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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 240

São Paulo, de 4 a 10 de outubro de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br João Zinclar

Transposição: Exército invade agrovila em PE Para acelerar o início das obras de transposição do rio São Francisco, o governo federal mandou o Exército às margens do Velho Chico para tocar a primeira etapa do projeto. Desde então, a vida dos ribeirinhos que moram nas proximidades da barragem de Itaparica, em Pernambuco, não tem sido fácil. Os militares con-

trolam a entrada de pessoas e automóveis na agrovila que escolheu para montar acampamento e atendem assim ao único telefone do povoado: “destacamento de Floresta”, em referência à cidade para onde estão deslocados. “Isso aqui é uma comunidade, não uma vila militar”, protesta um dos moradores. Pág. 8

Senadores criticam combate à escravidão Senadores ruralistas estão liderando uma ofensiva conservadora contra os fiscais do Ministério do Trabalho que investigam a existência de condições análogas à escravidão em

grandes propriedades. Eles criticam a libertação de 1.064 trabalhadores da fazenda Pagrisa ocorrida em julho. O grupo do Ministério suspendeu seus trabalhos. Pág. 7

Soldados do 3º Batalhão de Engenharia e Construção trabalham na construção do eixo Leste da transposição, na barragem de Itaparica (PE)

Tucanos preparam privatizações O governador de São Paulo, José Serra (PSDB), abriu licitação para avaliar o valor de mercado de 18 estatais, como a Nossa Caixa e o Metrô. A medida pode dar início a uma nova rodada de privatizações no Estado, prejudicando a população e

beneficiando empresários: vendida para a Telefônica, a Telesp cobrava, em 1999, R$ 14 pela assinatura de telefone fixo. Hoje, a taxa subiu para R$ 40. Exemplos assim não faltam, mas políticos do PSDB de outros Estados enveredam pela mesma trilha.

A governadora Yeda Crusius (RS) planeja derrubar a lei que determina a convocação de plebiscito para vender estatais e o prefeito de Barbacena (MG), Martim Andrada, anuncia a privatização da água. Leia também sobre o mensalão tucano. Págs. 5 e 6

Joka Madruga

Campanha exige transparência nas concessões de rádio e TV A Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) vai mobilizar, no dia 5, 11 capitais. O objetivo é defender a participação da sociedade no controle das concessões de rádio e televisão. Nes-

Povo Guarani se rearticula na América do Sul

tações contra veículos que desrespeitam a legislação; no Ministério das Comunicações, serão formalizados pedidos de informação sobre as emissoras com outorgas vencidas. Págs. 2 e 3

MST faz jornada em 15 Estados e critica Lula

Correa obtém maioria na Constituinte

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou, entre os dias 24 e 28 de setembro, uma jornada de lutas em 15 Estados, mobilizando mais de 10 mil pessoas. Nas manifestações, o movimento

No Equador, o partido do governo, Aliança País, conquistou a maioria das cadeiras dos representantes que elaborarão a nova Carta Magna. Com pelo menos 72 cadeiras, das 130 da bancada, o partido do presidente Rafael Correa alcança a maioria simples. A Assembléia Nacional Constituinte deverá ser instalada no dia 31 e terá um prazo de 180 dias. Nesse período, Correa propõe que o Congresso seja fechado. Pág. 9

criticou a lentidão do governo na implantação da reforma agrária e cobrou mudanças na política econômica. “Mostramos força e unidade”, avalia Vanderlei Martini, da coordenação nacional. Pág. 4

Verena Glass

Sem-terra participam de manifestação em Curitiba (PR), durante jornada de lutas do MST

sa data vence o prazo de concessão de várias emissoras, entre as quais, cinco retransmissoras da Rede Globo. Em Brasília, serão entregues ao Ministério Público Federal represen-

Disperso desde a chegada do invasor por cinco países do continente – Brasil, Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai –, o povo Guarani pretende se reorganizar para lutar por causas comuns. Reunidos em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, entre os dias 21 e 23 de setembro, representantes de dezenas de comunidades, lançaram a Campanha “Povo Guarani, Grande Povo”. Quando os portugueses e espanhóis chegaram na América do Sul, os Guarani eram 2 milhões – o dobro da população de Portugal de então; hoje, eles são cerca de 450 mil. Pág. 4

O pensamento de Che Guevara além da foto

Mulheres Guarani participam de encontro continental de seu povo em Caarapó (MS)

“Ainda se pensa que Che era apenas um guerrilheiro e que não tinha nada a dizer sobre teorias marxistas e a criação de uma nova sociedade”, avalia em entrevista ao Brasil de Fato o argentino Néstor Kohan, pesquisador do pensamento do revolucionário. Para Kohan, intelectuais de esquerda de postura eurocêntrica ignoram o pensamento de Che pois têm a mentalidade de que se o pensador marxista não vier de Paris ou de Londres não vale a pena estudá-lo. Pág. 10


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de 4 a 10 de outubro de 2007

editorial A COORDENAÇÃO dos Movimentos Sociais (CMS) realizará no dia 5, manifestações em onze capitais brasileiras para o lançamento da “Campanha por democracia e transparência nas concessões de rádio e TV”. Nessa data, vence o prazo de concessão de várias emissoras privadas, entre as quais, cinco retransmissoras da Rede Globo (leia pág. 3). A iniciativa da CMS, além de sua importância imediata, tem uma dimensão maior, pois significa um amadurecimento e avanço das organizações e movimentos dos trabalhadores e do povo, no entendimento de que a questão da Comunicação não é apenas uma questão dos profissionais e especialistas dessa área, mas uma questão de todos os cidadãos/ãs. Portanto, uma questão social – daquelas que o ex-presidente Washington Luís trataria como uma questão de polícia. Para nós, trata-se de uma questão de política – como todas as questões sociais. E a política, neste caso, deve partir do entendimento de que a democratização dos meios de comunicação de massa significa que não podem ser propriedade de empresas privadas, e que devem estar sempre submetidos a controle social – opinião que partilhamos com o jurista Fábio Konder Comparato. Justiça seja feita, um dos mais antigos e radicais defensores desse entendimento foi o jornalista Perseu

debate

Democracia e transparência nas concessões de rádio e TV

Abramo. Esta era a idéia central que orientava as teses da Comissão de Liberdade de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, coordenada por Perseu, para a organização de um congresso nacional sobre o tema, no ano de 1976. Por decisão do então presidente do sindicato, apoiado pelo velho Partido Comunista Brasileiro (PCB), a comissão foi fechada, as teses engavetadas e o congresso cancelado (temiam perturbar a abertura proposta pelo regime). Alguns anos depois, esse entendimento sobre os meios de comunicação voltou à cena, nos primeiros programas do recém-fundado Partido dos Tra-

balhadores (PT). Mas, parece-nos que essa proposta que defendemos traz consigo algum estigma que a faz constantemente alvo de traições e/ou esquecimentos. Hoje a questão da mídia em nosso país se torna urgente, embora sua solução pareça mais difícil. Apenas parece. O fato de os movimentos e organizações dos trabalhadores e do povo assumirem enquanto sua essa bandeira pode ser um sinal de que começamos a virar o jogo. A onipotência, falta de limites, grosseria e impunidade da chamada grande mídia extrapola todas as medidas. Mas é seu excesso que também lhe deixa cada vez mais desnudada perante a

opinião pública. A Editora Abril montou impunemente seu lobby na Câmara Federal para convencer (e convenceu alguns) deputados e retirar seus nomes do documento que pede a instalação de uma CPI contra essa empresa: a Anatel teria aprovado uma operação ilegal de compra da TVA, operadora de TV a cabo do grupo Abril, pela transnacional Telefônica, em um negócio de cerca de R$ 1 bilhão. O fato é que o presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia, nem enquadrou os lobistas da Editora (que poderiam ser denunciados de estar organizando o “mensalão da Abril”), nem leu, até hoje, o

crônica

Luiz Bassegio e Luciane Udovic

Nas Américas e Caribe, um Grito por integração e soberania VÁRIAS MANIFESTAÇÕES com o tema da soberania e integração dos povos vão marcar o 9º Grito dos Excluídos nas Américas e Caribe, que acontece dia 12. Como parte das mobilizações, na Costa Rica será realizado, dia 7, um referendum nacional, no qual o povo deverá se pronunciar contra o Tratado de Livre Comércio. Vencendo o Não ao TLC, o povo daquele país estará dando aos demais países centro-americanos, que já assinaram o tratado, um exemplo de luta pela soberania e, quem sabe, desencadear um processo de lutas pela anulação desses acordos. Também está marcado um jejum a ser realizado em vários países como forma de protesto contra a implantação do Cafta e contra a deslealdade das autoridades. Na Nicarágua, haverá uma grande mobilização contra as empresas transnacionais européias e na República Dominicana acontecerá uma vigília em frente ao Congresso Nacional contra os constantes despejos de moradores. Em Porto Rico, o grito se levanta em defesa dos migrantes e contra o muro que os EUA estão construindo na fronteira com o México. Na Bolívia, o Grito se somará, na cidade de Santa Cruz, às homenagens do aniversário da morte de Che Guevara e as manifestações pela defesa dos recursos naturais. Na Argentina, o Grito se somou à Marcha do Movimento Campesino e Indígena que em setembro fez manifestações, na Praça de Maio, contra as transnacionais mineradoras, das sementes, petroleiras e financeiras. As atividades se realizarão entre os dias 8 a 13 de outubro. Mas a data de maior concentração de atividades nos vários países onde o Grito está organizado, como El Salvador, Honduras, Guatemala, México, Cuba, Panamá, Chile, Paraguai, acontece no 12 de outubro: dia de lutas e resistências que temos travado para a nossa emancipação e liberdade ao longo de cinco séculos. Nascido no Brasil em 1995, o Grito dos Excluídos estendeu-se para outros países das Américas e do Caribe. E o primeiro Grito nas Américas envolveu 12 países e foi realizado em outubro de 1999, com o lema “Por Trabajo, Justicia y Vida”. Como no Brasil, as mobilizações continentais não são apenas denúncia. É, acima de tudo, um grito prepositivo, de anúncio e animação para a construção de alternativas que permitam, de forma coletiva, alcançar as profundas mudanças necessárias a partir da história de milhões de excluídos e excluídas. As mobilizações do Grito procuram privilegiar o protagonismo dos excluídos e excluídas, o espaço de parceria aberta e plural, a linguagem popular, descentralização das decisões, denúncia e anúncio e livre criatividade. Nesse sentido, a campanha do Grito dos Excluídos também reúne uma série de pinturas do muralista equatoriano Gustavo Pavel

