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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 235

São Paulo, de 30 de agosto a 5 de setembro de 2007

Estudantes baianos se juntam ao MST em manifestação pela qualidade de ensino

Jornada de educação mobiliza 100 mil De acordo com cálculos da UNE, mais de 100 mil pessoas participaram dos atos da jornada nacional em defesa da educação pública. Resultado de uma articulação de movimentos sociais e estudantis, a mobilização agitou as principais capitais e universidades do país, entre os dias 20 e 24 de agosto, em torno de 18 pautas consensuais. A jornada também foi marcada pela forte repressão das polícias comandadas por políticos do PSDB em Minas Gerais e São Paulo. Pág. 3 Pablo Sigismondi

Livro resgata memória de vítimas da ditadura Primeiro documento oficial sobre a repressão perpetrada por autoridades do Estado contra opositores da ditadura civil-militar, o livro Direito à memória e à Verdade, lançado no dia 29 de agosto, recupera a história de 400 militantes políticos mortos ou desaparecidos entre 1961 a 1988. Em entrevista, o ministro Paulo Vannuchi diz que “a partir de agora, temos um livro com o carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas”. Págs. 2 e 7

Uma coalizão de quatro organizações que lutam pelos direitos dos homossexuais no país africano – Minorias Sexuais Uganda (da sigla em inglês Smug) – resolveu se opor publicamente de forma inédita, no dia 16 de agosto, contra uma lei colonial herdada dos britânicos, que estipula uma pena de 14 anos à prisão perpétua para quem for condenado por sodomia (sexo anal). O governo, que já coleciona um histórico de retaliações, reagiu dizendo que Uganda não concederá direitos iguais a gays e lésbicas, e que não existem planos para que a homossexualidade seja legalizada no país. Cinco dias após a coletiva de imprensa concedida pela Smug, grupos cristãos conservadores convocaram fiéis para uma marcha de protesto. Pág. 11

No Haiti, mais políticas à direita

Diante do plebiscito popular que vai decidir, entre os dias 1º e 7 de setembro, sobre o leilão que a privatizou, a Companhia Vale do Rio Doce põe em prática uma ofensiva para evitar que a mobilização ameace os altos lucros que a empresa distribui aos seus acionistas. Está sendo veiculada na mídia corporativa uma propaganda na qual a atriz

Divulgação

acordo da Alba com Fidel Castro (Cuba) e Hugo Chávez (Venezuela), o seu governo sinaliza mudança na agenda, anunciando privatizações e o abandono da reforma agrária. Pág. 9

Reprodução

O grupo paulistano de teatro Folias D’Arte inspirou-se numa tragédia de Ésquilo para comemorar seus dez anos de existência. Em “Orestéia, o canto do bode”, um paralelo é feito entre a formação do Estado grego e a história recente da América Latina. O diretor Marco Antonio Rodrigues, analisa, em entrevista, a trajetória do grupo. Pág. 12

Cena do espetáculo Orestéia, em cartaz até outubro em São Paulo

Cartaz de 1978

Mentiras e violência: a Vale reage ao plebiscito

Haitianos enfrentam precariedade de serviços públicos, como o transporte coletivo

René Préval chegou à Presidência com o voto de quem era contra o aprofundamento das políticas neoliberais e a permanência das tropas da ONU no país. Mas, apesar de ter assinado o

Reprodução

“O imposto sindical é uma forma agressiva de retirar dinheiro do trabalhador”, avalia Joel de Almeida dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Sergipe (Sintese). Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala dos desafios de organizar o povo num momento em que “o neoliberalismo colocou em xeque a clareza que os trabalhadores devem ter em relação à luta de classes” e critica a confusa conexão entre sindicatos e partidos. Pág. 4

Folias celebra dez anos com tragédia grega

O caos na saúde pública do Nordeste revela mais do que os problemas de um setor essencial à população. Mostra a situação precária do Estado brasileiro. Ao contrário do que pregam os conservadores e a mídia corporativa, a máquina pública está longe de ser caracterizada como “inchada”. Uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) colocou o país entre os seis últimos com menor número proporcional de empregados públicos, em uma lista de 64 nações. Atrás de subdesenvolvidos, como o México, e bem abaixo de países ricos, como os Estados Unidos. Quem mais sofre com essa situação são os 80% da população. “Para alguém de classe média alta ou rico, o Estado está balofo. Os filhos estudam fora do país, a Saúde é privada. A questão é que a camada que depende do serviço público não é essa”, critica o economista Marcio Pochmann. Pág. 5

Arquivo MST

Professores de Sergipe abrem mão do imposto sindical

Grupos GLBT´s desafiam “lei de sodomia” de Uganda

www.brasildefato.com.br

Povo brasileiro sofre com o sucateamento do Estado

Acordo entre madeireiras e Incra devasta a Amazônia A Justiça Federal interditou, no dia 27 de agosto, 99 assentamentos do Incra na região Oeste do Pará. A decisão veio como resposta a denúncias feitas pela organização não governamental Greenpeace que dão conta de acordos entre o Instituto e madeireiras para explorar a Floresta Amazônica em terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária. Em entrevista ao Brasil de Fato, o geógrafo Maurício Torres, especialista na região, é taxativo: “dentro da floresta não é lugar para se fazer reforma agrária”. Pág. 8

R$ 2,00

Fernanda Montenegro procura vincular a imagem da empresa ao país (sendo que 62% de seus acionistas são estrangeiros) e ao meio ambiente (devastado por onde a empresa passa). Já em Belo Horizonte, no dia 22 de agosto, 136 pessoas foram presas quando participavam de protesto pacífico da jornada de educação no prédio da Vale. Pág. 6


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de 30 de agosto a 5 de setembro de 2007

editorial

Jornada é avanço na luta por educação pública A JORNADA nacional em defesa da educação pública esteve nas ruas de todos os principais centros urbanos do país entre os dias 20 e 24 de agosto. Foram realizados atos nas grandes capitais e em universidades federais, estaduais e privadas. A maior manifestação aconteceu em Porto Alegre (RS), num ato que reuniu cerca de 7 mil manifestantes. Reitorias foram pacificamente ocupadas, bem como prédios de faculdades. Calcula-se que mais de 100 mil estudantes se mobilizaram em todo o país durante as manifestações, cujo primeiro item de uma proposta de 18 pontos, é a ampliação dos gastos com a Educação, para 7% do Produto Nacional Bruto (PIB). Hoje é destinado ao setor apenas a metade do que está sendo reivindicado, ou seja, 3,5% . De acordo com Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se o Brasil quiser atingir o patamar do Chile na Educação nos próximos 20 anos (80% dos jovens chilenos entre 15 e 16 anos estão matriculados

debate

O Estado brasileiro tem sido sucateado pelos sucessivos governos. É a partir da década de 1990, com a aplicação do receituário neoliberal, que o país aprofunda políticas que tiram da responsabilidade do Estado atribuições fundamentais para a maioria do povo. Sob alegação de ineficiência, privatizaram setores estratégicos e sucatearam os serviços públicos no Ensino Médio), precisaríamos contratar 500 mil professores e construir 50 mil salas de aula para atender 5 milhões de jovens. O incidente certamente mais grave registrado no âmbito das universidades durante os dias da Jornada, foi a invasão pela PM do prédio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – as tradicionais Arcadas do Largo de São Francisco, na capital Paulista. A intervenção policial naquele campus foi solicitada pelo próprio diretor da escola, o senhor João Grandino Rodas, para evacuar cerca de 350 manifestantes que haviam ocupado o prédio, na madrugada do dia 22 de agosto. A ordem para a invasão e desocupação da faculdade, no entanto, foi dada diretamente pelo governador tucano José Serra.

De acordo com os organizadores, um dos saldos mais positivos das mobilizações, foi a unidade que se forjou entre as entidades e movimentos que promoveram a Jornada, e a perspectiva de aprofundamento desses laços, o que nos parece fundamental. Outro dado a ser realçado é o fato de o movimento entender que os problemas que enfrentam só poderão ser resolvidos com uma mudança na orientação da política econômica do país, responsável pelo alto superavit primário. Foi assim que, casando a pauta de reivindicações/propostas com temas locais, os jovens se puseram em marcha. Com a proximidade do Plebiscito pela retomada pelo Estado da Companhia Vale do Rio Doce, privatizada através de processo fraudulento comandado pelo pre-

sidente tucano Fernando Henrique Cardoso em 1997, em muitas cidades o assunto foi pertinentemente lembrado. Ora, o mesmo modelo econômico responsável pelo superavit primário, denunciado pelos manifestantes, é aquele que levou às privatizações as empresas públicas lucrativas. Assim, no Rio de Janeiro, os 2 mil estudantes que marchavam em direção ao prédio do Ministério da Educação, ao passarem em frente à sede da Vale, manifestaram seu protesto, gritando as palavras de ordem do Plebiscito. A esse respeito, a ação mais ousada do movimento foi a ocupação da sede da companhia em Belo Horizonte, desencadeando uma violenta repressão da PM do governador tucano Aécio Neves, que prendeu 136 estudantes, dos quais 27 menores de idade.

Em tempo: certamente, não se trata de mera coincidência que a truculência contra os manifestantes da Jornada tenha se dado em dois Estados governados pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, e menos ainda que sejam Minas e São Paulo. Seus governadores, os senhores José Serra e Aécio Neves, se colocam como pré-candidatos às eleições presidenciais de 2010.

opinião Mário Augusto Jakobskind

Alipio Freire

A Lei de Anistia completa 28 anos NO DIA 28 de agosto de 1978, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Anistia, que seria assinada pelo último general-presidente, João Baptista de Figueiredo. Não era o projeto de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, conforme haviam formulado os Comitês Brasileiros pela Anistia – CBAs, organizados em todo o país, e que inauguraram seu Primeiro Congresso em São Paulo, na noite de 2 de novembro de 1978, realizando um segundo em Salvador (BA), no ano seguinte, além de um terceiro, em Roma (Itália), organizado pelos CBAs dos exilados brasileiros e entidades de Defesa dos Direitos Humanos da Europa. Apesar da derrota (por cerca de meia dúzia de votos) do seu projeto de lei no Congresso Nacional, a campanha obteve importantes vitórias: os presos políticos foram libertados, os exilados puderam regressar ao país, os militantes na clandestinidade puderam voltar à legalidade, e todos puderam reassumir seus direitos políticos, apesar das marchas e contramarchas a esse respeito. O problema central, até hoje, reside na interpretação do texto da Lei que, para os interessados na impunidade, implica uma anistia “recíproca”, concedida não apenas àqueles que lutaram contra o arbítrio e a iniqüidade, mas igualmente aos responsáveis pela repressão e seus crimes. Esse entendimento e expediente, que impera até o presente, bem como sua contestação por diversos juristas e movimentos, impediu que os responsáveis pelos crimes fossem levados às barras dos tribunais competentes, julgados e punidos nos termos da lei. Hoje, com o lançamento do livro Direito à memória e à verdade, o Governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através de seu ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e do presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Barbosa, dá um importante passo no sentido de rever e reverter essa situação. Para além do livro (ao qual ainda não tivemos acesso) não se pode subestimar o fato de o seu lançamento ocorrer no Palácio do Planalto, com a presença do presidente da República. Saudamos o gesto. Desde a aprovação da Lei de Anistia, este é o primeiro governo que se manifesta oficial e afirmativamente sobre a questão – e isso não é pouco. Disso poderá depender não apenas o direito das famílias e dos amigos (bem como de todo o povo brasileiro e da comunidade internacional) de saberem do destino dos seus “desaparecidos” e até reaverem seus corpos – o que, por si só diz dos direitos dos cidadãos, como também implica o direito à memória e à história individuais e coletivas. É inconcebível um projeto de consolidação democrática e republicana para o país, se fechamos os olhos para esse assunto. No entanto, se visamos à consolidação de uma democracia que atenda e corresponda de fato aos interesses da maioria povo brasileiro, é fundamental que passemos a entender que os militantes e outros cidadãos perseguidos e atingidos pelo regime civil-militar do pós-64, o foram por

Ao fim e ao cabo, a Jornada pela Educação pôs a nu também a precarização do setor público, a política de esvaziamento do papel do Estado – o Estado Mínimo – que, entre 1989 e 2003, reduziu o número de servidores federais de 713 para 460 mil. As leis e iniciativas de reajuste fiscal – privatização das estatais, Lei Camata, Lei de Responsabilidade Fiscal etc. – arrocharam as despesas públicas e levaram à terceirização. Em conseqüência disso, entre 1995 e 2004 , o índice de Despesas com Pessoal e a Receita Corrente Líquida da União caiu de 55% para 30%. (Leia matérias nas páginas 3 e 5)

Repórteres a serviço de Bush ALI KAMEL, que se diz estudioso do islã, admite publicamente ter apoiado a invasão dos Estados Unidos no Iraque. É bem possível que o diretor-executivo do jornalismo da Globo tenha recebido algum agradecimento da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil depois de justificar a invasão afirmando que, em abril de 2003, havia dúvidas se o Iraque de Saddam Hussein tinha ou não armas de destruição em massa. A “dúvida” não tem cabimento, pois, na época, os jornalistas independentes, minimamente informados, como Robert Fisk, alertavam para a mentira. Já a reação de Saddam, com seus Scuds lançados contra bases militares estadunidenses na Arábia Saudita, acabou de uma vez por todas com qualquer tipo de dúvida. Se Saddam tivesse mesmo armas químicas, os Scuds estariam certamente alimentados com produtos químicos, o que não aconteceu. Mas isso pouco importou para Kamel.

O problema central, até hoje, reside na interpretação do texto da Lei que, para os interessados na impunidade, implica uma anistia “recíproca”, concedida não apenas àqueles que lutaram contra o arbítrio e a iniqüidade serem sujeitos de outros projetos políticos, de matriz popular (socialistas ou nacionalistas). Projetos que se opunham frontalmente àquele de desenvolvimento baseado na concentração de riquezas e subordinação aos interesses do grande capital internacional, especialmente de Washington, defendido e implantado através das armas pelas classes dominantes – ou seja, uma ditadura de classe. O que divide os brasileiros (o que sempre dividiu e continuará a fazê-lo enquanto perdure o atual sistema) não é o corte que propõe militares de um lado, e civis do outro. Prova disso são os milhares de militares punidos pela ditadura, e o engajamento de muitos outros nas organizações (inclusive clandestinas) que combateram aquele regime. Do mesmo modo, aquela ditadura não se concretizaria sem suas bases sociais (civis) e os políticos e quadros civis que participaram da conspiração, do golpe e da implantação e desenvolvimento do regime (inclusive nos chamados “porões”). O que divide os brasileiros e os aglutina em dois grandes campos principais é, de um lado, os que são proprietários dos meios de produção e, do outro, aqueles que vendem sua força de trabalho no mercado, e a adesão a projetos que defendam os interesses reais de um ou outro desses campos. Os perseguidos e punidos pela ditadura, em sua esmagadora maioria, tinham clareza disso. O que lhes retira da condição de “vítimas inocentes”, como querem fazer crer alguns, por desconhecimento do assunto, ou de caso pensado, visando tirar o caráter político daquelas lutas e desqualificar seus sujeitos. Outras tolices que, de tanto repetidas, acabaram por se tornar “verdades”, e que têm as mesmas matrizes apontadas no equívoco anterior (e usadas ora num tom “piedoso”, ora em tom de “ironia” – mais ou menos

velada) é a condição de “jovem” e/ou “estudante” atribuída a todos ou à maioria daqueles militantes. Lembramos que “jovens” eram também a maioria dos que compunham as Forças Armadas e todos os aparelhos repressivos do regime: os torturadores, em sua grande maioria, eram tão jovens quanto os torturados. E eram também estudantes – não são esses atributos que os desqualificam ou condenam. Por fim, a derradeira falácia que necessita ser combatida, em nome do direito à verdade: em sendo aqueles militantes “estudantes”, seriam todos parte da “ pequena-burguesia”. Se bem entendemos (e entendemos bem), o pequeno burguês é o pequeno proprietário de meios de produção (ou negócios), o que não era a condição da maioria esmagadora daqueles militantes que ainda estudavam, nem de suas famílias – desafiamos quem prove o contrário sem lançar mão, por ignorância ou má fé, de tornar “pequeno-burguês” como sinônimo perfeito da categoria “classe média”. A maioria daqueles que ainda estavam nas universidades (ou em qualquer outro tipo de estabelecimento de ensino) trabalhava (trabalho assalariado) e tinha origem em famílias de assalariados, ou de profissionais liberais. Qualquer pesquisa séria a partir das “grades” (listas com a relação diária dos presos alocados em um presídio, delegacia etc.) dos presídios políticos deixa claro o que afirmamos, e mais: os presos que ainda estudavam eram minoria absoluta nos cárceres. O direito à verdade implica, portanto, também numa revisão historiográfica (ver matérias na página 7). Alipio Freire é jornalista e escritor. Militante político desde os anos de 1960, esteve preso no período 1969-1974, foi fundador e militante do CBA-SP, na condição de presidente da secção da ABI em São Paulo

Antecedentes midiáticos Ali Kamel tem antecedentes em matéria de pontos de vista que favorecem as elites nacionais e os falcões que hoje ocupam a Casa Branca. Comentando o filme “Central do Brasil”, Kamel disse que a história é inverossímil, porque jamais ocorreria algo semelhante em um local a pouco mais de 500 metros da redação de O Globo. Tipo do comentário menor de um jornalista que, na prática, nunca exerceu a atividade de repórter e queria agradar os seus superiores hierárquicos. Recentemente, Kamel escreveu um livro em que afirma que no Brasil não há racismo. Manipulando a informação, ele tenta demonstrar o impossível e por isso foi tão aplaudido pelos mesmos setores que ficam muito contrariados e nervosos quando parte da sociedade brasileira começa a reconhecer que o racismo no Brasil é algo evidente e que precisa ser combatido efetivamente.

