Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 5 • Número 230
São Paulo, de 26 de julho a 1º de agosto de 2007
Na Bolívia, protesto contra a transferência da capital A proposta de mudança da sede do governo boliviano de La Paz para a cidade de Sucre (região central do país), discutida na Assembléia Constituinte, recebeu um sonoro “não” dos movimentos populares. No dia 20 de julho, mais de um milhão de pessoas foram às ruas de El Alto para protestar contra a mudança. Eles acreditam que tal projeto seja uma ofensiva da elite para reduzir o poder de pressão social sobre os governantes, já que a base popular da cidade, protagonista de grandes mobilizações sociais, vive próxima à atual capital. Pág. 9
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Na crise aérea, as empresas põem a vida em último plano Milton Mansilha/Agência LUZ/ABr
O desastre do Airbus, o maior acidente aéreo da história brasileira, evidenciou que as razões da crise no setor vão além de questões pontuais. Enquanto a mídia corporativa transforma o sofrimento dos familiares das quase 200 pessoas que morreram no acidente em uma telenovela, a discussão sobre as práticas selvagens das companhias aéreas em busca do lucro, com a anuência do governo, segue silenciada.“As grandes empresas do setor, a TAM, mas principalmente a GOL, sempre trabalharam nessa lógica de exploração máxima do trabalho”, denuncia Celso Klafke, presidente do Sindicato dos Aeroviários do Rio Grande do Sul. Em último plano, questões de segurança e a vida do passageiro. Ao mesmo tempo, a elite política e econômica se aproveita da comoção social para impor a abertura de capital da Infraero, o que pode reduzir ainda mais o controle do Estado sobre os atores privados do setor aéreo. Págs. 2 e 3
A energia do Brasil torna-se uma das mais caras do mundo Passados 11 anos da privatização do setor elétrico, a energia brasileira transformou-se numa das mais caras do mundo. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as tarifas foram ajustadas em 386% entre 1995 e 2006. Com isso, os consumidores brasileiros passaram a pagar, em média, 20% a mais que os franceses, que dependem de uma matriz nuclear. Quem ganha com os recursos que saem do bolso da população são as geradoras e as indústrias eletrointensivas. Enquanto o governo subsidia as primeiras, estas vendem energia mais barata para as segundas. Pág. 6
Eduardo Jiménez Fernández
Governo reprime celebração em Oaxaca
Para ampliar a exportação, o BNDES financia a Vale O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social investiu R$ 744,6 milhões na Companhia Vale do Rio Doce, empresa alvo de uma campanha que visa anular o leilão que a privatizou. Entre os motivos apresentados para a venda, em 1997, estava a incapacidade de o Estado investir em estatais. A incoerência se aprofunda quanto ao destino do financiamento: a Estrada de Ferro Carajás (EFC), uma das três
principais malhas viárias da Vale. Por essa via, circulam em um sentido minérios de ferro destinados a abastecer as necessidades de países desenvolvidos, às custas da riqueza nacional. No outro, trabalhadores empobrecidos embarcam na busca de empregos precarizados. Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, no entanto, de cada 10 cidadãos que chegam à região, apenas um consegue serviço. Pág. 5 José Gabriel Lindoso
Polícia do governador Ulises Ruiz Ortiz volta a atacar manifestação pacífica no Estado de Oaxaca Kellinroy
Oaxaca, no México, viveu momentos de terror no dia 16 de julho. Um ano após a rebelião liderada pela Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), o governador do Estado, Ulises Ruiz Ortiz, – inimigo do movimento – mandou a polícia reprimir um protesto pacífico da articulação. Membros e simpatizantes da APPO organizavam uma manifestação com 10 mil pessoas para criticar o caráter elitista que a Guelaguetza, uma festa popular, adquiriu. Trata-se de uma celebração da troca comunitária de produtos que foi transformada pelo governo de Oaxaca em um evento turístico. O conflito deixou 40 pessoas feridas e 60 presas. Os movimentos sociais temem que o episódio inicie novo período de repressão. Pág. 11
R$ 2,00
MADAGASCAR
camponeses lutam por seus direitos
Malgaxes temem perder suas terras Os trabalhadores rurais de Madagascar estão apreensivos com o avanço do capital estrangeiro vindo de países como Estados Unidos, China e Alemanha. Mesmo tendo a terra como um bem coletivo, pertencente ao Estado desde a reforma agrária ocorrida ainda na década de 1960, os camponeses buscam uma titulação que lhes garanta a continuidade dos direitos conquistados. Pág.10
As bibliotecas na pauta das reivindicações “Quando os livros são monopolizados pelas elites, se reforçam os esquemas de dominação”, afirma Felipe Lindoso (foto), especialista em políticas públicas para o livro e leitura. Segundo ele, a melhor arma para enfrentar o problema é a criação de bibliotecas públicas. Pág. 12
ff
Latu
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editorial
O desastre aéreo em Congonhas e a comédia do capital É APARENTEMENTE quase impossível nos situarmos frente à crise desencadeada com a queda do avião da TAM, na terça-feira da semana passada, 17 de julho. Mas só aparentemente. Sem qualquer dúvida, a dor, a indignação e outras emoções dos parentes e amigos das vítimas e a solidariedade de sentimentos de esmagadora parcela do povo brasileiro (e até de outros povos) são absolutamente legítimos e, ao lado dessa maioria, Brasil de Fato e sua equipe cerram fileiras. A verdade é que esse núcleo central do fato e que lhe confere sua verdadeira dimensão, está abandonado, é apenas pretexto para outras maquinações. Aparece aqui e ali e em todas as mídias, no pior estilo do jornalismo, enquanto espetáculo, enquanto invasão da privacidade dos familiares das vítimas, expostas à telinha ou às fotos, quando certamente prefeririam expressar seus sofrimentos e carpir seus mortos na intimidade. Pretexto para
debate
A queda do Airbus da TAM, no dia 17 de julho, derruba a máscara da grande mídia e de muitas empresas. O menos importante para elas são as vítimas. o sensacionalismo barato pós-moderno, como se fosse uma extensão das novelas, a explorar as emoções dos espectadores e leitores de modo a levá-los a uma quebra emocional e para que, a partir daí, sem condições de reagir racional e criticamente, absorvam qualquer informação passada enquanto verdade. Esse é um pricípio básico da manipulação de corações e mentes. Esse é um pricípio básico para a venda dos seus produtos. E tudo isso é feito de caso pensado. Cinicamente. Goebbels foi o grande mestre desse procedimento. Bertold Brecht, o principal crítico. Por ignorância e/ou premeditação, num primeiro momento, a palavra que mais ouvimos para se referir ao desastre é “TRAGÉDIA”. Ora, a palavra “tragédia” surgiu para dizer de peças teatrais onde
os deuses intervêm na vida dos mortais, definindo os seus destinos. Isto é, roubando-lhes a condição de tomar suas vidas nas próprias mãos e construir seus próprios destinos. Ou seja, até aqui ninguém é responsável. Mas, num segundo momento, aquela palavra (“tragédia”) vai
desaparecendo dos noticiários. Ela já não é mais necessária: os grupos econômicos (incluídos os oligopólios da comunicação) já montaram seus álibis, ao mesmo tempo que já traçaram suas estratégias e táticas de como lucrar com o sinistro. Agora, sim, começa a “COMÉDIA”, forma teatral que exclui qualquer intervenção divina. Agora, é o business, são os negócios. Os atores são apenas homens e mulheres em cena. São todos empresários ou representantes políticos bem sucedidos. Alinham-se em blocos: nenhum deles é responsável e todos querem seu “pedaço”. Inicia-se uma polifonia animada pela mídia e regida pelos lobbies, dos quais aquela também participa e é porta-voz. Se o público está confuso, tanto melhor. O grande capital, a mídia e
opinião
Elaine Tavares
A dor da gente não sai no jornal UM AVIÃO que cai, centenas de pessoas mortas, no mais das vezes por ganância do capital e das gentes contaminadas por ele. São Paulo não pode parar, os negócios não podem parar, as pessoas não podem parar. Há que produzir e produzir. Os negócios se fazem na ponte aérea e os aeroportos não podem suspender vôos um dia sequer. Caso aconteça, todo mundo dá “piti”. Se há obras, que se dane. Se não terminou o remendo, se não está tudo pronto, que se dane, os negócios precisam seguir. Há muito dinheiro em jogo. E, ao fim, sobra toda essa dor, de quem se foi e de quem ficou. Todo mundo pára, estupefato, diante da grandeza da tragédia. Por dias inteiros buscam-se os culpados, enquanto a vida segue, na vertiginosa roda do capital. O coelho de Alice em fuga: “não tenho tempo, não tenho tempo”. Os negócios têm de seguir. Enquanto isso, as pequenas tragédias cotidianas não aparecem nos jornais. E quase ninguém chora pelas vítimas anônimas que caem diariamente, em solidão. Digo isso para lembrar do projeto de lei que o governo encaminhou no dia 11 de julho para o Congresso Nacional. Nesse projeto, o governo cria a figura jurídica da fundação estatal, que nada mais é do que a privatização dos serviços públicos, a começar pelo mais paradigmático: os hospitais universitários. Amparado na mentira de que o funcionalismo é incompetente, o governo joga para o povo, através da mídia cortesã, a idéia de que tudo vai ficar melhor. Não vai. As filas da dor aumentarão com certeza. E essa dor não vai sair no jornal.
Perversidade
E para estes rostos em sofrimento, que encontram no HU público sua única possibilidade de melhora, seu porto seguro, ainda gratuito, o que o governo oferece? A lógica do capital! A fundação estatal é isso.
Luiz Ricardo Leitão
O ‘espetáculo’ e a ‘nova’ descoberta do Brasil (Breves reflexões sobre o Pan 2007) “Vamos celebrar nossa bandeira/ Nosso passado de absurdos gloriosos/ Tudo o que é gratuito e feio/ Tudo o que é normal/ Vamos cantar juntos o hino nacional/ (A lágrima é verdadeira)/ Vamos celebrar nossa saudade/ E comemorar a nossa solidão” (Legião Urbana, “Perfeição”) O PAN Rio-2007 tem sido uma súmula eloqüente das contradições que padecemos no Brasil e na América Latina. De um lado, ele reproduz em larga escala as mais virulentas mazelas que corroem a nossa querida Pátria Grande, seja a ganância que exibem os ditos “dirigentes esportivos” em seus escusos acordos com a mídia, seja a leviandade com que as autoridades “públicas” tocaram as obras dos complexos esportivos, cujo orçamento inicial de R$ 450 milhões já rompeu a barreira dos 3 bilhões, decerto o maior recorde que obteremos nessa competição... De outro, o evento revela que o esporte, já convertido em “espetáculo”-mor da sociedade pós-moderna, não pode fugir às imposições da globalização neoliberal: talento ajuda, não resta dúvida, mas o brilho de Marta no futebol feminino não dissimula o descaso que a CBF do pirata Ricardo Teixeira devota à modalidade (a Nike e os demais ‘parceiros’ só têm mesmo olhos para Ronaldinhos & cia.).
O chauvinismo de Galvões Buenos & cia. ofende o bom senso de qualquer cristão ou pagão. [...] Dessa vez, porém, parte do público, “inspirada” nas “sábias” lições de xenofobia dos nossos “locutores”, comportou-se como as torcidas “organizadas” do futebol
Indiferença
Quem tem a delicadeza de ficar durante uma única manhã na entrada de um hospital universitário vai ver o retrato de uma tragédia. Centenas de pessoas, vindas de várias cidades do Estado – onde não existe hospital de referência – chegam aos borbotões, conduzidas pela política mais perversa de que se tem notícia: a ambulancioterapia (cujos casos de corrupção até já renderam CPI). São seres fragilizados pela doença, que desembarcam ainda mais fragilizados pelo fato de estarem num lugar estranho, conduzidas por um desconhecido, com fome e sem dinheiro para tomar sequer um café. Os trabalhadores do HU de Florianópolis, e os demais trabalhadores da Universidade Federal de Santa Catarina que estão em greve há mais de 40 dias, sabem bem o que é isso. Nas atividades que fazem para informar a população sobre os perigos da privatização do Hospital, eles percebem toda essa dor que se repete dia após dia. E sabem do esforço de médicos, enfermeiras e atendentes em geral para receber bem cada um desses seres frágeis, apesar de todas as dificuldades de um hospital sempre em crise, sempre sem dinheiro, sem equipamentos, sem pessoal.
toda a oposição de direita acusam o governo federal enquanto único responsável. Certamente não é o único, mas talvez o principal, exatamente por se curvar aos interesses e lobbies das empresas. O capital e seus representantes apresentam-se em cena travestidos de “homens probos e impolutos”. Invocam saberes, ciências e austeridade. Vestem máscaras de moralizadores da coisa pública, o que nunca lhes assenta, o que sempre soa postiço. Mas em meio à confusão e manipulação de verdades contraditórias, conseguem algum efeito imediato. Mas não enganam: como na crise aberta com os escândalos sobre a corrupção, não estão interessados em nada que não seus privilégios e, nas próximas eleições, ascenderem ao controle do aparelho de Estado para se locupletarem sem limites ou concorrência. Apenas isso. E as vítimas e seus familiares? Bem... o que que aconteceu mesmo?