Egüez, que tratam de forma simbólica a diversidade das lutas contra todo o tipo de exclusão. Cartazes, fôlderes, panfletos e revistas trazem sempre estampadas as pinturas de Pavel. São milhares de cartazes espalhados no continente. Um dos eixos principais do Grito é a luta contra todas as formas de exclusão, sejam sociais, políticas, econômicas, ambientais, de gênero ou étnicas. Nesse sentido, denuncia as causas estruturais e conjunturais. É um grito contra o imperialismo que domina nossos países com os juros e serviços da dívida externa, bases militares, muros físicos ou legislativos que excluem e aumentam a xenofobia. O Grito se levanta em mais de 23 países contra a concentração da terra, da riqueza, da renda, do poder e dos meios de comunicação. Os gritos têm características que variam de um país para outro. Isso ocorre no aspécto ecológico, ou seja, o grito da vida, ameaçada em todas as suas expressões pela mercantilização total; social e econômico pela falta de acesso real a melhores condições de vida, de saúde, de moradia e de trabalho; cultural, o grito do outro, do diferente, do estranho; e místico, o grito da alma que busca a felicidade que se encontra na partilha e na solidariedade. O Grito aposta na alternativa de união de todas as forças e movimentos sociais, respeitando a diversidade, a inteculturalidade que enriquece os processos e na necessidade de se estabelecer estratégias comuns entre os países com problemas similares. Procura sempre respeitar as caracte-

Gama

rísticas específicas dos movimentos de cada país: a imaginação livre e solta abre amplos espaços para a participação dos grupos de base e para as distintas formas de organização, cheia de criatividade, ousadia, mística, simbolismo e práticas inovadoras. Aposta também na legítima resistência e persistência para a libertação e garantia dos direitos de todos e todas. Ao denunciar todas as formas de xenofobia, discriminação e os muros, aposta na integração dos povos com cidadania universal, em que as pessoas tenham seus direitos respeitados, independentemente da situação de seus papéis e na integração solidária dos povos. Uma integração que valorize e torne possível a extraordinária variedade dos modos de vida e cultura dos povos de nosso continente. Concretamente, o Grito defende a livre circulação entre nossos países, o estabelecimento de leis comuns que garantam os direitos básicos a todos/as migrantes e que estes não sejam criminalizados por conta da situação irregular de seus papéis. Nesse sentido, é necessária a realização de uma anistia geral nos países para que retire da ilegalidade os/as milhares de imigrantes que querem trabalhar e ser reconhecidos. Permitir o direito de votar e ser votado, assinar, ratificar e pôr em prática a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias Luiz Bassegio e Luciane Udovic são da Secretaria do Grito dos Excluídos Continental

requerimento de instalação da CPI, para que a Comissão seja instalada e dê início aos seus trabalhos. TVs, rádios e jornais silenciam. Enquanto isso, a revista Veja – carro-chefe da Abril – dá-se ao luxo de publicar em sua edição desta semana um amontoado de letras, frases e distorções de fatos e episódios – o que certamente pretendem uma reportagem – sobre os 40 anos do assassinato do revolucionário Ernesto Che Guevara. Estamos no terreno da pornografia. O texto que se pretende reportagem é assinado por Diogo Schelp. Mais um Diogo a brilhar na Veja – quem sabe consegue uma boca, pelo menos de cover, no Manhattan Conection. As fontes da suposta reportagem têm a mesma envergadura da revista e da Editora: cubanos exilados em Miami. Figuras como Eutímio Guerra, que pretendeu assassinar Fidel Castro, são erigidas em heróis. E toda aquela côrte de aleivosias e mentiras, que nem os mais sórdidos pasquins da guerra fria ousaram. Apenas registramos. Nada a denunciar. Todos já sabemos quem é Veja, Globo, Folha, Estadão et caterva. Vamos à luta. Participe: Os locais e horários das manifestações convocadas pela CMS podem ser acessados na Agência Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br)

Luiz Ricardo Leitão

Meninos Mimados BRÁS CUBAS, na infância, era uma criança maligna, traquinas e voluntariosa. Conforme nos relata Machado de Assis, um dia ele quebrou a cabeça de uma negra que lhe negara uma colher do doce de coco que ela estava preparando, deitou um punhado de cinzas ao tacho e, não satisfeito com a perversidade, foi dizer à sua mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”. Também gostava de montar ao dorso de Prudêncio, um moleque da casa, e fustigá-lo com uma varinha, como se fosse um burro doméstico. Não pense o leitor que apenas os escravos padeciam as diabruras do “menino diabo”: Cubas também escondia os chapéus das visitas, dava beliscões nos braços das matronas e outras façanhas do mesmo quilate. Como diriam certos cariocas de hoje, “era o cão chupando manga”... Seu pai, contudo, o tinha em grande consideração. Se às vezes o repreendia na frente dos outros, ele o fazia apenas por conveniência ou formalidade; em particular, dava-lhe beijos, decerto porque reconhecia no rebento o espelho de si próprio: um menino mimado, caprichoso e cioso das prerrogativas que sua posição de classe lhe outorgava. O tempo passou em Pindorama, mas os meninos mimados continuam à solta no país, sejam eles os ‘mudernos’ coronéis que comandam as oligarquias regionais de Bruzundangas, ou então os velhos caciques da política tupiniquim, que continuam a ordenar as maracutaias no Planalto Central do país. Quem porventura imagina que este cronista esteja se referindo às últimas aventuras do Sinhô Renan Galhofeiros, o “rei do gado” alagoano (cuja recente absolvição por seus pares – e ímpares – no Senado escandalizou patrícios e plebeus), se enganou redondamente. Antes de me reportar às estripulias parlamentares, remonto a uma imagem que nos revela, melhor do que mil palavras, quão mimados são os doutos magistrados que julgam os míseros mortais destas plagas.

Antes de me reportar às estripulias parlamentares, remonto a uma imagem que nos revela, melhor do que mil palavras, quão mimados são os doutos magistrados que julgam os míseros mortais destas plagas A cena foi reproduzida em horário nobre para todos os telespectadores da República: um juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) solicitava revisão de uma votação já legalmente realizada pelo órgão, a qual decerto contrariava as expectativas de algum ‘cliente’ seu; ao ser contestado por um de seus pares (ou ímpares), que lhe argüiu o sentido (anti)ético do pleito, iniciou-se um bizarro bate-boca sobre quem possuiria moral (?) para recriminar a falta de ética alheia. Se já não bastasse a insólita situação, o douto magistrado encerrou sua encenação com um gesto à altura dos bisnetos de Brás Cubas, desfechando um tapa de ‘indignação’ no microfone assentado sobre sua mesa no plenário do Tribunal. O pior é que esse menino mimado “interpreta” as leis e decide sobre o futuro de milhões e milhões de trabalhadores deste país... Pois assim é a vida em Bruzundanga. Um dia, os próceres da República absolvem o nobre Galhofeiros; em seguida, cinco deles, liderados pelo tucano Flexa Ribeiro (PSDB-PA), embarcam em um jato da empresa Pagrisa para “inspecionar” uma fazenda da própria companhia e combater os “abusos” do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, cujo terrível ‘crime’ teria sido libertar 1.064 pessoas que trabalhavam em regime escravo no interior do Pará, 54 delas com folhas de pagamento que registravam um salário líquido de R$ 0,00 em abril e maio deste ano. Pois não é que os egrégios parlamentares foram até lá forjar provas das boas condições de trabalho (embora a mídia tenha mostrado moradias sem higiene, banheiros imundos e sem água, alimentos deteriorados, etc.) e pressionar os trabalhadores do ‘muderno’ latifúndio (ou seria agronegócio?) a desistir da revogação do seu contrato de trabalho. Juízes mimados, senadores mimados, coronéis e caciques que não largam o osso... Já não é hora de nosso povo dar umas boas palmadas nessa corja? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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Abrir a “caixa preta” das comunicações no Brasil

Túlio Vidal/CC

brasil

MOBILIZAÇÃO Campanha dos movimentos sociais defendem participação da sociedade civil no debate da renovação das concessões de rádio e TV Mayrá Lima de Brasília (DF) O DIA 5 de outubro de 2007 é uma data emblemática. Depois de 15 anos, vence o prazo de concessão de várias emissoras privadas de televisão no País como as cinco retransmissoras da Rede Globo (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Belo Horizonte), Band, Record, Gazeta, entre outras. A data foi escolhida pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), organização que reúne os principais movimentos populares e sindicais do País, para o lançamento da “Campanha por democracia e transparência nas concessões de rádio e TV”. Estão previstas mobilizações em 11 capitais brasileiras. A iniciativa, sob o mote “Concessões de rádio e TV: quem manda é você”, pretende denunciar as irregularidades dos processos de renovação das outorgas de exploração de serviço de radiodifusão, que desrespeitam o caráter público das concessões de rádio e TV. No mesmo dia das mobilizações, serão entregues ao Ministério Público Federal representações contra emissoras que veiculam publicidade 24 horas por dia – o que desrespeita a legislação. Também serão encaminhados ao Ministério das Comunicações pedidos de informação sobre as emissoras com outorgas vencidas. A questão não se resume às concessões que vão vencer. Hoje, diversas emissoras de rádio e TV funcionam com a outorga expiradas e contam com o consentimento do poder público. O Ministério das Comunicações faz mais do que vistas grossas e trata a informação como sigilosa. No início de 2007, retirou de sua página na internet a listagem que relacionava prazos de vencimento dos concessionários da rádio e TV. A falta de fiscalização por parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) facilita a prática irre-

gular dessas emissoras. O que favorece as cerca de oito famílias que hegemonizam as comunicações no Brasil configurando um oligopólio poderoso na formação de opinião da população brasileira.

Democratizar a mídia Os movimentos sociais que compõem a CMS avaliam que há uma “caixa-preta” a ser desvendada em todo o processo de renovação. De acordo com Rosana Berttoti, diretora de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), esta é uma pauta estratégica para os movimentos sociais. “A forma com que a mídia criminaliza os movimentos sociais fez com que nós encampássemos esse debate das concessões para que pudéssemos discutir que rádio e televisão no Brasil é concessão pública, logo precisa ser tratada como tal”, explicou.