É bem possível que o diretor-executivo do jornalismo da Globo tenha recebido algum agradecimento da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil depois de justificar a invasão Os “perigos” que servem de pretexto Agora, Kamel, depois de uma visita ao Oriente Médio, lança Sobre o Islã, um livro que, se for traduzido para o inglês, fará muito sucesso nas hostes do totalitarismo republicano, onde fundamentalistas cristãos e judeus sionistas se dão as mãos e tentam impor as suas verdades. Essas “verdades” têm sido defendidas em todo o mundo por jornalistas que se dizem imparciais, gênero Ali Kamel. Por aqui, existem analistas das mais variadas matizes que procuram convencer a opinião pública sobre os “perigos” que rondam os seus respectivos países. No Brasil, tem de tudo, até sites com linguajar da época da Guerra Fria, um deles intitulado Mídia sem Máscara, que poderia se chamar também “CIA sem Máscara”, está no ar disseminando o ódio, ofendendo pessoas por suas posições políticas que contrariam os interesses defendidos pelos comentaristas do referido site. Com e sem sofisticação Vale a citação do Mídia (ou CIA) sem Máscara, pois o que prega Ali Kamel não tem praticamente diferença nenhuma das “análises” que escrevem naquele espaço odiento. Tanto um quanto outro favorecem exatamente a estratégia de George W. Bush que, volta e meia, alerta o mundo contra a “ameaça terrorista”. Curiosamente, esses mesmos senhores da inteligência estadunidense, tão preocupados com a “ameaça terrorista”, antes dos atentados de 11 de setembro, comeram mosca e não tomaram nenhuma providência para evitar as ações da Al Qaeda. Os arquivos implacáveis tornados públicos dão conta que a CIA tinha identificado dois dos seqüestradores aéreos um ano antes do ataque e não agiu para evitar o que aconteceu. Ou seja, a CIA não informou ao Departamento de Justiça e ao FBI que dois integrantes da Al Qaeda estavam circulando nos Estados Unidos. Só em agosto de 2001, poucos dias antes dos atentados, os referidos foram incluídos na lista dos vigiados. Mas, mesmo assim, fizeram o serviço, o que leva a dúvidas se as ações terroristas poderiam ter sido evitadas se houvesse mesmo interesse da parte das autoridades. Isto é, se a inteligência estadunidense deixou os terroristas agirem ou não. Mas isso, claro, nunca foi objeto de preocupação do senhor Kamel ou de articulistas-filósofos que ainda encontram espaços na mídia empresarial carioca e paulista. Mário Augusto Jakobskind é jornalista

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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brasil

Mais de 100 mil se manifestam por uma educação de qualidade A JORNADA nacional em defesa da educação pública, realizada entre os dias 20 e 24 de agosto, foi um passo importante para a construção de propostas conjuntas dos movimentos sociais no sentido de garantir uma educação pública de qualidade, desde a base até o ensino superior. Essa é a principal avaliação das entidades que participaram das atividades da jornada. Nos protestos de rua, ocupações de reitorias e prédios, os movimentos levaram as bandeiras da ampliação do acesso à universidade e da garantia de um ensino público para a toda população. Mas essas lemas não foram sustentados sem uma base propositiva. Uma carta assinada por um amplo leque da esquerda reivindica 18 itens para atingir um modelo de educação ideal.

Macroeconomia A ampliação dos gastos com educação para 7% do PIB é um dos principais pontos desse documento. Atualmente, o Brasil figura como um dos países que menos investe no setor – apenas 3,5% do PIB (2005). No entanto, está claro para os movimentos que promoveram a jornada que essa ampliação de recursos não virá sem alterações na política econômica, que dá prioridade ao mercado financeiro e, conseqüentemente, favorece a proliferação do ensino privado. Para Gaudêncio Frigotto, educador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o problema do financiamento da educação só pode ser superado com o fim da política de alto superavit primário – economia de recursos para o pagamento de dívida que atualmente atinge 4,25% do PIB – e com uma reforma tributária progressiva (na qual a taxação sobe conforme a renda do contribuinte). “No Brasil, existe uma dívida histórica no acesso à educação. A sociedade nunca conseguiu dobrar as elites para investir na educação básica”, avalia Gaudêncio, que defende a criação de um fundo público para financiar a educação, que seria oriundo do imposto de renda progressivo e da diminuição do superavit. Livre acesso Além desse mínimo de 7% do PIB, os movimentos reivindicam o fim do vestibular como forma de incluir a classe trabalhadora na universidade. “O vestibular é um grande gargalo. Se não tivermos reformas estru-

Quanto

7% do PIB para a educação

Arquivo MST

é uma das reivindicações da jornada

turais, como a agrária e a tributária, nunca vamos conseguir criar um fundo público para a educação”, defende Frigotto. Antonio David, ex-diretor de políticas públicas da União Nacional dos Estudantes (UNE), acredita que a ampliação do financiamento da educação pública passa pelo combate à sonegação de impostos e pelo fim de um dispositivo legal que desvia verbas da educação. “Achamos que a Desvinculação das Receitas da União (DRU) deveria ser combatida, pois as verbas da educação são desviadas para o pagamento da dívida – a qual já foi paga”, defende. O governo federal, no entanto, tem pressionado o Congresso Nacional para prorrogar a DRU.

Continuidade Na opinião das entidades participantes, a jornada foi vitoriosa e aponta para uma continuidade com a manutenção da unidade. Para o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior (Andes), Paulo Rizzo, a participação dos professores foi importante para a criação de fóruns da sociedade civil para pensar a questão da educação. “A participação dos docentes foi muito rica. Não tenho dúvida de que essa unidade deve continuar, para que possamos construir propostas unitárias”, aposta. Rizzo lembra que, na década de 1990, movimentos ligados à educação realizaram diversas reuniões em torno do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Esse movimento formulou o Plano Nacional de Educação (PNE), que foi vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001. A derrubada desses vetos ao PNE foi uma das reivindicações da jornada. Lúcia Stumpf, presidente da UNE, também tem uma perspectiva otimista sobre a continuidade do movimento. “Foi uma jornada muito positiva. A unidade dos movimentos sociais mostrou que a juventude e os estudantes têm muita disposição de lutar por uma universidade que abra os seus muros para os excluídos. As ocupações (de reitoria) deram visibilidade para a causa daqueles que lutam por um Brasil melhor, sem desigualdades”, avalia.

Arquivo MST Douglas Mansur

Renato Godoy de Toledo da Redação

Arquivo MST

MOVIMENTOS SOCIAIS Jornada da educação exige mais verba, o que viria somente com mudanças no modelo econômico

Manifestações ocorreram pelo país; a partir do alto, à esquerda, sentido horário: Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo

Os números da educação no Brasil Prioridade para os credores Orçamento da União prioriza pagamento da dívida*

Ação como a promovida pelo governador do PSDB, não acontecia desde 1968 da Redação

Brasil investe pouco em educação*

Semana agitada nas grandes metrópoles Nos Estados, movimentos casaram os 18 pontos da jornada nacional com pautas locais da Redação A jornada contou com atos nas grandes capitais brasileiras e em universidades federais, estaduais e privadas. Segundo um levantamento da UNE, durante toda a semana, mais de 100 mil pessoas participaram das atividades da jornada. Além dos 18 pontos que a jornada elencou nacionalmente, nos Estados, os estudantes e os movimentos ligados à educação casaram as pautas gerais com as locais. No dia 22 de agosto, em Florianópolis (SC), 200 estudantes ocuparam a reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para exigir a contratação de professores e mais verbas para a assistência estudantil. Em Salvador, uma marcha com 5 mil pessoas culminou na ocupação da reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Os estudantes exigiram a participação dos movimentos sociais no debate da reestruturação curricular da universidade e obtiveram êxito: após a desocupação, o reitor agendou uma audiência com os movimentos. No Rio Grande do Sul, estudantes e movimentos sociais realizaram o maior ato de rua da jornada. Cerca de 7 mil manifestantes se

concentraram na Praça Argentina, no centro de Porto Alegre. Além das bandeiras do movimento, os gaúchos levaram às ruas suas pautas específicas. Portando faixas com dizeres “Yeda, mãos de tesoura”, os estudantes protestaram contra o corte de verbas que a governadora Yeda Crusius (PSDB) realizou neste início de mandato.

A Vale é nossa Com a proximidade do plebiscito de anulação do leilão da privatização da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a necessidade de retomá-la para o controle do Estado foi tema recorrente nas manifestações da jornada. O exemplo maior foi a ocupação da sede da companhia em Belo Horizonte (MG), que gerou forte repressão da polícia mineira e terminou com 136 presos, sendo 27 menores de idade (leia mais na página 6). A manifestação da jornada no Rio de Janeiro, no dia 22 de agosto, contou com cerca de 2 mil manifestantes, que encerraram o ato em frente ao Ministério da Educação (MEC). No trajeto, a manifestação passou em frente à sede da Vale, onde a privatização da companhia foi contestada. “O ato foi muito bom, conseguimos uma unidade que não víamos há anos”, avaliou Vitor Vogel, vice-presidente regional da UNE. (RGT)

Serra imita militares com invasão da USP

Acesso Desigual Taxas de atendimento por faixa etária*

A mercantilização do ensino superior Distribuição das instituições

Uma manifestação pacífica dentro de uma universidade pública. Por esse motivo o governo de José Serra (PSDB) determinou que a Polícia Militar (PM) realizasse uma “operação” que não ocorria desde 1968: a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, centro da capital paulista, foi invadida pela tropa de choque da PM. Cerca de 350 manifestantes, entre estudantes ligados ao Movimento dos Sem Universidade (MSU), à União Nacional dos Estudantes (UNE), ao Educafro e membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foram retirados do local a força. A invasão da polícia ocorreu na madrugada do dia 22 de agosto. Horas antes da ação policial, uma comissão de manifestantes havia acertado com João Grandino Rodas, diretor da faculdade, que a ocupação das dependências da faculdade duraria apenas 24 horas. Em contrapartida, o diretor afirmou que não pediria auxílio de força policial. Rodas descumpriu o acordo e solicitou a intervenção. Os secretários de Justiça e Segurança do governo paulista se reuniram na madrugada do dia 22 e, conforme apurou o Brasil de Fato, acataram a ordem de desocupar o prédio, que veio do governador Serra.

Repercussão “Nós não atrapalhamos o direito de ir e vir dos estudantes da faculdade”, afirma Lúcia Stumpf, presidente da UNE, que esteve no ato. “A ação foi de uma truculência muito grande. Mostrou que esse governo está despreparado para o diálogo e que não tem a compreensão do que deve ser uma universidade pública”, opina. No dia 22, em repúdio à repressão da tropa de choque, a faculdade amanheceu decorada de faixas com dizeres como “traição”. As faixas foram colocadas pelo Centro Acadêmico XI

de Agosto, entidade representativa dos estudantes do Largo São Francisco. O professor da Faculdade de Direito, Fábio Konder Comparato, acredita que houve uma precipitação por parte do diretor, já que a “manifestação tinha objetivos importantes e teria duração de 24 horas”. O deputado estadual Simão Pedro (PT-SP) esteve presente na ocupação e presenciou a ação da tropa de choque da PM. Na avaliação do parlamentar, a ação foi de uma “gravidade tremenda”. Simão Pedro acredita que o desgaste sofrido pelo governo com a ocupação da reitoria da USP, ocorrida em maio, motivou a ordem de Serra para desocupar o prédio. Além disso, o fato de estudantes de origem pobre e o MST estarem presentes no ato “estimulou” ainda mais o governador Serra a determinar a desocupação.

“Pensamento UDR” “Ele (Serra) não queria repetir o desgaste da ocupação da reitoria. Mas a informação de que membros do MST estavam na faculdade certamente motivou a ação. Há uma visão contaminada pela UDR (União Democrática Ruralista) de que o MST é um movimento criminoso. O Serra tem essa visão de ‘pôr ordem na bagunça’, que é uma postura de direita”, analisa o deputado. O deputado diz que convenceu, ao lado de outras lideranças, o coronel da tropa de choque Álvaro Camilo a não invadir o Centro Acadêmico XI de Agosto, onde alguns manifestantes se refugiaram. “Expliquei que nem o Erasmo Dias (coronel do exército que ordenou uma violenta invasão da PUC-SP, em 1979) teve coragem de fazer isso. Seria uma arbitrariedade ainda maior entrar no CA, que é um espaço privado dos estudantes”, relata. O coronel Camilo explicou que a invasão do CA era necessária pois integrantes do MST fariam “auto-imolação” para dizer que sofreram violência policial. (RGT)


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brasil

O segredo da autonomia sindical TRABALHO Sustentado por seus filiados, sindicato sergipano descarta imposto sindical e aposta na formação política de sua base

EXEMPLO DE autonomia e organização combativa no Brasil, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Sergipe (Sintese) mostra que é possível aglutinar os trabalhadores não apenas em defesa de seus direitos corporativos, mas de uma sociedade mais justa. Ao abrir mão do imposto sindical, é por meio da filiação que a luta é financiada. “O imposto sindical é uma forma agressiva de retirar dinheiro do trabalhador”, avalia, nesta entrevista ao Brasil de Fato, Joel de Almeida Santos, presidente do Sintese. Com cerca de 23 mil filiados e presente em 68 das 75 cidades de Sergipe (a capital Aracaju tem sindicato próprio), o Sintese se destaca também pela forte formação político-sindical da sua base. Para filiação de cada município, os professores precisam passar por um processo de formação antes da concretização da filiação. Assim, têm cursos onde são tratadas questões como concepção e prática sindical, financiamento da educação pública e legislação educacional. Só depois do curso, acontece a assembléia de filiação e a eleição da comissão sindical, que é composta de um delegado sindical, um suplente e sete membros da comissão de negociação.

Sobre a importância da autonomia das organizações populares e dos sindicatos, onde está o problema de não ser independente? Está na confusão que muitas organizações fazem entre movimento social e sindical com partido político. Os movimentos sociais e sindicais organizam sua atuação política a partir de determinadas concepções políticas. Isso é salutar. É importante estar filiado a um partido político. Boa parte da direção do Sintese é filiada a uma tendência petista denominada Articulação de Esquerda. Entretanto, o movimento social e sindical precisa ter princípios e ações que devem ser efetivados acima de qualquer interesse institucional. Negar os princípios que alicerçam o movimento social e sindical ou subjugá-los aos interesses partidários é matar o movimento.

Brasil de Fato – Qual o maior desafio dos sindicatos no Brasil hoje? Joel de Almeida Santos – É promover a unificação e a organização da classe trabalhadora. E o governo Lula, infelizmente, tem ajudado a desorganizar e fragmentar a classe trabalhadora. A postura do governo de encaminhar

Como o sindicato se organizou para não precisar do imposto sindical? O Sintese defende a idéia de que os trabalhadores devem contribuir para a enti-

Para entender

SINTESE

para o Congresso Nacional reformas que retiram direitos dos trabalhadores, a política econômica conservadora e o menosprezo às reivindicações dos servidores públicos têm levado os movimentos sindicais e sociais a tomarem posições que vão de confrontos inconseqüentes com o governo a uma completa apatia ou subordinação a ele. E isso fragmenta. Infelizmente, o cenário que se apresenta é que brevemente deixaremos de ter uma central que aglutina todos os trabalhadores para termos inúmeras centrais, cada qual organizada por um ou dois partidos políticos.