Pois tal e qual os donos de avião, os empresários gananciosos de toda ordem, os que pensam apenas em lucros, os que comandam o país estão se lixando para os empobrecidos, para os que nada têm, para os que precisam do serviço público Sendo instituída, o hospital vai ser gerido por ela, através de um contrato de gestão que levará em conta a produtividade do hospital. Mas o que é produtividade num hospital? A doença. Ou seja, a lógica vai ser, quanto mais doença, melhor. Quanto mais doente, melhor. Também abre a porta para o atendimento via plano privado. Abrem-se então duas portas de entrada. Numa, entram os que tem plano privado, noutra os pacientes do SUS. E se tiver apenas um leito em disputa? Quem fica com ele? Alguém tem alguma dúvida? Quem pode mais é o cidadão-cliente (figura instituída pelo ex-ministro neoliberal Bresser Pereira). O dinheiro vai mandar. Hoje, essa gente que desembarca sua dor e fragilidade no HU não precisa apresentar cartão privado, não precisa pagar nada. As pessoas chegam e são atendidas. Com a fundação estatal, esse povo empobrecido, que vem do interior, ou mesmo os empobrecidos da capital, vão virar seres de segunda, disputando com os
que têm dinheiro. Guerra inglória. E, na TV, os políticos e empresários da dor afirmam com garbo: o serviço vai melhorar, os trabalhadores poderão ser demitidos, a gestão ficará mais ágil. Mas, espera aí? E as gentes? E os que nada têm além de seus corpos nus, como diria Marcos Faerman? Pois tal e qual os donos de avião, os empresários gananciosos de toda ordem, os que pensam apenas em lucros, os que comandam o país estão se lixando para os empobrecidos, para os que nada têm, para os que precisam do serviço público. Seu negócio é tornar melhor a gestão do capital. Puro business. Quem precisa de serviço público que se lixe. Vão ter de pagar. Porque, afinal, para que uns vivam, outros têm de morrer. Essa é a regra do mundo capitalista. E fim! O que eles não sabem é que alguns há, que lutam... Pode demorar, pode ser difícil, pode ninguém agora entender, mas dia chegará que as gentes saberão... e tudo mudará... Elaine Tavares é jornalista
Ninguém ignora essas verdades, mas elas incomodam ainda mais quando as vivenciamos ao vivo e em cores. Este cronista, por exemplo, deu-se ao trabalho de comprar, via Internet, no primeiro dia de venda, ingressos para os jogos semifinais do vôlei feminino, previstos para o dia 18 de julho, a partir das 19 horas. Contudo, por “decisão” posterior do Comitê Executivo, a partida Brasil x EUA foi antecipada para as 15 h, ao passo que o jogo entre Cuba e Peru, que seria a preliminar do nosso, foi postergado para as 22 horas. Era uma quarta-feira, dia de futebol na Globo, que, obviamente, transmitiu direto o jogo às 15 h, no horário da insossa “Sessão da Tarde”. Mera coincidência? Bem, parte da torcida, quando soube da tramóia, dirigiu-se com seus ingressos para os portões do Maracanãzinho e exigiu aos gritos a sua entrada no ginásio. A primeira reação da Guarda Nacional foi atacar os torcedores com gás de pimenta, mas a galera não arredou pé e a “organização” teve de liberar o acesso à pequena multidão de tinhosos e combativos brasileiros. A atuação da mídia nos Jogos, aliás, é um velho capítulo triste e lastimável de interferência do 4º Poder em nossa frágil vida social. O chauvinismo de Galvões Buenos & cia. ofende o bom senso de qualquer cristão ou pagão. À parte a histeria habitual dos bobos da corte, acirrou-se nesse Pan, após a derrota do vôlei feminino, a rixa aberta com os cubanos, que se estendeu às arenas do judô e de alguns esportes coletivos. É claro que os caribenhos não gostam de levar desaforo para casa, mas até então tudo ficara restrito aos limites das quadras. Dessa vez, porém, parte do público, “inspirada” nas “sábias” lições de xenofobia dos nossos “locutores”, comportou-se como as torcidas “organizadas” do futebol, com direito a arremesso de copos e rimas de baixo calão em homenagem aos rivais e até mesmo aos juízes que, em tese, prejudicaram a Pátria de chuteiras e quimonos. Depois, com a hipocrisia que lhe é peculiar, a mesma mídia trata de condenar os “excessos”, lembrando-se decerto dos dólares perdidos com um eventual veto do COI ao projeto Rio-2016... Enfim, nada de novo ao sul do Equador. Talvez os comentaristas digam que tudo isso é sinal de prosperidade no país. Alguém poderá sugerir ao cronista que deixe de ser tão pirracento e trate de relaxar e gozar. O escriba, porém, prefere evocar Renato Russo e reconhecer, mais uma vez, que as lágrimas de nossos atletas são verdadeiras, embora nem todos cantem o hino nacional no mesmo tom... Finda a farra das medalhas, o que iremos celebrar com o poeta? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da Uerj. Doutor em literatura latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
O risco de o lucro se sobrepor à vida ACIDENTE AÉREO Equívocos, a maioria gerados por interesses privados, contribuem para a crescente insegurança no espaço aéreo Agência LUZ/ABr
Eduardo Sales de Lima da Redação PROCURAM-SE culpados, mas os erros da aviação civil no Brasil permanecem mesmo após o desastre. O acidente do vôo 3054 da TAM, no dia 17 de julho, tem, em si, os seus motivos intrínsecos. Salta aos olhos, porém, o contraditório mecanismo em que a busca pelo lucro se sobrepõe à importância de vidas, em que a segurança de passageiros é mero detalhe em meio a lobbies de empresas aéreas. Em setembro de 2006, quando o Boeing da Gol se chocou com o jato da Legacy, o Brasil ficou conhecendo as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os controladores de vôo. Hoje, escancara-se o baixo investimento em recursos humanos por parte das companhias aéreas, da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). “No momento do acidente, estávamos no Rio de Janeiro realizando uma reunião de todos os sindicatos dos aeroviários do Brasil com o departamento de recursos humanos da empresa [TAM], justamente tratando desses assuntos”, revela Celso Klafke, presidente do Sindicato dos Aeroviários do Rio Grande do Sul. Ele pontua que o setor é de uma “sensibilidade” única porque os trabalhadores têm que ter tranqüilidade para trabalhar e executar o serviço com o máximo de segurança para eles e para os passageiros. O aeroviário afirma que, em todos os departamentos das empresas de aviação civil, está ocorrendo excesso de hora-extra, sem as folgas regulamentares. “As grandes empresas do setor, a TAM, mas, principalmente, a GOL, sempre trabalharam nessa lógica de exploração máxima do trabalho e de ter a máxima produtividade”, relata Klafke.
Prosperidade
Silvio Mieli, professor do Departamento de Jornalis-
Bombeiros resgatam corpos de vítimas do acidente com o avião da TAM no terminal da companhia, no Aeroporto de Congonhas
“As grandes empresas do setor, a TAM, mas, principalmente, a GOL, sempre trabalharam nessa lógica de exploração máxima do trabalho e de ter a máxima produtividade”, relata Celso Klafke, presidente do Sindicato dos Aeroviários do Rio Grande do Sul mo da PUC-SP, aponta para o fato de haver empresas ávidas por lucro sem nenhum controle, operando em um país sem infra-estrutura adequada. “É sintomático o fato de o presidente da TAM ter repetido na coletiva de imprensa as mesmas palavras do ministro [Guido] Mantega, de que não há caos aéreo, mas sim um crescimento da demanda devido à prosperidade econômica. Não é es-
tranho esse alinhamento?”, questiona. Com a “prosperidade econômica”, as pressões das companhias aéreas foram determinantes para a liberação da pista principal do aeroporto de Congonhas antes da conclusão da reforma e da realização do grooving (sulcos no asfalto para acelerar o escoamento da chuva). Segundo alguns jornais, empresários do setor aéreo fizeram
lobby visando manter a reinauguração da pista para o dia 29 de junho. As obras estavam programadas para terminar em setembro, mas a Infraero aceitou a liberação ainda com a pista inacabada.
Anac sem direção
Assim como a Infraero, a Anac é controlada pelas empresas aéreas. A saber, o governo federal não tem poder sobre a Agência, que está sob a
Jornal Nacional transforma o drama em uma novela
tutela do Conselho de Aviação Civil (Conac). Há consenso entre os sindicatos de trabalhadores aeroviários do Brasil de que a Anac é uma agência reguladora que está mais a serviço das empresas aéreas do que da salvaguarda dos usuários. “Existe uma oposição dentro da aeronáutica em relação à transferência de poderes do antigo Departamento de Aviação Civil [DAC] para a Anac. Isso tem trazido claros problemas de consolidação da agência, que tem falhado principalmente na fiscalização”, salienta Klafke. Para ele, a influência de setores políticos é um dos principais problemas da agência, “constituída muito
mais por loteamento político de setores do governo”. “Foi triplicado o número da frota nacional em um curto espaço de tempo, porém, a Anac precisa exercer seu papel de regulação e fiscalização de fato, mas ela não o faz”, afirma Carlos Gilberto Salvador Camacho, da área de segurança de vôo,do Sindicato Nacional dos Aeronautas. A ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, anunciou, no dia 20 de julho, a possibilidade de abertura do capital da Infraero. Segundo ela, o objetivo é ter um maior “incentivo” para a melhoria da qualidade da prestação de serviços aos usuários.
Congonhas em Ribeirão? Desastre aumenta polêmica sobre ampliação do aeroporto Leite Lopes, em Ribeirão Preto Arquivo
Para especialista, telejornalismo brasileiro transformou a dor de famílias em “cena de telenovela” da Redação Menos de um ano depois do acidente com o avião da Gol, a cobertura jornalística volta a subestimar a capacidade do telespectador e “noveliza” o desastre, na expressão de Silvio Mieli, do departamento de jornalismo da PUC-SP. A colisão do Airbus da TAM, que gerou a morte de quase 200 pessoas, trouxe à tona uma avalanche de desinformação e uma evidente disputa de interesses na mídia. Desastres como o do vôo 3054 provocam comoção nacional e quase toda a população vai para a frente da televisão. Para especialistas da mídia, transmissões desse gênero estão intimamente ligadas à história, sobretudo, no sentido de que a representação de eventos que ainda estão em processo de realização pode influir em seu desenvolvimento e em suas conseqüências. “O Jornal Nacional, via de regra, transforma os fatos em capítulos de novelas, com direito a cenas melodramáticas com locução afetada do repórter e trilha sonora que poderia ser vendida pela Som Livre”, ironiza Mieli. Para o professor, é intolerável que, logo após o acidente, os telejornais, inspirados pelo Jornal Nacional, mostrem o momento no qual um ser humano recebe oficialmente a notícia da morte de um parente num acidente aéreo. De acordo com o especialista, há muito tempo o limite entre o
real e o ficcional de “quinta categoria” foi quebrado pelo telejornalismo. “Não é por acaso que o Jornal Nacional surge paralelamente à ascensão do padrão global de teledramaturgia”, explica Mieli.
Manipulação
A “novelização” da notícia, no entanto, é apenas um aspecto do que foi visto no Jornal Nacional e em outros telejornais. O volume de informações despejado sobre os cidadãos comuns é de tal modo incompatível e impreciso que os telespectadores não sabem em que acreditar. “Logo
depois do desastre, a Rede Globo de Televisão expediu seu ‘parecer técnico’ determinando a causa: ausência das ranhuras na pista”, conta o jornalista Mauro Carrara, ex-preso político. A responsabilidade cairia sobre a Infraero e, por tabela, o governo federal. Se as Organizações Globo já apontavam para um culpado “federal”, as empresas de aviação eram poupadas por setores da mídia. “Na entrevista coletiva com o presidente da TAM, após a queda do avião, ninguém fez perguntas duras. E era o caso”, critica Mieli. (ESL) Manifestantes ocupam o saguão do aeroporto Leite Lopes
“Classe Mídia” Nos últimos meses, constatou-se uma parceria. A televisão filma os “maus-tratos” sofridos pelos passageiros nos aeroportos e eles a vêem como a defensora de seus direitos.“É para a classe média que fala o Jornal Nacional. Costumo chamá-la de ‘classe mídia’”, destaca Mieli. Para ele, já se rasgou a Constituição e se colocou no lugar o “Código de Defesa do Consumidor”. Quem se utiliza de transporte aéreo é, sobretudo, a classe média. A televisão esquece, no entanto, de mostrar o sofrimento daqueles que utilizam outros tipos de transporte, como os paraenses que utilizam barcos em péssimas condições ou os habitantes de grandes cidades brasileiras que vivem uma verdadeira “saga” para chegar ao trabalho. “As empresas ficam ilesas porque, mesmo que algo se comprove contra ela, a simplificação do pensamento da classe média reduzirá esse problema à responsabilidade de um governo que deixou existir essa empresa. O governo não tem saída. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, identifica Ana Mercês Bahia Bock, professora de Psicologia Social e Educacional da PUC-SP. Para ela, a classe média tem dificuldade de perceber as formas com que a elite exerce seu poder e garante seus interesses. (ESL)
da Redação O desastre com o avião da TAM fortaleceu a polêmica acerca da ampliação do Aeroporto Leite Lopes, em Ribeirão Preto (SP). Devido ao desastre do dia 17, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente agiu rápido e desmarcou a audiência pública sobre a ampliação e internacionalização do Leite Lopes, que aconteceria no dia 19 de julho.
“Caso seja ampliado, o Leite Lopes também não terá área de escape”, alerta o advogado Roberto Galvão Faleiros Júnior “O maior medo da população é a desapropriação”, declara Marcos Sérgio Valério, líder comunitário do Jardim Aeroporto, bairro que cerca o Leite Lopes.
“Temos um exemplo de áreas do próprio aeroporto que foram desapropriadas e até hoje não foram pagas”, denuncia. Com a ampliação, cerca de 3 mil moradores dos arredores serão expulsos de suas casas. “Há acusações de laudos encomendados e promessas de privatização do aeroporto depois de ampliado. Procurando homogeneizar essa luta, a Associação Comercial e Industrial (ACI) da cidade, a CIESP/FIESP, a Prefeitura Municipal e inúmeras empresas lançaram o movimento Decola Ribeirão, anunciando aos quatro cantos que quem era contra a internacionalização do aeroporto era contra o progresso”, conta Roberto Galvão Faleiros Júnior, advogado em Ribeirão Preto. Faleiros informa que os empresários da região não se importam se terão que retirar famílias do entorno do aeroporto, se o barulho será suportável ou a construção se aproximará de áreas populosas. “Caso seja ampliado, o Leite Lopes também não terá área de escape”, alerta. (ESL)
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brasil Jorge Pereira Filho
Em Belo Horizonte, debate enfatizou a produção do álcool combustível; da esquerda para a direita, deputado Padre João (PT); Manoel Costa, Marcello Guimarães e Horácio Martins
Agrocombustível, oportunidade ou neocolonialismo? ENERGIA No segundo debate organizado pela Via Campesina e pelo jornal Brasil de Fato, pesquisadores abordam riscos e possibilidades da produção de álcool combustível Jorge Pereira Filho de Belo Horizonte (MG) DE UM ponto de vista, a alternativa para a soberania energética e o autodesenvolvimento do pequeno produtor. De outro, o velho modelo colonial no qual as monoculturas nos países subdesenvolvidos sustentam a hegemonia e o padrão de consumo das nações ricas. Essas duas perspectivas antagônicas polarizaram o debate “Agroenergia no Brasil, suas potencialidades e desafios”, realizado em Belo Horizonte, no dia 18. A atividade foi a segunda de uma série de encontros organizados pela Via Campesina e pelo jornal Brasil de Fato, com patrocínio da Petrobras. O objetivo é promover o diálogo da sociedade e dos movimentos sociais com pesquisadores e com a própria estatal sobre a produção de energia a partir da matriz vegetal. No debate, o agrônomo Marcello Guimarães – um dos palestrantes – defendeu que os agrocombustíveis abrem uma possibilidade histórica de desenvolvimento para o Brasil. Entusiasta da produção álcool combustível, Guimarães traçou um paralelo entre a industrialização dos países do Norte e a presença de reservas de carvão mineral. Segundo ele, essa fonte mineral serviu para essas nações desenvolverem uma grande indústria mecânica, naval e de armamento que teria permitido a dominação de outros territórios fartos em petróleo. “Mas a energia da biomassa – ao contrário do petróleo e do carvão mineral – é dispersa, está espalhada nos países tropicais. É possível uma pessoa com três hectares ser um produtor de energia, de alimento e de adubo orgânico. Com o petróleo, não”, afirmou. Guimarães considerou também que o crescimento da produção de álcool combustível não seria sinônimo da expansão da monocultura de cana-de-açúcar. A saída, nesse sentido, seria o desenvolvimento de microdestilarias, uma proposta de atividade integrada a partir da diversidade de produção agrícola, que poderia aumentar a produção de leite e de carne, segundo ele.
