do próximo esvaziamento da bolha imobiliária, em agosto desse

Presidente Bush acena na porta do avião presidencial Air Force One

Os falcões apostavam que a vitória militar do Império permitiria redefinir as regras do jogo econômico do planeta, os cowboys do Pentágono chegariam bem a tempo para auxiliar os magos das finanças. Mas tudo saiu mal; os cowboys se atolaram no Iraque ano. O The Economist assinalava as conseqüências mundiais da inevitável contração do globo especulativo (1). Mas, nos EUA, onde a brecha dos empréstimos imobiliários e os ingressos pessoais cresciam sem parar, a festa financeira seguiu imperturbável em relação aos alertas, ditando o ritmo das outras potências econômicas. O contágio chegou a regiões muito estendidas da periferia. Finalmente, em 2006, os preços das moradias começaram a cair, a bolha estadunidense se contraía inexoravelmente: a partir desse momento, seu impacto negativo sobre a demanda e depois sobre o conjunto do Produto Interno Bruto seria só questão de tempo. Até o fim de 2006, apareceram os primeiros sintomas de desaceleração econômica, que se tornaram dramáticos durante o primeiro trimestre de 2007. Em fevereiro, produziu-se uma sacudida nas bolsas internacionais, afetando em primeiro lugar a China, país extremamente dependente da capacidade de compra do mercado estadunidense. Agora, ao se estimar o ano de 2007, independentemente de altos e baixos e de efêmeras recuperações, a questão central é como e a que ritmo se propagará o esfriamento do conjunto da economia mundial. Por exemplo, como afetará os preços das matérias-primas, em primeiro lugar o petróleo, empurrado para cima pelo processo de redução de reservas (a proximidade do auge produtivo global) e pressionado para baixo pela desaceleração dos grandes sistemas industriais. Enfrentaremos brevemente uma recessão com queda geral dos preços ou então uma combinação de recessão e inflação parecida à “estagflação” dos anos 1970? Assistiremos a grandes contrações de negócios financeiros ou a sua combinação com surtos especulativos (por exemplo, euforias nos mercados de metais preciosos)? Enfim, quais serão as conseqüências políticas, militares e ideológicas dessa grande perturbação do capitalismo mundial? De uma coisa devemos estar seguros: essa crise não se parece a nenhuma das anteriores: esse nível de hipertrofia financeira nunca antes havia sido alcançado. Também é inédito o grau de interdependência entre todas as grandes economias e, além disso, misturam-se perigosamente aspectos característicos de uma crise de sobreprodução com outros próprios de uma situação de subprodução de produtos decisivos para a sobrevivência do sistema. Esse último se expressa por ora somente no tema energético, mas o mesmo está impulsionando outras penúrias, por exemplo, a de alimentos, devido ao

uso de terras cultiváveis na produção de agrocombustíveis.

Mais além das conspirações

Seria ingênuo atribuir a crise à aplicação de uma “estratégia errônea” por parte da Casa Branca. Devemos inserir tal estratégia no contexto mais amplo da decadência da sociedade estadunidense e a mesma como parte (decisiva) de um processo de crise global. Se enfocamos o médio prazo, desde o começo dos anos de 1990 (fim da Guerra Fria), observamos como a economia dos EUA se foi convertendo em um sistema baseado na especulação financeira, e o deficit comercial, ao que se agregaram o deficit fiscal e as dívidas de todo tipo, em um processo geral de concentração de ingressos. Em suma: uma dinâmica elitista e parasitária cuja primeira etapa teve uma certa aparência “produtivista” em torno das chamadas “indústrias de alta tecnologia”. Seu motor foi a euforia nas bolsas e as célebres “ações tecnológicas” expressadas no índice Nasdaq, que cresciam vertiginosamente. Os especialistas-comunicadores da época assinalavam que um círculo vicioso que empurrava a economia estadunidense em direção a uma sorte de prosperidade infinita havia sido posto em marcha. Segundo eles, a expansão do consumo dava fôlego a novos desenvolvimentos tecnológicos que impulsionavam a produtividade e, em conseqüência, os ingressos e depois o consumo etc. Na realidade, o que estava ocorrendo era uma euforia nas Bolsas que proporcionava ingressos financeiros futuros a empresas e indivíduos, incitando-os a gastarem mais e mais. A festa terminou no começo da década atual e a economia estancou. A nova administração não encontrou outra saída que uma nova bolha, muito maior que a anterior, dessa vez baseada em uma avalanche de créditos imobiliários. Junto com o delírio financeiro, desenvolveram-se outros fenômenos, como a criminalidade e a criminalização estatal das classes baixas (principalmente de algumas minorias como a dos latino-americanos e afro-americanos pobres) ou a degradação do sistema político (corrupção, submissão a grupos de negócios ascendentes). Especialmente, afiançou-se uma convergência de interesses que foi reconfigurando o tradicional “complexo militar-industrial”, para transformá-lo em uma ampla rede de grupos financeiros, petroleiros, industriais, políticos, militares e paramilitares mafiosos. No início desta década, produziu-se um salto qualitativo re-