“É preciso que os órgãos de comunicação de massa sejam democratizados, o que significa que não podem ser propriedade de empresas particulares”, defendeu Fábio Konder Comparato A reivindicação central da CMS é por um novo marco regulatório para as comunicações. A proposta é que sejam contemplados mecanismos de participação da sociedade civil na hora de se conceder um canal de TV ou uma potência de rádio. “É preciso que se tenham critérios de participação na hora de conceder e um processo de avaliação durante (o tempo de vigência), ou seja, que sejam respeitados os movimentos sociais, as mulheres,

os negros, as minorias”, disse Rosana. processo de renovação de outorga de concessão ocorre a cada 15 anos, no caso da TV, e a cada 10 anos, no caso de rádios.

Discurso conservador A maior dificuldade dos movimentos sociais é se contrapor à ladainha do medo, entoada pelos grupos empresariais, de que cobrar critérios para a renovação de concessão é uma “discussão autoritária” ou uma “ameaça à democracia”. A retórica dos oligopólios, no entanto, não se sustenta à luz da própria Constituição que determina ao poder Executivo a competência de renovar e outorgar uma concessão. Mesmo assim, as empresas elaboram um discurso pelo qual se apropriam de um serviço público – o de radiodifusão – e rejeitam a participação da sociedade na definição daquilo que a compete, em uma democracia: a definição nos destinos do que pertence, justamente, ao povo. “Isto não é, nem nunca foi, uma democracia. Isso se chama oligarquia. As concessões não deveriam ser dadas por órgãos estatais, mas por um órgão de majoritária participação popular. O Conselho de Comunicação Social deveria ser um órgão de Estado, mas com participação popular e poder de dar ou negar as concessões”, disse o jurista Fábio Konder Comparato. Para Comparato, é preciso estabelecer uma série de controles para que o interesse público seja respeitado na ótica dos direitos humanos. “O Ministério Público deveria atuar sobre programas de rádio e televisão racistas. É preciso criar ouvidorias populares sobre a rádio e televisão. Os ouvidores deveriam ser eleitos e não ter nenhuma ligação com o poder Executivo. É preciso que os órgãos de comunicação de massa sejam democratizados, o que significa que não podem ser propriedade de empresas particulares”, defendeu o jurista.

Torre de transmissão de TV: Globo, Band, Record e Gazeta, entre outras, terão suas concessões vencidas

Deputados discutem mudança nas normas de renovação de concessão Segundo Luiza Erundina (PSB-SP), projetos deverão alterar o Código Brasileiro de Telecomunicações de Brasília (DF) Funciona desde fevereiro deste ano, na Câmara dos Deputados, a subcomissão especial destinada a analisar mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem. De acordo com a deputada federal, Luiza Erundina (PSB-SP) o principal desafio será agora em outubro, quando irão apresentar à Comissão de Ciências e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI)

Um bem público a serviço de interesses privados Empresas não cumprem as poucas restrições legais, como dedicar no máximo 25% de sua programação com publicidade de Brasília (DF) Os oligopólios de comunicação no Brasil exploram um bem público, o espaço radioelétrico, mas não são submetidos a nenhum tipo de controle social. Essa é uma das contradições apontadas por movimentos sociais sobre a atuação dos grupos empresariais de mídia no país. “Centenas de concessões estão sendo utilizadas exclusivamente por interesses privados. Nós vemos isso quando uma emissora que está utilizando um serviço público toma partido numa eleição presidencial, ou quando distorce a imagem de um determinado setor da sociedade sem garantir que esse setor tenha o espaço equivalente para se defender. São fatos que pro-

vam o ferimento desse principio do interesse público”, analisa o integrante do Intervozes, Braúlio Ribeiro. Para ele, essa situação se torna absurda porque a radiodifusão é um serviço público e, como tal, deveria ser tratada de forma democrática e transparente. “A comunicação, mais especificamente a radiodifusão, é um dos elos centrais na formação política, cultural, social de qualquer nação. É um dos elementos fundamentais na construção de uma sociedade contemporânea e ela lida com questões muito caras, como a língua, os referenciais culturais, políticos”, avalia.

Liberdade de empresa Essa falta de regras que estabeleçam uma espécie de “função social” do espectro eletromagnético dos canais fica evidente no momento da renovação das concessões. Em vez de ser uma ocasião de avaliação do desempenho das entidades concessionárias, o processo se resume a uma avaliação técnica e burocrática da emissora, como a análise de certidões, pareceres sobre os equipamentos. O conteúdo e a programação, questões de interesse públi-

Percentual máximo de publicidade previsto em lei

co, são desconsiderados. Ribeiro aponta outro problema: as pequenas normas que existem para se controlar esses canais não são observadas diante da falta de fiscalização. Percentuais mínimos de programação noticiosa (5%), percentual máximo de publicidade (25%), não são respeitados, por exemplo. “Temos casos clássicos de ferimento a essas regras, como as TVs que só transmitem produtos para televenda. Tem permissionários que operam em UHF que passam o dia inteiro promovendo produtos, os chamados canais de compra”, exemplificou. O limite de propriedade é outra regra que costumeira-

mente não é respeitada pelas grandes empresas privadas de comunicação. De acordo com a legislação que regulamenta a Comunicação Social no Brasil, uma mesma empresa não pode possuir mais de um canal VHF pelo País, ou em um Estado. Rádios FMs seguem a mesma linha. Uma das formas de driblar essa restrição são as redes. “Essas redes formam praticamente um único canal de comunicação, porque a participação das afiliadas é tão pífia que você não pode chegar a dizer que são outros canais de televisão. São os mesmos canais replicados e desrespeitando o limite de propriedade”, denunciou Ribeiro. (ML)

projetos que deverão mexer com o Código Brasileiro de Telecomunicações e na regulamentação do artigo 5° da Constituição Federal, sobre a Ordem Social, que trata das Comunicações Sociais no país. Para Erundina, é possível que haja resistência entre os deputados. Boa parte dos parlamentares da chamada bancada da comunicação, detentores de concessões de rádio e/ou TV, atuam dentro da comissão, mesmo que isso seja ilegal, segundo o artigo 54 da Constituição que proíbe parlamentares de explorarem este serviço público. “Nós va-

mos modificar esse artigo e isso supõe uma proposta de emenda constitucional e provavelmente haverá alguma resistência, mas por outro lado nós estamos partindo de tudo aquilo que já se apresentou na CCTCI, ou na própria Câmara”. A deputada avalia que é fundamental a pressão da sociedade organizada para que esse debate ganhe força. “Há uma conjuntura particularmente importante e propícia para se mexer com esse marco regulatório. Há um debate mais atual na sociedade em que se encaixa esse esforço”, disse a deputada que preside a subcomissão. (ML)

Onde as concessões já foram rejeitadas A possibilidade constitucional de uma rede de TV ou emissora de rádio ter rejeitada sua concessão não é uma exclusividade do Brasil. Recentemente, ganhou destaque a não renovação da concessão da RCTV, uma espécie de Globo venezuelana, pelo presidente Hugo Chávez. A empresa colaborou para insuflar, junto com setores conservadores, o golpe de Estado que afastou Chávez da presidência em abril de 2002. Contudo, o venezuelano não inventou a roda. Dados do jornalista chileno, Ernesto Carmona, presidente do Colégio de Jornalistas do Chile, mostram que o feito de Chávez é comumente realizado por diferentes motivos e lugares. • Ente os anos de 1934 e 1987, a Administração Federal de Comunicações (FCC na sigla em inglês), um órgão do governo dos Estados Unidos, fechou 141 concessionárias de rádio e TV. Em 40 desses casos, a FCC nem esperou que acabasse o prazo da concessão. • Na Inglaterra, o governo Margareth Thatcher cancelou a concessão de uma das maiores estações de TV do país, simplesmente por ter difundido notícias desagradáveis, embora verídicas. Argumentou, simplesmente, que “se tiveram a estação de TV por 30 anos, por que deveriam ter um monopólio?” • Também no Reino Unido, a autoridade estatal decretou, em março de 1999, o fechamento temporário do MED TV, canal 22; em agosto de 2006, revogou a licença da ONE TV; em janeiro de 2004, a licença da Look 4 Love 2; em novembro de 2006, a da StarDate TV 24; e em dezembro de 2006, revogou o canal de televendas Auctionworld. • Em 1999, o Canadá revogava a Country Music Television. • A Espanha revogou em julho de 2004 a concessão da TV Laciana (um canal a cabo) e, em abril de 2005, a das emissoras de rádio e TV de sinal aberto em Madri. Em 2005, o país revogou a TV Católica. • A França revogou a licença da V& em fevereiro de 1987, e em dezembro de 2004 fez o mesmo com a Al Manar. Em dezembro de 2005, fechou a TF1, por ter colocado em dúvida a existência do Holocausto. • A Rússia, em agosto de 2000, fechou uma emissora de TV por divulgar publicidade subliminar. Já em março de 2006, fechou a TV6. • Em 2006, o Peru fechou dois canais de TV e três de rádio por não cumprimento da lei local. Fonte: Artigo “Salvador Allende se revolve em sua tumba: senadores socialistas comparam Chávez a Pinochet”, de Ernesto Carmona.


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Campanha busca rearticular povo Guarani disperso na América do Sul Marcelo Netto Rodrigues de Caarapó (MS) “ÀQUELES QUE não entendem nossa língua, vou traduzir. O povo Guarani era como um rio que corria lentamente em seu curso quando uma pedra gigante foi lançada dentro do córrego. A água espirrou para vários cantos. E os sobreviventes estão aqui hoje reunidos”, diz o Guarani-Kaiowá Anastácio Peralta, sob olhares de concordância de seus “parentes” da Argentina, Bolívia e Paraguai. Elucidar a reconstituição alegórica da diáspora Guarani – forçada pela chegada do invasor no continente sulamericano – é vital para entender o lançamento da Campanha “Povo Guarani, Grande Povo”, que aconteceu entre os dias 21 e 23 de setembro, na aldeia Tey Kue, no município de Caarapó (MS). O evento, que contou com cerca de 400 representantes do Brasil e dos países citados, deu continuidade ao esforço do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – organizador do encontro ao lado dos professores e lideranças Guarani-Kaiowá – em concretizar ações unificadas dos Guarani dispersos pelo continente sul-americano. Estima-se que hoje vivam 50 mil Guarani no Brasil, 350 mil na Bolívia, 53 mil no Paraguai e 5 mil na Argentina – além de, no Uruguai, os Guarani continuarem a freqüentar o seu “tekoha” (sua terra tradicional) mesmo sem o reconhecimento do Estado. A saber, à época do início da invasão, em 1492, os Guarani chegavam a 2 milhões – o dobro da população de Portugal de então.