Eduardo Sales de Lima da Redação

Imposto Sindical – A contribuição sindical é recolhida compulsoriamente pelos trabalhadores no mês de abril de cada ano. Tal contribuição deve ser distribuída, na forma da lei, aos sindicatos, federações e confederações. O objetivo da cobrança é o custeio das atividades sindicais

Joel fala para professores sergipanos em encontro promovido pelo Sintese

Negar os princípios que alicerçam o movimento social e sindical ou subjugá-los aos interesses partidários é matar o movimento dade de forma voluntária. O imposto sindical é uma forma agressiva de retirar dinheiro do trabalhador. Ele é um grande gerador de entidades cartoriais, que não organizam nem filiam os trabalhadores, pois sonham com o dinheiro do imposto. É verdade que há entidades sérias que precisam desse mecanismo para sobreviver, mas, nesse caso, é preciso encontrar outras saídas, nunca o imposto. Qual sua avaliação sobre o movimento sindical no Brasil? O movimento sindical no Brasil tem passado por um refluxo muito grande. O neoliberalismo colocou em xeque a clareza que os trabalha-

dores devem ter em relação à luta de classes e muitos sindicatos não souberam superar as dificuldades impostas pelo desemprego, a automação, a reestruturação produtiva e a perseguição às lideranças sindicais. Dessa forma, o movimento sindical passou a negociar concessões de direitos e não mais lutar por novos direitos, o que é inconcebível para um sindicato. A mera negociação foi priorizada em detrimento da organização dos trabalhadores. E o papel das centrais sindicais? Algumas centrais sindicais perderam ou nunca tiveram como essência a luta por uma sociedade socialista, de modo

que tenha fim a exclusão social, os privilégios e a injustiça. E isso tem gerado uma crise profunda nos encaminhamentos de luta. São ações que não visam quebrar a espinha dorsal do capitalismo para construção de um outro modelo de sociedade, justa e igualitária. Por outro lado, vivemos um momento de fragmentação da organização dos trabalhadores e a conseqüente proliferação de centrais. Continuamos filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela sua história de luta e combatividade, mas entendemos que urge por parte da central um posicionamento mais combativo em relação ao governo, pois ela tem legitimidade

para isso. Na contra-mão, a CUT-Sergipe tem promovido a organização dos trabalhadores e dos movimentos sociais de esquerda na luta pela moralização do serviço público; contra a superexploração dos trabalhadores, principalmente, no comércio; pelas reformas urbana e agrária; pelo acesso dos trabalhadores aos direitos previdenciários; pela atuação eficaz do Ministério Público do Trabalho e da Delegacia Regional do Trabalho (DRT); por condições dignas para todos os trabalhadores do campo e da cidade, entre outros. A CUT-Sergipe também tem desenvolvido um projeto de formação política para dirigentes sindicais no sentido de dar subsídios para promoverem a luta nos seus sindicatos. Tem organizado sindicatos de servidores municipais, bem como oposições sindicais nos sindicatos pelegos.

Quem é Joel de Almeida Santos, presidente do Sintese entre 2004 e 2007, encabeça a nova diretoria reeleita com a chapa “Resistência e luta, sempre!”, com mandato até 2010. É também secretário adjunto de Assuntos Educacionais do Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).

Organizados, professores enfrentam o caos na educação pública de Sergipe, reivindicam a revisão salarial e a transparência nos gastos públicos

Fotos: SINTESE

“Os professores lutam sempre pelas mesmas causas”

da Redação Nos últimos meses, principalmente a partir do início do segundo semestre, as manifestações de educadores de Sergipe vêm aumentando. Eles apresentam uma gama de reivindicações que variam de acordo com cada situação, indo desde melhorias nos espaços físicos das instituições, vistoria em irregularidades na merenda escolar, falta de material didático, necessidade da reformulação do Plano de Carreira e Estatuto do Magistério; até chegar ao aumento de salário e pagamento de férias atrasadas. Os professores da rede estadual de Sergipe, com formação em ensino médio, recebem cerca de R$ 390 e aqueles com nível superior R$ 820, para jornada de 40 horas semanais. No interior, o piso salarial de boa parte da rede municipal não chega a R$ 300. “Em Santo Amaro das Brotas (município de 10 mil habitantes, a 37 km de Aracaju) não há muita diferença (em relação aos outros municípios de Sergipe). Os professores lutam sempre pelas mesmas causas: condições de trabalho e salário digno. As escolas estão desestruturadas”, declara a professora do ensino fundamental da Escola Municipal Benedito Figueiredo, Sandra de Morais Santos Bonfim. Ela leciona História

Sandra Morais (de preto) em manifestação do sindicato; à esquerda, conferência estadual dos trabalhadores em educação

Quanto

94% das escolas da

rede municipal de Sergipe não têm biblioteca

para alunos da 5ª à 8ª série e é filiada ao Sintese. “Cerca de 80% dos municípios filiados estão em processo de luta. Alguns, em fase de negociação com os gestores (prefeitos). Outros, já fazendo atos e paralisações, sendo que, alguns, ocuparam as prefeituras por ausência de negociação, a exemplo de

Campo do Brito e Ribeirópolis”, relata Joel de Almeida, presidente do Sintese. Em Ribeirópolis, os educadores estão lutando por maior transparência na prestação de contas dos recursos municipais para alimentação, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), condições de trabalho, transporte e salários.

Precarização O reflexo da precariedade das condições de trabalho na sala de aula pode ser percebido pelos inúmeros motivos

Três décadas de Sintese Em 8 de setembro de 1977 foi fundada a Associação de Profissionais do Magistério do Estado de Sergipe (APMESE). Nove anos depois, um grupo do 300 professores decide criar o Centro Profissional de Ensino (Cepes) que retoma a luta do magistério a partir de uma perspectiva classista, aliando reivindicações a estudos e debates sobre a prática pedagógica da rede pública de Sergipe. A Associação transformou-se em sindicato em 1988. A partir dos anos de 1990, o eixo da luta foi o desenvolvimento de políticas públicas na área da educação com um projeto de profissionalização da categoria e com a busca da interatividade com a sociedade e com os segmentos organizados da classe trabalhadora. (ESL)

de afastamento da atividade docente: 25,8% estão vinculados a problemas no sistema nervoso, como depressão e estresse. Somado a isso, as escolas sergipanas necessitam de uma reformulação estrutural para que se tornem, de fato, unidades de ensino. De acordo com dados do Sintese, em 2006, 94% das escolas da rede municipal e 70% da rede estadual não tinham biblioteca. E mais: 94% das escolas da rede municipal e 72% da rede estadual não tem quadras poliesportivas. Segundo Sandra Morais, os docentes sergipanos estão lu-

tando muito mais por escolas de qualidade do que por salário. Mas a falta de vontade política e de transparência com os recursos públicos, para Joel, são os maiores problemas. “A maior parte dos prefeitos não apresenta os documentos financeiros aos professores, nem mesmo aos conselheiros do Fundeb”, critica.

Violência Além da falta de vontade política dos prefeitos sergipanos, Joel conta que muitos dirigentes são ameaçados fisicamente ou de perder o empre-

go. “Já houve até ameaça de morte”, denuncia. “Temos um companheiro que é uma liderança no município de Aquidabã e que sofreu um acidente muito estranho em uma estrada do município. Em Moita Bonita, uma prefeita de 23 anos, filha de um coronel político do interior, abriu um inquérito administrativo para demitir a liderança do Sintese na cidade. A sindicalista cursa Biologia na Universidade Federal de Sergipe e às sextasfeiras não pode dar aula na escola do município. A prefeitura proíbe que ela reponha essa aula em outro dia, mesmo isso sendo legalmente possível, pois o objetivo é demitila”, completa o sindicalista Os professores sergipanos se unem aos docentes da rede estadual e municipal de todo o país, no dia 29 de agosto, em greve. Eles engrossam o coro das reivindicações não atendidas em relação ao atual piso salarial da categoria. O ministro da Educação, Fernando Haddad, defende um piso salarial para professores da rede pública de R$ 850, enquanto a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) reivindica R$ 1.050, para os professores de nível médio, e R$ 1.575, para os que têm nível superior. (ESL)


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O sucateamento da máquina pública

a

am

ECONOMIA Apesar de a maioria da população necessitar do serviço público, governos seguem reduzindo tamanho do Estado com reformas neoliberais Tatiana Merlin, da Redação SUPERLOTAÇÃO em hospitais, falta de leitos de UTI, poucos equipamentos, falta de verba para suprir uma demanda por pacientes cada vez mais crescente e baixos salários dos servidores. Essa é a situação da saúde nos Estados nordestinos de Alagoas, Ceará, Pernambuco e Paraíba onde o sistema público vive um verdadeiros caos. Nos quatro Estados, servidores da saúde entraram em greve para reivindicar melhores condições de trabalho e atendimento. Alagoas é o Estado que possui a pior relação de habitantes por quantidade de leitos no Nordeste: 458 para cada vaga. Logo depois, vêm Ceará e Sergipe, com relação de 437 e 449 habitantes por leito, respectivamente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o ideal é uma média de uma vaga para 333 habitantes. Segundo o presidente do Sindicato dos Hospitais de Alagoas, Humberto Gomes de Melo, apenas 7% dos alagoanos têm plano de saúde – os demais 93% dependem do SUS, “que não está suprindo as necessidades da população”. De acordo com ele, “ a média dos gastos das empresas de plano de saúde fica em torno de R$ 130 por mês para cada usuário. Os recursos do SUS chegam a cerca de R$ 6 por pessoa a cada mês”, sendo que o Estado recebe, anualmente, um teto de R$ 196 milhões para suprir a assistência ambulatorial e hospitalar.

Quanto

287 mil

é o número de cargos de servidores federais ativos que foram cortados pelo Executivo entre 1989 e 2003 com menor número proporcional de empregados públicos: apenas 11,5% da força de trabalho total (formal e informal) estava empregada em órgãos e empresas públicas dos três níveis de governo. No México, essa proporção era de 16,4%; e nos países europeus, como Reino Unido, Espanha e Suécia, por exemplo, essa proporção atingia respectivamente 18,9%, 19,2% e 37,9%.

Opções privatistas A situação em que o país vive hoje, analisa Pochmann, é resultado das opções feitas “especialmente a partir da década de 1990, quando o Estado foi identificado como um entrave para o desenvolvimento nacional e para o enfrentamento das mazelas da sociedade”, avalia. Partindo do princípio de que o Estado estava “inchado”, com funcionários públicos em excesso num modelo burocrático, um conjunto de medidas foram tomadas para ajustar o setor público, “a começar pela privatização, que significou a transferência de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) para o setor privado”, explica.

da Redação O Estado brasileiro está “raquítico”. É preciso rever seu papel e criar empregos públicos na medida em que estejam comprometidos com um projeto de desenvolvimento nacional. A avaliação é de Márcio Pochmann, professor de economia da Unicamp e novo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). “Se o objetivo do país é construir uma nação integrada, coesa, irá passar pelo Estado, e não pelo setor privado, que historicamente não cumpriu a função da integração”. De acordo com o professor, o que está em jogo é uma visão de classe da sociedade. “Para alguém de classe média alta ou mesmo rico, o Estado está balofo e custa caro demais. Os filhos dele estudam fora do país e a saúde é privada. Como essa pessoa pertence a um setor privilegiado da sociedade, acha que não precisam do Esta-

“Para 80% da sociedade que não tem acesso à educação, saúde decente e transporte, o Estado é carente, raquítico”, avalia Márcio Pochmann do. A questão é que a camada que depende do serviço público não é essa”, critica. “Para 80% da sociedade que não tem acesso à educação, saúde decente e transporte o Estado é carente, raquítico”. Pochmann diz que não defende o aumento das contratações de forma indiscriminada, mas avalia que um movimento nesse sentido é fundamental para gerar desenvolvimento com inclusão. O economista afirma que, caso o Brasil queira atingir o patamar do Chile na educação em 20 anos – onde 85% dos jovens entre 15

e 17 anos estão matriculados no ensino médio – precisa contratar 500 mil professores para incluir 5 milhões de jovens. “Para essa demanda, precisaríamos de 50 mil salas de aula”, analisa o professor (leia mais sobre educação na página 3). “No setor de saúde, a relação de médicos, enfermeiros, leitos por pessoa há uma defasagem brutal. Na cultura, a situação também é grave. Dois terços das cidades brasileiras não têm biblioteca pública. Os ricos não precisam dessas coisas, mas a maioria da população não é rica”, observa. De acordo com ele, para reverter esse quadro, “precisaríamos de uma maioria política que tivesse uma visão de longo prazo. O país necessita fazer uma profunda reforma para democratizar o Estado”. No entanto, a maioria que existe hoje, afirma, tem uma visão “individualista e medíocre. É por isso que cada vez mais cresce a distância entre o país que somos e o que poderíamos ser”. (TM)

Elza Fiúza/ABr

Sob a alegação de que o Estado era ineficiente, o país iniciou reformas liberais e como consequência houve um esvaziamento e precarização do setor público. Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit), aponta que, entre 1989 e 2003, o número de servidores federais ativos do Executivo caiu de 713 para 460 mil. Além disso, na década de 1990, “ao mesmo tempo em que houve redução dos servidores ativos, cresceu o número de servidores inativos, ameaçados pela reforma da Previdência”, acrescenta. Na década de 1990, diz o professor, havia cerca de 80% de servidores ativos e 20% de aposentados. “O número de aposentados cresceu tanto, que hoje há 40% na ativa e 60% de aposentados. O problema é que esses quadros que foram reduzidos não estão sendo repostos”, analisa. As iniciativas de ajuste fiscal, como a privatização de estatais, a Lei Camata e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), apertaram o cinto das despesas públicas e levaram ao aumento da terceirização. “Como os Estados, por exemplo, têm um teto máximo a ser gasto com a folha de pagamento do funcionalismo

Manifestantes seguram velas em referência ao lema “Vamos evitar o apagão da Saúde”

Brasil precisa criar mais empregos públicos, diz presidente do Ipea

Brasil está entre os seis últimos países com menor número proporcional de empregados públicos, de acordo com estudo feito pela OIT em 64 países A crise da saúde no Nordeste reflete a situação precária do serviço público do país. Ao contrário do que pregam os setores conservadores em coro com a imprensa corporativa, o Estado brasileiro emprega pouco. Quem sente isso na pele é a maioria da população brasileira que usufrui dos serviços públicos. Comparada aos níveis internacionais, a participação do setor público no total do número de postos de trabalho do país é pequena. “O tamanho do Estado que temos hoje é de um Estado compatível com a mediocridade da economia”, afirma Márcio Pochmann, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recentemente indicado para ocupar o cargo de presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo ele, nos últimos 25 anos, o Brasil perdeu 2,5 milhões de funcionários públicos, que hoje somam cerca de 7 milhões em todo o país. Na década de 1980, o país tinha cerca de 12% do total da ocupação brasileira absorvida pelo setor público, que em 2005 não representava mais que 8%. Em estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizado entre 1995 e 1997 com 64 países, o Brasil apareceu entre os seis países últimos países,

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

público, optaram por terceirizar uma série de atividades”, explica Fagnani. Nos últimos 10 anos, o funcionalismo público federal também vem sofrendo com o arrocho salarial. “Em conseqüência disso, entre 1995 e 2004, a relação Despesas com Pessoal e a Receita Corrente Líquida da União caiu de 55% para 30%”, cita o professor. A opção por reduzir o papel do Estado, na década de 1990, interrompeu a tendência de evolução do emprego público no Brasil, que havia crescido 9,8 vezes entre os anos 1920 e 1990. Em 1920, havia no país uma relação de um empregado público para cada 200 pessoas. Em 1990, a relação era de cinco funcionários para cada 100 brasileiros. A partir de 1990, a tendência de alta no emprego público relativo à população foi rompida. Em 14 anos (1990-2004), a proporção do emprego público no conjunto da população total caiu 6,1%.