presentado pela chegada de George W. Bush e seus falcões. Em um enfoque de mais longo-prazo, desde o fim do padrão dólar-ouro (1971) e a crise planetária que se seguiu, observamos uma crise de superprodução global que foi postergada, remendada, sobre a base da expansão dos negócios financeiros e do superconsumo estadunidense inscrito em uma corrente mundial de concentração de ingressos. A aventura militar-financeira não foi uma intempérie ou um desvio neofascista do sistema de poder dos EUA, e sim um desdobramento estratégico lógico (fortemente impregnado de componentes fascistas) do núcleo central de poder estadunidense que, desse modo, prolongava, acentuava, as tendências econômicas, ideológicas e políticas dominantes. Que foram crescendo até se tornarem hegemônicas desde a presidência de Reagan, passando por Carter, Bush pai, Clinton, até chegar aos auto-atentados de 11 de setembro de 2001 e a invasão do Iraque.

O fim das ilusões

A prosperidade fictícia do Império forjou, sobretudo nos anos de 1990, a ilusão de um poder mundial avassalador diante do qual só era possível se adaptar. Surgiu uma direita global triunfalista, que cobriu a orgia financeira com um discurso “neoliberal”, mas também um progressismo cortesão que, sobre a base da submissão ao capitalismo, pretendia enfeitá-lo com matizes humanistas. Tanto para uns, quanto para outros, a vitória do universo burguês era definitiva ou pelo menos de duração muito longa. Mas, quando, ao se iniciar esta década, começaram a despontar as primeiras fissuras do sistema, optaram em geral por negar fanaticamente a realidade: o declínio do dólar ou o superendividamento estadunidense eram apresentados como expressões de uma recomposição positiva do capitalismo global em marcha, a anarquia financeira como o ocaso da especulação, superada por uma próxima reconversão produtivista da economia de mercado. Enfim, cada mostra de fracasso era transformada em demonstração de rejuvenescimento. É possível que isso siga ainda mais um certo tempo; inclusive o declínio dos EUA e de outras potências arrastadas pelo gigante pode dar lugar a ilusões passageiras em relação à ascensão de capitalismos nacionais ou regionais autônomos na periferia ou reconversões milagrosas de algumas economias centrais. O truque de substituir realidade por desejos ilusórios costuma dar bons resultados em curto-prazo. O problema é que as grandes tendências da história terminam por se impor. (1)“The global housing boom. In come the waves”, The Economist, 16 de junho de 2005 Jorge Beinstein é economista, professor da Universidade de Buenos Aires; jorgebeinstein@yahoo.com


de 12 a 18 de julho de 2007

11

meio ambiente

Movimentos prometem lutar contra usinas no rio Madeira BARRAGENS Projetos orçados em mais de R$ 20 bilhões trarão prejuízos para população local e lucros para transnacionais Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) A OCUPAÇÃO de um canteiro de obras da transposição do rio São Francisco, em Pernambuco, encerrada no dia 4, é o exemplo que poderá delinear a resistência contra a construção de duas hidrelétricas no rio Madeira, em Rondônia. A afirmação é do integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Gilberto Cervinski, para quem a construção das usinas de Jirau e Santo Antônio, além dos impactos sociais e ambientais, revela uma ofensiva de grandes transnacionais sobre a Amazônia.