“Tentaram nos domesticar para essa civilização como papagaios, mas da mesma forma que um papagaio preso consegue escutar um papagaio livre e se comunicar com ele, o povo Guarani, apesar de tudo, continua vivo e volta a se comunicar”, diz Hamilton Lopes, da aldeia Marangatu Parentes A campanha pode ser vista como o ápice da tentativa de rearticulação desse povo, que teve início em fevereiro de 2006, com a realização do “Primeiro Encontro Continental Guarani”, em São Gabriel (RS). Seguido em abril deste ano por um “Segundo Encontro”, em Porto Alegre. Divididos por fronteiras estranhas à sua compreensão de território, os Guarani ainda encontram-se distantes de conseguirem lutar em conjunto – apesar de constituírem um dos mais populosos grupos nativos do continente e de terem conseguido manter sua unidade lingüística através dos tempos. Prova disso foi o encontro ter acontecido em Guarani e não em “portunhol”. “É preciso mostrar que existimos como um grande povo. Temos o mesmo sangue, somos parentes que passamos pelo mesmo sofrimento. Não existe absurdo maior do que dizer ‘índio argentino’, ‘índio paraguaio’, ainda mais ‘índio brasileiro’. Para nós, as fronteiras não existem”, esclarece o cacique da aldeia Tey Kue, Zenildo. O discurso faz eco. “O povo Guarani está acordando”, conclui Hamilton Lopes, da aldeia Marangatu, no município de Antônio João. “Ten-

Quanto

2 milhões

de Guarani viviam na América do Sul quando os invasores chegaram; hoje, eles são cerca de 450 mil

Verena Glass

INDÍGENAS Iniciativa pretende organizar Guarani espalhados pelo continente para a luta conjunta em torno de problemas comuns

taram nos domesticar para essa civilização como papagaios, mas da mesma forma que um papagaio preso consegue escutar um papagaio livre e se comunicar com ele, o povo Guarani, apesar de tudo, continua vivo e volta a se comunicar.”

Bicicleta As metáforas, características do universo Guarani, são uma constante no encontro. Otoniel Ricardo, da comissão de professores Guarani do Mato Grosso do Sul, compara o seu povo a peças de uma bicicleta, e anuncia que vai demonstrar o porquê. Pega uma bicicleta nova e pede para que todos façam um círculo do lado de fora do salão onde acontece o encontro. Todos andam na bicicleta. Do menino à liderança – que conduz a bicicleta com uma só mão; de uma jovem aos apoiadores; até os “parentes” da Bolívia, da Argentina e do Paraguai. “O que vocês viram?”, pergunta o professor – uma função que recentemente assumiu status de respeito nas aldeias, ao lado dos Agentes Indígenas de Saúde. “Harmonia, agilidade, alegria, atenção, medo, controle, equilíbrio”, respondem todos, um a um. “Pois é, a bicicleta não parou de andar. Andou mais rápido, mais devagar, e isso porque ninguém decidiu trocar de marcha”, conclui Otoniel. A bicicleta é desmontada e o professor pede agora que os próprios Guarani a remontem sem saber que alguns já foram orientados pelo professor para atuarem como aqueles que atrapalham a montagem da bicicleta. Os conflitos se iniciam entre os indígenas. Aparecem “apoiadores” e até mesmo indígenas que se dizem confiáveis, mas roubam as peças da bicicleta. Mas, ao final, em mutirão (palavra de origem tupi-guarani), conseguem fazer com que a bicicleta ande novamente, apesar de ser impossível deixála como estava. “Nosso povo é como a bicicleta remontada”, finaliza a dinâmica o professor. “Não vai ser mais como antes, destruíram nossas matas e acabaram com nossos animais, mas é possível fazer com que a bicicleta volte a andar”, conclui. “Temos de juntar as peças daqui com as dos outros países”, sugere a também professora Guarani, Teodora de Souza, da aldeia de Dourados. Mercosul A tarefa torna-se cada vez mais urgente. Para o antropólogo Antônio Brand, estudioso da questão Guarani desde a década de 1970, os governos dos países do Mercosul deveriam instituir políticas públicas comuns para atendê-los – já que eles constituem a base cultural do bloco, por estarem presentes em todos os países-membros. “Para evitar fluxos migratórios de Guarani entre os países, serão necessárias respostas articuladas em relação ao direito à terra, aposentadoria, segurança alimentar e aos recursos naturais”, alerta Brand, que recorda que recentemente 1.300 GuaraniMbyá que viviam na Argentina cruzaram a fronteira com o Rio Grande do Sul. Segundo ele, como efeito dominó das práticas imperialistas do agronegócio, a situação dos Guarani-Kaiowá daqui é a situação de amanhã dos Guarani-Awá que vivem no Paraguai, onde a soja

Rezadores Guarani entoam canto e dançam para abençoar o encontro em Caarapó (MS)

também já tomou conta. “Até 1978, não havia problema de terra entre os Guarani no Mato Grosso do Sul. Foi chegar a soja, e depois os canaviais, para que os espaços de refúgio fossem desaparecendo e as aldeias (local onde os Guarani não viviam) começassem a inchar. Um processo histórico ao qual eu classifico de confinamento causado pelo agronegócio.”

No Brasil Segundo levantamentos feitos pela Fundação Nacional de Saúde e pelo Cimi, existem 40 mil Guarani (80% do total que vive no Brasil) vivendo no Mato Grosso do Sul – divididos em 38 aldeias, em 17 municípios – e os outros 10 mil em terras tradicionais localizadas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e uma terra reservada no Estado do Pará. Brand explica que os Guarani foram divididos em três grandes grupos pelo invasor, já que antes de sua chegada as categorias não faziam sentido: os Kaiowá (predominantemente presentes no Mato Grosso do Sul e Paraguai); os Mbyá (que ocupavam todo o Sudeste do Brasil e, hoje, encontram-se em São Paulo, Espírito Santo, Argentina e Paraguai); e os Awá (distribuídos pelo Paraná e Santa Catarina). De acordo com números da Funai, existem, ainda hoje no Brasil, cerca de 225 etnias diferentes que falam 180 línguas distintas. Ao final do encontro de Caarapó, os presentes divulgaram documento no qual exigem o respeito aos rezadores (que foram esquecidos em virtude da entrada de denominações religiosas nas aldeias e que hoje só são procurados, segundo eles próprios, quando falta cesta básica, o professor não recebe ou agente de saúde não consegue curar um doente com remédios tradicionais). Além desse ponto, o texto exige que o Estado crie mecanismos para garantir a participação ampla da comunidade indígena na elaboração de seus projetos e decisões; que os órgãos fiscalizadores verifiquem as irregularidades do trabalho indígena nas usinas; e que se faça justiça nos casos de assassinato das lideranças indígenas. Também foi encaminhado que a recente Declaração Sobre Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de setembro, seja traduzida para a língua Guarani.

SEM TERRA

Para MST, governo Lula não tem compromisso com a reforma agrária Movimento realizou jornada de lutas em 15 Estados e evidenciou que a reforma agrária está parada no país Luís Brasilino da Redação Mais de 10 mil militantes participaram, entre os dias 24 e 28 de setembro, da jornada de lutas deste segundo semestre do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ocorreram mobilizações em 15 Estados, com destaque para ocupações de superintendências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Em Alagoas e no Paraná foram montados acampamentos em frente aos prédios da autarquia. Houve também marchas em ruas e estradas e manifestações diante do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no Rio de Janeiro, e de órgãos do Ministério da Fazenda. Nos protestos, o MST cobrou do governo federal a aplicação de um “modelo agrário viável”, com foco na criação de empregos e na produção de alimentos para o mercado interno. Segundo o movimento, apenas o assentamento das 150 mil famílias que estão acampadas em todo o país seria capaz de gerar 750 mil postos de trabalho diretos. Atualmente, a pequena agricultura já responsável por 80% dos empregos no campo e 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros.

Para a safra 2007/2008, o Executivo deve destinar R$ 58 bilhões em crédito para os grandes proprietários, além de rolar mais uma vez a dívida de R$ 40 bilhões dos ruralistas. Já para o Pronaf, estão previstos R$ 12 bilhões. De outro lado, as manifestações serviram também para o MST divulgar informações que atestam que o governo Lula segue o caminho inverso do que propõem. Em Minas Gerais, nenhuma família recebe crédito do Programa Nacional de Agricultura Familiar há cinco anos. Em 2006, foram feitos 315 dos 2,2 mil assentamentos prometidos e, neste ano, nenhum. Algumas famílias estão acampadas desde 1999. Nos últimos cinco anos, apenas 35 assentamentos foram criados no Mato Grosso. No Paraná, os 17 mil assentados estão sem assistência técnica e crédito desde o início de 2006. E, no Rio Grande do Sul, 1,8 mil trabalhadores marcham em três colunas distintas

até a fazenda Coqueiros (no Norte do Estado) para reivindicar a sua desapropriação. A área, de 9 mil hectares, gera dois empregos fixos e paga uma quantidade de impostos equivalente a quatro pequenas propriedades que, em média, possuem oito hectares.

Política econômica Casos como esses se multiplicam pelo Brasil. Vanderlei Martini, da coordenação nacional do MST, acredita que o presidente Lula não tem compromisso com a reforma agrária. “Disseram que ele se reuniria conosco na quinta-feira (27 de setembro), mas o presidente viajou a São Paulo (SP) para se encontrar com o bispo Edir Macedo”, lamenta, referindo-se ao dia do lançamento da nova emissora de notícias Record News. A luta pela reforma agrária dividiu em importância a pauta de reivindicações do MST com a mudança do modelo econômico vigente. Para o movimento, a reforma agrária não avança porque o governo prefere priorizar o agronegócio, parte integrante do funcionamento da política econômica ao contribuir com o superavit comercial. Desse modo, para a safra 2007/2008, o Executivo deve destinar R$ 58 bilhões em crédito para os grandes proprietários, além de rolar mais uma vez a dívida de R$ 40 bilhões dos ruralistas. Já para o Pronaf, estão previstos R$ 12 bilhões. Avaliação Com relação às reivindicações, Vanderlei Martini relata que o movimento avançou em questões pontuais, com as superintendências regionais do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “Mas a reforma agrária esbarra no presidente do Incra (Holf Hackbart) e no ministro (Guilherme Cassel, do MDA) falando que isso não depende deles, mas sim do governo Lula”, coloca. Mas, de modo geral, Vanderlei acredita que a jornada foi “extremamente positiva”. Ele remete à divisão da esquerda e ao descenso do movimento de massas para comemorar a concretização de uma mobilização nacional, “demonstrando a força e a unidade do MST”. Próximos passos Articulados com diversos setores da esquerda, o movimento planeja uma grande mobilização em defesa da reforma agrária que “vai parar o Brasil em abril de 2008”, nas palavras de Vanderlei. No médio prazo, o coordenador do movimento explica que a tarefa é discutir um projeto popular para o país. “Há sinais, dentro da esquerda, de unidade em torno de bandeiras concretas, mas ainda estamos com dificuldades na construção desse projeto. Ainda existem muitas fissuras, ressentimentos, mas precisamos debater isso”, aponta.