Fila em hospital regional de Taguatinga, cidade-satélite do Distrito Federal


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Vale reage ao plebiscito popular com mentiras e violência MOBILIZAÇÃO Empresa investe em publicidade afirmando “preservar o meio-ambiente” e reprime manifestação pacífica em Belo Horizonte Pedro Carrano de Curitiba (PR) CONFORME A campanha “A Vale é Nossa”, pela nulidade da venda da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), ganha intensidade e se aproxima da semana do plebiscito popular (de 1º a 7 de setembro), a Companhia joga sua fichas na publicidade massiva para se contrapor à campanha. Em horário nobre na televisão, com a voz da atriz Fernanda Montenegro, a companhia anuncia seu vínculo com o país e com o meio ambiente. Isso apesar de os movimentos sociais denunciarem que os rumos da empresa são decididos, hoje, pelo consórcio Valepar (que tem a presença do banco Bradesco) e pelos acionistas preferenciais (62% deles estrangeiros). A Vale ressalta o seu caráter de preservação do meio ambiente, quando o trabalho de formação para o plebiscito aponta o contrário: a produção da companhia explora a camada vegetal da Amazônia com o objetivo da exportação.

Brutalidade No dia 22 de agosto, a Companhia também apostou na repressão e no silêncio dos

Quanto

136

manifestantes foram presos após pressão da Companhia sobre a polícia meios massivos como forma de aplacar o movimento. Em atividade da jornada nacional em defesa da educação pública, um grupo de 250 estudantes e militantes de movimentos sociais entraram nas instalações da empresa Ferrovia Centro Atlântica (FCA), pertencente à Vale, para dar visibilidade à campanha e às quatro perguntas do plebiscito popular (veja box). Os estudantes deixavam claro que faziam um protesto pacífico, para denunciar a venda da Companhia, que foi privatizada em 1997, com um valor considerado irregular. A polícia negociava a saída dos manifestantes, porém, de súbito, a pressão de advogados da Vale alterou a história e 136 jovens foram algemados e levados para a delegacia. 27 deles eram menores. As mulheres foram coagidas pela polícia feminina e submetidas a revistas íntimas repetidas vezes. A atitude policial, sob o mando da direção da Vale, gerou inúmeras notas de repúdio dos movimentos sociais.

Terror psicológico Na mesma noite, quando a maioria dos estudantes havia sido solta, cinco militantes, três homens e duas mulheres foram escolhidos aleatoriamente e enviados a penitenciárias estaduais. No presídio masculino, ficaram ao lado de 40 pessoas em uma cela destinada para apenas 10 presos. No momento em que os militantes foram liberados, o número de pessoas na prisão chegava a mais de 60. Conta-se que do lado de fora

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saiu na agência

A Agência Brasil de Fato colocou em sua página uma seção especial dedicada à campanha pela anulação do leilão que privatizou a Companhia Vale do Rio Doce. Durante o plebiscito popular, que finda no dia 7 de setembro, a agência acompanhará os acontecimentos em torno das mobilizações. Na seção especial, é possível ter mais informações de como organizar o plebiscito. Direitos trabalhistas

O Ministério Público do Trabalho (MPT) de Marabá (PA) realizou uma inspeção em duas mineradoras da Companhia Vale do Rio Doce e constatou violações de direitos trabalhistas, sobretudo o não-pagamento de horas extras aos trabalhadores. Se a companhia não assinar um termo de ajustamento de conduta, deverá pagar R$ 69 milhões em indenizações.

Política de imigração

Milhares de manifestantes foram às ruas de Los Angeles, nos EUA, para reivindicar uma reforma imigratória. A manifestação prestou apoio a Elvira Arellano, mexicana que foi deportada em agosto. Os imigrantes pedem o fim das deportações e da política repressiva contra os indocumentados.

CPI do Pan

Em solidariedade com os militantes, presos gritaram “Pátria Livre, Venceremos”, no momento em que eles deixavam a cadeia em Minas Gerais do presídio não havia informação sobre os três. Um fato interessante foi o grito dos presos de “Pátria Livre, Venceremos”, em solidariedade com os militantes, no momento em que eles deixavam a cadeia. A Vale fechou com chave de ouro o seu roteiro de repressão, ao divulgar uma nota com a seguinte frase, reconhecendo o seu poder local, político e econômico. Diz a nota: “A CVRD acredi-

ta na Justiça, na Polícia e nos Governos locais e federal, a quem temos apoiado incessantemente com o nosso trabalho, que permite a geração de emprego e renda nas regiões onde atuamos, além do crescimento e da geração de divisas para o país“. A CVRD alegou ainda que o movimento estudantil, organizador da ação direta, seria usado como massa de manobra de movimentos sociais como MST e MAB.

Em entrevista, o vereador carioca Eliomar Coelho (Psol), que pretende instalar uma CPI do Pan na Câmara Municipal, afirma que a comissão não entra em vigor sem pressão popular. O ve-

fatos em foco

Campanha com a atriz Fernanda Montenegro tem o objetivo de associar imagem da Vale com a cultura nacional de Curitiba (PR) Silvio Mieli, jornalista e professor da faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP, aponta que a escolha de Fernanda Montenegro para a publicidade da Companhia Vale do Rio Doce não foi à toa. Primeiro porque uma empresa pertencente à CVRD já havia patrocinado um

“Se o artista quisesse adotar esse discurso conservador, tudo bem, mas que fosse a partir de debates, senão fica uma coisa muito oportunista”, critica Silvio Mieli filme estrelado por Fernanda, em 2005, intitulado Casa de Areia (House of Sand, no título original, em inglês). Na ótica de Mieli, utilizar uma figura conhecida como a atriz vincula a marca da empresa a uma idéia de cultura nacional. Assim como a empresa Nike tenta vincular-se ao esporte, mais do que apenas anunciar a sua mercadoria. É comum observarmos artistas colocando o seu trabalho a serviço de uma corporação, mesmo que não esteja necessa-

riamente de acordo com o seu conteúdo. A marca, segundo o professor da PUC-SP, é a protagonista e os artistas se sujeitam de modo passivo apenas a ser o veículo das corporações, em constante ofensiva sobre o imaginário da sociedade.

Oportunismo Essa tática atingiu o seu extremo em 2006 quando a empresa Aracruz Celulose veiculou uma publicidade, em época de Copa do Mundo, associando a empresa ao esporte símbolo da cultura nacional. A propaganda contou com personalidades como o cantor Seu Jorge e Pelé, enquanto, ao mesmo tempo, a Aracruz expulsava comunidades indígenas e quilombolas de áreas no Espírito Santo. “Em momentos importantes para o Brasil, em vez de ajudar a construir alguma coisa, essas figuras intelectuais e do meio artístico não reagem ou então participam de forma domesticada. Se o artista quisesse adotar esse discurso conservador, tudo bem, mas que fosse a partir de debates, senão fica uma coisa muito oportunista”, comenta Mieli, para quem essa atitude escapa totalmente do papel questionador que a arte deve assumir, no campo simbólico. “O papel do artista não é o de estetizar o discurso do capital”, critica. (PC)

Onde se instala, Vale multiplica confrontos locais Por onde passa, Companhia deixa marcas nos povos originários, seja pela destruição ambiental ou pela descomunal atração de mão-de-obra migrante de Curitiba (PR) A atividade da Vale costuma gerar contradição com os trabalhadores locais e com o meio ambiente nas áreas de extração de minérios da companhia, seja pelo conflito contra os povos originários ou mesmo pela chegada de mão-de-obra, atraída pelos projetos da Vale, que se revelam temporários ou insuficientes para abranger toda a migração. No Espírito Santo, por exemplo, a expansão da empresa Aracruz Celulose sobre o território indígena e quilombola está diretamente envolvida com a infra-estrutura montada pela Vale do Rio Doce naquele Estado. Como explica o economista Helder Gomes, “a Vale tem uma importância na constituição de uma fábrica da Aracruz Celulose no Estado. A primeira pesquisa para formular a melhor área de reflorestamento dentro do território foi da Vale, o que deu condições para a atividade do eucalipto e a pesquisa da empresa foi transferida para a construção da Aracruz”, comenta. Para o trabalho do plebiscito popular, Helder Gomes relata que um tema com apelo entre a população do Estado é a poluição do meio ambiente, causada pelos resíduos sólidos presentes no ar devido à mineração e à atividade das siderúrgicas.

Portos Outro motivo de crítica dos trabalhadores locais se dá sobre a questão dos portos. Gomes relata que o porto de Praia Mole, localizado em Vitória, não foi incluído no edital de privatização de companhias como a Vale, Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) e Usiminas, que realizam atividades no porto com exclusividade, como se ele fosse particular. “É um porto público que hoje atende à logística da Vale”, comenta. (PC)

MAB

Cerca de 400 famílias ligadas ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) acamparam em frente ao portão da Usina Hidrelétrica de Foz do Chapecó, em Águas do Chapecó (SC). Os acampados querem marcar audiências com o governo e o consórcio responsável pela obra para discutir as indenizações das famílias atingidas.

Questão indígena

O ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou a portaria que declara como terra indígena os 14.227 hectares reivindicados pelos povos Tupinikim e Guarani. A área, atualmente, está sob controle da transnacional Aracruz Celulose. Com essa decisão, a Funai deve delimitar a terra, colocando marcos físicos em seus limites.

Hamilton Octavio de Souza

Repressão inaceitável O governo do Estado de São Paulo tem usado sistematicamente a tropa de choque da Polícia Militar para reprimir manifestações pacíficas e democráticas de trabalhadores sem teto, sem terra, professores, metroviários e estudantes. A invasão policial da Faculdade de Direito da USP – dia 22 de agosto – violou a autonomia universitária e o direito de manifestação. Foi uma afronta à Constituição e à sociedade brasileira, autorizada pelo governador José Serra, do PSDB. Sócio bonzinho

Publicidade: instrumento das corporações

reador quer investigar as denúncias de superfaturamento das obras dos Jogos PanAmericanos do Rio de Janeiro. Inicialmente, as instalações estavam orçadas em R$ 414 milhões, mas o gasto final foi de quase R$ 4 bilhões.

Depois que o rolo compressor do governo derrubou os impedimentos de impacto ambiental para a construção de usinas hidrelétricas no rio Madeira, grupos privados e fundos de pensão articulam seus consórcios para a disputa da concorrência, a primeira em 30 de outubro. Todos, é claro, contam com a boa ajuda do BNDES para capitalizar – sem poder de decisão – até 49% do empreendimento. Moleza!

Orçamento fictício

Boa parte das políticas governamentais não passa de discurso demagógico e de propaganda vazia. É o caso da ação concreta para prevenir a violência contra as mulheres, contemplada na Lei Maria da Penha, mas não aplicada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que investiu em 2007 somente 5% do orçamento previsto. Tudo porque os recursos não são liberados pelo Ministério da Fazenda.

Avanço neoliberal

Porta-voz do “moderno” empresariado brasileiro, a revista Exame, da Editora Abril, publicou na edição de 29 de agosto mais uma matéria em defesa da derrubada dos direitos trabalhistas, considerados “anacrônicos” e entraves para o crescimento econômico do país. A revista defende o parcelamento das férias, o trabalho livre aos domingos e a redução do horário de almoço dos trabalhadores. Isso é que é “modernidade”!

Momento histórico

Apesar da fragmentação do movimento comunista internacional, principalmente em decorrência do processo ocorrido na antiga URSS, a maior parte das facções, correntes,

grupos e pensadores de esquerda concordam que o 90º aniversário da Revolução de 1917 lembra o fato mais marcante da história de lutas dos trabalhadores – e um marco na unidade de forças anticapitalistas e antiimperialistas.

Trabalhador perdeu

As políticas neoliberais continuam assaltando os trabalhadores nos seus direitos e benefícios: de 1991 a junho de 2007, segundo cálculos da ONG FGTS Fácil, os trabalhadores perderam 29% na correção do FGTS – feita pela TR – diante da inflação ocorrida no mesmo período. É claro, em contrapartida os banqueiros bateram recordes de lucro e os ricos ganharam uma boa grana nas aplicações financeiras.

Pressão militar

Depois de ter publicado matérias e charges sobre a violência praticada pela Brigada Militar contra manifestação de trabalhadores e torcidas de futebol, o Jornal NH, de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, recebeu mais de 500 processos por danos morais, todos com pedido de indenização de 100 salários mínimos e todos patrocinados por militares – uma ação articulada para intimidar os jornalistas e sufocar o jornal economicamente.

Esquema corporativo

Alguns deputados da Comissão de Radiodifusão da Câmara Federal já sabem que a entrega de concessões de rádio e TV para parlamentares viola a Constituição de 1988, mas não conseguem aprovar medidas efetivas contra essas concessões porque a maior parte dos deputados adota postura corporativa, em defesa dos concessionários da radiodifusão. É o toma-lá-dá-cá de sempre!


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Anistia: após 28 anos, esperança de solução para os desaparecidos DIREITOS HUMANOS Livro lançado pelo governo pede mais investigações para tentar localizar os restos mortais das vítimas

Brasil de Fato – Como surgiu a idéia de fazer o livro? Paulo Vanuchi – Quando eu cheguei na Secretaria, em dezembro de 2005, já havia a idéia geral de fazer um livro-relatório. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi instituída pela Lei nº 9.140, de dezembro de 1995, e começou a funcionar em 1996. Esse é o primeiro documento oficial do Estado brasileiro que faz tal relato. Houve muitos trabalhos de jornalistas, especialistas, dossiês dos mortos e desaparecidos que tratavam do assunto, mas faltava um documento oficial. Ele registra toda essa informação que não estava sistematizada feita com base no trabalho da Comissão, a qual foi criada com três objetivos: formalizar o reconhecimento de que o Estado era o responsável pela morte de opositores políticos, promover a reparação indenizatória e reunir esforços para localizar restos mortais de aproximadamente 140 brasileiros cujos corpos não foram entregues aos seus familiares. A Comissão trabalhou 479 casos, dos quais 118 foram indeferidos. Dos 353 deferidos, já havia 136 que estavam

O Marco Antônio, quando utilizou a palavra “justiça”, pode estar falando de justiça no sentido de “eu não exijo que o torturador vá para a cadeia, mas eu exijo que a filha dele saiba que ele violentou sexualmente a presa política que estava no pau-de-arara” numa lista anexa à Lei. O livro resgata e documenta sem esconder nada, como o que ainda falta ser realizado, como a questão da localização dos corpos. Para que isso aconteça é preciso que haja um procedimento interno dentro das Forças Armadas, no sentido de que eles ouçam militares que participaram da repressão e que tenham informações para podermos cumprir esse direito milenar e sagrado das famílias de enterrar seus entes queridos. E isso envolve a necessidade de abrir arquivos e fazer uma narrativa. A partir de agora temos um livro oficial que incorpora a versão das vítimas com o carimbo do governo federal. Não é uma iniciativa que tenda a gerar aplausos e contentamento das Forças Armadas, porém, nosso entendimento é de que a Comissão é de Estado e não do governo Lula. Ela atravessa quatro mandatos presidenciais com uma linha de continuidade. A localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos prescinde da abertura dos arquivos militares. É preciso abrir todas as informações pertinentes. Em termos técnicos, os arquivos sobre a repressão política já têm mais de 25 anos e, pela lei brasileira, já estão “desclassificados”. A classificação pode ser entre reservado, secreto ou ultra secreto, de acordo com a Lei nº 11.111,

No Rio de Janeiro, em 1980, mãe de Joel Vasconcelos e a viúva de Mário Alves

Quem é Cientista político e jornalista, Paulo de Tarso Vannuchi foi preso político entre 1971 e 1976 e um dos 34 signatários do amplo dossiê entregue ao presidente nacional da OAB, Caio Mário da Silva Pereira, em 23 de outubro de 1975, arrolando os nomes de 233 torturadores, descrevendo os métodos de tortura, as unidades onde eram praticadas e apresentando uma primeira lista geral dos assassinados desde 1964. É co-fundador e membro do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae. Trabalhou na equipe que realizou, sob sigilo, o projeto de pesquisa “Brasil Nunca Mais”. Co-fundador do Instituto Cajamar, ao lado de Lula, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Perseu Abramo e outros, e desde dezembro de 2005, secretário especial dos Direitos Humanos, que possui status de ministério.