O governo federal afirma que as duas usinas gerarão 6.450 megawatts, o que corresponde à metade da potência da usina de Itaipu e a 8% da demanda nacional. Mas a demanda nacional de energia, para o MAB, é apenas o pretexto para a construção das hidrelétricas do Madeira. “Liberar as obras no rio Madeira significa liberar a construção de obras na Amazônia e utilizar o seu potencial energético, aliado à proximidade das reservas mineralógicas”, aponta Cervinski. No dia 9, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) concedeu a licença prévia, atestando a viabilidade ambiental das hidrelétricas. Trata-se da primeira etapa do processo de libera-

ção, que ainda exige uma licença de instalação, para o início da construção, e uma licença de operação, para o funcionamento do empreendimento. Com a licença prévia, concedida à estatal Furnas Elétricas, a obra já pode ser leiloada.

drovias na bacia do Madeira, o que facilitaria o escoamento de minérios – especialmente a bauxita – e de soja. “O nosso rio Madeira terá suas águas privatizadas”, resume o MAB, em nota divulgada no dia 10.

Norte brasileiro não está entre as suas prioridades. Beneficiadas pelos altos preços nas tarifas de energia no Brasil, as empresas deverão produzir energia a baixo custo nas usinas do Madeira, vendendo por altos preços à população. De acordo com cálculos do MAB, considerando o valor de R$ 130 por megawatt dos leilões de energia no Brasil e a capacidade de 4.051 megawatt/hora nas usinas do Madeira, a empresa que controlar a obra vai faturar R$ 530 mil a cada hora. A energia necessária para as indústrias de alumínio, minério e celulose, por exemplo, viria das usinas estatais, cujos preços são mais baixos. O projeto também prevê a construção de eclusas e hi-

Rios de dinheiro

Para o MAB, pelo menos cinco grandes empresas estariam interessadas nas obras: Alcoa, Votorantim, Billington Metais, Suez/ Tractebel e Vale do Rio Doce. São empresas que atuam também na produção de alumínio, venda de água, produção de celulose, entre outras indústrias que necessitam de alta carga de energia. O bem-estar da população do

Cobiça internacional

Cervinksi explica que a crise mundial de energia está atraindo para países como o Brasil as indústrias que, nas suas nações de origem, já não têm condições de consumir tamanha carga de energia. “O nível de consumo de energia das empresas é muito alto. Com a crise do petróleo, elas estão fechando suas indústrias lá fora e transferindo para países onde há oferta de energia”, afirma. De acordo com o dirigente do MAB,

o Brasil teria uma capacidade ociosa de 72% de produção de energia nos rios. Estudos do governo federal dão conta de que o país ainda pode ter 1.443 hidrelétricas, cerca da metade na região Amazônica. No caso das usinas de Jirau e Santo Antônio, o MAB estima que serão atingidas cinco mil famílias da região, que terá 500 km² de área inundada. O estudo de impacto ambiental fala em 2,8 mil pessoas mas, segundo o movimento, estão sendo contabilizadas apenas as pessoas que possuem título de propriedade sobre as terras. “E os arrendatários e posseiros, que são a grande parte? Esses não são considerados gente. Vai ser terrível do ponto de vista social”, diz Cervisnki.

SÃO PAULO

Resistência ao racismo ambiental

Na busca por lucro, Antonio Ermírio ignora desastre ambiental

Movimentos preparam mobilização massiva para o dia 27, na Assembléia Legislativa de São Paulo de São Paulo (SP)

Eduardo Furlan

Construção de barragem no Vale do Ribeira vai inundar grande extensão de Mata Atlântica e atingir indígenas e quilombolas Rui Kureda de São Paulo (SP) No início deste mês, a realização de audiências públicas nas cidades de Cerro Azul, Adrianópolis (PR), Ribeira e Eldorado (SP) trouxe à berlinda o polêmico projeto da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto). No dia 10 (após o fechamento desta edição), mais uma audiência estava prevista, dessa vez na cidade de Registro (SP). Na verdade, estes são apenas os mais recentes episódios de uma guerra que se arrasta há quase duas décadas, envolvendo, de um lado, o mega-empresário Antonio Ermírio de Moraes, presidente da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), e, de outro, comunidades quilombolas, indígenas, populações ribeirinhas, ambientalistas e movimentos sociais, como o Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab).