Microdestilarias
O agrônomo desenvolveu uma tecnologia pela qual um agricultor poderia produzir conjuntamente álcool e leite, sendo que o combustível sairia a um custo menor do que o das grandes destilarias. Guimarães afirmou, ainda, que a
Quanto
16 bilhões
de litros é o volume que o Brasil consome de álcool combustível, sendo que a produção é de 20 bilhões de litros. O excedente é exportado. agricultura familiar teria papel fundamental nesse processo. “Biomassa só tem viabilidade em país tropical, mas não basta se não controlarmos o nosso território. E isso só pode ser conseguido a partir do desenvolvimento da agricultura familiar”, avaliou.
Álcool x biodiesel
A proposta teve o apoio de Manoel Costa, secretário do Estado de Minas Gerais para Assuntos da Reforma Agrária, que também compôs a mesa de debates. Segundo ele, a Petrobras não tem se preocupado com a produção de etanol e enfatiza apenas o biodiesel. Costa afirmou que o poder público poderia coibir a expansão das monoculturas se houvesse estímulo à produção de álcool combustível. “O Estado pode normatizar uma legislação que limita a monocultura no município: 30% seria o limite máximo por cidade. Evidente que teríamos um embate, mas isso poderia ser discutido até no âmbito do município, a partir dos Planos Diretores”, sugeriu. Em Minas Gerais, já vigora inclusive uma legislação de estímulo às microdestilarias, a partir da proposta do deputado Padre João Carlos Siqueira (PT), que também esteve presente no debate. O parlamentar cobrou do governo Aécio Neves a regulamentação dessa política de incentivos, enfatizando que as microdestilarias podem ser consideradas agroindústrias autônomas. Marcello Guimarães afirmou, ainda, que essa alternativa poderia ser um caminho para a geração de empregos no campo. “Para fazer uma refinaria que processa 110 mil barris de petróleo por dia, o investimento é de 2 bilhões de dólares e eu criaria 7 mil empregos. Com esse dinheiro, eu faço 100 mil microdestilarias para produzir 100 mil barris de álcool e crio um milhão de empregos. A solução está aí, falta alguém querer levá-lo para frente”, reforçou.
Contraponto
Já o engenheiro agrônomo Horácio Martins optou por fazer outra abordagem da ques-
tão dos agrocombustíveis. Contextualizou a expansão de sua produção nas relações de poder globais e sob a ótima dos interesses do capitalismo. “O que está por trás desse processo é uma ofensiva neocolonial”, avalia. Martins entende que a nova onda de produção dos agrocombustíveis atende às necessidades do grande capital, que quer controlar a nova matriz energética assim como ocorreu com o petróleo e o gás. O engenheiro agrônomo aponta que essa expansão não corresponde a uma demanda interna, mas sim às necessidades de consumo dos países ricos. “Hoje, o Brasil produz 20,1 bilhões de litros de álcool combustível, mais do que o suficiente para atender os 16 bilhões do consumo interno”, avalia. Horácio comparou a lógica da produção de álcool combustível ao modelo da matriz energética brasileira. Cerca de 45% é considerada energia renovável, pois a eletricidade é obtida a partir da força das águas (hidrelétricas) ou biomassa (bagaço de cana-deaçúcar). No entanto, esses empreendimentos são controlados pelos grandes capitais nacionais e internacionais e a lógica da geração responde aos interesses do aumento dos lucros. “Praticamente 40% da geração da usina de Tucuruí (PA) é utilizada na fabricação de alumínio, um produto que depois é exportado. O álcool do Brasil é vendido no exterior. Ou seja, a base da produção da matéria-prima é concentradora de renda, deteriora as relações sociais, gera empregos precários, portanto, é antipopular e prejudicial ao meio ambiente”, afirmou Martins. Apenas entre 2005 e 2006, foram registradas 17 mortes de trabalhadores por exaustão no corte de cana. A superexploração do trabalho tende a aumentar com a expansão das monoculturas. Um estudo da Unicamp, do pesquisador Pedro Ramos, mostra que, nos anos de 1980, os cortadores recebiam R$ 9,09 após cortarem 4 toneladas; hoje, para ganharem R$ 6,88, é necessário cortar 15 toneladas. Recentemente, os usineiros ganharam outro aliado para expandir os lucros: as espécies transgênicas, mais leves do que as tradicionais. Segundo pesquisa do Ministério do Trabalho, antes, 100 metros quadrados de cana somavam 10 toneladas; hoje são necessários 300 metros quadrados das espécies transgênicas.
ENTREVISTA
Correlação de forças é desfavorável para o camponês
Tendência é que os agrocombustíveis aprofundem exploração de camponeses
de Belo Horizonte (MG) A estratégia dos Estados Unidos de utilizar a produção de agrocombustível em sua nova ofensiva geopolítica, processo ratificado com a vinda do presidente George W. Bush ao Brasil, fez com que o tema dos agrocombustíveis despertasse paixões e discursos inflamados. Para o engenheiro agrônomo Horácio Martins, do ponto de vista do pequeno agricultor, a questão se coloca de duas formas. Em tese, aparece como uma oportunidade a mais em sua linha de produção. Mas, na atual correlação de forças do campo brasileiro, a tendência é que os agrocombustíveis aprofundem a exploração do camponês. Horácio Martins enfatiza duas necessidades para alterar essa situação: a reforma agrária e a democratização do processo da produção dos agrocombustíveis. Brasil de Fato – Qual pode ser o papel do pequeno agricultor na produção do agrocombustível? Horácio Martins – Tanto o etanol quanto os óleos vegetais devem se transformar em uma oportunidade, em mais uma linha de produção, ou seja, como mais uma opção, e não com o pequeno produtor sendo unicamente um monocultor. Dessa forma, poderia proporcionar uma renda adequada pela procura por álcool e óleos vegetais. O segundo aspecto é que esse produtor pode se unir em cooperativas e grupos comunitários e alcançar a auto-suficiência energética, seja de óleo diesel, seja de álcool. O terceiro é que, se houvesse reforma agrária e se mudasse a correlação de forças no campo, expandindo o processo da produção entre pequenos produtores, assentados, cooperados, eles poderiam assumir a oferta de etanol e óleos vegetais no país, não precisaria da plantantion. Poderia ter uma grande produção de cana, mas para cada assentado, seria uma linha de produção, entre outras culturas. Eu só vejo caminho apenas nesse sentido, democratizar o processo da produção dos agrocombustíveis. Mas a atual configuração do campo, hoje, aponta para que perspectiva? A correlação de forças atual hoje sinaliza para dois caminhos, basicamente: a monocultura da grande produção ou a subordina-
ção do pequeno produtor à agroindústria, em uma relação na qual ele vai plantar para oferecer matéria-prima para a indústria, sem autonomia camponesa para estabelecer preço, saber em que mercados vai vender seu produto ou mesmo a possibilidade de transformá-lo internamente. Nesses dois caminhos seria uma forma de espoliação do camponês atrelando o produtor à pequena indústria ou ele indo fazer a monocultura e trabalhando como assalariado. Hoje, o camponês não pode comercializar o combustível, o álcool, por exemplo. Mudar isso não o fortaleceria nessa conjuntura? Bem, o problema de mudar a legislação brasileira, de o pequeno produzir e comercializar o combustível, é a fraude. Não é o capitalismo. Você teria milhares de produtores. Há a necessidade de se ter uma regulamentação, algo que passa pelo Estado. A questão é que, para isso, precisávamos de um governo popular, capaz de regulamentar em níveis diferenciados de controle. Agora, se você libera a oferta de combustível, pode comprometer a própria matriz energética brasileira, a qualidade do combustível. O único caminho seria um governo popular. O senhor concorda com a visão de que os agrocombustíveis abrem uma janela de oportunidade para o Brasil? Concordo, desde que você exportasse álcool a partir de um modelo produtivo mais democrático, mais popular, mais nacional, não precisaria ser aberto ao grande capital. Há setores que defendem a criação de uma estatal para o setor... É uma proposta interessante, mas em uma correlação de forças como a atual, com um governo do capital, não é dos partidos, não há nenhum sentido. Você pode reformar a Petrobras como um todo. (JPF)
Quem é Horácio Martins é agrônomo, com especialização em Ciência Social pela PUC-SP. Em 1983, foi eleito o profissional do ano pela Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil – FAEAB. Foi presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária (Abra).
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BNDES investe R$ 744,6 mi na Vale
VALE Em 1997, companhia foi privatizada com a justificativa de que o Estado brasileiro não tinha “capacidade de investimento” Steve Arnot
Pedro Carrano de Curitiba (PR) A COMPANHIA Vale do Rio Doce (CVRD) recebeu R$ 744,6 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para ampliar a capacidade de transporte da Estrada de Ferro Carajás (EFC), uma das três principais malhas viárias da companhia. Líder mundial em minério de ferro, a Vale é responsável por 50% do comércio global de ferro. Com o novo financiamento, o objetivo é aumentar o volume de minério que deixa a jazida de Carajás, no Pará, rumo ao Porto da Madeira, no Maranhão, de 70 para 103 milhões de toneladas. Em 2000, o banco público já havia patrocinado uma operação de descruzamento de ações, no valor de R$ 859 milhões, para que a empresa Bradespar, criada pelo Bradesco, viesse a ser a principal controladora da Vale. O BNDES também foi o gestor do processo de privatização brasileiro, no Programa Nacional de Desestatização (PND). Analistas indicam que, desde a época do edital de venda da companhia, em 1995, já era previsível o ritmo de lucratividade e financiamentos que a Vale iria obter atualmente. A privatização, de fato, ocorreu apenas em 1997. Para o advogado Eloá Cruz, o BNDES não pode ser simplesmente um agente de fomento da economia de mercado devido à lei que o define como “principal instrumento de política de investimento do governo federal” (Lei nº 4.595/64). O jurista contesta o investimento estatal na companhia uma vez que a justificativa do leilão da Vale foi justamente a suposta incapacidade de investimentos do Estado.
Contradições
Cruz ainda defende que a empresa, desde o momento que foi vendida, extinguiu, sem aprovação do Congresso, o seu decreto-lei (DL nº 4.352, de 1º/6/1942), deixando de investir 85% dos lucros para um fundo de
Trajeto percorrido pela EFC, que liga Carajás, no Pará, ao porto privado da CVRD em São Luís do Maranhão
Em 1989, a Vale levantou mais de 350 milhões de dólares para financiar a aquisição de equipamentos necessários para explorar minas de ouro. Com um detalhe: o governo, controlador das ações à época, não financiou o projeto desenvolvimento dos Estados onde tem atividades. A agressão ambiental resultado da mineração é um dos propósitos desse fundo. Nesse cenário, Cruz aponta que a empresa possui reservas suficientes para investir na infraestrutura – sem necessitar do dinheiro do contribuinte e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que forma a receita do banco. “Outra coisa incompreensí-
vel, do ponto de vista da moralidade administrativa (um dos princípios impostos no artigo 37, caput, da Constituição Federal), é o fato de o principal instrumento da política de investimentos do governo federal cogitar financiar a ampliação da ferrovia de Carajás, se esta foi parte das concessões transferidas aos arrematantes do controle acionário da Vale, a pretexto de que o Estado não ti-
Um trilho para exportar, outro para os povos As melhores ferrovias brasileiras funcionam como instrumento para escoar as riquezas do país para fora de Curitiba (PR) As ferrovias no Brasil não são um instrumento de integração nacional, mas um caminho para a exportação de matérias-primas. A observação é do engenheiro civil Paulo Sidnei Ferraz, do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR). A malha viária da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, possui tecnologia de primeiro mundo. Mas, a modernização atual, paradoxalmente, contribui para o Brasil escoar mais rápido as riquezas para uso de outros países. Como informa Ferraz, hoje em dia, não existe controle fiscal sobre as ferrovias que levam os recursos minerais das jazidas diretamente para os portos. Isso impossibilita saber o que está sendo exportado e em que quantidade. Saulo de Tarso, diretor de produção da Ferroeste (PR), explica que, após a privatização, as ferrovias de propriedade da Vale não têm compromisso com o Ministério dos Transportes. Vendidas junto a todo o patrimônio da empresa, as ferrovias tornam-se então um meio para a exportação e os investimentos se dão com esse fim. “A ferrovia tem um objetivo próprio, o que dá à Vale um domínio da logística nacional”, afirma. Sobre o financiamento do BNDES para a ampliação da Estrada de Ferro Carajás, Tarso afirma que o objetivo do banco público é alavancar o desenvolvimento do país. Mas, hoje, o BNDES está vol-
Quanto
62%
das ações preferenciais da Vale pertencem ao capital estrangeiro tado para patrocinar projetos privados. Na leitura de Tarso, o banco passou a ser proibido de investir nas estatais, tarefa que foi transferida ao Banco Mundial, como forma de acelerar o processo de privatização.
Resposta
Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, a assessoria do BNDES justificou que a Constituição não distingue empresas estrangeiras e nacionais. Na visão do banco, a Litela Participações possui 58,1% das ações com direito a voto da Valepar (consórcio controlador da Vale), o que daria o caráter nacional à companhia. Ressaltou também o investimento do banco nas pequenas e médias empresas. “Nos últimos 12 meses encerrados em junho, o Banco realizou 151,2 mil operações com micro, pequenas e médias empresas, um crescimento de 60% em relação aos 12 meses anteriores. O número de operações para as grandes empresas foi de 17,8 mil no mesmo período”, informa a assessoria do banco. No entanto, o capital estrangeiro possui 62% das ações preferenciais (aquelas que têm preferência na distribuição dos lucros) da Vale e, conseqüentemente, influindo em suas decisões. (PC)
pulverizadas na Bolsa de Nova York”, pondera Cruz.
Mina de ouro
nha condições de sustentar”, ressalta. Com a CVRD com controle acionário privado (sendo que um terço das ações totais pertencem a estrangeiros), o Estado hoje recebe os impostos da empresa, mas deixou de reinvestir em questões essenciais. “As pessoas não estão percebendo que a empresa poderia estar favorecendo a sociedade, mas suas ações estão sendo
O advogado recorda um fato. Em 1989, a Vale levantou mais de 350 milhões de dólares para financiar a aquisição de equipamentos necessários para explorar minas de ouro. Com um detalhe: o governo, controlador das ações à época, não financiou o projeto. “Então, cabe perguntar: porque, em 1989, a ‘Vale estatal’ não podia receber recursos de investimento do governo federal, seu acionista controlador, mas ‘a Vale do Bradesco’, que vendeu a mina de ouro da Fazenda Brasi-
leiro (BA) a canadenses, logo depois da desestatização, pode receber financiamento do BNDES?”, questiona Cruz. A contradição exposta para quem investiga o caso da venda da Vale e a atual política da companhia é o fator econômico colocar-se à frente da Constituição. E Cruz alerta que a Companhia possui reservas de urânio (matéria-prima para atividades nucleares), o que, em tese, dependeria da aprovação do Congresso Nacional. Recentemente, segundo a agência Reuters, a Vale assinou com a Dioro Exploration acordo para explorar projetos de urânio da companhia, na Austrália.