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PSDB articula retomada das privatizações em três Estados AGENDA NEOLIBERAL Serra apura valor de mercado das estatais; sindicalistas revelam “artimanhas” para a entrega de empresas

AINDA ESTÁ no forno o mais novo programa da “monarquia” tucana para a economia de São Paulo – Estado gerido pelos tucanos desde 1995. O governo de José Serra abriu licitação para contratar consultorias com o objetivo de avaliar o valor de mercado de 18 empresas paulistas. As estatais foram reunidas em três grupos. O primeiro é formado por Cesp, Nossa Caixa e Sabesp. O segundo tem companhias como o Metrô e o CDHU; e o terceiro grupo, empresas como a Cetesb (saneamento) e EMTU (transportes). A geradora Cia. Energética de São Paulo (Cesp) e o banco Nossa Caixa são os ativos que despertariam mais interesse de grupos privados. Apenas Nossa Caixa, Sabesp e Cesp, juntas, valem quase R$ 25 bilhões atualmente na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). A iniciativa indica que Serra pretende retomar a agenda de venda de estatais, enfraquecida nos últimos anos. No final de seu governo, o antecessor Geraldo Alckmin vendeu a Cteep (Transmissão Paulista) por R$ 1,18 bilhão aos colombianos do grupo ISA. O processo foi questionado pela Eletrobrás, que criticou os critérios de estabelecimento do preço mínimo do leilão. Antes disso, os tucanos venderam marcas ainda mais fortes, como a Telesp e o Banco Banespa para grupos espanhóis, Telefonica e Santander, respectivamente, e as distribuidoras de energia para diversos grupos privados. Os reflexos foram sentidos no bolso do consumidor. A assinatura básica do telefone fixo custava

está em torno de R$ 7 bilhões (já chegou a R$ 11 bilhões).

Marcello Casal Jr/ABr

Eduardo Sales de Lima da Redação

Fernando Henrique, Geraldo Alckmin e José Serra: seguindo a cartilha tucana de privatizações

Quanto

R$ 3 bilhões

Essa é a receita anual produzida pela geradora de energia Cesp R$ 14 em 1999 , hoje, está R$ 40. Quase 300% mais caro. Entre 1999 e 2006 a inflação acumulada foi de 73,3%. De acordo com dados do Dieese, no município de São Paulo, em janeiro de 1999 o preço do consumo de até 300 kw era de R$ 40. Em agosto de 2007 era R$ 74.

CESP Na visão dos tucanos, o momento é propício para a venda total da geradora de energia

Efeitos da privatização: a assinatura básica do telefone fixo custava R$ 14 em 1999 , hoje, está R$ 40 Cesp. “A economia está aquecida, e quando a economia aquece aumenta o consumo de energia. Assim, as empresas procuram os leilões, os contratos bilaterais e fazem com que o preço do megawatt/hora se eleve também”, ilustra Antônio Mardevânio Rocha, diretor do Sinergia (Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo e integrante do Conselho de Administração da Cesp). A estatal conta hoje com 1,4 mil funcionários. Já teve 30 mil. O diretor do sindicato se vale dos números para ques-

tionar essa entrega descabida da Cesp ao capital privado. “É uma empresa que gera quase R$ 3 bilhões de receita. O custo com os encargos é de cerca de R$ 160 mi por ano, 5% do valor da receita”, argumenta. Segundo ele, o governo de Alckmin vendeu a Cteep e injetou parte do dinheiro na Cesp, reduzindo dívidas. No entanto, pode ter se tratado de uma manobra para tornála mais atrativa ao mercado. “A Cesp já teve sua maior parte dividida e vendida. As experiências não são positivas nem

para os empregados, nem para a população. Há precarização dos serviços e tentativas extremas de terceirização”, aponta o sindicalista. Na primeira onda de privatizações em São Paulo, a geradora Cesp foi dividida em três grupos; dois foram vendidos para as empresas estadunidenses Duke Energy e AES Tietê. Segundo o sindicalista, o governo tucano não utilizou o dinheiro da venda de dois terços da empresa para abater a dívida da companhia. Mesmo assim, a empresa foi reduzindo o valor da dívida, que hoje

Nossa Caixa Ao contrário da Cesp, a dívida não foi diminuída no Banco Nossa Caixa. Ao contrário, o governador José Serra endividou ainda mais o banco. “ A Nossa Caixa não tinha problemas econômicos. Serra nos obrigou a comprar as contas do funcionalismo público, quando pagamos R$ 2,84 bilhões”, afirma Raquel Kacelnikas, diretora do Sindicato dos Bancários de SP e há 30 anos funcionária da Nossa Caixa. Após a privatização do Banespa, estava previsto que, ao longo de seis anos, as contas do funcionalismo público iriam migrar automaticamente, sem nenhum custo, para a Nossa Caixa. Mas José Serra não permitiu que isso acontecesse. “Nós nos sufocamos economicamente. As contas estavam vindo paulatinamente. Eles ameaçaram. Se não comprássemos as 600 mil contas, iríamos perdê-las assim como as outras 550 mil já transferidas”, revela Raquel. Segundo ela, isso fecharia agências de imediato e causaria muitas demissões. Obrigada durante 60 meses a pagar mensalidades de R$ 35 milhões, devido a amortizações dessa dívida (R$ 2,84 bilhões ), a Nossa Caixa, mesmo pressionada, “se apresenta como um dos bancos mais estáveis do ponto de vista de contratação e permanência de funcionários”, segundo Raquel. Dados o jornal Valor Econômico do dia 27 de setembro especulam que o valor da Cesp esteja em cerca de R$ 10 bilhões e o da Nossa Caixa, em R$ 3,2 bilhões, sendo que o governo detém 71,25% do capital total do banco.

MINAS GERAIS

RIO GRANDE DO SUL

Em Barbacena (MG), prefeito do PSDB quer privatizar a água

Governadora vende ações de estatais

Para deputado Padre João (PT-MG), operação pode fazer parte de arrecadação de recursos para campanha

Eduardo Sales de Lima da Redação A cidade de Barbacena, interior de Minas Gerais, vive um impasse. O prefeito Andrada (PSDB) conseguiu aprovar uma lei, em julho, que permite a concessão de parte do Demasa (Departamento Municipal de Meio Ambiente e Saneamento) para a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), uma empresa mista, que teve sua abertura de capital iniciada e impulsionada no governo de Aécio Neves (PSDB). “Vão passar (o serviço de saneamento) para a Copasa e haverá um custo bem maior. Em Carandaí (município vizinho que conta com os serviços da Copasa), existem uma série de reclamações da qualidade dos serviços”, denuncia Padre João, deputado estadual (PTMG). O petista afirma que o metro cúbico de água em Barbacena para aqueles que utilizam de 12 a 15 m3 por mês custa R$ 1,25. Já o custo similar nas cidades em que a Copasa presta o serviço de saneamento e abastecimento é de R$ 3,70. O lucro vai para os acionistas da empresa. Boa parte das ações da Copasa é de grupos estrangeiros como o Capital Group Interna-

Yeda evita o debate das privatizações, mas tenta derrubar artigo da Constituição que prevê plebiscito se quiser vender estatal Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)

tional Inc., a OHL, e a Águas de Barcelona (Agbar), ambas espanholas, além da Andrade Gutierrez Participações Ltda. Em 2006, a Copasa colocou à venda 30% de suas ações ordinárias, sendo que mais de 70% foram adquiridas por grupos estrangeiros. A principal alegação do prefeito Andrada é a de que o Demasa estaria em falência. Mas de acordo com o deputado Padre João, a empresa fechou ano passado com um susperavit de R$ 4 milhões. “Tem a vitalidade econômica e ainda não há reclamações do serviço”, completa. Segundo ele, a motivação do prefeito para vender a empresa municipal não está sendo esclarecida, uma vez que a medida provoca desgaste político. “Por meio dessas empresas se sustentam os fundos de campanha dos tucanos. Foi assim nas eleições de 1998, quando houve recursos que saíram da Copasa, da Cemig – Companhia Energética de Minas Gerais, da Codemig. Essa privatização de partes dos serviços em um ano que é véspera de eleição municipal significa um desgaste (político) total. Se a própria população não aceita e ele insiste em fazer isso, não pode ter outro interesse senão de obter recursos”, conclui Padre João. No próximo dia 5 de outubro haverá uma audiência pública. O Demasa emprega, hoje, 300 servidores municipais.