Usina para Ermírio

O empresário Antonio Ermírio é conhecido por sua campanha contra os licenciamentos ambientais, vistos por ele como obstáculos ao desenvolvimento. E a sua trajetória demonstra que a sua prática é coerente com o seu discurso: não faltam denúncias de agressões ao meio ambiente. Em 2005, por exemplo, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a ONG Terra de Direitos denunciaram formalmente a CBA e a Alcoa Alumínios S.A. junto à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sob a acusação de violação de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais na construção da Usina Hidrelétrica de Barra Grande, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Ao longo dessas duas décadas, Ermírio viu suas tentativas de obter a licença prévia para a construção das Usina de Tijuco Alto serem frustradas várias vezes. A última delas foi em 2003, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) rejeitou o estudo de impacto ambiental (EIA) apresentado pela CBA por considerá-lo incompleto. Mas ele não se fez de rogado e iniciou estudos para a

Ato contra construção da hidrelétrica de Tijuco Alto

elaboração de um novo EIA, que foi entregue ao Ibama em outubro de 2005. Para o empresário, a demora na liberação de licenciamentos ambientais para a construção de usinas hidrelétricas deve-se à falta de “coragem e competência” do governo. A tenacidade com que vem insistindo no projeto da UHE Tijuco Alto, entretanto, não se explica por qualquer apreço ao “progresso” ou ao “desenvolvimento”. A CBA tem planos de expandir em 30% a produção de alumínio na sua unidade no município de Alumínio (SP). Ao mesmo tempo, pretende manter o nível de auto-suficiência energética que é hoje cerca de 60%. A usina, caso seja construída, teria a finalidade única de proporcionar energia abundante e barata para a sua empresa. Este é um dos pontos mais atacados pelos movimentos sociais como o MAB, que denuncia o modelo energético vigente por seu caráter concentrador que privilegia as empresas em detrimento das necessidades da população.

Catástrofe ambiental

Os impactos da UHE Tijuco Alto são imensos. Bastaria lembrar que o Ribeira de Iguape é o último grande rio de São Paulo sem barragens e que o Vale do Ribeira, considerado Patrimônio Natural da Humanidade desde 1999, comporta 21% do que resta

Quanto

11 mil

hectares de Mata Atlântica seriam inundados com a construção de Tijuco Alto da Mata Atlântica de todo o país. A construção da barragem causaria um dano enorme à vegetação e fauna locais, resultando num alagamento de 11 mil hectares de floresta. Mas seus impactos vão muito além dessa conseqüência evidente. No passado, uma das principais atividades econômicas do Vale do Ribeira foi a mineração e extração de chumbo. Ainda persistem resíduos na região e, caso a barragem seja construída, todo o rio pode ser contaminado, colocando em risco a vida das populações ribeirinhas, além dos animais e peixes. Além disso, um fato pouco conhecido são os danos que a barragem causaria ao Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá. As cidades de Iguape, Ilha Comprida, Pariquera-Açu e Cananéia recebem grande quantidade de sedimentos e nutrientes dos rios da região, em particular do rio Ribeira de Iguape. Finalmente, os planos da CBA não se restrinjem à construção da UHE Tijuco Alto. Mais três usinas seriam construídas.

Julianna Malerba, secretária da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e técnica do projeto Brasil Sustentável e Democrático, aponta uma outra dimensão da luta contra barragens. Para ela, o projeto de construção da UHE Tijuco Alto revela “a exclusão histórica a que vêm sendo submetidos os grupos étnicos no nosso país que, ao sofrerem, de forma desproporcional, os impactos ambientais dos projetos de desenvolvimento, vêm sendo vítimas do que podemos chamar de racismo ambiental”. No artigo “Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor”, a historiadora Tania Pacheco explica que racismo ambiental é o nome dado às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre as etnias e populações mais vulneráveis. “O racismo ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que tenha lhe dado origem. [...] O conceito de racismo ambiental nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civilizatório, por uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e cidadania ativa não sejam direitos de poucos privilegiados, independentemente de cor, origem ou etnia”, aponta.