Os trens que chegam Se na ida, trens levam riquezas para exportação; na volta, vêm carregados de mão-de-obra precarizada Reprodução
de Curitiba (PR) Na divisa entre o Pará, o Maranhão e Tocantins, a região do “Bico do Papagaio” cumpre o papel de escoar riquezas pelos trens, que trazem de volta a mão-de-obra precarizada de outras partes. Outrora, a região serviu de palco para a guerrilha do Araguaia. Hoje, a produção de ferro-gusa cresce e, para alimentá-la, 200 mil hectares de floresta são devastados por ano. A cadeia de produção envolve carvoarias que alimentam as 15 siderúrgicas na área de influência da Vale. “De cada 100 denúncias que recebemos, 100 são oriundas de trabalho escravo na região”, denuncia José Batista, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“De cada 100 denúncias que recebemos, 100 são oriundas de trabalho escravo na região”, denuncia José Batista, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) “O governo federal, com o financiamento da ferrovia, reforça a presença da Vale na região, mas isso é extremamente prejudicial às pessoas”, critica. Batista, que trabalha na região, narra a história da comunidade quilombola de Jambiaçu, onde a empresa necessitava instalar um minerioduto, na direção do porto de Belém, passando pela área quilombola, porém foi impedida pela manifestação dos movimentos sociais.
Terminal Marítimo de Ponta da Madeira, destino do minério trazido de Carajás
Quanto
200 mil
hectares de floresta são devastados por ano para produzir ferro-gusa “Até pouco tempo, a prioridade era o trem de passageiros, onde hoje as condições são as piores possíveis. Agora, a prioridade é reforçar os trens cargueiros, pois a prioridade da empresa é aumentar a produção”, denuncia Batista.
Desemprego
Cabe aos migrantes que chegam à região da Grande Carajás, onde está localizada a maior jazida de minério de ferro do mundo, vi-
ver nas áreas de ocupação ou ir aos acampamentos dos movimentos sociais. Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, de cada 10 trabalhadores que chegam à região, apenas um arranja serviço. O trem que parte do Porto de Itaqui, para buscar o minério de ferro a 890 quilômetros, na mina de Parauapebas (PA), passa pela cidade de Açailândia (MA), para onde rumam migrantes. O Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia – município apelidado de “cidade de ferro” por abrigar cinco siderúrgicas – critica o fato de as empresas locais, de um lado, exigirem mão-de-obra qualificada; e, de outro, não investirem na formação das pessoas que chegam ao local. (PC)
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Em 11 anos, tarifa de energia sobe 386% PRIVATIZAÇÃO Eletricidade é subsidiada para grandes indústrias, enquanto consumidores arcam com os lucros de geradoras e siderúrgicas Eduardo Sales de Lima da Redação NOS ÚLTIMOS 11 anos, a energia elétrica do Brasil se transformou em uma das mais caras do mundo. E a privatização do setor é a principal explicação. Com o caminho aberto pelo governo Fernando Henrique Cardoso, os megaprojetos de usinas hidrelétricas se tornaram verdadeiras “minas de ouro” para as transnacionais. Aliás, valem mais do que minas de ouro. Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a criação do lago artificial decorrente da construção de duas hidrelétricas (Jirau e Santo Antônio) no rio Madeira irá fechar, por tempo indeterminado, algumas dessas minas. Entre dezembro de 1995 e o final de 2006, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reajustou as tarifas residenciais em 386,2%. Com isso, a eletricidade no Brasil está mais cara que em alguns países europeus, como a Espanha e a França. Conforme dados da Aneel, a tarifa média no país chegou a R$ 327,21 por megawatt/hora (MW/h), o que corresponde a cerca de 172 dólares. Na França, cuja matriz energética é nuclear, o MW/h estava em torno de 144 dólares no final de 2006. Para Dorival Gonçalves Júnior, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), isso aconteceu em conseqüência do modelo neoliberal de gestão da água e da energia. Quando transformadas em commodities e introduzidas no mercado internacional, as tarifas são condicionadas pelos preços em dólar. Em 1995, quando a produção de eletricidade no país era toda estatal, a arrecadação chegava a R$ 14,8 bilhões. Já em 2004, depois de diversas privatizações, a con-
ta se aproxima dos R$ 85 bilhões. Descontada a inflação do período, são cerca de R$ 40 bilhões a mais nas contas de luz da população.
Transnacionais lucram Para Gilberto Cervinsk, da direção nacional do MAB, a tendência é o preço aumentar cada vez mais, tendo em vista o enorme potencial hidrelétrico brasileiro (260 mil MW, dos quais apenas 25% são utilizados) e a sanha do capital privado internacional. Ele chama atenção para o perigo que ronda a região Amazônica, pois 63% do potencial nacional encontra-se lá, principalmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós. O Plano 2015, da Eletrobrás, prevê a construção de mais 494 usinas hidrelétricas. “A energia e a água estão sendo entregues para transnacionais. A maior parte da energia produzida no país tem como destino as indústrias pesadas (eletrointensivas), proibidas nos países ricos porque não geram emprego, destroem o meio ambiente e precisam de uma quantidade de energia enorme”, salienta Cervinsk. Os países ricos, com as seguidas crises de petróleo, deslocaram para os países periféricos esses setores industriais que consomem grandes quantidades de energia, a indústria pesada. Somado a isso, pressionaram a privatização do setor energético brasileiro, provocando um exorbitante aumento dos preços das tarifas para toda a população. Mais um agravante: os proprietários das eletrointesivas, geralmente, são os mesmos de concessionárias de energia elétrica e usinas hidrelétricas. A Companhia Albrás, instalada no Pará, por exemplo, que produz alumínio para exportar para o Japão, paga R$ 20 o MW/h. A Eletronorte subsidia os preços da energia de Tucuruí a ser
Tarifa brasileira (172 dólares por MW/hora) está mais cara que a francesa (144 dólares), que tem sua matriz na energia nuclear fornecida às indústrias. No entanto, enquanto indústrias eletrointensivas como essa empregam três trabalhadores a cada mil MW/h consumidos, a indústria de alimentos e bebidas, voltada essencialmente para o mercado interno, oferta 70 postos de trabalho para o mesmo consumo energético.
Cobiça
Principalmente após meados da década de 1990, as hidrelétricas têm sido planejadas com o único interesse de atender às demandas por energia de transnacionais dos Estados Unidos, Europa e Japão. A Alcoa, por exemplo, maior empresa de alumínio do mundo, com sede nos Estados Unidos, vem tendo benefícios de cerca de 200 milhões de dólares anuais por meio do
uso de energia subsidiada da barragem de Tucuruí para sua fábrica de alumínio, a Alumar. A transnacional recebe da usina, que é do governo, energia a 20 dólares o MW/h, enquanto o consumidor brasileiro paga, em média, 172 dólares. Exemplo concreto do lucro internacional garantido sobre a energia brasileira é o caso da barragem de Itá, em Santa Catarina. Se o preço da energia dói no bolso do catarinense (R$ 0,31 o Kw/h), alimenta o da Tractebel-Suez. A empresa franco-belga controla a barragem de Itá, no Rio Uruguai, com uma concessão de 30 anos. O custo da obra foi de R$ 2 bilhões e o lucro garantido durante 25 anos é de R$ 12 bilhões. (Colaborou Silvia Alvarez, de Brasília-DF)
Audiovisual e combate à manipulação Para o jornalista Achille Lollo, a mídia eletrônica é a que tem mais capacidade de criar mitos e crenças que justificam o status quo e mantêm a exploração
A questão da não renovação do canal da RCTV (Rádio Caracas Televisão, da Venezuela) teve uma cobertura pela mídia conservadora totalmente equivocada. Meias verdades e mentiras foram a tônica das matérias. O episódio valeu uma reflexão profunda dos setores que, no Brasil, lutam pela democratização das comunicações. O jornalista Achille Lollo praticamente deu a partida a esse processo de avaliação ao realizar o documentário RCTV – Fim de um Império Midiático, exibido pela TV Comunitária do Rio de Janeiro, canal 6 da NET. No trabalho, ele mostra que é possível responder objetivamente a uma versão deturpada pelos veículos de comunicação brasileiros, reforçando a luta pela democratização dos meios de comunicação. O documentário pode ser adquirido em formato DVD no endereço eletrônico do Portal Popular (www.por talpopular.org.br). Brasil de Fato – Este é o primeiro audiovisual publicado no Brasil sobre o caso da RCTV. Como nasceu? Achille Lollo – Nós já tínhamos filmado na Venezue-
la. Sabíamos que algo deveria acontecer quando o tempo da concessão chegasse ao fim. Por isso, adiantamos a montagem do filme, de forma que, quando o presidente Hugo Chávez sentenciou a não renovação, 80% das seqüências do filme já estavam prontas. Assim, saiu uma versão na TV Comunitária do Rio de Janeiro, canal 6, da NET, enquanto a versão original foi editada em DVD. Antes, a Associação para o Desenvolvimento da Imprensa Alternativa (Adia) publicava revistas, livros e a página na internet Portal Popular. Agora, ficaram apenas com a página e a produção audiovisual. Quais motivos determinaram a mudança? Em primeiro lugar, as revistas sofreram o impacto das contradições do governo Lula e do próprio lulismo que dividiu e engessou o movimento durante os primeiros quatro anos. Enquanto isso, decidimos investir todas as nossas forças na comunicação audiovisual que, a meu ver, é e será o grande meio de comunicação do futuro. Por isso, operamos uma ampla requalificação técnica, visando a especialização em termos de ter capacidade de pensar, filmar, editar e pro-
saiu na agência CULTURA A Assocação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e a Associação dos Servidores do Incra (Assincra) promovem em São Paulo um ciclo de filmes com temas ligados à questão agrária. Sempre após as sessões, serão realizados debates com diretores e dirigentes de movimentos sociais. Os filmes serão exibidos na sede do Incra em São Paulo. No dia 26 de julho, será exibido o próximo filme, o documentário “Bagaço”, que retrata o cotidiano dos trabalhadores em lavouras de canade-açúcar em Pernambuco. MORTES EM CONFRONTO Em apenas quatro meses, a polícia do Rio de Janeiro matou mais civis do que toda a polícia dos Estados Unidos durante todo o ano de 2006. De janeiro a abril, 449 pessoas foram assassinadas em supostos confrontos com a polícia no Estado, enquanto nos EUA foram 375. A Secretaria de Segurança Pública do governo Sérgio Cabral (PMDB) atribui o elevado número de mortes a uma política “mais ativa”. A média de pessoas mortas pela polícia na gestão de Cabral até abril é de mais de três por dia.
COMUNICAÇÃO
Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ)
www.brasildefato.com.br
duzir uma informação visual para o movimento. Por que a prioridade em produzir DVDs e quantos títulos já foram concluídos? O DVD é muito coletivo, barato e pode ser veiculado na TV e até na internet. Por isso, optamos por fazer em DVD uma revista audiovisual temática. Até agora, editamos a edição 146 da Revista Nação Brasil e as de números 17 e 18 da Conjuntura Internacional – cuja manchete é RCTV: Fim de um Império Midiático. No próximo mês, vai sair o DVD com a edição 7 de Crítica Social com a participação de Virgínia Fontes, João Pedro Stedile, Atílio Boron e Arrigo Boito. Na prática, estamos filmando, editando e publicando em DVD questões temáticas interessantes que antes não eram aproveitadas. A esquerda fala muito em democratizar a imprensa, mas faz muito pouco para criar e apoiar as alternativas. Por quê? Hoje – depois de batalhar durante 11 anos para fazer sobreviver a Adia – estou convencido de que a maioria da esquerda ainda não equacionou o potencial ideológico e manipulador da mídia no âmbito da luta pela democracia e, sobretudo,
no âmbito da luta de classes. Poucos, muito poucos, compreenderam que a informação é mercadoria e que o audiovisual é a mercadoria mais valiosa porque é a que tem mais capacidade de criar mitos e crenças que direta ou indiretamente justificam o status quo e reforçam o atual regime de exploração. Antes, os golpes de Estado eram dados a cada seis meses. Hoje, todos os dias, TVs, rádios e jornais dão golpes para manipular, gradualmente, a opinião publica. Afinal, a moderna função estratégica da mídia é garantir o controle social. Arquivo pessoal
Quem é Achille Lollo é jornalista, diretor das revistas Nação Brasil e Conjuntura Internacional e diretor da Associação para o Desenvolvimento da Imprensa Alternativa (ADIA), além de diretor de documentários políticos, entre os quais Contraponto do Mercosul, Reforma Sindical – Análise e Debate, Imagem e Palavra.
ACM Morreu, no dia 20 de julho, o senador baiano Antonio Carlos Magalhães (DEM, ex-PFL) em função de problemas renais e cardíacos. ACM foi governador da Bahia por duas oca-
fatos em foco
siões durante o regime militar. O senador se destacou pela sua truculência e por ter sido um dos braços civis da ditadura no país. A morte de ACM coincide com um momento em que o senador estava derrotado eleitoralmente: seu candidato ao governo da Bahia foi derrotado, em 2006, por Jacques Wagner (PT), após 16 anos de mandatos consecutivos. Fábio Pozzebom/ABr
O senador Antônio Carlos Magalhães
Hamilton Octavio de Souza
Formação estrangeira Não satisfeito com a acelerada privatização do ensino superior ocorrida nos governos tucanos de FHC, o atual governo está deixando rolar a desnacionalização das universidades privadas. Transformadas em sociedades abertas, com ações no mercado, essas instituições estão sendo compradas pelo capital estrangeiro – enquanto o Ministério da Educação assiste de camarote. Visão oportunista
Há alguns anos, 10 entre 10 empresários brasileiros defendiam com ardor, junto com os economistas governamentais, a intensificação do comércio com a China. Vislumbrava-se a venda massiva de produtos industrializados para a enorme população daquele país. Agora, a China inverteu a balança comercial e os empresários brasileiros pedem proteção urgente contra os produtos chineses.
Rastro destruidor
A Suzano Papel e Celulose deve anunciar em breve a localização de sua quinta fábrica. Tem uma em Suzano (SP), outra em Americana (SP) e duas em Mucuri (BA) – todas sustentadas por plantações de eucalipto, que sugam a água do solo e criam verdadeiros desertos verdes. A escolha do novo local é importante porque, além do dano ambiental, essas fábricas acabam com a produção regional de alimentos.
Lobby farmacêutico
Mordomia vitalícia
Está em disputa judicial – entre o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e o Supremo Tribunal Federal – a constitucionalidade da pensão vitalícia do ex-governador Zeca do PT, aprovada pela Assembléia Legislativa daquele Estado nos últimos dias do seu mandato. A pensão é de R$ 22 mil por mês, mesmo valor do salário atual do governador. O Partido dos Trabalhadores ainda não se manifestou sobre o assunto.
Renúncia estratégica
A rápida renúncia do senador Joaquim Roriz (PMDBDF), antes mesmo do seu caso entrar no processo formal de acusação, confirma as suspeitas que circulam entre Brasília e São Paulo dando conta de que a estratégia foi mesmo tirar o foco de algo muito maior, inclusive das relações do esquema de Roriz no BRB com gente graúda do PSDB paulista, nos tempos do governo de Geraldo Alckmin.