promulgada em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Como não houve nenhum procedimento de reclassificação desses arquivos, eles estão rigorosamente abertos e onde quer que eles apareçam não estão mais protegidos pelo sigilo. No entanto, a alegação de unidades militares mais de uma vez diligenciados pela Comissão é de que os arquivos foram destruídos com base na legislação vigente em cada época. Acontece que a legislação vigente em cada época sempre exigiu que, para destruir um arquivo, fosse assinado um termo de eliminação de arquivos, com testemunha. Se houve mesmo a destruição de arquivo, será necessário apresentar esse termo de destruição ou será preciso abrir uma sindicância para apurar quem foi o responsável pelo crime de destrui-

ção de um documento que não podia ser destruído. Há inúmeras publicações recentes que mostram que documentos estão indevidamente em mãos particulares, possivelmente de ex-participantes dos órgãos de repressão. O senhor acha que com a publicação do livro pode exercer uma pressão para a localização dos restos mortais dos desaparecidos? O livro expressa o ponto de vista de uma área do governo, que é de direitos humanos. Nessa área não restam dúvidas de que houve violações. Na própria apresentação do trabalho dizemos que nosso objetivo é o da busca da reconciliação. Mas ela não pode ser feita na omissão ou no silêncio. A democracia

Justiça pode reconhecer coronel como torturador Dafne Melo da Redação Para o jurista Fábio Konder Comparato, o lançamento de Direito à memória e à verdade é um fato histórico que marca “a primeira vez que o governo federal reconhece a responsabilidade criminal de agentes públicos praticando toda a sorte de atrocidades”. Infelizmente, entretanto, o Brasil ainda não viu nenhum dos militares acusados de assassinatos, estupros e torturas no banco dos réus, já que a Lei de Anistia (1979) beneficiou também os militares. Em setembro de 2006, porém, em decisão inédita, o juiz titular Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, determinou que a Lei de Anistia não impede a abertura de processos civis contra militares acusados de tortura durante o regime militar. Até então, apenas a União podia ser processada. O juiz ainda apontou que, para a ONU, crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis. Essa decisão permitiu a abertura de um processo contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra mo-

vido por cinco de suas vítimas, todas pertencentes a uma mesma família. Criméia Alice Schmidt de Almeida, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles, Janaína de Almeida Teles e Edson Luis de Almeida Teles acusam o coronel de seqüestro e tortura entre 1972 e 1973. O militar foi comandante do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo de 1970 a 1974. Durante esse período, o projeto Tortura Nunca Mais contabilizou 40 mortes e pouco mais de 500 casos de tortura nas dependências do órgão. Comparato explica que a ação é declaratória, ou seja, tem como objetivo obter uma declaração judicial de que Ustra cometeu torturas. Portanto, sua motivação é política. “Não estamos pedindo um centavo, queremos apenas restabelecer a verdade”, diz o jurista que coordenou a ação contra Ustra. Na primeira audiência, realizada em novembro de 2006, foram ouvidos os testemunhos dos cinco proponenentes. Ustra não compareceu. Seus advogados recorreram e o processo ainda está em trâmite judicial.

Marcelo Casal Jr./Abr

PARA RECUPERAR a história de cerca de 400 militantes políticos vítimas da ditadura militar no país, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) lança o livro Direito à memória e à Verdade – Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A obra relata o trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – instituída pela Lei nº 9.140, de dezembro de 1995 – que, durante 11 anos, trabalhou na busca de solução para os casos de desaparecimentos e mortes de opositores políticos por autoridades do Estado durante o período de 1961 a 1988. O livro, lançado na data em que a Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, completa 28 anos, é o primeiro documento oficial do governo federal a relatar as condições em que os opositores da ditadura civil militar foram torturados e mortos. Em entrevista ao Brasil de Fato, o ministro da SEDH, Paulo Vannuchi – organizador da publicação –, afirma que “a partir de agora temos um livro oficial com carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas”. Segundo ele, um dos desafios que ainda se colocam para a Comissão é a localização dos restos mortais dos desaparecidos durante o regime. No entanto, para que isso aconteça, ele lembra que “é preciso que haja um procedimento interno dentro das Forças Armadas, no sentido de que eles ouçam militares que participaram da repressão e que tenham informações para podermos cumprir esse direito milenar e sagrado das famílias de enterrar seus entes queridos”.

brasileira, os direitos humanos e o governo Lula firmam uma posição muito clara nesse sentido. Agora, evidente que, a partir desse livro, o encaminhamento de passos seguintes também depende muito do presidente e do ministro Nelson Jobim que, por sorte, é o autor da lei de mortos e desaparecidos quando ele era ministro da Justiça do governo Fernando Henrique. Então, eu acho que o momento é muito importante. O tema passa a ter um documento oficial do governo brasileiro que evidentemente vai ser distribuído. O que não pode haver é silêncio com o argumento de que vai abrir feridas. Há um direito inalienável, que é o direito dos familiares. Aí não tem silêncio. Ou podem dar a desculpa de que os corpos não podem ser procurados porque eles já foram destruídos. Precisam contar quem destruiu, quantos foram. Eu tenho a convicção de que nós não vamos localizar os 140 corpos, mas uma parte temos muita chance de localizar. A gente não pode permanecer nessa atitude de evasivas, de não empenho.

Cia da Memória

Tatiana Merlino da Redação

O presidente da Comissão, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, disse que o livro significa um “resgate à memória e o direito à justiça”. O documento também fala da interpretação da Lei de Anistia, que é considerada polêmica por muitos. A partir desse livro seria possível discutir a revisão da Lei de Anistia? Esse é um tema mais delicado e a Comissão seguiu um norte durante 11 anos. O foco é no trabalho de reconhecimento, de indenização e o objetivo humanitário de localizar os corpos. Não entro no tema da responsabilização. O Marco Antônio, quando utilizou a palavra “justiça” pode estar falando de justiça no sentido de “eu não exijo que o torturador vá para a cadeia, mas eu exijo que a filha dele saiba que ele violentou sexualmente a presa política que estava no pau-de-arara”. Isso também é uma maneira de se fazer justiça. A Comissão firmou essa linha de 11 anos e, evidentemente, isso suscita uma possível crítica de familiares, de organizações de direitos humanos. Podem dizer que “esse livro devia exigir a punição e terminar recomendando a abertura imediata de processo”. O livro podia falar “é possível fazer uma nova Lei de Anistia” ou também podia ignorar a polêmica sobre a Lei. Optamos por não esconder nada, como a existência de uma consistente polêmica. Juristas de importância sustentam que, por um lado, o crime de tortura é imprescritível e, de outro, existe o crime permanente da ocultação de cadáver. Em tese, a Anistia absolve tudo com força de uma palavra chamada crimes conexos. E os juristas com muita fundamentação vão argumentar que, se o legislador quisesse absolver o torturador, a redação da Lei seria: “Estão anistiados os delitos políticos cometidos pelos opositores ao regime e também os eventuais crimes cometidos na repressão a esses opositores”. Aí seria claramente uma lei acobertando ou agasalhando essas violações. Como em 1979 preferiram por um caminho cínico, ficou combinado entre os parlamentares da época que a palavra “conexo” queria dizer isso. Nenhum tribunal internacional, nenhum grupo de legisladores, a quem for apresentada essa lei como arbitragem vai dizer que a redação que ela tem é uma redação que absolve todos os violadores,degoladores, estupradores. O tema da anistia é um tema que pode ser suscitado pelos parlamentares, pelo Ministério Público e pela sociedade civil. O governo, com a análise política que todo governo faz, baseado no seu projeto estratégico e correlação de forças, preferiu manter a linha de continuidade dessa comissão, de não abrir esse tema. Então, depende se esse livro ajuda a acender um debate. Como o senhor vê iniciativas como a da família Teles, que entrou com uma ação civil declaratória contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de torturar a família no Doi-Codi? Vejo como uma iniciativa boa, corajosa, inteligente. É uma coisa muito sagaz do Fabio Comparato, que percebeu que se existe um argumento de que a Anistia anistiou, vamos driblar. Não é uma ação mais a reparação civil. A ação civil cria um direito que fica difícil comprovar. O argumento desapareceu e ele foi fazer atos de desagravo e pouco se articulou nessa linha de “estamos sendo vítimas de revanchismo”. A família pedia o reconhecimento de que ele os torturou. Querer chamar isso de revanchismo é evidentemente uma manobra de despiste. Acho que foi uma coisa muito positiva, muito importante.


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Distribuir terra na Amazônia não é fazer reforma agrária MEIO AMBIENTE Greenpeace revela acordo entre Incra e madeireiras para explorar floresta em áreas de assentamentos Reprodução

Rui Kureda de São Paulo (SP) NO DIA 10 de agosto, o governo federal anunciava a boa notícia de que a taxa de desmatamento na Amazônia havia caído pelo terceiro ano consecutivo. A área desmatada entre agosto de 2005 e julho de 2006 foi de 14 mil km2, uma queda de 25% com relação aos 12 meses anteriores. Entretanto, apenas uma semana depois do anúncio, vieram à tona denúncias sobre assentamentos irregulares no Oeste do Pará, os quais, em vez de abrigarem agricultores, estariam sendo explorados ilegalmente por madeireiras. Fruto de oito meses de investigação, a denúncia feita pelo Greenpeace – e veiculada pelo programa Fantástico (TV Globo) no dia 19 de agosto – revela a existência de uma “parceria” entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as madeireiras. O primeiro destina áreas da Floresta, sob a competência de sua Superintendência Regional 30 (SR30), para falsos assentamentos e os empresários se encarregam da infra-estrutura no local, ganhando, em troca, o direito de explorá-lo. A partir das denúncias, o Ministério Público Federal apurou irregularidades em 99 assentamentos – que abrangem uma área equivalente a Alagoas – e pediu sua anulação. Como resultado, no dia 27 de agosto, a Justiça Federal mandou interditar esses assentamentos. Em nota, os trabalhadores do Incra da SR 30 revelam que “desde o início de 2007, os servidores vêm reivindicando mudanças na forma de conduzir a reforma agrária no Oeste do Pará, assim como maior transparência na gestão do Incra. As grandiosas metas executadas ao final de 2006 e as péssimas condições de trabalho já nos serviram de alerta”. Tais assentamentos, na região Norte do país, vêm sendo criticados há anos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo a organização, 60% dos assentamentos criados durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva foram na Amazônia. “O MST tem denunciado a política dos governos de fazer projetos de colonização na Amazônia em vez que fazer desapropriações nas áreas onde se concentram os acampamentos, como Sudeste, Sul e Nordeste”, afirma nota do movimento.

É importante também frisar que essa produção fictícia de números de assentados revestindo uma trama de saque das florestas de terras públicas vem de ordens superiores e é uma das maiores indignações do grupo de jovens funcionários recém ingressados no Incra Para explicar essas graves denúncias, o Brasil de Fato entrevista o especialista na região Maurício Torres. Brasil de Fato – Qual é a sua opinião sobre a reforma agrária na Floresta Amazônica? Maurício Torres – Dentro da floresta não é lugar para se fazer reforma agrária. Se o local já for ocupado pelos povos da floresta, há que se ter o reconhecimento do seu direito ao território, não se trata de reformar nada, apenas de se formalizar uma ocupação, geralmente antiga, que é legítima. No meu entender, o melhor instrumento para proceder essa regularização fundiária é a criação de uma Reserva Extrativista (Resex) ou mesmo de um Projeto Agro-Extrativista (PAE). Isso foi feito nas áreas de várzea do Oeste do Pará e há que se admitir a boa e pioneira iniciativa do Incra ao regularizar e dar segurança a essas ocupações. Porém, na região Oeste do Pará, viajando pela BR-163, encontramos imensas áreas completamente degradadas por gado (ao sul) e soja (nas proximidades de Santarém). São latifúndios em que, muitas vezes, unem-se crime ambiental, trabalho escravo e grilagem de terras públicas, terras do Incra que foram federalizadas para a reforma agrária. Nesses casos, entendo a retomada dessas terras públicas e sua (evidente) destinação à reforma agrária como uma obrigação do Incra. São terras próximas aos centros urbanos e às estradas, com melhores condições de infra-estrutura e logísticas, onde a criação de assentamentos não traria o menor dano ambiental e ainda poderia gerar alguma recuperação, como a das matas ciliares, por exemplo. Em 2005 e 2006, não há um único assentamento no Oeste do Pará que tenha sido resultado da retomada da posse de terras griladas e desmatadas. Sobrepondo-se o mapa dos projetos criados a imagens de satélite, percebemos que muitas vezes o assentamento contorna o pasto do grileiro com preciso cuidado para não

Porteira: falsos assentamentos e empresários criam infra-estrutura para explorar região

Sobrepondo-se o mapa dos projetos criados a imagens de satélite, percebemos que, muitas vezes o assentamento contorna o pasto do grileiro com preciso cuidado para não tocá-lo tocá-lo e fica limitado a área coberta por florestas onde o grileiro não desmatou. Qual sua opinião sobre a reação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)? Fico espantado ao ver a resposta do Ministério às denúncias do Fantástico, quando diz que “o MDA vem retomando áreas griladas e assumindo a responsabilidade de incentivar a recuperação de grandes extensões de terra, com uma ocupação sustentavelmente planejada e socialmente justa”. Talvez estejam com processos de retomada de terras, mas, como mostram os Laudos Agronômicos de assentamentos como o Programa de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Renascer II, o Projeto de Assentamento Comunitário (PAC) Bom Sossego I e outros, o Incra tem pleno conhecimento de que a área está completamente invadida por madeireiros e pecuaristas e não há providências efetivas no sentido de se retomar a área. Que eu saiba, o único assentamento que teve ação de reintegração de posse impetrada foi o PDS Santa Clara e, mesmo assim, muito tempo depois de sua criação. O detalhe mais pérfido é que o Santa Clara foi criado para receber assentados do Projeto de Assentamento (PA) Moju, que foram proibidos de plantar pelo próprio Incra em função de terem se negado a vender madeira para uma determinada empresa, segundo conta o presidente da associação que representa essas famílias, Francisco Chagas. Há ainda outra coisa: a rigor, não podemos chamar de reforma agrária a destinação de terras públicas. Na região da SR30, a imensa maioria das áreas é da União. A fórmula de fazer reforma agrária em terra pública não é novidade, mas continua em forma: faz números sem mexer na estrutura fundiária, ou seja, preserva o latifúndio e as relações de poder nele estabelecidas. O que o governo Lula, como os anteriores, vem chamando de reforma agrária se concentra nas regiões onde há disponibilidade de terras públicas e, por isso, a Amazônia é alvo certo. Resumindo, acontece um duplo absurdo: criar assentamentos em áreas de floresta virgem e não criar assentamentos nas áreas griladas e já desmatadas. Você diz que o Incra não criou assentamentos em áreas griladas, mas as denúncias do Greenpeace falam que eles foram criados em áreas ocupadas por madeireiros. E eles estão certos. Não foram criados assentamentos em terras griladas por pecuaristas, especuladores simplesmente ou por sojeiros. Mas foram criados em áreas controladas por madeireiros e a pedido deles, como mostra o relatório divulgado pelo Greenpeace. Explico melhor: para se vender boi, soja ou arroz, ninguém pergunta se eles vieram de terra grilada. Para se ter guia de transporte desses produtos, não há necessidade de se provar que eles provêm de uma fazenda com a situação fundiária legal. Porém, com a madeira é diferente. Hoje, para aprovar um projeto de manejo florestal, é necessário apresentar provas de regularidade fundiária do local de onde se pretende cortar essa madeira. E é por isso que os projetos de manejo não são aprovados e os madeireiros estão aprontando o maior berreiro: quase ninguém tem o título da terra. Qual foi a solução encontrada para regularizar a terra e se poder obter a licença

para cortar a madeira? Criar assentamentos da reforma agrária. E os jornais divulgaram a verdadeira devoção com que os madeireiros da região abraçaram a causa da reforma agrária. Como mostra o documento do Greenpeace, segundo dá a entender o depoimento de Luis Carlos Tremonte, presidente do Sindicato da Indústria Madeireira do Oeste Paraense (Simaspa), à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Biopirataria, em 2006, a idéia de usar os assentamentos como área regularizada para extrair madeira teve a participação do atual presidente do Incra (Holf Hackbart) e do antigo presidente do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), Marcus Barros. Mas com a criação do assentamento o madeireiro não perderia o controle da terra para os assentados? Como funciona essa apropriação do assentamento pelo madeireiro? Antes é preciso entender a modalidade de assentamentos que foram criados na floresta. São sempre PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) e o que isso quer dizer? Nesse tipo de assentamento, toda a área que será desmatada para roçados, pastos etc. concentram-se em uma só porção contínua e pode chegar a, no máximo, 20% da área total do projeto. A outra parte da área que não pode ter a floresta derrubada por corte raso, e que representa a grande maioria do todo, pode ser explorada em “manejo sustentável”, pela associação dos assentados. A idéia, em princípio é muito boa, o problema foi a forma como as madeireiras a encamparam. Como mostraram as denúncias do Greenpeace, os próprios madeireiros constroem as associações e, por meio delas, solicitam a criação do assentamento em áreas de floresta primária controlada por eles. Os jornais de Santarém publicaram – dando ares de grande generosidade dos madeireiros – declarações suas oferecendo a “doação” de imensas áreas para o Incra criar PDS. Uma vez criado o assentamento, essa “associação” de assentados, que na verdade é controlada pelo madeireiro, pediria a aprovação do plano de manejo florestal, que, na realidade, seria explorado pelo madeireiro. É muito remota a possibilidade de o madeireiro perder o controle sobre o PDS. Mesmo porque vimos nessas recentes denúncias vários assentamentos criados em 2006 e até em 2005 sem um único morador, mas em compensação, cheios de explanadas de madeireiras.E há também outra coisa, acontece certo endividamento compulsório do assentado com o madeireiro. E nisso também o Incra tem grande responsabilidade. Documentos apresentados pelo Greenpeace retratam uma realidade onde o Incra, obcecado em mostrar números, cria muito mais assentamentos do que de fato poderia implantar e aquiesce com o esquema em que o madeireiro faz os trabalhos que seriam de obrigação do Incra (incluindo, até, a demarcação do assentamento). O pagamento por isso é certo e líquido: a madeira que, por direito, seria dos assentados. Os índices de queda no desmatamento na Amazônia não poderiam sugerir que essa política de assentamentos é pouco impactante?