Patrimônio paulista

No final de junho, foi aprovado um projeto de autoria do deputado estadual Raul Marcelo (Psol-SP) que transforma o rio Ribeira de Iguape em patrimônio histórico, cultural e ambiental de São Paulo. No entanto, o projeto deve ser sancionado, pelo governador José Serra (PSDB), para que entre em vigor. Raul Marcelo afirma que elaborou o projeto tendo em mente, em primeiro lugar, a necessidade de preservação ambiental do rio e, conseqüentemente, do Vale do Ribeira. E, em segundo lugar, pela preserva-

ção social e cultural das comunidades quilombolas e indígenas da região. “É preciso organizar um amplo movimento para pressionar o governo a sancionar o projeto”, coloca. A necessidade de manter a resistência organizada é compartilhada por todos os ativistas e movimentos sociais da região. As audiências públicas foram palco de debates importantes, com um bom grau de mobilização popular, principalmente em Eldorado (SP). A expectativa é que em Registro (SP), onde se espera um confronto mais agudo, a mobilização seja ainda mais ampla.

Descrença no Ibama

Mas, apesar de considerarem que o debate político tem sido favorável nas audiências públicas, há um consenso de que a principal garantia de vitória está na continuidade e na intensificação da mobilização. Há pouca ou nenhuma ilusão em relação ao Ibama, que tem sido criticado por adotar uma postura parcial. Sobre isso, questiona-se o fato de que técnicos do Instituto estiveram juntos aos técnicos da CBA, quando esta iniciou as avaliações de impacto ambiental em 2004. Também há críticas pelo fato do Ibama não ter exigido da CBA um estudo de impacto ambiental mais abrangente, que abarcasse toda a bacia hidrográfica. Também não houve preocupação em realizar um estudo de impacto sobre as comunidades locais. No dia 27, haverá uma audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. A expectativa do movimento é garantir uma participação massiva na ocasião, para conquistar mais uma vitória política do movimento contra a barragem de Tijuco Alto. Segundo Angela Biagioni, da coordenação do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab), o rio faz parte da vida do povo do Vale do Ribeira. “O lema do Moab é ‘Terra, sim. Barragens, não’. Não existe negociação com o Ibama e nem com a CBA. Não queremos a barragem e ponto. Vamos resistir até o fim”, promete. (RK)

Vale do Ribeira: miséria social, em vez de desenvolvimento O Vale do Ribeira é uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo. A sua população, composta por remanescentes de quilombos, indígenas, caiçaras e populações ribeirinhas, vive sobretudo da agricultura de subsistência. A construção da usina não resultaria em nenhuma melhora para os seus habitantes, que não usufruiriam de nenhum watt da energia gerada em Tijuco Alto. Milhares seriam expulsos de suas terras, levados às periferias de cidades onde, além de viver em condições precárias, não teriam como garantir seu sustento trabalhando a terra. Casos assim já são uma realidade, conforme denúncias feitas nas audiências públicas. Angela Biagioni, da coordenação do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab), conta que, em uma das audiências, moradores de Juquiá (SP) denunciaram que, depois de construída a

barragem, a pobreza e a miséria aumentaram. “Isso mostra que, quando a CBA diz que a barragem vai trazer desenvolvimento para a região, está mentindo. Nas audiências do Paraná, principalmente em Cerro Azul, foram feitas denúncias de que a empresa teria forçado moradores a venderem as suas terras. Muitas dessas pessoas acabaram morando na periferia, em favelas”, revela. Tampouco as obras gerariam emprego, como afirmam os representantes da CBA. O próprio EIA apresentado pela empresa atesta que seriam gerados 60 empregos fixos que, por suas características técnicas, dificilmente seriam ocupados por moradores do Vale do Ribeira. A empresa afirma que cerca de 1,7 mil vagas seriam geradas para a construção da usina, mas são empregos temporários, além de precários e mal remunerados. (RK)