Lançado pelo governo em 2005, o programa de fracionamento de remédios deveria estar funcionando a todo vapor, mas continua sendo sabotado pela indústria farmacêutica – que é dominada pelo capital estrangeiro. Um projeto de lei de 2006 que obriga o fracionamento corre o risco de desaparecer no Congresso Nacional. A indústria e o comércio não estão interessados – os consumidores que se danem.
TV Digital – 1
Favelização acelerada
TV Digital - 2
Estudo recente realizado pela ONG Aliança de Cidades, com financiamento do Banco Mundial, revela que a população favelada de São Paulo cresceu 38% em menos de quatro anos e está próxima de dois milhões de pessoas, o que equivale a quase 20% do número total de habitantes da capital paulista. Talvez seja isso que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, considera sinal de prosperidade.
Nada justifica a pressa do Ministério das Comunicações para exigir das emissoras de TV o funcionamento do modelo digital em dezembro, a não ser para favorecer as grandes concessionárias que têm condições de sair na frente com a nova tecnologia e as indústrias de conversores e aparelhos de TV. Como o ministro é sabujo da Rede Globo e da Abert, tudo é possível. De acordo com a Associação Americana de Eletrônica de Consumo, a TV digital não alcança nem 30% dos telespectadores dos Estados Unidos na TV paga, embora as transmissões digitais naquele país existam há quase 10 anos. Aqui no Brasil, onde a população tem poder aquisitivo mais baixo, a TV digital terá sinal aberto e servirá para estimular a audiência e a compra de conversores e novos aparelhos.
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brasil
Ricardo Stuckert/PR
Ataque à Previdência Social ECONOMIA Fórum Nacional de Previdência Social encerra suas atividades em agosto; patronais e mídia corporativa querem sistema mais restritivo
4,4 bilhões
R$ foi quanto o orçamento da Seguridade Social superou as despesas de todo o setor, em 2006 tão da DRU não foi abordada nas reuniões do fórum.
Pressões
Renato Godoy de Toledo da Redação O FÓRUM Nacional de Previdência Social (FNPS) foi instaurado em janeiro como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para discutir modificações nas pensões e aposentadorias. No final de agosto, o FNPS deve encerrar suas atividades e encaminhar à Presidência da República um relatório com as demandas apontadas no fórum. No relatório, pode constar um projeto de reforma, que seria enviado ao Congresso. Composto por banqueiros, empresários e centrais sindicais, o FNPS tem servido como um balão de ensaio para uma nova alteração na legislação previdenciária. Os representantes dos trabalhadores, contrários ao aumento da idade mínima para a aposentadoria e do tempo de contribuição, têm sentido uma forte pressão dos empresários, dentro do Fórum, e da imprensa corporativa no sentido de ressaltar a suposta benevolência excessiva da Previdência atual. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique, participa do Fórum defendendo a proposta da entida-
Quanto
O presidente Lula discursa durante cerimônia de instalação do Fórum Nacional da Previdência Social
de por uma Previdência que inclua os trabalhadores que estão fora do sistema, não o contrário. Para a Central, o FNPS deveria encaminhar para o governo uma proposta de geração massiva de empregos formais para os próximos dez anos, para aumentar o número de trabalhadores no sistema previdenciário e, por conseguinte, incrementar a receita.
Falso deficit
A principal base de argumentação da CUT, tal como a de economistas progressistas, é que a Previdência não é deficitária, como se veicula na imprensa corporativa. Segundo a Constituição, o orçamento da Seguridade Social –
que inclui Previdência, saúde, assistência social e seguro-desemprego – é composto pela contribuição de empregados e empregadores, além de impostos. Em 2006, o orçamento da Seguridade superou em R$ 4,4 bilhões as despesas de todo o setor. No entanto, essa quantia foi majoritariamente consumida pelo pagamento de juros e amortização da dívida pública. A imprensa corporativa ignora esses dados e divulga um “rombo” de R$ 42 bilhões na Previdência, utilizando um cálculo em que as contribuições de empresários e trabalhadores são as únicas receitas. Esse desvio de verbas tornou-se “legal” a partir de
1994, quando o então ministro da Fazenda, ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, criou o que hoje é chamado de Desvinculação das Receitas da União (DRU). À época, o Partido dos Trabalhadores fez oposição à medida. Pórem, quando comandava o Ministério da Fazenda, o hoje deputado federal Antonio Palocci (PT-SP), fez um mea culpa e ressaltou a importância da DRU para a austeridade fiscal do país. O economista Guilherme Delgado, que esteve presente numa das reuniões do FNPS, aposta que, se a DRU fosse extinta, ninguém mais falaria em deficit da Previdência. Segundo o pesquisador, a ques-
Apesar da proposta da CUT, o ministro da Previdência e ex-presidente da Central, Luiz Marinho, já demonstrou que pretende atender a um pedido de Lula e “salvar” a Previdência até o final do ano Delgado avalia que o ministro anterior, Nelson Machado, tinha mais clareza sobre o tema. “Mas a palavra final sobre uma reforma é do presidente e ele é suscetível às pressões dos grandes interesses”, alerta. Alguns setores da CUT já defendem a saída do FNPS, alegando que a inclusão de mais trabalhadores na Previdência não está na sua pauta.
Benefício mínimo
Para Delgado, o governo tem que se posicionar com mais firmeza na questão da Previdência e assumir que o gasto com a Seguridade significa política social de garantia de cidadania. Delgado rechaça a idéia de não repassar os tributos da Seguridade Social para a Previdência. “A despesa previdenciária é financiada por contribuições previdenciárias e por tributos. A despesa financiada por tributos tem que continuar a existir, pois em qualquer lugar do mundo os tributos bancam o benefício mínimo. Isso tem que ficar mais explícito e o governo não tem tido muita coragem de explicitar”, completa.
Movimento de mulheres realiza fórum paralelo da Redação Para tratar das questões específicas do universo da mulher trabalhadora e não legitimar prováveis retiradas de direitos no “fórum oficial”, o movimento de mulheres criou um Fórum Itinerante e Paralelo sobre Previdência Social. “Estamos levando para os Estados a discussão sobre como criar uma Previdência inclusiva e distributiva”, afirma Neusa Tito, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Ela explica que o movimento se recusou a pleitear uma vaga no FNPS por considerar que a correlação de forças não era favorável; e que “esses fóruns acabam referendando políticas que não defendemos”. O fórum das mulheres luta pela expansão da aposentadoria especial para outros setores do campo, sobretudo aqueles com maior insalubridade e também pela garantia de aposentadoria às donas de casa. A próxima atividade do fórum será em 9 de agosto, em São Paulo (SP), às 14 horas, em frente à Câmara Municipal. (RGT)
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brasil
Consulta Popular conclui Assembléia MOBILIZAÇÃO Reunidos em Belo Horizonte (MG), cerca de 200 militantes da Consulta Popular decidem aprofundar a organização interna e o trabalho de base como forma de contribuir para o reascenso do movimento popular Jorge Pereira Filho
Jorge Pereira Filho e Joana Tavares de Belo Horizonte (MG)
Compromissos
César Sanson, militante do Paraná, entende que a Assembléia reafirmou algumas das principais características da Consulta Popular. “Reforçamos uma aposta no trabalho de base, na retomada dos princípios e valores, do debate político, na formação, na organização. Apostamos que é possível construir outro tipo de nação, mas temos a clareza de que não somos a única força social do país, temos limites e potencialidades”, avalia. Para ele, o momento é de fomentar o debate sobre um projeto popular para o país, uma discussão relegada ao segundo plano nos últimos anos sobretudo pela decepção com a trajetória do PT, partido que deteve a hegemonia do projeto político da esquerda brasileira nos últimos anos. “A Consulta se propõe a reaglutinar forças e a colocar em marcha essas lutas sociais que podem dar uma configuração para essa discussão teórica”, afirma. Sandra Procópio, do Mato Grosso do Sul, ressalta que nesse processo a Consulta Popular está se consolidando como instrumento político, reafirmando o seu caráter socialista. “Vemos um salto de qualidade não só na expansão da organização, mas também na
Um dos principais desafios da organização é trabalhar a juventude, a questão urbana e por um sindicalismo popular
unidade em torno do debate, de nos firmarmos como um instrumento que aprofunda o conhecimento da realidade brasileira”, analisa. Exemplo dessa ampliação da Consulta foi a escolha da nova Coordenação Nacional, que teve uma taxa de renovação de 40% e uma crescente participação das mulheres – agora, são 30% dos integrantes, antes eram 17%.
Desafios
Para Gilmar Mauro, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Assembléia não se limita a
ser um evento com fim em si próprio. “É um dos momentos importantes de síntese de nossa caminhada, como um grande curso de formação. Produz-se uma síntese, com alguma contradição, natural, positiva, para que o processo não se cristalize. Nosso esforço é avançar para que a construção se transforme em uma força social e política”, afirma. Segundo o dirigente semterra, a Consulta tem como desafios avançar no trabalho da questão urbana, em um cenário de elevada fragmentação da classe trabalhado-
ra, e também com a juventude. “Precisamos também estimular as lutas sociais, sempre com a visão ampla de que somos um instrumento dentro de um conjunto que já existe e outros que serão criados”, diz. Milton Viário ressalta, ainda, que outra perspectiva de atuação para a organização é avançar no sentido do desenvolvimento do que classifica de sindicalismo popular. “Uma força e poder de luta com um pé no local de trabalho e outro na vila, no bairro, como forma de dialogar com a diversidade da vida do trabalhador”, propõe.
Carta aos Lutadores e Lutadoras do Povo
Encontro homenageia a memória dos que se dedicaram ao povo Jorge Pereira Filho
UM AVANÇO do ponto de vista orgânico e teórico. Esse é o principal saldo destacado por militantes da Consulta Popular que, entre 17 e 21 de julho, realizaram a sua 3ª Assembléia Nacional, em Belo Horizonte (MG). Os seis dias de debates e encaminhamentos definidos por delegados de 17 Estados confirmaram a trajetória da organização, que completa dez anos de existência em 2007. “Saímos com uma clareza ainda maior de que o nosso principal trabalho é transformar a sociedade brasileira, a partir da unidade dos lutadores sociais e estímulo à mobilização popular. Para isso, temos de nos organizar mais e nos preparar de forma adequada”, resume Milton Viário, presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul. A Assembléia foi marcada pelo encontro entre militantes mais antigos – que estiveram presentes na criação da Consulta Popular em 1997, na cidade de Itaici (SP) – e outros mais novos na organização, com destaque para a participação dos jovens. Militantes como Rui Fernandes que, em Florianópolis, participa do Movimento Passe Livre. “Saio daqui animado. Temos uma grande tarefa pela frente, concreta, e estamos dispostos a participar dessa mesma luta. Creio que esse convívio dos movimentos com a Consulta Popular fortalece a luta popular”, opina. Já Paula Adissi, militante de João Pessoa (PB), começou a participar do debate da organização ainda em 2000, quando atuava em um grêmio estudantil, durante o colegial. À época, procurava uma organização para militar. “Acabei me identificando com essa proposta da Consulta de incorporar também uma mística carregada de conteúdo político-ideológico, uma subjetividade, a pedagogia do exemplo, enfim, algo que também sentimos e devemos cultivar constantemente”, relembra Paula que, hoje, participa de um coletivo de jovens na Paraíba. Para ela, a Assembléia mostrou um amadurecimento da organicidade da Consulta Popular. “Hoje, somos um instrumento político, um espaço de quadros que estão em luta. Percebemos também que somos complexos e é necessário seguir avançando, tanto teoricamente quanto em organização, para colocarmos em prática essa construção”, resume.
Débora Dias de Belo Horizonte (MG) Uma linha no tempo da resistência. Do combate ao fascismo na Guerra Civil Espanhola em 1936, contra o nazismo na França em 1942, passando pela luta clandestina durante a ditadura militar no Brasil, a vida política do militante socialista Apolônio de Carvalho foi a inspiração para o painel usado como principal ornamento da III Assembléia Nacional da Consulta Popular. Ele e a companheira, Renée France, foram homenageados, ao lado de Milton Santos, Madre Cristina, Kiva Maidanik, Rui Mauro Marini e Olga Benário, que tiveram perfis retratados durante a programação da assembléia. O painel de quatro metros de altura e seis de comprimento se transformou em um mosaico de experiências da esquerda social, incluindo o plebiscito da Dívida Externa Brasileira, manifestações dos povos do campo e da cidade, a criação do jornal Brasil de Fato. “Tratamos da vida do Apolônio e trazemos também para a nossa realidade de hoje. A idéia é da caminhada que nós vamos fazendo, que não tem início nem fim”, explica a autora do painel, a artista plástica Diva Braga, da coordenação estadual da Consulta Popular de Minas Gerais. Foram dez dias de trabalho para concluir o painel principal. De dia, as tarefas da organização da assembléia, de noite, a pintura. Cinco painéis menores ajudavam a compor o cenário, com os perfis dos outros homenageados. Sobre a criação das obras, ela explica: “Arte não é questão de aprender, mas de não desaprender depois de criança”.
Painel se transformou em mosaico de experiências da esquerda social
Além da pintura, a cultura se manifestou de diferentes formas durante a assembléia. Na participação dos Estados nas místicas, nas equipes de animação, nos esquetes de teatro e, em especial, na programação da noite do dia 20. O acolhimento mineiro, as comidas típicas e a música regional tomaram conta do ginásio. “A cultura perpassou todo o encontro. Percebemos que é preciso dar um incentivo nesse campo, o que influenciou no clima da plenária”, avaliou Diva. Nome da III Assembléia Nacional da Consulta Popular, Apolônio de Carvalho é considerado um exemplo único na trajetória política brasileira. Nascido em Corumbá (MS), engaja-se na luta pelos ideais socialistas quando ainda cursava a Escola Militar do Realengo (RJ), no início da década de 1930. Ajuda a criar a Aliança Nacional libertadora (ANL), em 1935. É preso pelo governo Vargas e expulso do Exér-
cito. Ingressa no Partido Comunista Brasileiro (PCB), levantando bandeiras como por reforma agrária, contra o os monopólios estrangeiros, por autonomia sindical e amplas conquistas sociais. Com outros vinte brasileiros, Apolônio vai para a Espanha integrar-se às Brigadas Internacionais, no combate aos fascistas liderados pelo general Francisco Franco. Parte para a França e integra a Resistência Francesa em 1942. Lá, conhece a militante comunista Renée, que se tornou companheira de toda vida. No Brasil, participou da oposição popular e democrática ao regime militar, vive na clandestinidade, é preso e torturado. Parte para o exílio com a família. Depois da anistia, volta ao País, em outubro de 1979. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e apoiador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Apolônio faleceu em 2005 deixando um legado de luta e esperança.