De jeito nenhum. O impacto da criação desses assentamentos foi pequeno porque são, como foram chamados, “assentamentos fantasmas”, no caso dos PDS, sem assentados. A resposta do MDA às denúncias do Fantástico afirma que “Todo o desmatamento que por acaso venha a ser constatado nas áreas da reportagem é necessariamente ilegal e clandestino [...]. Em diversas áreas da região, como é o caso do assentamento Serra Azul, citado na reportagem, o Incra denunciou desmatamento ilegal ao Ibama que tem a responsabilidade de coibi-lo”. Realmente, nenhum dos desmatamentos mostrados pela reportagem é resultado do trabalho de assentados. E não é para menos, não há nenhum. Há casos em que os “beneficiários” sequer podem entrar no assentamento, são impedidos por grileiros. Os desmatamentos mostrados limitam-se a explanadas de madeireiros. Porém, é importante que se saiba: quando (e se) as 1.500 famílias constantes da relação de beneficiários do PDS Serra Azul forem para a terra, logo de cara, se expedirá uma guia de desmatamento inicial de 3 hectares (ha) para cada um, o que resultará, de partida, num enorme desmatamento de 4.500 ha, área muito maior do que todas as clareiras juntas. Esse é o resultado da política de criação de assentamentos na floresta. O MDA divulgou que há assentamentos vazios em decorrência do “acordo firmado entre o Incra e o Ministério Público Federal, pelo qual o Instituto se compromete em só assentar famílias depois de obtido o licenciamento ambiental, concluído o Projeto de Desenvolvimento do Assentamento (PDA) e aprovado o Plano de Manejo Sustentável”. Isso não explicaria o fato de não haver assentados nos projetos? O acordo existe e, inclusive, determina que não poderiam ser criados assentamentos, publicadas portarias, tampouco relação de beneficiários sem as etapas mencionadas. Isso significa que o Incra descumpriu o acordo ao publicar a portaria. Como o presidente do Incra disse em entrevista ao Fantástico, as famílias não foram assentadas na área. Aí fica uma dúvida: o que é criar um assentamento para a SR30? Não é desapropriar a terra, já que só são criados em terras do Incra; não é retomar a posse, que não foi retomada em nenhum; não é fazer correr o trâmite formal das etapas de criação de um assentamento, pois, nem em um único isso foi feito; e também não é assentar as famílias que, muitas, estão esperando desde 2005 nas mais pobres periferias das cidades. Então, o que é? Basta cadastrar as pessoas no Sistema de Informação de Projetos de Reforma Agrária (Sipra) e computar as pessoas como metas cumpridas que o assentamento está criado? É importante também frisar que essa produção fictícia de números de assentados revestindo uma trama de saque das florestas de terras públicas vem de ordens superiores e é uma das maiores indignações do grupo de jovens funcionários recém ingressados no Incra e que representam uma grande possibilidade de renovação.

Quem é Maurício Torres é pesquisador, pósgraduando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. É autor de vários estudos e publicações sobre a situação fundiária do Oeste do Pará, incluindo o livro Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163


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américa latina

René Préval, entre a Alba e o FMI HAITI Presidente visitou Fidel, de Cuba, e recebeu Chávez, da Venezuela, mas agora avança com a agenda das privatizações Pablo Sigismondi

Igor Felippe Santos enviado especial a Porto Príncipe (Haiti) O CLIMA abafado pelo sol forte, a lentidão no trânsito de carros e o ar pesado com a poluição deixam qualquer visitante transtornado num primeiro momento em Porto Príncipe. O ritmo da cidade é intenso e, antes das seis horas de manhã, o sol já está forte e o povo sobe e desce as ruas. O Haiti não avançou no processo de industrialização, tem um Estado desestruturado e não construiu uma rede de serviços públicos básicos. As classes dominantes abdicaram da produção nacional, atuando na área de importação de mercadorias. Mesmo com a extrema desigualdade e a falta de respostas à maioria dos problemas do povo, a comparação com Brasil, que tem a 13ª economia do mundo e cresceu cerca de 7% entre os anos 30 e 70, não encontra bases sólidas. “Não existe uma burguesia industrial no Haiti. Há duas décadas, havia uma indústria de substituição (de produtos importados), que não existe mais. A classe dominante, vinculada ao capital internacional, compra mercadorias no exterior para vender à população. Não fazem investimento na produção nacional, só compram e revendem”, explica Marc Arthur Fils-Aime, diretor do Instituto Cultural Karl Levéque (ICKL). A partir disso, grande parte da população atua no comércio informal. A ausência de indústrias para absorver trabalhadores pobres e o desemprego em torno de 60% fez do haitiano um povo comerciante. Nos pontos de concentração de pessoas, forma-se uma feira-livre onde se vende de tudo. Desde água e produtos agrícolas, passando por toras de madeira, artesanato e roupas, chegando até produtos eletrônicos e gasolina.

Estado desestruturado não garante rede de serviços públicos básicos para os haitianos

foi eleito no ano passado com apoio popular, que votou contra candidatos que defendiam o aprofundamento das políticas neoliberais e a permanência das tropas da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti).

O QCI (Quadro de Cooperação Interina), um plano econômico construído sob orientação de organismos internacionais depois da queda de Jean-Bertrand Aristide, em 2004, não prevê investimentos na indústria nacional

beu Hugo Chávez, presidente da Venezuela. De outro, firmou uma carta de intenções com Fundo Monetário Internacional (FMI), abandonou a bandeira da reforma agrária e passou a avaliar um programa de privatização.

“Não existe uma burguesia industrial no Haiti. A classe dominante, vinculada ao capital internacional, compra mercadorias no exterior para vender à população”, explica Marc Arthur Fils-Aime, diretor do Instituto Cultural Karl Levéque Depois de um ano, Préval caminha no fio da navalha, pendendo para a direita. Uma parte do movimento social está pessimista com seu governo, enquanto outro segmento tenta analisar seus passos e influir nas decisões. De um lado, Préval assinou um acordo com a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), fez sua primeira visita oficial a Fidel Castro, em Cuba, e rece-

nem o fortalecimento do Estado. A aposta para o desenvolvimento é o turismo e as zonas francas, que ampliam a dependência.

Indefinição

O quadro político, por sua vez, segue o mesmo padrão do cotidiano confuso das ruas de Porto Príncipe, com seu intenso fluxo de pessoas e carros. O presidente René Préval

“O presidente Préval está em uma situação bastante contraditória, mas as medidas neoliberais estão avançando. Estamos em um período-chave, quando ele tem de escolher um rumo. Já foi perdida parte da sua credibilidade com a possibilidade de privatização, inclusive de empresas que funcionam bem”, avalia Camille Chalmers, professor da Universidade do Haiti e coorde-

nador geral da Plataforma de Ação por um Desenvolvimento Alternativo (Papda). Para Marc Arthur Fils-Aime, a dupla face do presidente pode enganar analistas internacionais, mas prevalece o conservadorismo. “A verdadeira cara é a neoliberal, de dependência total do imperialismo dos Estados Unidos. O governo não faz nada sem consultar o FMI e o Banco Mundial. Não tem autonomia política e econômica”, afirma.

Privatizações

O avanço do programa de privatizações parece ser o fim da linha da indefinição. O Estado haitiano é bastante precário e enxuto. A venda de parte da sua estrutura pode significar a sua morte, com a obstrução das possibilidades de construção da soberania popular. As principais empresas estatais do país, que podem entrar no programa, atuam no setor de telefo-

nia, energia elétrica, aeroportos, portos e dois bancos. No seu primeiro mandato, Préval vendeu duas empresas públicas de processamento de trigo e produção de cimento. Apesar disso, o antigo militante marxista manteve sua popularidade alta. Em primeiro lugar, pelo processo de reforma agrária que começara a implementar. Em segundo lugar, por permanecer no país depois do término do seu mandato, fazendo trabalhos sociais em comunidades rurais. Préval tem minoria no Parlamento para governar um país pequeno, pobre e populoso. A economia em recessão e dependente, com a ausência de uma burguesia nacional, não dá grandes margens de manobra. Já os movimentos populares, tradicionalmente organizados em bairros e comunidade rurais, que poderiam pressionar o governo à esquerda, não encontram unidade.

Igor Felippe Santos

Povo sofre com a ausência de serviços públicos O Haiti não tem uma rede de serviços públicos básicos, como água, luz e transporte públicos. Até mesmo os 10% mais ricos, que acumulam 50% da riqueza nacional, usam recursos próprios para atender necessidades primárias. Em relação à educação e saúde, existe uma estrutura que não atende a maioria da população e passa por um processo de privatização. O analfabetismo está em 45,2% e as perspectivas não são das melhores, na medida em que metade das crianças não estuda por falta de escolas públicas. O sistema da saúde é bastante precário. Em geral, cada um dos 10 departamentos do país tem um único hospital para atendimento mais avançado. Pelas diversas regiões, só existem postos de saúde para o atendimento primário. As “tap tap”, caminhões e caminhonetes com a carroceria coberta com um toldo com pinturas coloridas feitas a mão, são responsáveis pelo transporte público. As pinturas se constituem em uma expressão artística do povo haitiano e têm temas variados, tendo como principais o futebol e o Brasil, paixões nacionais. Não existe regulamentação nem controle do Estado. O trânsito lento diminui os impactos desse tipo de transporte. À noite, a velocidade aumenta e os trancos são maiores. A situação mais complicada é do fornecimento de água e

saneamento básico. Não funciona o sistema público nessa área e a população precisa encontrar por si mesma uma forma de ter acesso à água. Os pobres compram no comércio informal pelas ruas, inclusive para o consumo familiar. As classes altas têm caixas d’água e contratam caminhões pipas para o abastecimento. Para beber, compram galões de 20 litros. O sistema de fornecimento de energia elétrica e telefone não funciona. Quem tem dinheiro, compra geradores com base em combustíveis. Aqueles que não têm vivem no ritmo do sol, forte antes das 6 horas da manhã. A escuridão é total nas ruas de Porto Príncipe à noite. Não existem postes de luz. Para o acesso ao telefone, tem a opção dos aparelhos de celular. Segundo estimativas, há mais de 2 milhões na região metropolitana da capital. Aí se encontra a ponta de lança da propaganda privatista do capitalismo no Haiti: a empresa de telefonia Digicel. Atualmente, é a maior companhia do país e faz uma campanha publicitária agressiva. Na página na internet, não há informações sobre a origem do seu capital, mas a diretoria é controlada por irlandeses. Nas ruas, outdoor com jogadores da seleção de futebol e artistas famosos. Muita gente usa a camiseta da empresa, distribuída quando se recarrega o celular. Nas praças, promoção de shows com grupos musicais de graça. No esporte, patrocínio à seleção de futebol do Haiti. (IFS)

enviado especial a Porto Príncipe (Haiti)

Pablo Sigismondi

enviado especial a Porto Príncipe (Haiti)

Tropas brasileiras: três anos no país

Maioria da população não tem acesso a saneamento básico, energia elétrica e transporte público

A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que tem 8.800 funcionários efetivos no país, sendo 6.800 soldados, completou três anos em julho e deve permanecer pelo menos até o final deste ano. As tropas atuam principalmente nas grandes favelas da capital, como Cité Soleil e Bel Air. Nas outras partes de Porto Príncipe e do país, a presença é residual. O Brasil, que lidera a missão formada por 15 países, tem o maior contingente, com 1.200 soldados. Parte dos brasileiros está alojadá em um campi da Universidade de Tabarre, na capital. “É uma violência aos direitos de educação, que já se encontra situação de deficit”, critica Camille Chalmers, da coordenação da Papda. Segundo ele, a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que decidiu pela renovação do mandato até 15 de outubro, foi manipulada. “O Haiti é considerado um perigo para estabilidade do continente. O envio desse tipo de missão está prevista em três casos: guerra civil, crimes contra a humanidade e genocídio”, explica Chalmers, que refuta o enquadramento do país nessas categorias. Chalmers qualifica a ocupação como uma intervenção econômica e política. “As tropas têm um papel negativo como elemento repressivo para deixar avançar os planos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Muitos fatores alimentam a insegurança, mas a Minustah trabalha como se o única problema fossem os bairros populares”. “A insegurança não tem apenas razões internas. Há fatores externos que influenciam, como o tráfico de drogas”, analisa o diretor do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inara), órgão do governo haitiano, Ronel Thelusmond. No último período, a violência caiu bastante, apesar do surgimento de seqüestros. Na prática, a missão cumpre o papel de polícia no combate ao tráfico de armas e drogas. “É possível formar uma polícia haitiana com o investimento realizado na Minustah”, analisa Marc Arthur FilsAime, diretor do ICKL. O desemprego e a ausência de serviços públicos são considerados por analistas como maiores problemas do país, ficando a violência em segunda plano. “A paz não se consegue com armas, mas com negociação e acordos. A comunidade internacional querer nos ajudar por meio do diálogo é uma atitude correta. O problema mais grave no país é a miséria”, avalia Thelusmond. O general brasileiro Alberto dos Santos Cruz, que comanda as tropas, não tem previsão para a saída da Minustah. Na avaliação do governo federal, as forças brasileiras desempenham um papel importante na segurança e no setor assistencial. Além disso, segundo o governo, diminuem o espaço do imperialismo no Caribe e impedem que os Estados Unidos repitam as mesmas práticas de seus soldados no Iraque. (IFS)


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internacional

Rússia e China travam disputa na Ásia central

A disputa pelos recursos naturais O Turcomenistão possui a 5ª maior reserva planetária de gás natural, mas tem limitações de rotas de exportação – restritas à Rússia – e necessita de repasse de tecnologia. Com a China, o país tenta diversificar seus parceiros comerciais e reduzir sua dependência em relação à Rússia. Outra potência de olho no gás turcomeno é a União Européia que, com apoio dos Estados Unidos, tentou sem sucesso emplacar o projeto do gasoduto Transcáspio, que levaria esse recurso aos europeus. O objetivo era reduzir a dependência européia do gás e do petróleo que hoje importam da Rússia (40% do que consomem).