12

de 12 a 18 de julho de 2007

cultura Divulgação

Um vôo na

descoberta do mundo

LITERATURA Em suas obras infanto-juvenis, a escritora Maria José Silveira aborda história e política de forma palpável para os que se iniciam na literatura. Em “O vôo da arara azul”, lançado no mês passado, ela convida os jovens a visitar o Brasil dos anos de chumbo. Renato Godoy de Toledo da Redação A ESCRITORA Maria José Silveira acredita que a política está presente em todas as esferas do cotidiano, o que pode ser constatado em sua obra literária. Para Maria José, toda literatura é política – “até a que não quer ser”. A relação da escritora – autora de 16 livros – com essas questões, aliás, não poderia ser diferente, já que ela pertence a uma geração que combateu a ditadura militar brasileira (1964-85) e “amou a política no seu sentido maior de transformação do mundo”. Em entrevista ao Brasil de Fato, a escritora fala sobre a sua obra e o desafio de relacionar temas históricos e políticos com o universo das crianças e adolescentes. Utilizando-se da fantasia, de temas e linguagens familiares aos jovens, Maria José produziu o recém-lançado “O vôo da arara azul”, incluindo recursos de história em quadrinhos (HQ), com ilustrações de Maria Valentina. O amor platônico de André, um garoto de 13 anos, por sua vizinha, Lia, uma enfermeira e militante política, se dá em meio ao cenário de repressão da ditadura e no âmbito da resistência ao regime. Segundo a autora, a literatura assumidamente política tem sido vista com maus olhos pela crítica literária brasileira; no entanto, de acordo com ela, os autores internacionais com temáticas politizadas são aclamados em encontros literários como a Feira de Literária Internacional de Parati (Flip). Brasil de Fato – Por que a escolha da política como temática recorrente em sua obra? Maria José Silveira – Na verdade, acredito que nem é exatamente uma escolha. Quer reconheçamos ou não, as grandes questões de nossa vida, nosso cotidiano e nossa história são políticas. No mundo em que vivemos, se não conseguimos olhar para o que se passa a nossa volta, nem deveríamos ser escritores. Nesse sentido, acredito que toda literatura é política – até a que não quer ser. Dito isso, no entanto, entendo que você quer se referir mais à escolha explícita do tema político, e creio que a resposta a essa pergunta está na minha história de vida. Para mim, fica cada vez mais claro que um autor jamais escapa de sua biografia, no sentido de que é a sua história individual e insubstituível a responsável pela formação de sua sensibilidade, seus interesses, suas escolhas. Sou parte de uma geração que amou a política no seu sentido maior de transformação do mundo. Foi esse um dos grandes valores de minha formação. Não posso, e muito menos quero, fugir disso. No caso de seus livros infantojuvenis, como se dá a tarefa de relacionar a política com o cotidiano de crianças e adolescentes? Pela linguagem, sobretudo. Sou do ponto-de-vista de que é possível tratar de grandes temas com as crianças desde que se forneça a ela os elementos de uma linguagem com a qual ela possa se identificar. No caso das crianças pequenas, essa linguagem é fundamentalmente a da fantasia. Quanto aos adolescentes, esses já estão com um pé na realidade adulta e, com um pouco de cuidado, estão aptos a encontrar na literatura uma companheira de jornada pelo mundo que estão começando a descobrir – e o ideal seria que isso acontecesse. Como é ser autora de ficção histórico-política no Brasil? Há algum tipo de restrição por parte de editoras, leitores ou crítica? Pelas editoras e pelos leitores, não exatamente. Mas com a crítica em