Realizamos em Belo Horizonte (MG), de 17 a 21 de julho de 2007, a 3ª Assembléia Nacional do Movimento Consulta Popular, onde reunimos mais de 200 delegados que atuam em diferentes frentes de lutas em todo o país. Analisamos a natureza do desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes nacional e internacional, onde a hegemonia do capital financeiro nos coloca diante de diversos desafios. Diante disso, assumimos o compromisso de colocar todas as nossas energias para seguir organizando a classe trabalhadora, em defesa dos seus direitos e pela transformação social e política do país. Com estes objetivos estabelecemos as seguintes tarefas a serem cumpridas pela nossa militância: 1 – Organizar e mobilizar as forças sociais para lutarem contra o capital, que domina a nossa economia, gera pobreza, e ameaça os direitos sociais e previdenciários da classe trabalhadora; 2 – Lutar para impedir a implantação dos projetos econômicos que devastam o meio ambiente, privatizam as águas e se apropriam das terras brasileiras; 3 – Defender a soberania alimentar, energética e política de nosso país; 4 – Impulsionar as lutas por melhores condições de vida no campo e na cidade, garantindo o acesso à terra, moradia, educação, saúde, distribuição de renda e a ampliação dos direitos previdenciários; 5 – Insurgir-se contra a monocultura, os plantios de cultivos transgênicos, a utilização de insumos agrícolas químicos, a apropriação e destruição da biodiversidade; 6 – Lutar contra todas as formas de discriminação, violência policial e criminalização dos pobres e dos movimentos sociais; 7 – Enfrentar e combater todas as formas de ingerência imperialista em qualquer parte do mundo. Para garantirmos que estas tarefas se realizem, precisamos fortalecer a nossa organização da Consulta Popular nos empenhando cada vez mais: 1 – No estudo, no conhecimento e na compreensão da realidade brasileira; 2 – Empenhar-se para elevar a consciência e a auto-estima do povo brasileiro; 3 – Estimular todas as formas de lutas sociais; 4 – Formar um número cada vez maior de militantes, preparados para as tarefas das lutas sociais; 5 – Participar e contribuir na construção da Assembléia Popular em nossos Estados e no maior número de municípios; 6 – Priorizar o trabalho da organização da juventude em especial nos grandes centros urbanos; 7 – Seguir construindo meios de comunicação da própria classe trabalhadora com instrumentos de formação política, valorização e resgate da cultura popular; 8 – Intensificar a disputa de idéias na sociedade através do debate do Projeto Popular para o Brasil; 9 – Contribuir com a unidade entre todas as forças organizadas da classe trabalhadora; 10 – Praticar a solidariedade permanente com todos os povos em luta no mundo, em especial com o povo da Palestina, Iraque, Haiti, Cuba e Venezuela. O conjunto de decisões políticas e organizativas nos colocam em um novo momento de nosso processo de construção. Reafirmamos hoje o compromisso, expresso nas cartas da I e II Assembléia Nacional : “Construiremos uma organização de novo tipo, dirigida para a luta, e cujas marcas são a unidade, a disciplina militante e a fidelidade ao povo. Uma organização que pratica os valores da solidariedade, da gratuidade, da honestidade e do trabalho coletivo. Isso é condição para que possamos enfrentar a crise, de dimensão histórica, que vive o Brasil. Uma crise cuja superação exigirá lutas e sacrifícios, que serão recompensados pela construção de uma pátria livre, justa e solidária.” Somos a Consulta Popular. Pátria Livre, Venceremos! Belo Horizonte, 21 de julho de 2007.
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internacional
Bolivianos em defesa de La Paz
MOBILIZAÇÃO POPULAR Movimentos sociais se opõem à tentativa de retirar a sede do governo próximo da base popular Reprodução
da Redação MAIS DE um milhão de pessoas tomaram as ruas de El Alto, altiplano boliviano, no dia 20, em um protesto contra a proposta de transferência da sede do governo da Bolívia da cidade de La Paz para a cidade de Sucre, em discussão na Assembléia Constituinte. Sob o lema “a sede não se move”, os manifestantes deram um ultimato nos constituintes para que descartem a proposta. O prazo estipulado foi dia 6 de agosto. Caso contrário, advertiram que preparam uma greve departamental indefinida e uma mobilização geral e nacional, incluindo uma vigília permanente na própria Assembléia. A mobilização foi considerada a maior mobilização dos últimos anos no país. De acordo com a polícia estadual, mais de um milhão de pessoas estiveram presentes ao protesto; os organizadores acreditam que foram pelo menos dois milhões. O protesto foi liderado pelo governo do Departamento (similar ao Estado) de La Paz e pelas prefeituras locais. “A resposta da população foi maior do que imaginávamos”, disse o governador José Luis Paredes.
Bolívia unida
O tom dos discursos foi de defesa da unidade do país para salvar o processo de mudança que foi “conseguido às custas de sangue” e para evitar que a Assembléia Constituinte “naufrague”, diante da proposta rejeitada de mudança de sede levantada por líderes civis e políticos do Departamento de Chuquisaca, com apoio de lideranças de Santa Cruz de la Sierra, Tarija, Beni e Pando – todos opositores de Evo Morales. Os manifestantes também alertaram para o perigo de um “possível enfrentamento entre irmãos” que poderia ocorrer se a reivindicação de Sucre prosperar. Hoje, essa cidade é a capital constitucional do país e sede do Poder Judiciário. Geograficamente, está localizada próximo a Santa Cruz de La Sierra, região onde prevalesce politicamente a minoria branca e ligada ao agronegócio. Parte
dos constituintes quer repassar para Sucre a “capitalidade plena”, levando para lá a sede dos poderes Executivo e Legislativo, estabelecidos atualmente em La Paz como resultado de uma guerra civil no final do século 19. Os defensores da medida argumentam que a cidade teria melhores condições de representar a totalidade do país, já que fica na zona central, além de ser seu berço histórico. Até 1899, a cidade era a sede do governo boliviano.
Ofensiva da direita
Os movimentos sociais bolivianos, por sua vez, enxergam a proposta como uma ofensiva da elite política e econômica do país para reduzir o poder da pressão social sobre os governantes. La Paz fica próxima a El Alto, um município pobre, de maioria indígena a exemplo da população boliviana. Os habitantes da região protagonizaram ao lado dos movimentos camponeses um histórico de mobilizações sociais que culminaram na queda de dois presidentes no início da década – Gonzalo Sanchéz de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005). La Paz e El Alto formam, ainda, a maior concentração urbana da Bolívia, com cerca de 2,7 milhões de habitantes (estimativas oficiais de 2006).
Para Claudio Álvarez, da Central Operária Regional de El Alto, a proposta de mudança da capital está sendo eleborada pela direita boliviana. Já o presidente da Federação de Associações de Moradores (Fejuve) de El Alto, Nazario Ramírez, declarou que a mobilização estava sendo feita “contra os partidos neoliberais, a oligarquia econômica e a política”. O presidente da representação departamental de La Paz na Assembléia, Macario Tola, disse que é preciso “deter os que buscam deslegitimar a Assembléia Constituinte, que é resultado de um processo de séculos de duração”. O presidente da Bolívia, Evo Morales, afirmou que a manifestação é uma garantia da unidade e das reformas no país. “La Paz lidera a união nacional, luta com muito sentimento por essas transformações profundas que vive o país”, disse. Ele destacou o predomínio de bandeiras nacionais, o que mostra “um sentimento pela pátria e a unidade do povo”. Para o presidente, a mudança da sede do governo provocaria um confronto regional. Na Assembléia Constituinte, os líderes regionais e políticos de Santa Cruz, Tarija, Pando e Beni reivindicam também a autonomia de gestão nos seus departamentos. (Agências internacionais)
Manifestantes acreditam que mudança busca afastar governantes da pressão popular
Guerra Federal: na disputa entre as elites, morrem os indígenas da redação A tentativa de transferência da sede administrativa do governo boliviano, como propõe hoje a elite política e econômica do país, tenta reverter uma decisão histórica, tomada em 1899. À época, os dois grupos hegemônicos na condução do país – liberais e conservadores – protagonizaram um conflito conhecido como Guerra Federal. A desvalorização do preço internacional da prata implicou uma transferência do poder econômico da região de Sucre para La Paz. Ao mesmo tempo, a influência política do Partido Conservador encontravase em declínio frente à ascensão do Partido Liberal. O conflito foi rápido e durou dois anos, causando a morte de 1.300 pessoas. Além do deslocamento da sede do poder político para La Paz, é atribuído a esse processo a consolidação do Estado castiço e excludente através de sua nova expressão elitista hegemonizada pelos liberais.
TURQUIA
Nesse processo, os indígenas foram usados como massa de manobra pela classe dominante. A Bolívia, desde o período colonial e após a formação da República, em 1825, viveu uma espécie de apartheid político. Os indígenas não possuíam direitos da cidadania. Vigorava um sistema “censitário”. Eram impedidos de participar da política institucional os que não soubessem ler ou escrever, não tivessem uma renda mínima e estivessem em relação de servidão. Em 1889, em meio à guerra das elites políticas, eclodiu uma grande rebelião indígena, liderada pelo aimará Wilka Zárate, que construiu um exército e um governo autônomo, proclamando a “libertação dos povos aborígenes”. Em um primeiro momento, os indígenas lutaram junto aos liberais pela federalização e foram decisivos na derrota do exército conservador. Depois, quando reivindicaram sua autonomia, foram derrotados rapidamente em um processo que causou um ciclo de fragmentação local do movimento político indígena.
IRAQUE
Islâmicos vencem eleições legislativas
Repoohnomis
Primeiro-ministro diz que vai respeitar o laicismo; setores como o Exército temem “islamização” das instituições
da Redação O número de ataques no Iraque durante o mês de junho alcançou a média mais alta dos últimos quatro anos, com um aumento significativo desde fevereiro de 2007 quando foram enviados outros 30 mil soldados estadunidenses ao país árabe. Nesse período, houve uma média de 178 ações por jornada contra as forças de ocupação, o exército e
da Redação O Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) venceu as eleições legislativas da Turquia, em 22 de julho, assegurando um novo mandato de cinco anos para o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. Em seu primeiro discurso, o político se comprometeu a respeitar o laicismo e a continuar com as reformas econômicas e democráticas, assim como promover a incorporação do país à União Européia. O AKP, tendência islâmica moderada, teve 46,3% dos votos, o que garante 339 dos 550 assentos parlamentares. “Nossa unidade e democracia saíram fortalecidas”, disse Erdogan diante de uma multidão de seguidores reunidos em frente à sede do AKP em Ancara para comemorar. Erdogan – que agora vai para o seu segundo mandato – disse que a vitória do AKP representa um triunfo para a democracia turca, afirmou que nunca se distanciará dos princípios básicos da República e prometeu respeitar a “diversidade do país”. Os opositores do AKP temiam que uma vitória de um partido de raízes islâmicas prejudicaria as tradições seculares da Turquia. Setores laicos da sociedade, entre eles o exército, acusam o partido de islamizar as instituições. Em meio à disputa política, os militares, que
Junho: número recorde de ataques contra a ocupação a polícia iraquiana, os civis e a infraestrutura em geral, segundo estatísticas do Pentágono. Os ataques cresceram nos últimos cinco meses com o aumento do efetivo nas ruas da capital e em outras regiões, concebido pelo governo como uma mudança de tática para frear o descontrole e a insegurança. Mais de 90 mil soldados estadunidenses e iraquianos foram convocados na operação até que os resultados sejam atingidos. (Prensa-Latina)
VENEZUELA 46,3% dos eleitores deram a vitória ao AKP, de tendência islâmica moderada
Militares já derrubaram quatro governos desde 1960 e avisaram que vão defender o caráter laico do Estado turco desde 1960 já derrubaram quatro governos, deixaram clara sua posição contra qualquer ameaça ao Estado laico, princípio essencial da Turquia moderna, fundada em 1923. Antes das eleições, a cúpula militar afirmou que estaria pronta a defender qualquer atentados ao laicismo, caso fosse necessário. O atual presidente do país, Ahmet Necdet Sezer, jurou resistir ao que denominou de agenda islâmica do partido AKP. O governo de Erdogan rechaçou as acusações ao afirmar que o balanço de seus anos em poder provam o contrário. Erdogan, de 53 anos, busca com suas reformas o ingresso do país
na União Européia. O presidente da Comissão Européia, José Manuel Barr, afirmou que a Turquia ainda não está na lista, mas assegurou que as negociações continuam. A principal formação de oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP), obteve 20,9% dos votos e 112 assentos, seguido pelo Partido da Ação Nacionalista (MHP), com 14,2% dos votos e 71 assentos. Nenhum outro partido conseguiu superar 10% dos votos em nível nacional, o necessário para obter representação no Parlamento, ainda que 27 candidatos independentes tenham conseguido um assento, entre os quais há 24 curdos. (Agências Internacionais)
Igreja católica critica governo; Chávez rebate acusações O presidente comenta:“não sei o que Cristo faria a alguns bispos que se põem ao lado dos tiranos” A divulgação de um documento do Conselho Episcopal Venezuelano (CEV) criticando o governo de Hugo Chávez estremeceu ainda mais a relação complicada entre a Igreja Católica e o presidente da Venezuela. O documento chama o governo de Chávez de populista, critica a não-renovação da concessão do canal RCTV, o lema “Pátria, Socialismo ou Morte” e afirma que “ninguém, e muito menos o presidente da República, tem o direito a insultar ou agredir pessoas ou instituições que discordem de suas opiniões ou projetos”. O presidente rebateu dizendo lamentar que o Conselho atue “como
um partido”. “Lamento muito isso, que ataquem com mentiras, isso é um pecado. Eu me nego a pensar que os bispos e cardeais, que cursaram muito anos de estudo, não saibam o que dizem”, disse Chávez. O presidente da Venezuela chamou a elite da igreja de “fariseus hipócritas” e insinuou que Jesus Cristo – a quem costuma chamar de “o primeiro socialista” – está do seu lado. “Não sei o que Cristo faria a alguns bispos aqui da Venezuela, que se põem ao lado dos tiranos, dos que exploram o povo, dos que traem o pensamento e a obra de Jesus e apunhalam Cristo pelas costas”, criticou. (Agências Internacionais)
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áfrica
Camponeses de Madagascar lutam em busca da titulação das suas terras Kellynroy