ENERGIA Chineses firmam contrato com Turcomenistão para adquirir gás que russos revendiam ao mercado europeu Juan Pablo Duch de Moscou (Rússia) ALIADOS NA convicção compartilhada de rechaçar o mundo unipolar que os Estados Unidos querem impor, Rússia e China podem acabar entrando em conflito no médio prazo, ou talvez antes. Nesse caso, os interesses econômicos divergentes pesariam mais do que suas coincidências em matéria de política internacional. A disputa pelo controle dos recursos de petróleo e gás natural na Ásia central pode ser o primeiro sinal dessa confrontação. Russos e chineses começam a reivindicar a região como prioritária. Buscam, ali, afiançar sua liderança aos olhos dos despóticos regimes que surgiram no lugar das antigas repúblicas soviéticas. Um movimento definitivo nessa direção foi dado por Pequim que, no dia 17 de julho, concretizou a compra da parte de gás natural turcomeno que

Moscou acreditava ser de sua exclusiva incumbência. O Turcomenistão possui a quinta maior reserva de gás natural do planeta e, hoje, depende por completo dos gasodutos da Rússia, que adquire a matéria-prima a um preço menor do que revende a países europeus, misturado ao gás russo.

Acordo com China Para acabar com essa dependência, o então presidente vitalício do Turcomenistão, Saparmurat Niyazov, assinou em abril de 2006 um acordo de cooperação com a China, prevendo a construção de um gasoduto direto, sem passar por território russo, e a venda anual de 30 bilhões de metros cúbicos de gás. Niyazov morreu em dezembro de 2006 e seu sucessor, Gurbangulí Berdymujammedov, prometeu ao primeiroministro russo Mijail Fradkov que o consórcio da estatal Gazprom teria direito preferencial na importação do gás do Turcomenistão até 2008.

Além disso, Rússia e Turcomenistão já haviam acertado em 2003 que, entre 2009 e 2028, a república centroasiática fornecerá ao país eslavo um mínimo de 70 bilhões e um máximo de 90 bilhões de metros cúbicos de gás natural ao ano. Atualmente, a dois anos da entrada em vigor desse acordo, o Turcomenistão extrai 70 bilhões de metros cúbicos, dos quais 42 bilhões são destinados à Rússia, 8 bilhões para o Irã e o resto fica para consumo interno. No início deste ano, a Rússia tratou de amarrar novos compromissos mediante a assinatura, neste ano, com o Turcomenistão e o Cazaquistão, de uma declaração de intenções para construir um gasoduto trinacional no mar Cáspio.

Contra-ataque Para surpresa do Kremlin, o presidente do Turcomenistão visitou, em julho, Pequim para finalizar negociações que Niyazov deixou pendente. E acertou a assinatura de um acordo pelo qual o Turcome-

nistão e a estatal chinesa de petróleo e gás, a CNPC, vão explorar conjuntamento as jazidas Bajtiarlyk, onde se planeja construir o gasoduto “Ásia Central”, que levará o gás turcomeno à China sem passar pelo território russo. A estatal Turkmengas assinou também com a Sinopec um contrato com 30 anos de duração para fornecer 30 bilhões de metros cúbicos de gás ao ano, a partir de 2009, quando se prevê a constru-

COLÔMBIA

ção do gasoduto pela China. O país asiático abriu, ainda, linhas de crédito barato para o Turcomenistão importar equipamentos chineses. Com esses acordos debaixo do braço, que pretendem diversificar as rotas de exploração do gás turcomeno, Berdymujammedov irá agora ao encontro marcado para setembro com seus colegas da Rússia e do Cazaquistão, cujo objetivo é firmar contratos específicos para a construção do

gasoduto do mar Cáspio. E enquanto Gazprom e Sinopec põem em dúvida o volume real de reservas de seu sócio centro-asiático e questionam se o gás turcomeno poderá abastecer a todos, a rivalidade entre Rússia e China, que exibem seu poderio militar para se contrapor à expansão dos Estados Unidos na Ásia central, pode gerar um impacto negativo na estabilidade da região. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)

BOLÍVIA

Ex-membros da Escola das Américas Estados Unidos são acusados de financiar colaboraram com o narcotráfico ONG denuncia que militares colombianos atuaram na instituição mantida pelos EUA para doutrinar Exércitos na América Latina

Assembléia Constituinte paralisa trabalhos temendo onda de violência no país

da Redação O coronel Álvaro Quijano e o major Wilmer Mora, ex-professores da Escola das Américas, agora conhecida como Instituto de Cooperação para a Segurança Hemisférica, integram um grupo de 13 oficiais de alto escalão do Exército colombiano submetidos a julgamento por colaborarem com o narcotráfico. A maior parte dos outros militares citados no processo criminal esteve na mesma instituição, na qualidade de alunos, assegurou a School of Americas Watch (SOAW) – Observatório da Escola das Américas, ONG que defende o seu fechamento. Quijano e Mora foram “instrutores” entre os anos de 2003 e 2004, onde protagonizaram cursos relativos a “Operações para a Manutenção de Paz e Democracia Sustentável”. Esses 13 oficiais são acusados de mobilizar tropas do Exército colombiano para ajudar o narcotraficante Diego Montoya (conhecido como Don Diego), chefe do cartel do Valle del Norte e que figura na lista dos 10 criminosos mais procurados pelo FBI. Entre eles, um general, um coronel e três majores foram treinados na Escola das Américas – mantida pelos Estados Unidos, na Geórgia – como parte de um programa financiado pelo governo estadunidense supostamente com o objetivo de apoiar a Colômbia a combater as guerrilhas, os paramilitares e os cartéis do narcotráfico. O coronel Byron Carvajal, em particular, recebeu treinamento de armas de combate na Escola das Américas em 1985 e está sendo processado por comandar a matança de 10 investigadores antidrogas e um informante em 2006. “Quando percebemos a longa história dos graduados da Escola das Américas que cometeram abusos contra os direitos humanos fica evidente a mentira de que essa instituição apóia a democracia e contribui positivamente para o combate às drogas”, afirmou o sacerdote Roy Bourgeois, fundador de SOAW.

Hegemonia militar Segundo ele, os objetivos da tal escola são outros. “A verdade é que a instituição serve para erguer regimes favoráveis aos interesses econômicos dos Estados Unidos a qualquer custo”, acrescentou. Para a SOAW, a instituição deve continuar a ser chamada de Escola das Américas, mesmo que os EUA tenham alterado seu nome. Os ativistas de direitos humanos avaliam que esse tenha si-

oposição a Evo da Redação

do um expediente para fazer cair no esquecimento a origem e as conseqüências dessa instituição. A Escola das Américas foi fundada em 1963 com a finalidade de bloquear a escalada mundial dos movimentos de esquerda e cooperou com inúmeros governos latino-americanos, sobretudo os violentos regimes totalitários. Vários de seus cursos ou treinamentos incluíam técnicas de contra-insurgência, operações de comando, guerra psicológica, inteligência militar e “táticas” de interrogatório. Manuais militares de instrução dessa iniciativa – até então confidenciais – foram conhecidos em 1996. Entre outros aspectos, destacam-se a permitida violação dos direitos huma-

nos, como a utilização de tortura, extorsão ou mesmo execução sumária. Os documentos definem como “objetivos de controle ou vigilância” pessoas que pertençam a organizações sindicais, que distribam panfletos a favor dos trabalhadores ou de seus interesses, que simpatizem com manifestações de protestos ou greves e que realizem “acusações sobre o fracasso do governo para solucionar as necessidades básicas do povo”. A Colômbia é um dos principais parceiros militares dos Estados Unidos na América Latina e também na Escola das Américas. Desde 1946, cerca de 10 mil oficiais do país foram formados na instituição. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)

Escola das Américas O que é? A Escola das Américas (SOA, da sigla em inglês) foi criada pelos Estados Unidos em 1946, no Panamá, mas deixou o país em 1984 por conta do Tratado do Canal do Panamá. O então presidente do país, Jorge Illueca, afirmou que a instituição era “a maior base para a desestabilização na América Latina”. Hoje, está instalada no Fort Benning, na Geórgia, onde funciona como centro de treinamento para soldados latino-americanos. Acusada de ser “Escola de Assassinos” por organizações de defesa dos direitos humanos, a SOA é alvo de extensas denúncias de práticas que incentivam a violação de direitos humanos, como torturas, execuções e colaborações com regimes militares. Para a ONG School of Americas Watch (Observatório da Escola das Américas), sua finalidade é defender os interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região. Mais de 60 mil militares já foram treinados na instituição. Entre eles, os assassinos de Dom Oscar Romero e do bispo guatemalteco D. Juan Girardi, dos seis padres jesuítas e quatro estadunidenses assassinados em El Salvador em 1989. Em 1999, sob pressão de organizações de direitos humanos, a Câmara dos Deputados votou pelo fechamento da instituição. Mas o Senado anulou a decisão e mudou o seu nome para Western Hemisphere Institute for Security Cooperation (WHISC) — Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. Países que tiveram militares formados ( desde 1946) Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela Fonte: School of Americas Watch / Agenda Latino-americana.

Os Estados Unidos estariam financiando um movimento contra-revolucionário na Bolívia. Essa foi a denúncia feita pelo presidente Evo Morales, no dia 27, em meio ao crescente clima de polarização no país. O boliviano afirmou que tomará medidas se persistir essa intervenção em assuntos internos da nação andina. A declaração do presidente boliviano é uma resposta à nova ofensiva da oposição, que conseguiu paralisar os trabalhados da Assembléia Constituinte, incumbida de redigir a nova Constituição do país. Um dia antes, o vice-presidente Alvaro García Linera afirmou que os Estados Unidos estavam sustentando o trabalho de um grupo de intelectuais conservadores, compostos por exautoridades de governo, que fomentam a resistência ideológica e política da oposição. As acusações são feitas após a Assembléia Constituinte decidir paralisar seus trabalhos no dia 23. A justificativa foi o temor de que as manifestações resultassem em violência. Em Sucre, onde está localizada a Assembléia, 300 pessoas decidiram entrar em greve de fome após a Assembléia decidir excluir da agenda a proposta de retirar de La Paz a sede do governo e do Congresso. A estratégia da oposição para frear a agenda do governo de Evo Morales tem sido fomentar a divisão do país por meio de temas regionais. A atual cartada dos partidos conservadores é a demanda de retirar as sedes do Executivo e do Legislativo da cidade de La Paz e levá-las para Sucre. Um tema de velha data, que remete à Guerra Federal, em 1899, quando, após um conflito civil comandado pelas elites do país, prevaleceu a opção por La Paz. Os movimentos sociais bolivianos se opõem à medida porque avaliam que tem como objetivo reduzir o poder

da pressão social sobre os governantes. La Paz fica próxima a El Alto, um município pobre, de maioria indígena a exemplo da população boliviana. Os habitantes da região protagonizaram ao lado dos movimentos camponeses um histórico de mobilizações sociais que culminaram na queda de dois presidentes no início da década – Gonzalo Sanchéz de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005). Já as lideranças políticas conservadoras, sobretudo na porção ocidental da Bolívia, como o Departamento de Santa Cruz, argumentam que Sucre teria melhores condições de representar a totalidade do país, pois fica na zona central. “Apenas quando houver garantias para o normal funcionamento da Assembléia Constituinte, sem pressões, retomaremos os trabalhos”, afirmou a presidente do órgão funcional da Assembléia, Silvia Lazarte, membro do Movimento Al Socialismo (MAS), partido de Evo. Segundo o chefe da Polícia Nacional, o general Miguel Vázquez, a organização Unión Juvenil Cruceñista estaria incitando o uso da violência contra delegados da Assembléia e meios estatais de informação. Já o porta-voz da Presidência, Alex Contreras, acusou os professores da Universidade San Francisco Xavier de pressionar os estudantes para participarem de protestos de rua. Em uma das ações protagonizadas pelos universitários, jornalistas do pequeno prédio da Rádio Pátria Nova foram agredidos. Contreras afirmou que autoridades municipais de Sucre também estão estimulando os protestos. Movimentos sociais e indígenas, por sua vez, fizeram uma marcha pelas ruas de Sucre no dia 27 e anunciaram que vão montar um acampamento, em setembro, em defesa da Assembléia Constituinte, cujo desafio é apresentar até 14 de dezembro o projeto de uma nova Constituição. (Informações de agências internacionais)


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áfrica Outragelondon

Em Uganda, grupo gay “sai do armário” HOMOSSEXUALIDADE Grupos cristãos saem às ruas contra campanha inédita de uma coalização de quatro grupos GLBT’s da Redação DE 14 ANOS à prisão perpétua. Essa é a pena estipulada para quem for condenado por sodomia (sexo anal) em Uganda. Uma lei contra a qual uma organização chamada Minorias Sexuais Uganda (da sigla em inglês Smug) resolveu se opor publicamente de forma inédita no dia 16 de agosto, e que, cinco dias após, recebeu como resposta furiosa uma marcha organizada por grupos cristãos e declarações oficiais de governo. Ao lançar a campanha “Deixe-nos viver em paz”, a Smug – uma coalização de quatro grupos GLBT’s – trouxe aos olhos da comunidade internacional os efeitos colaterais de uma lei colonial herdada dos britânicos ainda vigente no país, que pune com até 7 anos de cadeia até mesmo quem não chega a concretizar o ato. O anúncio da Smug – durante uma conferência de imprensa, na qual por medida de segurança muitos dos presentes usavam máscaras – veio seguido por uma carta-apoio da organização Human Rights Watch endereçada ao presidente Yoweri

Museveni. Com a lembrança de que “o último chamado do governo de Uganda para que se intensifiquem as prisões baseadas na conduta sexual do indivíduo é uma grave ameaça às liberdades básicas”. Os gays ugandeses defendem na contra-mão do senso-comum que a descriminalização da homossexualidade no país levaria a um combate eficaz contra o HIV/Aids, já que o silêncio forçado sobre sua sexualidade faz com que programas preventivos não atinjam os resultados esperados. O argumento da Human Rights Watch é que para parar com sucesso o HIV/ Aids todas as pessoas devem ser tratadas com a dignidade e a atenção que merecem.

Reação conservadora Mas o governo de Uganda não pensa assim. Sobre as acusações de violação de direitos humanos contra homossexuais, o governo desconversa. No dia seguinte ao lançamento da campanha, o ministro da Integridade e Ética, James Nsaba Buturo, afirmou que Uganda não concederá direitos iguais a gays e lésbicas, e que não existem planos para que a

homossexualidade seja legalizada no país africano. “Se [os homossexuais] estivessem sendo perturbados, eles estariam na cadeia. Nós sabemos quem eles são”, disse Buturo sobre as denúncias de tratamento desumano feitas pela ativista lésbica do Smug, Juliet Victor Mukasa, que afirma que, em 2005, a polícia invadiu sua casa, levou seus pertences e prendeu sua companheira – que mais tarde foi forçada a ficar pelada. Estima-se que a comunidade gay em Uganda, um país com 28 milhões de habitantes, atinja 500 mil pessoas. “Nossas leis dizem que a homossexualidade é um ato criminal contra a ordem da natureza”, disse o pastor Martin Sempa, um dos organizadores da marcha-protesto “Um Chamado para Ação em Nome das Vítimas da Homossexualidade” e liderança da coalização de sugestivo nome – que mais soa como provocação – Arco-Íris Inter-religioso. “É repugnante à nossa cultura e um perigo à Saúde que espalha o HIV/ AIDS.” Sempa, que em nome de sua comunidade recebe fundos de prevenção contra a

Protesto em Londres em frente à representação de Uganda na Inglaterra

Aids através da administração Bush, é bem conhecido no país por suas campanhas contra o uso de camisinhas e contra a homossexualidade. Uma vez, chegou até mesmo a queimar camisinhas em público para condenar seu uso como forma de prevenção ao HIV. Outro pastor, Solomon Male, faz coro.“O objetivo dos homossexuais em promover toda essa confusão no país por meio de atividades como conferências de imprensa desviaram e confundiram as pessoas. Eles são

SUDÃO

aqueles que precisam mudar, e não as nossas leis para atendê-los”, argumenta.

Retaliações O governo de Uganda acumula um histórico recente de retaliações quando o assunto é homossexualismo. Uma estação de rádio foi multada em mil dólares por ter permitido que uma lésbica e dois homens gays participassem de um de seus programas de entrevistas, com a chance de protestarem contra a discriminação e pedirem que as leis de sodomia fossem repelidas.