Se é verdade que a pauta das privatizações está na mesa da governadora Yeda Crusius (PSDB), tampouco existe ambiente político no Rio Grande do Sul para o governo tucano emplacar de imediato um programa de venda de estatais. O discurso da gestão conservadora tem sido o do equilíbrio orçamentário, já que o rombo nas contas do Estado deve ser superior a R$ 1,3 bilhão em 2008. Alegando conter o crescimento das dívidas, a governadora infringe, desde o início do seu mandato, forte corte de verbas das secretarias e órgãos públicos, parcelamento dos salários do funcionalismo e extinção de autarquias e setores, como Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo (GRAC), que foi dissolvido no início de 2007. Até o momento, não há nenhum órgão responsável pelos temas. A venda de estatais é uma bandeira ainda não colocada claramente para a população gaúcha. Isso porque, depois da venda da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) durante o governo Antônio Britto, do PMDB (1995-1998), o debate sobre as privatizações no Estado ganhou conotação negativa e até mesmo rejeição por boa parte das pessoas e servidores públicos. Também joga contra os tucanos uma cláusula da Constituição gaúcha que exige a realização de um plebiscito para se efetivar venda, fusão

ou extinção de estatais. Essa medida foi conseguida após pressão dos movimentos sociais, sindicatos e cidadãos durante o governo de Olívio Dutra, do PT (1999-2002). Não é à toa que o pacote econômico de Yeda, previsto para ser enviado à Câmara em breve, vai conter uma emenda excluindo essa participação popular na definição dos destinos das empresas estatais. Enquanto isso, o governo gaúcho tem mantido sua agenda apostando na venda de ações de empresas públicas rentáveis, como o Banrisul, o banco estatal gaúcho. Yeda alega que as ações vendidas na Bolsa de Valores de São Paulo em julho não modificam a gestão pública do banco, já que o Estado manteve a maioria das cadeiras dos acionistas. No entanto, trabalhadores afirmam que este é o início de uma privatização velada. “No nosso entendimento, o Banrisul já tem dado uma contribuição grande no combate a essa crise (financeira do Estado gaúcho), tanto é que nos últimos anos o banco repassou ao Tesouro Estadual cerca de R$ 711 milhões, decorrente de sua lucratividade. E portanto hoje, o governo quer avançar mais ainda, o que para nós, é temerário. Em todas as experiências em que governos que se utilizaram de seus bancos estaduais para resolver uma crise de caixa do Estado, os bancos acabaram quebrados ou privatizados”, avalia Juberlei Bacelo, diretor da Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul (FEEB-RS). Além do Banrisul, a governadora já demonstrou inte-

resse em vender mais ações da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) e de iniciar a capitalização do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagens (DAER) e da Corsan, empresa estadual de distribuição de água e saneamento. Essa última é uma das empresas mais bem cotadas atualmente, já que responde por 98% dos sistemas de água e esgoto no Estado. O presidente do sindicato dos trabalhadores nos setores de água e esgoto do Estado (Sindiágua), Rui Porto, estima que a capitalização irá piorar o serviço de qualidade que hoje é prestado pela Corsan. Pesquisas mostram que, de cada real que se investe em saneamento, os custos com a saúde são reduzidos de R$ 4,00 a R$ 8,00. Para a população, diz Porto, deve sobrar o aumento das tarifas da água, a exemplo do setor de telefonia. Hoje, o cidadão paga, em média, R$ 40,00 por 10 metros cúbicos de água utilizada. Para ele, as estatais precisam ser eficientes, e não lucrativas. “O fato de capitalizar não vai fazer com que entre com mais ou menos dinheiro porque, quem for comprar essas ações, certamente não vai fazê-lo com dinheiro próprio. As empresas privadas vão acabar sendo financiadas pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), é dinheiro público. Além disso, quem comprar ações vai querer retorno de capital, o que não basta com melhoria de gestão. Vai precisar mexer na tarifa, o que significa a exclusão de boa parte da população”, afirma.


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brasil

Fabio Pozzebom/ABr

Fabio Pozzebom/ABr

saiu na agência Priscilla Mora

Imprensa burguesa faz vista grossa ao mensalão tucano

www.brasildefato.com.br

Arquivo/ABr

Costa Rica Um protesto massivo tomou conta de San José, capital da Costa Rica, em 30 de setembro, para repudiar a assinatura de um acordo de Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA; no dia 7 de outubro, a população responderá em referendo se ratifica o acordo. A Costa Rica é a única nação centroamericana que não aprovou ainda o acordo com os EUA, do qual participam também Guatemala, El Salvador, Honduras e República Dominicana. Nuestra América

O mensalão tucano de Eduardo Azeredo, Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso não foi destaque na mídia

COMUNICAÇÃO Mídia corporativa minimiza escândalo do esquema de caixa 2 protagonizado pelo PSDB Tatiana Merlino da Redação A ACUSAÇÃO feita pelo exgovernador de Minas Gerais e senador Eduardo Azeredo (PSBD-MG) – apontado como principal beneficiário de um esquema de caixa 2 quando disputou, em 1998, a reeleição ao governo do Estado – de que o dinheiro arrecadado foi usado para campanhas de deputados e senadores de sua coligação, incluindo a do candidato à Presidência Fernando Henrique Cardoso, apesar de bastante grave, foi divulgada pela imprensa comercial de maneira tímida. Em entrevista dada ao jornal Folha de S.Paulo, dia 26 de setembro, disse que o ex-presidente “Henrique não foi a Minas, mas tinha comitês bancados pela minha campanha”. Embora os jornais tenham publicado algumas matérias repercutindo o caso, a notícia não foi dada com destaque nos principais veículos de imprensa do país. Na opinião do jornalista Altamiro Borges, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), se a mesma denúncia feita fosse em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia seguinte seria manchete de todos veículos, “que iriam pedir a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o envolvimento do presidente no esquema. Como foi em relação ao FHC, houve pouco destaque”.

Partido da mídia Desse modo, acredita Borges, a maneira que imprensa burguesa tem se comportado em relação ao assunto “demonstra que ela se transformou num ‘partido’. O Azeredo falou abertamente do envolvimento do Fernando Henrique, mas a imprensa mostrou de que lado está quando decidiu abordar o caso do desvio de verbas em Minas de modo diferen-

Para sustentar uma posição ideológica da empresa, os jornalistas se submetem a um desvirtuamento da informação. Não há uma escola de jornalismo que ensine a tratar problemas semelhantes com textos desiguais te do que tratou o escândalo que atingiu o governo Lula em 2005”. Na opinião do sociólogo e jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, a imprensa também tem tratado o caso do caixa 2 do PSDB de modo parcial. “Ele raramente chega às primeiras páginas do jornal, como aconteceu no caso de 2005. Quando chega, é discretamente, sem o alarde que foi feito no caso do escândalo envolvendo o governo Lula”, analisa o professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). De acordo com ele, a cobertura vem sendo “absolutamente desigual para situações semelhantes. É até pior porque a origem dessa forma de desvio de recurso está lá em Minas e depois foi incorporada em Brasília”.

Abordagens distintas Apesar disso, os veículos parecem ignorar que o esquema do desvio de verbas realizado pelo PSDB antecede o que envolveu o PT. Isso

fica claro no editorial do jornal Folha de S. Paulo de 27 de setembro, que diz: “no caso do tucanoduto, repetemse ingredientes e personagens da farsa representada à exaustão pelos mensaleiros do PT”. A diferença de abordagem nos dois “mensalões” vai além de tratar o envolvimento do PT com desvio de verbas de “mensalão petista” – apesar de outros partidos estarem envolvidos no caso –e de “mensalão mineiro” quando o esquema de corrupção envolve o PSDB. O caso de benefício direto do candidato tucano ao governo do Estado de Minas também tem sido chamado de “valerioduto mineiro”. Na avaliação de Lalo Leal, “a crítica desse caso de desvio de recursos protagonizado pelo PSDB é deslocada do partido para o operador, o valerioduto, o que não houve no caso do PT”.

Desvirtuamento Em alguns textos publicados pela imprensa comercial, na mesma reportagem apareceram os termos “vale-

Jornalistas mineiros são censurados da Redação Se o esquema de corrupção envolvendo o ex-governador de Minas Gerais não é tratado de mensalão tucano pela mídia burguesa em geral, na imprensa mineira a situação é bem pior. Apesar do nome do atual governador mineiro, Aécio Neves – que pretende concorrer às eleições presidenciais em 2010 –também aparecer entre os beneficiários do caixa 2 do PSDB, os veículos de comunicação da capital Belo Horizonte não estão repercutindo o escândalo. De acordo com Altamiro Borges, “a imprensa mineira está totalmente blindada. Lá, o jornalista que fala contra Aécio é podado”. Há inúmeros relatos de atentados contra o direito à informação no Estado, onde há denúncias de demissão de jornalistas, suspensão de artigos e reportagens. A jornalista e historiadora Andréa Neves da Cunha, irmã do governador, é conhecida no Estado como a responsável por manter a imprensa calada. Num vídeo que circulou pela internet, seis jornalistas a responsabilizam diretamente pelas suas demissões por terem feito reportagens que teriam desagradado o governo. A campanha de Aécio posteriormente conseguiu que dois dos jornalistas desmentissem a versão. (TM)

rioduto mineiro” e “mensalão petista”. Para Lalo, além de uma questão ideológica, essa abordagem dos fatos indica a existência de um jornalismo mal feito. “Para sustentar uma posição ideológica da empresa, os jornalistas se submetem a um desvirtuamento da informação. Não há uma escola de jornalismo que ensine a tratar problemas semelhantes com textos desiguais”. No entanto, o professor da USP acredita que esse tipo de prática da imprensa não é novidade. “Esse tratamento só reforça o comportamento da mídia em relação PT. Historicamente, para criticar um governo a imprensa não costumava identificá-lo a um partido, mas com o PT sempre foi diferente. Para criticá-lo, sempre se diz governo do PT”. Na avaliação de Lalo, por mais que o partido e o governo Lula “se esforcem para se apresentar como bons moços, a burguesia apenas os tolera, mas está, junto com os jornais que a representam, à espreita para que possam remover do poder o que resta dessas forças progressistas”.

Tática tucana Para o jornalista, se o assunto está sendo divulgado é porque a Polícia Federal concluiu relatório a respeito do esquema de corrupção. “Se não fosse isso, o caso estaria acobertado. Depois de ter envolvido o FHC no caso, o Azeredo foi duramente censurado dentro do partido, que está usando uma tática de submersão. Quando a situação fica complicada, eles fazem isso e contam com a colaboração da imprensa que tenta manter o assunto fora do noticiário até onde for possível”, critica Lalo. A denúncia que o procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, irá apresentar contra os envolvidos no caso de corrupção ao Supremo Tribunal Federal estava prevista para o final do mês de setembro, mas em entrevista dada no dia 27, ele disse que “ainda vai demorar” a chegar o momento da decisão sobre quem denunciar e quais crimes.

As cidades de Fortaleza e do Rio de Janeiro vão receber, entre 22 e 26 de outubro, a 1ª Conferência Internacional Vozes de Nuestra América. O evento será um momento de reflexão e intercâmbio de cultura entre as diversas experiências dos povos da América Latina. Entre os convidados, em Fortaleza, estão a nicaragüense Lorena Pena (FSLN), o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, o jornalista uruguaio Raúl Zibechi, entre outros. Além das palestas e debates, haverá sessões de cinemas, apresentação teatral, músicas. A realização é uma parceria entre a Escola Nacional Florestan Fernandes, Universidade Federal do Ceará, Prefeitura de Fortaleza e Governo do Estado, por meio da Secretaria de Cultura (Secult).