ÁFRICA Movimentos temem retrocesso no campo devido a influências imperialistas na região e ingerências de futuros governos conservadores Ana Cláudia Mielki de Brasília (DF) MESMO COM um histórico de colonização, Madagascar oferece um panorama diferente sobre a relação do homem com a terra. Com uma população composta por 70% de camponeses, o país realizou seu processo de reforma agrária ainda na década de 1960, por conta da instauração da Primeira República, logo após a independência da França, sua antiga colonizadora. Com a instauração do regime socialista, entre os anos de 1975 e 1982, ampliou-se ainda mais a distribuição no campo, retomando as terras de posseiros estrangeiros ainda do período colonial e reafirmando a terra como um bem coletivo. Segundo Hajasoanirina Rakotomanndimby, membro da Coalition Paysanne de Madagascar (COM, Coalizão Camponesa de Madagascar) e um dos participantes convidados do 5º Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizado em junho, a grande luta dos camponeses malgaxes atualmente é pela titulação das terras. Como estas pertencem ao Estado, eles temem que, sob a ingerência de um futuro governo conservador, possam sofrer a perda de seu direito, historicamente, conquistado. Brasil de Fato – Qual a situação atual da terra em Madagascar? Hajasoanirina Rakotomanndimby – Desde a independência da Ilha de Madagascar, as terras pertencem ao Estado republicano. Todos os camponeses trabalham as terras como eles querem, mas nenhum tem título de posse. A terra não pertence aos camponeses e sim ao Estado republicano. Mas, então, os camponeses começaram a pensar que, para serem mais livres, eles tinham que ter uma certa segurança sobre o domínio das terras – precisávamos de certas garantias. Nós conversamos muito com os governos e com o Ministério da Agricultura e começamos a fazer uma titulação de terras dos camponeses, através da Plataforma de Organizações Camponesas. Em 2006, desenvolvemos um Programa Nacional Fundiário e o governo começa, com a presença dos camponeses, a garantir essa regularização fundiária, em toda Ilha de Madagascar. Portanto, existe uma cooperação estreita entre o governo e as organizações camponesas, na propriedade fundiária. Se as terras são todas pertencentes ao Estado
republicano, não existe propriedade privada de terras por parte de empresas ou grandes latifundiários? Sim, também existe a presença das grandes empresas porque, na época da colonização, os estrangeiros se apropriaram em grande quantidade das terras mais férteis e plantaram produtos destinados para a exportação, como a baunilha, o café, o cravo da índia, o açúcar, o tabaco e o algodão. A partir da independência, o Estado está tentando, aos poucos, recuperar essas terras, para distribuilas aos pequenos camponeses que estão no entorno desses terrenos. Então, essa ação de recuperação é uma política estatal? Sim, é uma política do Estado, sobretudo, foi uma política do regime socialista, quando houve a nacionalização das terras. A independência da França ocorreu no ano de 1960. Foi uma independência política, porém, não econômica. A economia durante a Primeira República continuou gerenciada pelos colonizadores. Essa Primeira República durou de 1960 a 1975. Já o regime socialista foi de 1975 a 1982. E os grandes latifundiários que ainda permanecem com as terras tentam avançar sobre as terras camponesas? Hoje não porque já temos uma política do Estado, com o Programa Nacional Fundiário, que está tentando recuperar terras para os pequenos camponesas malgaxes. E temos uma política agora para evitar investimentos estrangeiros em Madagascar. Estamos tentando acelerar a titulação das terras para os camponeses para vermos se cada camponês consegue ter a terra sob sua posse. As grandes empresas plantam transgênicos? A nossa plataforma já falou ao Estado: “não aos transgênicos”. E estamos constantemente tentando sensibilizar as pessoas para que elas usem as sementes locais. Produzam também dentro de suas organizações as sementes melhoradas pelos próprios camponeses. Mas eu acredito que os organismos geneticamente modificados já estão presentes em Madagascar, mesmo que não oficialmente. Eles já devem estar presentes nas grandes concessões de terras onde há plantações de soja e milho. Tendo em vista que, em Madagascar, o Estado
assume um papel de proteger os camponeses e as terras, qual o papel dos movimentos sociais? Na realidade, proteger as terras não é um papel apenas do Estado. O que temos hoje foi resultado da nossa luta para falar ao Estado que todos os camponeses devem ter terras suficientes para sustentar sua família e uma titulação para garantir a posse de cada um. Porque os camponeses temem que outros governos cheguem para fazer a titulação – e com tanta corrupção que existe – acabem deixando os camponeses sem terra. Agora, nós temos algumas vitórias e essas vitórias significam que o Estado e o Ministério da Agricultura não podem tomar decisões sozinhos – sem a presença dos camponeses – em nível nacional. Nunca vai haver política ou lei que será adotada sem a nossa presença e isso é uma grande vitória para nós. No entanto, o imperialismo está tentando perturbar a nossa política, por isso temos que ficar sempre prontos e dispostos a salvaguardar nossas conquistas. E quais são os países que operam influência imperialista sobre Madagascar? O antigo colonizador, a França, e agora os estadunidenses que estão chegando. Isso ocorre porque, para sair da cooperação estreita com a França, nos abrimos com os Estados Unidos, a China, a Alemanha, o Japão e a África do Sul. O que o Brasil – uma realidade tão diferente, onde ainda não houve reforma agrária, onde há uma população enorme de sem-terra – pode tirar de lição de Madagascar? Nós fizemos uma comunicação com cerca de 100 jovens do MST, falamos um pouco da nossa realidade. Afirmamos que é preciso fazer uma cooperação, discutir e conversar para não aceitar desenvolvimento se os camponeses não têm terra. Isso porque não há desenvolvimento possível se os camponeses não têm terra. A gente fala camponês, mas o semterra não é um camponês. Isso é a miséria. E como é que um governo pode aceitar que sua população seja pobre? Um segundo ponto é a cooperação, é conversar com os outros. Nosso país é muito pequeno, mas seria bom estudar o nosso Programa Nacional Fundiário, o que a gente fez. E, se o MST quiser, estão convidados para ir ao nosso país, conhecer a nossa luta e a nossa resistência.
Camponês malgaxe trabalha em plantação de arroz, base da alimentação do país
“Nunca vai haver política ou lei que será adotada sem a nossa presença e isso é uma grande vitória para nós. No entanto, o imperialismo está tentando perturbar a nossa política, por isso temos que ficar sempre prontos e dispostos a salvaguardar nossas conquistas”
DARFUR
Reprodução
ONU e União Africana discutem a paz com rebeldes
Grupo de soldados rebeldes de Darfur
Líderes de duas organizações rebeldes impõem condições para comparecer da Redação A União Africana (UA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) pretendem organizar em Arusha, na Tanzânia, um encontro com a presença dos grupos rebeldes da região de Darfur, no Sudão, que não assinaram um acordo de paz com o governo sudanês na Nigéria, em maio de 2006. Na ocasião, apenas uma das três organizações firmou o tratado. De lá para cá, os outros dois grupos se dividiram em mais de dez facções. Desde 2003, tais grupos rebeldes – formados principalmente por agricultores negros, que são maioria na região – estão em conflito com o governo do Sudão, comandado por árabes. Este tem utilizado seu exército e a milícia Janjaweed para atacar a população civil da área, como forma de eliminar a base social dos revoltosos. Estima-se
que, até agora, entre 200 mil e 400 mil pessoas foram mortas e 2,5 milhões se tornaram refugiadas. Para o jornalista estadunidense David Morse, em entrevista concedida ao Brasil de Fato para a edição 219, existem quatro causas principais para o conflito: a disputa por terra e água entre negros e árabes, a marginalização extrema do povo de Darfur, a tentativa do governo sudanês de “islamizar” e “arabizar” a região e o objetivo do mesmo de “limpar” o terreno para a exploração de petróleo. A UA e a ONU esperam que os grupos convocados para o encontro, previsto para acontecer entre os dias 3 e 5 de agosto, concordem com uma conferência futura para se negociar a paz na região e estabeleçam uma plataforma unificada para as conversações. No entanto, os líderes de duas importantes facções impõem condições para comparecerem em Arusha. Os demais con-
Quanto
200 mil
Mais de pessoas mortas nos ataques contra os movimentos rebeldes cordaram em se apresentar. Abdel Wahed Mohamed el-Nur, líder do Sudan Liberation Movement (SLM, Movimento de Libertação do Sudão), disse que seu grupo estará ausente se suas demandas não forem atendidas. Entre elas: compensações para as vítimas do genocídio e uma zona de exclusão aérea sobre toda a região de Darfur. Um dos tipos de ataques do governo à população civil da área são bombardeios realizados por aviões. Outra exigência é a criação de um programa “petróleo por comida”. Hoje, grande parte das receitas obtidas com o recurso é utilizado pelo governo para financiar os ataques.
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américa latina Eduardo Jiménez Fernández
Angel Rizo
Família se reúne para pintar bandeira da APPO; ao lado, manifestantes sofrem repressão policial
Em Oaxaca, governador reprime manifestação cultural e pacífica MÉXICO Movimentos realizavam festividade alternativa em protesto contra o caráter elitista e turístico que o governo conferiu a Guelaguetza, uma celebração tradicional do Estado. Em junho, a rebelião de Oaxaca completou um ano Pedro Carrano de Curitiba (PR) HÁ POUCO completou um ano a rebelião no Estado de Oaxaca (México) contra o governador Ulises Ruiz Ortiz, o famigerado URO. Organizado na Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), o movimento viveu o período de repressão mais forte no final de novembro de 2006, conheceu o terror e a inevitável desmobilização. Ao mesmo tempo, buscou criar espaços de resistência cultural e consolidar a representatividade da população das “colônias” (pe-
Quanto
40 pessoas foram feridas pela ação da polícia do governador Ulises Ruiz Ortiz
riferias) no movimento. Sem dúvida, a APPO foi uma das organizações mais interessantes na história recente da América Latina, do ponto de vista da participação e do protagonismo do povo comum. No dia 16 de julho, o confronto entre a APPO e a polícia teve um novo capítulo: 10 mil estudantes, professores, membros e simpatizantes da Assembléia Popular fo-
A APPO completa um ano e o caráter pacífico é a marca do movimento, mesmo que o governo já tenha matado 26 pessoas. E prendido e torturado tantas outras ram impedidos de marchar até o auditório onde todos os anos é realizada a Guelaguetza, celebração da troca comunitária de produtos. Herdada dos povos indígenas locais, a Guelaguetza é tradicional do Estado de Oaxaca. O povo oaxaquenho critica o caráter turístico e elitista que a celebração adquiriu, algo reforçado pelo governo de URO. Por isso, promoviam a “guelaguetza popular”. No dia 16,
pretendiam marchar até o auditório oficial do evento como forma de protesto.
Repressão
No último momento, URO enviou, ao local, policiais que impediram a passagem dos manifestantes. Estavam juntas a polícia municipal, a preventiva, a polícia bancária e industrial. Houve confronto e bombas de gás lacrimogênio foram lançadas diretamente
contra a população. Quatro ônibus acabaram queimados. Cerca de 40 pessoas, de ambos os lados, ficaram feridas e outros 60 manifestantes foram presos. Uma das razões alegadas pela perseguição do governo de URO contra os membros do movimento seria o envolvimento da APPO com o grupo guerrilheiro Exército Popular Revolucionário (EPR), algo nunca comprova-
do. E parece impossível, afinal a APPO completa um ano e o caráter pacífico é a marca do movimento, mesmo que o governo já tenha matado 26 pessoas. E prendido e torturado tantas outras. Organizações sociais agora temem uma nova escalada de terror em Oaxaca. A Assembléia Popular exige a destituição de Ulises Ruiz Ortiz e o fim da repressão policial promovida pelo presidente do México, Felipe Calderón. A comunidade internacional está convocada pela APPO a realizar ações em solidariedade para deter a política de terror contra os povos de Oaxaca.
História de participação e protagonismo do povo comum Em Oaxaca, a luta política é uma resistência cultural e a cultura surge na velocidade da luta política Angel Rizo
de Curitiba (PR) O movimento popular no Estado de Oaxaca mostrou como pode ser viva uma cultura de resistência protagonizada pelo povo. A luta em Oaxaca completou um ano no dia 14 de junho e é possível dizer que a população determinou as ações e a simbologia do movimento, principalmente nos seis primeiros meses de luta, quando o governador estava refugiado e o movimento tomava conta das ruas. Começou com a greve da Seção 22 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE), por aumento de salários. Porém, a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca, a APPO, só tomou a forma definitiva com a entrada dos estudantes, dos indígenas, dos pobres e imigrantes das periferias (as “colônias”), abandonando as demandas corporativas, após a repressão orquestrada pelo governador Ulises Ruiz Ortiz, do Partido Revolucionário Institucional (PRI). O movimento em Oaxaca não alcançou uma mudança na base econômica da sociedade (sequer atingiu ainda a derrubada de URO), mas foi um exercício de politização para os oaxaquenhos, abrindo janelas permanentes de resistência, cultural e política.
As barricadas eram erguidas e deslocadas de lugar seguindo uma velocidade própria, conduzida pelas pessoas de “baixo”, como se diz A tomada de prefeituras atingiu a capital do Estado, mas também outras 33 cidades, em oito regiões diferentes. A luta política em Oaxaca e os símbolos da Assembléia Popular foram criados enquanto a luta estava em curso, incorporando a necessidade do povo nas ruas.
Ofensiva
Três momentos foram determinantes. O primeiro deles foi a tomada do canal estatal de televi-
cato de professores, mas também pela aproximação com setores como o dos motoristas, por exemplo. Os choferes de ônibus deixavam seus carros durante a noite reforçando as barricadas e às seis da manhã retomavam o trabalho. Cabe ressaltar que Oaxaca possui apenas duas indústrias; assim, não estamos falando de uma classe trabalhadora industrial.
Espaços alternativos
Marcha realizada em novembro de 2006 pedia a renúncia do governador Ulises Ruiz Ortiz
Quanto
3 mil barricadas chega-
ram a ser erguidas no auge do movimento
são. Aconteceu durante a Marcha das Mulheres, inspirada nas mulheres chilenas contra a ditadura de Pinochet. Na voz delas, o canal 9 estatal “não estava dizendo a verdade”, logo decidiram pedir uma entrevista nesse espaço “que lhes pertencia”, por ser público. Então 500 mulheres marcharam pacificamente até a emissora, mas encontraram as portas fechadas. Decidiram tomá-la. Os técnicos da emissora debandaram e elas mesmas tiveram que improvisar a nova programação. A tomada dos meios de comunicação chegou a outras estações de rádio e gerou a necessidade de proteção das antenas de transmissão, atacadas na calada da noite pelos “comboios da morte”, grupos mercenários contratados pelo PRI de Ulises Ruiz.
Daí surgiram as barricadas, símbolo do movimento (chegaram a ser 3 mil no auge da rebelião), gerando uma cultura de resistência à cultura oficial (marcada pelo clientelismo e perseguições do governo). No espaço das barricadas, ao contrário, pequenas assembléias populares eram colocadas em prática. “As pessoas tinham isso muito presente: não podiam dizer algo em nome das barricadas, a direção não podia tomar decisões sem antes falar com as pessoas. Sabemos que os líderes se vendem, então preferimos as bases, o que foi o mais marcante”, disse, em entrevista ao Brasil de Fato, em dezembro de 2006, Marco Antônio, um artesão que se incorporou à barricada que protegia a antena da rádio La Ley. Como a polícia da capital do Estado estava aquartelada, a APPO tomou a responsabilidade pela segurança da cidade. Cada pessoa se tornou um sistema de inteligência contra os grupos paramilitares, bastava para isso um celular em
mãos e um pouco de crédito para enviar mensagens. A queda de Ulises Ruiz era uma unanimidade, até mesmo entre setores conservadores da pequena burguesia e do comércio local.