geral anda acontecendo uma coisa curiosa atualmente no Brasil. Antes, não era assim, e acredito que em algum momento deixará de ser. Mas no momento – e salvo as formidáveis exceções de praxe – há um desinteresse profundo da crítica pela literatura que fala da história e do passado do país. Tenho conversado bastante sobre isso com amigos escritores e até hoje acho que não chegamos a uma explicação pertinente. É tão obtuso, isso. E o mais interessante é que há um peso diferente para o escritor de fora – como pudemos mais uma vez constatar recentemente na Flip, onde os autores mais aclamados foram justamente os mais políticos – como Nadine Gordimer, Amos Óz, o mexicano Arriaga, e o fantástico jovem ex-soldado de Serra Leoa, Ishmael Beah, sensação deste ano em Paraty. Mais ainda: se você examinar a lista dos bestsellers de nossas revistas, verá que boa parte da literatura estrangeira é política (como é o caso dos livros de Orham Pamuk e da série de livros sobre o Afeganistão). Durmase com um barulho desses! Fale um pouco da experiência de escrever livros para jovens do campo, como em “Um fantasma ronda o acampamento”. Foi um grande desafio, realmente. Como escrever uma história que fizesse sentido para as crianças que estão começando a descobrir os livros em uma realidade tão diferente do nosso cotidiano urbano? Não sou fantasma, mas penei. Felizmente, recorrendo ao humor e à fantasia, acabei me divertindo muito ao escrever o texto que, espero, divirta também essas crianças que passam, junto com seus pais e professores, por um momento de transformação tão crucial não só para eles, mas para todo o país. O que significa, para a escritora Maria José Silveira, o vôo da arara azul? De onde veio a inspiração para a construção das personagens? Este livro serve bem como um exemplo do que eu disse no começo: que os temas pelos quais um escritor se interessa de forma tão apaixonada a ponto de dedicar um tempo de sua vida (curto ou longo, não importa) para escrevê-lo, vêm de uma forma ou de outra de sua história. No caso desse livro específico, de meus anos de militância em São Paulo. Não a história que conto – que essa é a parte da ficção –, mas o contexto da história que conto, e até a própria casa da história, uma casa que realmente existiu, onde funcionava a “gráfica clandestina” da organização na qual militei. Qual é o tema central do livro e qual a sua importância para o público infanto-juvenil? Eu diria que o livro se desenvolve ao redor de vários temas centrais – a descoberta do amor, a época da repressão da ditadura, o cotidiano dos militantes de esquerda então chamados de “terroristas”, pessoas que levavam uma vida como qualquer outra, amavam, escutavam música, iam ao cinema, à padaria, cozinhavam, cantavam, acompanhavam samba tocando na caixa de fósforo, enquanto lutavam para mudar o país. A rigor, no entanto, o tema de um livro depende muito da leitura de cada um – o que, aliás, é a beleza da literatura.

Quem é Maria José Silveira é escritora, jornalista e antropóloga. Iniciou sua carreira de escritora em 2002, quando deixou o jornalismo. Já escreveu 4 romances, 6 livros infantis e 6 juvenis. Com seu primeiro romance, “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, Maria José recebeu o prêmio de revelação da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA)

A autora Maria José Silveira em noite de autógrafo

Os fios de Maria José e o labirinto Alipio Freire Em termos pessoais, os melhores livros que lemos quando jovens são os que nos marcam para o resto da vida. Os grandes livros, porém, são aqueles que marcam gerações, e se fazem referência. Monteiro Lobato é um exemplo. Há ainda outro tipo de livros para jovens que, atingindo os objetivos junto a seu público, transbordam essas fronteiras e se tornam literatura para todas as idades. Destes, os mais conhecidos são as obras dos irmãos Grimm e de Andersen. “O vôo da arara azul”, de Maria José Silveira, editado pela Editora Callis, pertence a essa última linhagem. André, 13 anos, é filho de um bancário e mora num bairro de classe média em São Paulo. Corre o ano de 1969: tempo de ditadura, quando o terror de Estado inaugura seu período mais duro. Tempo de conversas entrecortadas por meias-palavras e silêncios. Medo e risco permanentes. O jovem tem sua primeira experiência com o regime: uma noite, ele e o pai são barrados por uma batida policial. Depois, os cartazes com fotos de opositores do governo, procurados, colados nos muros da cidade. Ao mesmo tempo, André vive sua primeira grande paixão: Lia, a jovem enfermeira que acabara de se mudar para a casa ao lado, com seu marido e um tio de mais idade.

André tem uma arara azul (Magda) e o hábito de desenhar tiras em quadrinhos. É através de Magda que se aproxima de Lia. É através dos quadrinhos que ele registra um diário que, anos depois, servirá para reconstituir sua história e ilustrá-la. A autora constrói a narrativa em primeira pessoa (André é o narrador), mesclando texto com os quadrinhos que o personagem desenhou quando jovem, conformando uma unidade (indivisível) fundada em suspense e revelações. Os desenhos são um cuidadoso trabalho de Maria Valentina, que pesquisou o período e mimetizou um traço possível à idade do personagem, de cuja construção assim participa.