Darfur_Genocide Intervention Network/CC

Em fevereiro de 2005, o Conselho de Mídia do país baniu a apresentação da peça “Os Monólogos da Vagina”. Em agosto de 2006, um jornal tablóide publicou uma lista com os primeiros nomes, locais de trabalho e outras formas de informação capazes de identificar 45 homens supostamente homossexuais. O jornal se defendeu dizendo que publicava a lista para “mostrar à nação o quão rápido esse terrível vício, conhecido como sodomia, está tomando conta da sociedade”. (Com agências internacionais)

Em Angola, minas seguem sendo desativadas Cerca de 50 milhões de metros quadrados de terrenos em Angola estão livres de minas, revelou no dia 27 o coordenador da Comissão Executiva de Desminagem, João Baptista Kussumua. Desde o fim da guerra civil, em 2002, foram destruídos 2 milhões de engenhos explosivos não detonados.

Ativistas na Filadélfia, EUA, durante o Dia Global por Darfur, pedem que as Nações Unidas intercedam efetivamente para proteger a população que sofre com o conflito

O presidente da França, Nicolas Sarkozy, estabeleceu conversações, no dia 21, com o mandatário da Líbia, Muammar Kadhafi, a respeito dos preparativos para a Cúpula África-União Européia, prevista para dezembro, em Lisboa. Com o encontro, a UE pretende lançar as bases para um “relacionamento estratégico” entre os dois continentes.

Sudão viola embargo de armas imposto pela ONU Grupo de direitos humanos divulga fotos que mostram que o governo continua a enviar armas a Darfur da Redação A Anistia Internacional (AI) divulgou, no dia 24, fotografias que, segundo o grupo de direitos humanos, indicam que o governo sudanês continua a enviar equipamento militar a Darfur, no Oeste do país, violando tanto o embargo de armas imposto pela Organização das Nações Unidas (ONU) quanto tratados de paz. Desde 2003, grupos rebeldes de Darfur, região formada majoritariamente por agricultores negros, enfrenta o Exército do Sudão, governado por árabes. Este é acusado de usar suas forças para atacar a base social dos revoltosos, e de incitar a violência étnica na área. Existem fortes suspeitas, por exemplo, de que o governo financie a milícia Janjaweed, composta por árabes nômades e apontada como uma das principais responsáveis pelos crimes cometidos contra a população darfuniana. A disputa entre árabes e negros por terra e

água foi, desse modo, exacerbada. Estima-se que entre 200 mil e 400 mil pessoas morreram em decorrência do conflito, enquanto mais de 2 milhões tiveram de deixar suas casas. As fotografias foram tiradas por testemunhas no aeroporto El Geneina, em Darfur, localizado próximo à fronteira com o Chade. Uma das fotos mostram soldados sudaneses descarregando contêineres de um avião de carga Antonov. Aeronaves desse tipo foram usados pelo governo para bombardear o Sul de Darfur, lembra a Anistia, supostamente com o objetivo de alvejar um dos grupos rebeldes da região.

Helicópteros Outras fotografias mostram, no mesmo aeroporto, helicópteros militares fornecidos pela Rússia. Em 2005 e em 2006, esse país assinou acordos para fornecimento de helicópteros de combate para o Sudão. De acordo com a AI, habitantes de Darfur relataram que esses ti-

pos de veículos foram usados para trazer armas para o governo sudanês e para a milícia Janjaweed. O embargo de armas foi imposto pela ONU em março de 2005 para todas as partes envolvidas no conflito, incluindo o governo sudanês. Em julho deste ano, o Conselho de Segurança do organismo aprovou uma resolução com vistas a fortalecer as forças de paz da União Africana (UA) na região, que conta com 7 mil homens. A nova força agregaria mais 26 mil soldados, tanto da UA quanto da ONU. No entanto, segundo a AI, a capacidade desses homens de proteger os civis de Darfur será amplamente diminuída se as armas continuarem a chegar à região e se os soldados não contarem com o poder de desarmar e desmobilizar os grupos enolvidos. Conversações de paz entre grupos rebeldes e o governo do Sudão estão previstas para acontecer nos próximos meses. (Com agências internacionais)

Sarkozy prepara Cúpula África-UE para dezembro

Zimbabuanos cruzam fronteira com África do Sul GUINÉ

Reservas de urânio são encontradas da Redação Uma empresa mineradora australiana, a Murchison United NL, encontrou reservas de urânio em diversos locais da Guiné. O anúncio, feito pelo ministro de Minas e Geologia, coloca o país do Oeste africano na lista de nações que buscam desenvolver energia nuclear. Apesar de várias nações terem o desejo de explorar a energia nuclear, no momento, o único produtor desse tipo de energia na África Subsaariana é a África do Sul. O governo da Guiné, que vai iniciar conversações com a Agência Internacional de Energia Atômica, espera lucrar com a demanda global por urânio como combustível nuclear em decorrência do aumento desse tipo de energia no mundo. E vislumbra acabar com os constantes blackouts que prejudicam o desenvolvimento do país. O continente africano, que serve de casa a 16% da população mundial, consegue gerar apenas 4% da eletricidade usada no planeta. (Com agências internacionais)

De acordo com o governo da África do Sul, cerca de 3 mil zimbabuanos têm cruzado por dia a fronteira entre os dois países. Apesar da iminente crise humanitária, o ministro de Assuntos Internos do país recusa em falar sobre a criação de acampamentos – uma sugestão da agência das Nações Unidas para refugiados.

Lei do Trabalho de Moçambique é contestada O presidente da Organização dos Trabalhadores de Moçambique (OTM), Amós Matsinhe, protestou contra a nova Lei do Trabalho do país, que entrará em vigor em outubro. Segundo ele, a introdução de novos tipos contratuais de trabalho irá tornar as relações laborais mais inseguras para os trabalhadores.


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cultura Fotos: Divulgação

Cenas dos espetáculos Orestéia – o canto do bode e Otelo: a arte como uma forma de refletir sobre a relação do homem com o mundo

Um olhar sobre a tragédia latino-americana TEATRO Grupo Folias D’Arte celebra dez anos analisando história da América Latina em peça baseada em trilogia trágica de Ésquilo Igor Ojeda da Redação O ENREDO trata da formação do Estado grego. Dois mil e quinhentos anos mais tarde, no entanto, há quem enxergue uma relação com a constituição do continente latino-americano a partir da primeira metade do século passado – o grupo de teatro paulistano Folias D’arte é um dos exemplos. Para comemorar seus dez anos de existência, resolveu traçar esse paralelo a partir da encenação de Orestéia – o canto do bode, escrita por Reinaldo Maia a partir da trilogia trágica do dramaturgo grego Ésquilo (veja box nessa página). Assim, cada uma das peças remonta a um período de nosso processo histórico. A primeira, “Agamenon”, refere-se ao populismo dos anos 1950 e 1960. A segunda, “Coéforas”, às ditaduras das décadas de 1960 e 1970. Por fim, a terceira, “Êumenides”, estabelece um vínculo com a redemocratização ocorrida a partir dos anos 1980. Mas o espectador deve ficar atento. Pois a história recente do Brasil e da América Latina não está situada apenas na analogia com os acontecimentos-chave das três partes de Orestéia. Os detalhes contam muito. As referências pipocam. Figurinos, músicas, áudios, frases. Tudo pode trazer à tona a realidade – tão específica – do continente e do país que habitamos. Afinal, vivemos também uma “grave tragédia”, lamenta o diretor do espetáculo, Marco Antonio Rodrigues, que, em entrevista ao Brasil de Fato, analisa os dez anos do Folias. “O que é uma tragédia? É uma estrutura de impedimento coletivo. Existe um impedimento coletivo. Qual é o dos gregos, qual é o nosso? O que tinha no céu deles? O Olimpo, Zeus. O nosso está cheio de antenas parabólicas, satélites. São deuses também. São intransponíveis. Essa é a tragédia”, diz. Mas, para evitar que o espectador “se apunhale” frente aos dramas enfrentados pelos personagens de Ésquilo e, claro, face ao inevitável paralelo com nosso próprio e triste enredo latino-americano, um palhaço conduz a peça, quebrando, como não poderia deixar de ser, os muitos momentos de tensão da encenação, ao mesmo tempo em que nos nutre de um esperançoso ar de otimismo que deve tomar conta de qualquer “terra arrasada”, onde as possibilidades de transformação se renovam. Brasil de Fato – Como surgiu o grupo de teatro Folias D’Arte? Marco Antonio Rodrigues – O Folias surgiu mui-

to mais por uma contingência econômica do que ideológica. O modo de produção possível. Cooperativado, onde não há a figura do empresário, e sim uma estrutura horizontal onde, teoricamente, todas as pessoas são responsáveis por tudo aquilo que anima a vida, o cotidiano de uma companhia de teatro. É uma junção de pessoas que sempre entenderam a arte como uma forma de refletir sobre a relação do homem com o mundo, com o meio, entendendo que qualquer fato é político do ponto do vista urbano. Porque político significa justamente a relação e a convivência. Na verdade, a gente entende que não existe o indivíduo, existe o homem em relação. Então, a produção do grupo tem que se mover por uma questão que é o atávico do homem, e isso talvez seja um dos pressupostos ideológicos que se somam às condições de produção dentro das características do capitalismo terminal que temos. O Folias também surge num momento em que o dito teatro comercial de fato abriu mão de qualquer vocação iluminista. Ou seja, acompanhando todo o fenômeno de uma pretensa burguesia nacional que resolveu não ser produtora, mas rentista, abandonou qualquer perspectiva, como havia nas décadas de 1970 e 1980, de um tipo de produção que se preocupava em confrontar essa mesma pequena-burguesia ou burguesia. Então, sobrou um enorme espaço, ocupado por uma classe média absolutamente desassistida intelectualmente, para a ação desses grupos. Acho que o Folias entra nesse contexto histórico, de reconstituição de um espaço público de discussão de grandes questões, que ainda continuava e continua sedado pela ditadura econômico-midiática da TV Globo, que substituiu a ditadura militar com tanto sucesso. Quais são as influências teatrais de vocês, que caminhos vocês tomam em relação à dramaturgia? Como somos, a maioria, pequenos-burgueses, ou seja, temos uma formação erudita, o que tentamos fazer é transitar entre arte erudita e arte popular, entender que, na verdade, o erudito é uma apropriação de conhecimento, que precisa ser socializado. Então, nesse momento, por exemplo, a gente faz a Orestéia, uma tragédia grega, a obra clássica mais importante do teatro. Tentamos nos apropriar da obra de uma maneira a não respeitá-la de modo que se torne intransponível para o nosso público e para a gente mesmo. Além disso, sofremos muitas influências, sem nos filiarmos exatamente a alguma

critor, e há os leitores. O que a gente reivindica é a possibilidade de reescrever a cena, como a gente quer que o público reescreva também. Mas, para isso, ele tem que se sentir autônomo. Senão, não vamos construir nada, e sim reproduzir modelos.

Cantos Peregrinos (acima) e Single Singers Bar

O primeiro autor trágico da Redação Considerado o criador da tragédia, Ésquilo nasceu no ano de 525 a.C. Lutou como soldado em batalhas como a de Maratona, e foi contemporâneo da consolidação da democracia em Atenas. Morreu em 456 a.C, na atual Sicília. Escreveu mais de 80 obras, entre elas, Os persas, Os sete contra Tebas, As suplicantes, Prometeu acorrentado e as três peças de Orestéia, em 458 a.C., onde trata da formação do Estado grego democrático. A primeira parte de Orestéia, “Agamenon”, conta a história do rei de mesmo nome que, para que os deuses permitam que os ventos voltem a conduzir seus navios em direção à Tróia, sacrifica sua filha, Ifigênia. Dez anos depois, quando volta após a vitória na guerra, Agamenon é morto por sua mulher Clitemnestra, com o auxílio de seu amante, Egisto. Está instalada a tirania. Na segunda parte, “Coéforas”, Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra, volta para vingar o pai, terminando por assassinar sua mãe e o amante, encerrando a ditadura. Na última parte, “Êumenides”, Orestes é perseguido pelas Fúrias, divindades que têm por missão punir os crimes de sangue, até ser julgado em uma corte instaurada pela deusa Atena. (IO)

Por exemplo, Shakespeare é eminentemente popular. Só que ele é apropriado por uma classe, aí ele vira erudito. A única coisa que a gente faz é revelar o popular dele delas. É lógico que, claramente, discutimos Brecht. Mas, também, Stanislavski, Grotowsky, Augusto Boal. Nós tentamos não receitar nada, porque o papel da arte é, como dizia o velho Brecht, criar contradição, porque assim o espectador pode compreender alguma coisa que está por trás de uma estrutura. Não cabe voltarmos à origem do teatro brasileiro, que é jesuítica. Como na América Latina inteira. E continua a ser isso, em geral. É usado como uma forma de catequese e de dominação. Hoje, as coisas são muito classificadas, rotuladas e as pessoas querem respostas. Mas eu não posso criar o seu desejo, você tem que ter o desejo, você tem que perseguir isso. Você estava falando na formação erudita de vocês. Quais as dificuldades que vocês encontram para trabalhar com o popular? Por exemplo, o Shakespeare é eminentemente popular. Só que ele é apropriado por

uma classe, aí ele vira erudito. A única coisa que a gente faz é revelar o popular dele. Nós fizemos o Otelo. É a tragédia do ciúme ou é a tragédia da propriedade? Para nós, é da propriedade. Porque o ciúme é uma colocação erudita. É de uma estrutura patriarcal que cria a monogamia, por causa do direito de herança, de posse, de propriedade, e isso vai invadindo as relações mais sutis. Então, o que a gente faz é revelar essas questões, como elas se articulam, como elas foram separadas lá atrás. Porque, na verdade, o teatro, a dança, o circo, a música, estavam todos reunidos antes da Revolução Francesa. É a partir dela que isso começa a ser compartimentado. Quem inventa a literatura é a Revolução Francesa. Só você pode escrever, porque é escritor, e eu sou apenas um leitor? Todas essas classificações são falsas, simplesmente têm a ver com a questão da propriedade. Da manutenção do status quo. Então, você vai criando mitologias: há o es-

Vocês utilizam elementos do circo nos trabalhos de vocês. Por quê? A base do teatro popular é o circo. E a base do nosso ator é um ator de circo. Esse ator que tem mil especialidades. E a gente descobriu, fazendo Orestéia, que o palhaço era talvez o que nos representaria melhor com relação à narrativa. Para, de cara, colocar para o povo: “olha, a gente está fazendo uma tragédia sim, mas isso não significa que você se apunhale”. O que é uma tragédia? É uma estrutura de impedimento coletivo. Existe um impedimento coletivo. Qual é o dos gregos, qual é o nosso? O que tinha no céu deles? O Olimpo, Zeus. O nosso está cheio de antenas parabólicas, satélites. São deuses também. São intransponíveis. Essa é a tragédia.

Quem é Formado em psicologia em Santos (SP), onde nasceu, o diretor Marco Antonio Rodrigues é um dos fundadores do grupo teatral paulistano Folias D’Arte e do teatro Galpão do Folias, no bairro de Santa Cecília, na capital paulista. É ganhador, como melhor diretor, dos prêmios Molière (1991), pelo trabalho Enq, o Gnomo, e Mambembe (1996), com Cantos Peregrinos e, em 1997, com O Assassinato do Anão do Caralho Grande.

Por que a escolha de Orestéia para comemorar os dez anos do Folias? A gente vive um momento histórico em que todas as utopias que estavam carregadas em cima da promessa do Lula e do PT foram destruídas. Também é um momento de ruptura, em que temos que reorganizar nossas esperanças. A Orestéia é uma obra que trata da formação da civilização grega. Então, para nós também, existe alguma coisa que pode ser formulada a partir do “zero”. Além disso, é uma obra importante porque a gente via vários paralelos nas peças que compõem a trilogia. A Clitemnestra, depois de dar o golpe junto com o amante, instala a ditadura, que é vencida aparentemente num processo democrático. Mas, foi democrático? Existiam alianças ali que eram oportunistas, e hoje isso também ocorre. O que é a nova democracia senão um rearranjo daquelas forças reacionárias e conservadoras que usaram as expectativas da população por democracia para articularem um outro tipo de golpe? Para nós, Orestéia dava conta exatamente daquilo.

Serviço Orestéia – o canto do bode Dramaturgia: Reinaldo Maia Direção: Marco Antonio Rodrigues Local: Teatro Galpão do Folias, Rua Ana Cintra, 213 – Santa Cecília, São Paulo. Tel: (11) 3361-2223 Temporada: de quinta a sábado às 20h e domingos às 19h , até 28 de outubro de 2007 Duração: 190 min (10 min de intervalo) Ingresso: quintas e sextas, R$ 10, sábados e domingos, R$ 30 Recomendado para maiores de 14 anos


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