Povos da Floresta

Cerca de 5 mil indígenas, ribeirinhos, pescadores, que-

fatos em foco

bradeiras de coco exigiram o fim da exploração das florestas por grandes obras, como as hidrelétricas do rio Madeira, previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A declaração final do II Encontro dos Povos da Floresta, concluído em Brasília em 23 de setembro, reafirma o papel estratégico que essas populações desempenham na proteção das vegetações nativas.

Vale do Rio Doce

A Justiça Federal em Marabá, no Estado do Pará, estabeleceu um prazo de dez dias para que a Companhia Vale do Rio Doce deposite a quantia de R$ 1,3 milhão ao povo indígena Xikrin. O valore se refere à indenização que a empresa está obrigada a arcar para amenizar os impactos de sua exploração mineradora em áreas próximas às aldeias indígenas. A empresa, no entanto, não estava cumprindo a determinação.

Hamilton Octavio de Souza

Queimada paulista No lançamento da Agenda Latino-Americana em São Paulo, dia 29 de setembro, organizada pelo Grupo Solidário São Domingos, a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, Carlita da Costa, criticou duramente o apoio do governo federal aos usineiros, “enquanto os trabalhadores da cana estão morrendo no campo”. Carlita denunciou os dirigentes sindicais que “não tiram a bunda da cadeira e aceitam propina do agronegócio”. Foi a mais aplaudida do evento. Desativação agrária

Em marcha lenta com a reforma agrária há bastante tempo, o governo federal reduziu ainda mais as verbas e as metas do setor para o próximo ano. De acordo com o orçamento de 2008, a obtenção de terras para a reforma agrária será 40% menor do que em 2007, cairá de 1,16 milhões de hectares para 694 mil hectares. Os números desmentem qualquer discurso enganador.

Sonegação massiva

Bem devagar

Os bancos privados assaltam as contas de seus clientes todos os dias com a cobrança de tarifas abusivas. O Banco Central, que deveria fiscalizar o sistema e impedir esse crime contra a economia popular, finge que não tem nada a ver com o assunto. Agora, sob pressão do IDEC e de alguns setores da classe média, promete regulamentar as tarifas bancárias – mas sem muita pressa.

Já foram identificadas 93.600 empresas do Estado de São Paulo que em 2006 sonegaram mais de R$ 1,5 bilhão de impostos. O golpe foi descoberto pelo simples cruzamento das informações das administradoras de cartões de crédito, que registraram o pagamento de R$ 24,2 bilhões para aquelas empresas e as declarações feitas pelas próprias empresas, no total de R$ 11,2 bilhões. Não se sabe o que rolou por fora dos cartões.

Atraso parlamentar

Boicote privado

Novo ranking da ONU revela que o Brasil está em primeiro lugar na percepção da insegurança, já que 70% dos brasileiros se sentem inseguros em sair à noite; na seqüência ficaram os moradores da África do Sul, Bolívia, Botsuana, Zimbábue e Colômbia. Segundo a ONU, a população mais segura é do Canadá, onde existe menos desigualdade social e mais investimentos em educação e nos demais serviços públicos.

Mesmo sem o apoio entusiasmado do Brasil, os governos da Venezuela e da Bolívia anunciam que o Banco do Sul, uma instituição multinacional para o desenvolvimento latino-americano, deverá entrar em funcionamento em novembro deste ano. O governo brasileiro vacila na iniciativa – que é bombardeada pelos Estados Unidos, pela imprensa empresarial e pelos setores neoliberais. Como sempre!

Após defender latifundiários e usineiros que exploram o trabalho escravo pelo país afora, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) está agora ameaçando os integrantes do site Repórter Brasil, uma ONG dedicada à luta pela erradicação do trabalho escravo. Ela iniciou a perseguição depois que a ONG revelou publicamente as posições medievais da senadora. Gente fina!

Relação direta


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brasil

Ruralistas pressionam para cessar combate à escravidão no campo Fotos: Ministério do Trabalho

EXTREMA DIREITA Após libertação de mais de mil trabalhadores em situação degradante, senadores tentam desqualificar fiscais Renato Godoy de Toledo da Redação O CUMPRIMENTO da legislação trabalhista, que proíbe as práticas de trabalho análogas à escravidão, gerou, no final de setembro, revolta entre senadores de extrema direita. Liderados por Romeu Tuma (DEM-SP), Kátia Abreu (DEM-TO), Flexa Ribeiro (PSDB-PA), Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) e Cícero Lucena (PSDB-PB), os ruralistas colocaram sob suspeita as ações do grupo móvel de fiscalização, constituído por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) e agentes da Polícia Federal. Esse grupo foi criado em 1995 e tem sido reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como a ponta de lança do programa brasileiro de combate ao trabalho escravo. Desde seu início, o grupo móvel libertou mais de 60 mil pessoas, multou os empregadores escravagistas e pagou às vítimas os direitos trabalhistas que lhes eram negados. A maior ação do grupo ocorreu em julho, quando os fiscais libertaram 1.064 trabalhadores da “fazenda-usina” Pagrisa, em Ulianópolis (PA). Na ocasião, os fiscais averiguaram que os funcionários dormiam em alojamentos superlotados, recebiam alimentos estragados, que eram consumidos sob forte sol e em meio à poeira da lavoura, e alguns ganhavam salários mensais de R$ 10. Os remédios para combater infecções e problemas oriundos da má alimentação eram descontados dos parcos vencimentos dos trabalhadores.

Ingerência Passando por cima do Executivo – em vez de fiscalizá-lo e legislar, tal como se espera do Legislativo –, os senadores montaram uma comissão externa e foram até a fazenda para verificar se os fiscais tinham razão. Após a “blitz”, os senadores concluíram que as condições da fazenda eram satisfatórias. A partir dessa constatação, iniciou-se uma grita, por parte dos ruralistas, contra os trabalhos do grupo móvel. Os senadores que “inspecionaram” a Pagrisa amea-

Pagrisa: trabalho escravo a serviço do agronegócio

çam abrir inquérito criminal contra os fiscais que participaram da ação, inclusive alegando que os funcionários do MTE praticaram crime de falsidade ideológica. O frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), lamenta: “Se um fiscal for preso por realizar seu trabalho, é o fim de tudo”. Em meio à crise instaurada, o Ministério do Trabalho decidiu suspender, por tempo indeterminado, as ações do grupo móvel, para assegurar que os fiscais possam exercer sua função sem ameaças e pressões externas. A assessoria de imprensa do MTE, procurada pelo Brasil de Fato, afirmou que os representantes do Ministério, por enquanto, não estão se pronunciando sobre o tema. Para frei Xavier, a atitude do MTE “não é boa, nem ruim”, mas é uma medida dentro do leque de opções que o governo teve. “É claro que eles não tomaram esAgência Senado

sa decisão com alegria. Estou rezando para que a fiscalização recomece o mais rápido possível”, revela Xavier, que diz temer pela integridade dos trabalhadores em situação precária que realizaram denúncias e aguardam pela chegada da fiscalização, “que não se sabe se vem”.

Queda de braço Frei Xavier acredita que a reação dos ruralistas está dentro de um contexto de implementação de leis estaduais de combate ao trabalho escravo. “Não é de hoje essa queda de braço, eles esperam o momento tático mais adequado para atacar. Querem desqualificar a fiscalização, que incomoda o agronegócio. Nesse momento, o Maranhão, o Tocantins, da Kátia Abreu, a Bahia, dentre outros, estão implementando leis de combate ao trabalho escravo, e isso incomoda, porque nos Estados existe uma pressão grande da sociedade e

Agência Senado

Fabio Pozzebom/ABr

do mercado externo, que exige produtos que não tenham origem no massacre humano e do meio ambiente”, explica.

Repúdio Um manifesto assinado por dezenas de entidades da sociedade civil repudiou a atitude dos senadores e exigiu a continuidade das fiscalizações. O senador José Nery (PSOL-PA), que preside a Subcomissão Temporária do Trabalho Escravo, afirma que os fiscais do grupo móvel recebem a solidariedade do Ministério Público do Trabalho e da própria Subcomissão. “A Subcomissão está nessa luta contra o trabalho escravo e presta toda a solidariedade aos fiscais. Estamos solicitando medidas de proteção legal para que se possa retomar imediatamente as atividades do grupo móvel e o Ministério se comprometeu a fazer nos próximos dias”, relata o senador. José Cruz/ABr

Roosewelt Pinheiro/ABr

Os senadores Cícero Lucena (PB), Jarbas Vasconcelos (PE), Flexa Ribeiro (PA), Kátia Abreu (TO) e Romeu Tuma (SP)

Congresso conservador “Blitz” de senadores foi avisada com antecedência emperra PEC Projeto de 1995, que destina à reforma agrária terras onde existe trabalho escravo, está parado desde 2003 da Redação Para o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, a polêmica em torno do caso Pagrisa gerou um debate, positivo, sobre como ampliar o combate ao trabalho escravo. “Se a intenção era barrar o combate ao trabalho escravo, deram um tiro no pé”, crê o petista. Paim acredita que o momento é propício para se debater a aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) 438 que prevê a expropriação, sem indenização, das terras onde há presença de formas de trabalho análogas à escravidão. Essas terras seriam destinadas para a reforma agrária, assentando, prioritariamente, os trabalhadores que nelas eram explorados. A PEC 438 foi apresentada em 1995, mas só foi votada e aprovada pelos senadores em 1º turno, em 2003. Atualmente, ela tramita na Câmara Federal e, para ser implementada, ainda deve voltar ao Senado para ser votada em 2º turno. Paim é realista quando questionado sobre a possibilidade de aprovação da proposta. “A perspectiva de debate é muito boa, mas temos (no Senado) problemas de correlação de força”, avalia.