Quebra de papéis sociais
Dentro das barricadas, onde uma pessoa podia ser um miliciano, um comunicador etc., papéis sociais eram quebrados. Uma narrativa que ilustra essa idéia era a barricada de Símbolos Pátrios, localizada em uma área de casas de prostituição. Na madrugada, depois do trabalho, as prostitutas incorporavam-se à vigilância da barricada. Essa mesma quebra de papéis sociais, no enfrentamento contra o poder, pode ser vista nas Juntas de Bom Governo zapatistas, onde não há o papel do “político”, ou na Polícia Comunitária, no Estado vizinho de Guerrero, onde não há a figura da polícia. O movimento em Oaxaca teria sido efêmero sem o vínculo com os trabalhadores. Não só pelo fato de ter sido desencadeado pelo sindi-
O movimento contou com elementos culturais próprios, vindos da multidão, em uma resistência que, vinculada à luta política, não foi absorvida pela indústria cultural. As músicas do estilo chamado corrido, as frases espalhadas nos muros da cidade, as faixas e cartazes irônicos exibidos nas megamarchas do movimento, eram manifestações populares e criativas, surgidas com a própria transitoriedade das barricadas, como manifestação de resistência à cultura oficial. A APPO criou espaços e festividades próprias para contestar as celebrações promovidas pelo Estado. A “Guelaguetza Popular”, de julho, foi uma entre tantas datas na qual o povo tenta retomar uma festa originária, mas que havia sido transformada em atração turística pelo governo do PRI. Aconteceu o mesmo com a Fiesta de los Reyes e a Fiesta de los Rábanos (Festa das Abóboras), na virada do ano, nas quais a população comparecia para legitimar a APPO. As barricadas eram erguidas e deslocadas de lugar seguindo uma velocidade própria, conduzida pelas pessoas de “baixo”, como se diz. Tanto que, recentemente, no interior da APPO criou-se uma Assembléia Popular de Colônias de Oaxaca (APCO), composta por 71 entre as 200 colônias da capital, ao lado das outras 360 organizações com representatividade na APPO. Não houve separação ou recuperação na elaboração dessa cultura popular, na qual o povo falou com a própria voz. Em Oaxaca, a luta política era uma resistência cultural e a cultura surgia na velocidade da luta política. (PC)
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cultura
Alípio Freire da Redação LEITOR compulsivo – como ele próprio se define –, especialista em políticas públicas para o livro e leitura, ex-consultor do Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe (da Unesco) e militante político desde os anos de 1960, Felipe Lindoso participa hoje do projeto de desenvolvimento de rede de bibliotecas em assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua entrevista para o Brasil de Fato subverte cânones consagrados sobre o papel dos livros e bibliotecas na formação dos cidadãos. Para ele, premissas como “o papel civilizatório” da leitura e a “formação de leitores críticos” devem ser substituídas pelo entendimento do acesso à leitura como necessidade e direito. Um direito que vai contra o monopólio do saber, um dos instrumentos de dominação das elites. Brasil de Fato – Quando se fala em bibliotecas, pensa-se logo em iniciativas grandiosas como a Biblioteca de Alexandria, ou a do Congresso dos EUA. Projetos tão monumentais acabam paralisando os cidadãos. Do mesmo modo, quando se fala em livros, pensase sempre em erudição, pessoas cultas etc... Felipe Lindoso – É verdade, isso às vezes acontece, embora a tendência seja mudar. Mas prefiro convidar os leitores para uma viagem diferente: há dois anos um grupo de cidadãos coordenados pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), ocupou um prédio abandonado na Av. Prestes Maia, no centro de S. Paulo. Um dos ocupantes tomou a iniciativa de instalar, na garagem, uma biblioteca, com acervo recolhido no lixo e doações. Os livros foram organizados e a biblioteca administrada, em rodízio, pelos moradores do prédio. As crianças usavam o espaço para preparar suas lições, com supervisão de voluntários, e os moradores ali liam os livros que queriam, ou os levavam emprestados. A biblioteca ficou famosa. E foi feito um documentário a respeito. Uma das cenas do filme mostra um dos responsáveis pela biblioteca comentando sobre um dos primeiros livros conseguidos e, até então, dos mais usados. Intitulava-se Manual de Eletricidade Básica.
O que isso sinaliza? Essa ação faz aflorar o óbvio. O prédio ocupado estava depredado. A energia elétrica foi “requisitada” da rede pública, mas era preciso instalar lâmpadas e tomadas. Logo, todos tinham que virar “eletricista”. A biblioteca evoluiu, ganhou livros novos, e era intensamente usada não apenas pelos moradores do prédio, mas também pelos vizinhos, moradores de cortiços e prédios deteriorados da região da Luz. Ou seja, aquela biblioteca, pública no sentido mais profundo da palavra, estava cumprindo sua função essencial: atender às necessidades dos seus usuários – do apoio às escolas para as crianças, ao conhecimento prático demandado pelos moradores e às suas necessidades de cultura e diversão com os livros de ficção. E como fica o papel “civilizador” do livro, os “leiturólogos” e a proposta de formação de “leitores críticos”, tão a gosto de algumas academias? Alguns teóricos defendem um papel “civilizador” como componente necessário do conteúdo das bibliotecas. Dizem que seu acervo deve sempre ter em vista a formação de um “leitor crítico”, capaz de entender sua realidade e transformá-la. Ora, os cidadãos sem teto primeiro ocuparam o prédio, assumiram a tarefa de dar função social àquele concreto que estava ali como fundo de reserva do capital. Mas não abdicaram do seu direito ao conhecimento, em todos os níveis: da eletricidade básica aos clássicos da literatura e da filosofia. Quando ocuparam o prédio, não o fizerem por serem “leitores críticos” e sim por conta da sua realidade concreta e a partir de uma posição política que não era ingênua nem espontânea. Ou seja, deram uma demonstração simples e eficiente de união entre a teoria e a prática. Sempre se procura destacar os exemplos positivos das boas leituras, como determinados livros abriram caminhos e perspectivas para pessoas que admiramos e respeitamos. É verdade. Mas esquecemos que personagens nefastos da história também eram cultos e leitores. Quer dizer que assim como “os brutos também amam”, há tiranos que
José Gabriel Lindoso
Bibliotecas como reivindicação popular
O Brasil pode ser um país de leitores? Felipe Lindoso Summus Editorial – 2004
Quem é Felipe Lindoso é antropólogo e jornalista. Militante na luta contra a ditadura, foi preso e exilado. Especialista em políticas públicas para o livro e leitura, foi consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. É autor do livro O Brasil pode ser um país de leitores? Atualmente implanta projetos de bancas-bibliotecas, informatização e melhoria de acervos em cinco municípios paulistas e um fluminense, com projeto financiado pela Petrobras, e participa do projeto de desenvolvimento de rede de bibliotecas em assentamentos.
Quase nunca nos lembramos de que personagens nefastos da história também eram cultos e leitores. Basta lembrar o personagem de Gabriel Garcia Marques em O outono do Patriarca: ditador sanguinário, também era um homem cultíssimo. Aliás, sempre justificava seus atos a partir de sua cultura são grandes leitores? Ora, para não cometermos injustiças históricas citando alguns e esquecendo outros (a lista é grande), basta lembrar o personagem de Gabriel Garcia Marques em O outono do Patriarca: ditador sanguinário, também era um homem cultíssimo. Aliás, sempre justificava seus atos a partir de sua cultura, ou lamentando a ignorância dos que não o compreendiam. Ditadores e eletricistas, revolucionários ou fascistas, progressistas ou conservadores – todos, devem suas opções de vida, políticas e filosóficas, a muito mais que livros. São as trajetórias pessoais, marcadas pelas posições de classe, pelo contexto histórico em que cada um vive que as determinam. Então, por que lutar por
bibliotecas? Bem, aqui podemos responder com uma analogia – pelas mesmas razões pelas quais postos de saúde, hospitais, escolas, museus, parques e outros equipamentos urbanos são necessários: porque é um direito dos cidadãos ter acesso à educação, saúde, informação e lazer. E esses são direitos que se tornam cada vez mais prementes pelo próprio desenvolvimento do capitalismo – e deverão ser ainda mais evidentes em uma sociedade socialista. A complexidade da vida social deixou para trás antigas formas de transmissão de conhecimento, agora substituídas por escolas; antigas formas de cuidar da saúde, que agora exigem conhecimentos especializados e equipamentos próprios; antigas formas de preservação da memória
Dafne Melo da Redação “Sem os livros, a educação e a formação dos nossos militantes fica incompleta”, resume Maria Gorete, cordenadora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), pertencente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por isso, a partir de 1º agosto, o Movimento irá lançar uma campanha nacional de arrecadação de livros. “Recolheremos não só para a biblioteca da ENFF, mas para todos os centros de formação do Movimento”, conta Gorete. Hoje, ao todo, são 40 os centros existentes, alguns deles com pouquíssimos livros disponíveis. “Sabemos que até mesmo nas cidades é difícil termos bibliotecas públicas bem equipadas, então, imagina no campo”, salienta. O acesso à educação, cultura e informação é um dos princípios da pedagogia do MST. Por isso, diz Gorete, é extremamente importante viabilizar o acesso dos acampados e assentados aos livros, desde criança. “Vivemos num país que não tem a cultura da leitura. Então, buscamos mudar isso. Queremos que nossas crianças e jovens já cresçam com o gosto pela leitura, pelo estudo”, completa.
Douglas Mansur
O MST fará campanha nacional para arrecadar livros para a ENFF
Mística abre cerimônia de inauguração da biblioteca da ENFF
A campanha contará com todas as informações necessárias na página do movimento (www.mst.org.br). Gorete adianta que as secretarias regionais e estaduais do MST serão as responsáveis por reunir todas as doações feitas. A biblioteca da ENFF, que hoje conta com 19 mil títulos, é um exemplo de construção coletiva. Todo trabalho de catalogação e organização foi todo feito por voluntários de universidades próximas à Escola (em Guararema, cerca
de 60 km de São Paulo) . Mesmo antes de toda a estrutura da Escola estar pronta, já havia um espaço destinado para ela, onde já chegavam doações. Em agosto de 2006, ela foi oficialmente inaugurada, em cerimônia que contou com a presença do professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Antonio Candido. “Foi uma fala lindíssima e talvez ele não saiba o quanto nos inspirou e inspira para fazer essa campanha agora”, conta Gorete.
social e de acúmulo do saber, que têm agora nos livros seu suporte mais importante. O acesso a todos esses bens sociais, na forma de serviços públicos, é um direito fundamental. E é por isso o serviço público essencial proporcionado pelas bibliotecas se torna evidente: permitir a educação continuada e aprofundada pelo acesso ao saber acumulado; permitir o enriquecimento espiritual e intelectual através do acesso às obras literárias e filosóficas; permitir o acesso aos conhecimentos práticos dos manuais, livros escolares e de informação. E o que seria uma política de formação de acervos? A formação dos acervos das bibliotecas públicas não pode ficar também à mercê de doações eventuais. Tem
que ser uma política ativa de aquisição de acervos, sempre voltada para a atenção das demandas dos usuários. Ou seja, devem traduzir sempre a interação entre os responsáveis pela biblioteca e seus usuários. Uma interação positiva, com os responsáveis e animadores da biblioteca procurando não apenas atender passivamente essas demandas, mas também buscando apresentar-lhes alternativas. As demandas dos usuários certamente refletem a posição dominante no campo da produção editorial, o que angustia os responsáveis pelas bibliotecas e indigna profundamente os que nisso só percebem a consagração da mediocridade e do domínio do que consideram como o pior da indústria editorial, para dizer o mínimo. A visão de que a biblioteca deve ser um serviço público atendendo em primeiro lugar às demandas de seus usuários não deve ser vista como conivente com essa situação. Ao contrário, deve servir de base para que se abra um campo de disputa pelos “corações e mentes” do público. Essas disputas se expressam no desenvolvimento de programas e atividades de estímulo à leitura. Esses serão, sempre, expressão das convicções, da formação educacional e política de quem os implementa. Isto não pressuporia a formação de conselhos locais, em torno das bibliotecas, formados por usuários? Essa questão de conselhos formados por representantes da população pode ser um bom ponto de partida. Mas nesses casos é sempre importante ter definido o grau de autonomia desses conselhos, como se estabelece a representatividade etc. O problema de fundo que deve ser percebido, é que, quando os livros são monopolizados pelas elites que os podem comprar, se reforçam os esquemas de dominação, da mesma maneira como acontece quando não se tem uma educação pública de qualidade e um sistema de saúde público eficiente. Por isso mesmo é necessário compreender que não basta lutarmos para ter escolas públicas e saúde pública de qualidade. É fundamental acrescentar a biblioteca pública de qualidade nas reivindicações populares. O acesso à educação e à saúde de qualidade tem que vir junto com o acesso à informação, cultura e lazer para o povo.
Ação do governo visa zerar o deficit de 598 municípios que continuam sem bibliotecas Hoje, no Brasil, existem cerca de 4.500 bibliotecas públicas espalhadas por todo o país. Um número baixo para um país com as proporções do Brasil, aponta Sandra Domingues, coordenadora de Apoio aos Sistemas Estaduais do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, ligado ao Ministério da Cultura. Desde 2004, o governo federal tem buscado engrossar esse número por meio do programa Livro Aberto, que tem como meta zerar o número de municípios sem bibliotecas públicas no país. No início foi detectado um deficit de 1.300 cidades, sendo a maior parte localizada na região Nordeste. Apenas os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná já possuem deficit zero. Até 2006, o deficit havia baixado para 598 municípios. “As prefeituras solicitam junto a nós a participação no programa e então devem disponibilizar um local adequado, com algumas exigências feitas por nós. Em seguida, enviamos um kit de implantação com 2 mil obras, computador com um software livre de gerenciamento, televisão, aparelho de som e DVD”, explica Sandra. Para entrar no programa, o município deve estar em dia com suas obrigações fiscais. Sandra reconhece que 2 mil obras é um número tímido, mas acredita que, nesse momento, o essencial é expandir o número de bibliote-
cas públicas, mesmo que com uma quantidade pequena de livros. “Depois de zerado o deficit, podemos pensar em outros programas de modernização e ampliação dessas bibliotecas e seus acervos”, completa.
Conceito
Funcionária da Fundação Biblioteca Nacional desde 1984, Sandra se diz otimista em relação as perspectivas para a área. “Desde que trabalho nessa área, acho que nunca se falou tanto de biblioteca pública”. Ao seu ver, essas instituições são essenciais por, ao contrário de outros perfis de bibliotecas, possuírem um caráter essencialmente comunitário. “Elas tem o papel de atuar na comunidade, inserindo-se nelas, incentivando o prazer de ler, realizando debates, mostras; não devem ser apenas um depósito de livros, mas um lugar de referência para a comunidade”, define. Muitas ainda não conseguem, entretanto, desempenhar essa função social por falta de investimentos. “O poder público ainda não se conscientizou da importância das bibliotecas públicas. Muitas sobrevivem apenas com os recursos destinados pela federação, sem nenhuma ajuda dos governos municipais para a manutenção e ampliação de acervos. Sem essa interação entre todas as esferas de poder é difícil manter bibliotecas vivas e atuantes”, finaliza. (DM)