Maria José reproduz ainda um documento de época, exemplar do jornal Unidade Operária, publicado durante os anos 1960-1980, pela organização clandestina Ala Vermelha, e que o jovem André recebeu de militantes que o distribuíam num trem. O antigo panfleto tornase narrativa literária: denunciando o assassinato de Carlos Marighella, ocorrido em São Paulo em 4 de novembro de 1969, é ele quem precisa o tempo exato da ação, enquanto revela (único material a fazê-lo) o que pensavam militantes de esquerda da época. Mais adiante, um segundo panfleto se intercala à narrativa de André, denunciando, desta vez, as torturas sofridas por Lena, uma companheira de militância de Lia. Agora, porém, não se trata de documento de época, mas de peça criada para o livro por Felipe Lindoso que foi, na verdade, um dos redatores/editores, na clandestinidade, do Unidade Operária nos anos de 1960. Deste modo, com uma narrativa tecida por três fios (texto-quadrinhos-documentos) a autora é capaz de nos conduzir, jovens e adultos, pelos labirintos da nossa história recente, suscitando interesse, prazer e reflexões e, ao resgatar a memória de um período que a História oficial tenta ocultar, ajuda os jovens a se prepararem para enfrentar o Minotauro com as suas próprias mãos. Editora Callis www.callis.com.br

Crianças e jovens do campo “Um fantasma ronda o acampamento”, de Maria José Silveira, inaugurou, em 2007, uma série de livros infantis que o Iterra e o FNDE estão produzindo, com a Editora Expressão Popular, para as crianças que vivem no campo. Ilustrada por Marcos Cartum, essa história infantil trata das armações de coronéis e seus capangas, para tentar desalojar famílias que ocupam uma fazenda improdutiva. Mariara (10 anos) e Oziel (nove), filhos de acampados, e Otacílio – um adolescente que vivia nas ruas e que se juntara aos sem-terra, são os protagonistas dessa história de suspense e mistério, ambientada num acampamento do MST. Em “Contos brasileiros”, que reúne sete autores, Maria José contribui com “A condição dos sonhos”, ambientado numa família de pequenos agricultores. O livro, ilustrado por Rogério Mourtada, é dirigido aos jovens que vivem, estudam e trabalham no cam-

po e trata-se, também aqui, de uma iniciativa do Iterra com o apoio do FNDE. Essa coletânea foi organizada e editada pela Editora Expressão Popular, e lançada no ano passado durante o Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras do Campo, em Brasília. Editora Expressão Popular www.expressaopopular.com.br

Livros publicados INFANTO-JUVENIS Pela Formato Editorial / Belo Horizonte, a coleção infantil “Meninos e Meninas do Brasil”, composta de 5 títulos: • “Tendy e Jã-Jã em Dois Mundos e uma Nova Terra (época do Descobrimento)”/ 2003; • “Iamê e Manuel Diogo nos Campos de Piratininga (época dos Bandeirantes)”, 2004; • “Ana Preciosa e Manuelim na Terra do Ouro (época do Ciclo do Ouro)”, 2004; • “Brasília e João Dimas com o Caldeirão da Santa (época da Independência)”, 2004; • “Floriana e Zé Aníbal no Rio do BotaAbaixo (começo do século XX)”, 2005. “Uma Cidade de Carne e Osso”, FTD/ SP, 2004.

“Ossos”, com Luiz Bras, Coleção 3 Versões, Ed. Callis/SP, 2004.

“O Fantasma de Luis Buñuel”, Ed. Francis/SP, 2004 .

“Cabeça de Garota”, coleção Sinal Aberto, Ed. Ática/SP, 2005.

“Guerra no coração do Cerrado”, Ed. Record/RJ, 2006.

“Malcriadas”- coleção Muriqui, Ed. SM/SP, 2006. “Um Fantasma Ronda o Acampamento”- Ed. Expressão Popular/SP, 2006. “O Vôo da Arara Azul” Ed. Callis/SP, 2007. “A Jovem Pagu” – Ed. Nova Alexandria/SP, 2007. ROMANCES “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, Ed. Globo/SP, 2002. “Eleanor Marx, filha de Karl.”, Ed. Francis/SP, 2002.

CONTOS “Felizes Poucos”, in “Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”, org. Luiz Rufatto, Ed. Record/RJ/SP, 2005. “A Condição dos Sonhos”, in “Contos Brasileiros”, Expressão Popular/SP, 2006. Internet: site literário Cronópios, os contos “Samedi a Montparnasse” e “Ai! Portugal”. COLUNA LITERÁRIA “Vida de quem escreve”, no site literário www.cronópios.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.