De acordo com o cientista político Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil, o debate em torno da PEC surge apenas em momentos trágicos. Segundo ele, a última vez que o debate acerca do tema emergiu foi em 2003. Na época, quatro servidores do MTE foram assassinados numa estrada, em Unaí (MG), quando iriam realizar uma inspeção rural de rotina. Ficou comprovado que o mandante do crime era um fazendeiro local. “Em 2003, a PEC só andou por conta da comoção das mortes em Unaí e o Congresso tinha outra configuração”, analisa Sakamoto, para quem “a PEC 438 atinge a parte mais sensível do “corpo” dos escravistas: o bolso. Ainda segundo Sakamoto, a aprovação da PEC seria simbólica. “No nosso código penal, a propriedade privada é muito mais privilegiada do que o direito à vida, enquanto a Constituição de 1988 determina que a terra tenha uma função social. Há uma incongruência que precisa ser corrigida”, defende. O senador José Nery (PSOLPA) defende que, além da expropriação, seja adotada uma medida que proíba qualquer tipo de financiamento público para empresas que empreguem trabalho escravo. (RGT)

Na tribuna do Senado, Kátia Abreu disse que as noções de trabalho “degradante” são diferentes no Sul e no Nordeste da Redação A visita dos senadores à Pagrisa, ao contrário do que é praxe para o grupo móvel, foi avisada com antecedência. “Se avisarem com antecedência, Abu Ghraib e Guantánamo (prisões mantidas pelo governo estadunidense, no Iraque e em Cuba, respectivamente) se transformam em dois resorts”, ironiza o cientista político Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil, que promove campanhas pela erradicação do trabalho escravo e pela garantia dos direitos humanos.

Para Frei Xavier Plassat, da CPT, a senadora Kátia Abreu tem “uma noção bastante peculiar da hierarquia entre os seres humanos” Aliás, Sakamoto acabou se envolvendo diretamente no caso da Pagrisa, já que a senadora ruralista Kátia Abreu (DEM-TO) tratou de “elogiá-lo” na tribuna do Senado. No site do Repórter Brasil, Sakamoto classificou a senadora como “uma das maiores opositoras do combate ao trabalho escravo contemporâneo”. A ex-pefelista reagiu afirmando que o diretor do Repórter

Brasil “mama nas tetas do Estado” e ameaçou processá-lo. Para Sakamoto, essas acusações, sim, são motivos para um processo. Se nos debruçarmos sobre o comportamento parlamentar de Kátia Abreu, a sentença do cientista político parece tornarse indefensável. Então deputada federal, Kátia Abreu, com mais nove parlamentares, votou contra a PEC 438. Além disso, no final de setembro, a senadora se notabilizou por proferir declarações polêmicas na tribuna do Senado, a fim de desqualificar o trabalho dos grupos móveis. “O que pode ser degradante para um trabalhador do Nordeste pode não ser degradante para um trabalhador do Sul”, analisou a senadora. Para Frei Xavier Plassat, da CPT, a senadora tem “uma noção bastante peculiar da hierarquia entre os seres humanos”. Para ele, a visão da senadora é comum entre aqueles que utilizam-se de trabalho escravo em suas propriedades e buscam “justificativas”. “É comum um pensamento de que ‘porque oferecer um tratamento de três estrelas pra eles se esse pessoal está acostumado a morar em favelas, em acampamentos do MST, lugares que não têm água, esgoto. Para que oferecer coisas que estão fora da cultura deles?’ ”, exemplifica. (RGT)

A fiscalização constatou a ausência de equipamentos de segurança necessários; péssimas condições de transporte, alojamento e higiene; locais de alimentação impróprios e alimentos estragados


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Pela transposição, governo manda Exército invadir vila ribeirinha RIO SÃO FRANCISCO Nas proximidades da barragem de Itaparica, em Pernambuco, Exército transforma agrovila em área militar

Fotos: João Zinclar

Exército controla a entrada e saída na Agrovila VI, nas proximidades da barragem de Itaparica, exigindo identificação de moradores e visitantes

Clarice Maia de Petrolândia (PE) NA ENTRADA, duas placas anunciam: “Pare, Exército Brasileiro”. Ali, três soldados e dois sargentos fazem o controle da entrada e saída. Todos precisam se identificar. O Estado é Pernambuco, região do Semi-Árido, a 429 quilômetros da capital – Recife. O município é Petrolândia, área de reassentamento de famílias, mais especificamente a Agrovila VI, nas proximidades da barragem de Itaparica. Segundo informações do tenente-coronel Gurgel, responsável pelo destacamento de Floresta (PE), trata-se do local de trabalho de 165 homens do 3º Batalhão de Engenharia e Construção (BEC), de Picos (PI), acompanhado por mais de 35 do Batalhão de Infantaria, de Garanhuns (PE). Juntos, contam cerca de 200 homens; número que pode aumentar nos próximos dias, conforme a necessidade. Eles trabalham na construção do canal de aproximação do eixo Leste da transposição do rio São Francisco, que vai sair da barragem de Itaparica, levando água até a Paraíba. Ocupam 11 casas, alugadas e reformadas especialmente para servir de dormitório, refeitório e administração. Cada aluguel varia de R$ 100 a R$ 150. A perspectiva de alugar outras casas é remota, uma vez que 18 contêineres recém chegados deverão suprir as necessidades de ampliação da área de abrigo e organização. Quase todas as famílias que alugaram os imóveis, segundo o tenente-coronel, não residem mais na Agrovila. Ele afirma ainda que, para o Exército, o negócio foi bastante rentável, visto que o destacamento está a 8 km das obras da barragem de Areias e a 5 km das obras do canal de aproximação do eixo Leste da transposição.

Área militar Todos os detalhes parecem se referir à implantação de uma vila militar, mas “não se pode dizer que se trata de área militar porque as pessoas têm o direito de ir e vir”, diz o capitão Macedo, do 3º BEC. Entretanto, ali residem 38 famílias e todos os moradores estão cadastrados conforme a residência habitada e os acessos são garantidos apenas por meio desse cadastro. De modo que fica restrita a passagem de outros desavisados, amigos, familiares, vizinhos e visitantes. O trânsito de moradores dos sítios localizados nos arredores, a fim de fazer atalho por dentro da Agrovila, pode acontecer mediante identificação e explicação prévia. A visita, ida ou estada é permitida após comprovação da referência exata. Em caso de automóveis, são analisados os documentos do motorista, do veículo e a placa é anotada. No local, a telefonia celular funciona de modo precá-

rio e os domicílios não são atendidos por linhas residenciais, assim como em todas as agrovilas da região. O contato com algum morador acontece através do telefone público. Ao ligar para alguém na Agrovila VI, o atendente responde do outro lado: “destacamento de Floresta”.

Indignação “Agora a gente não pode nem atender ao telefone porque o soldado não sai do lado. Para conversar mais à vontade tem que ser pessoalmente em casa ou fora da vila. Até carro com emblema da Prefeitura é barrado, dá vontade de fazer um crachá pra entrar em casa. Isso aqui é uma comunidade, não uma vila mi-

“(...) dá vontade de fazer um crachá pra entrar em casa. Isso aqui é uma comunidade, não uma vila militar”, contesta Eduardo Souza litar”, reclama Eduardo Souza. (Ele, assim como os outros moradores entrevistados nesta reportagem, será tratado com um nome fictício, a fim de evitar qualquer tipo de retaliação.) “Uma vez, meu marido voltava da roça e estava sem a identidade, o soldado disse que assim ele não podia entrar. A gente vive aqui há 20 anos e daqui a pouco, se não levar o documento para a roça, não vai mais poder vol-

tar”, conta Maria Aparecida, sobre a alteração na rotina. Para assegurar a permanência no local, os batalhões presentes nos eixos Leste e Norte – 2º BEC, de Teresina (PI) – se valem da Lei nº 97, de 1999, complementar a de número 69 de 1991, que determina o uso das forças armadas para o “desenvolvimento nacional e defesa civil”. A legislação é uma versão de outras existentes desde o início do século 20.

Assistencialismo é a arma para conquistar a população Exército recolhe o lixo e cava poço artesiano de 80 metros para a população na região da barragem de Itaparica de Petrolândia (PE) A situação de dependência das comunidades, por meio de compensações, foi estimulada desde o início do projeto de construção da barragem de Itaparica, nos anos de 1980. Na época, os 150 quilômetros do reservatório impactavam mais de 120 mil pessoas, de modo direto e indireto. Dessa forma, foram erguidos quatro reassentamentos urbanos e 126 agrovilas em área rural. Mais de 10 mil famílias foram transferidas de lugar, conforme relato do Banco Mundial – um dos financiadores. Os acordos assinados à época com a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) foram cumpridos apenas parcialmente e os moradores dos reassentamentos sofrem com a infra-estrutura precária, especialmente com a falta de água, para consumir e produzir. “A terra dá e mal para sobreviver”, explica o morador José Carlos. Sendo assim, as compensações se tornaram importantes para complementar a renda das famílias. A primeira foi a Verba de Manutenção Temporária (VMT), que durou quase duas décadas, mas a maioria foi cortada há cerca de dois anos. Os moradores não são donos das terras onde plantam e moram, surge então a segunda compensação: o não pagamento da água consumida.

Soldado-gari Com a transposição, abrese a perspectiva de novas compensações. As agrovilas dos reassentados de Itaparica, em Petrolândia (PE), convivem com montes de lixo. As ruas são limpas e varridas, mas cada morador jo-

Para muitos, situação vai piorar

ga seus dejetos no quintal de casa. “A Prefeitura disse que não pode recolher nosso lixo porque não pagamos o imposto da terra”, afirma Josefa da Conceição, moradora da Agrovila V. De seu lado, o tenente-coronel Gurgel, responsável pelas tropas do Exército que iniciam as obras de transposição do São Francisco no eixo Leste, mostra com orgulho fotografias de mutirões em que soldados recolheram lixo. Desde que foram erguidas, as casas não possuem abastecimento de água potável. Gurgel mostra com

satisfação o poço perfurado com 80 metros e que jorra 11 mil litros de água por hora. “Algumas pessoas acham que a segurança melhorou e a gente agora tem a água do poço que eles furaram, mas a verdade é que eles vigiam as máquinas deles. A água só vem para gente porque deu muita, se fosse pouca, eles não iam distribuir. No começo, traziam caminhão de água mineral, a gente ficava olhando porque a nossa nunca prestou. O problema continua e quando eles forem embora vai ficar pior”, critica Eduardo Souza. (CM)

Um projeto cínico Transposição promete matar a sede de milhões no semi-árido, mas projeto só se explica economicamente porque prevê recursos para a irrigação

Exército toca as obras desde 2005

de Petrolândia (PE) As obras do projeto de transposição estão sendo tocadas pelo Exército desde 2005. Segundo o coordenador do trabalho de campo do Ministério da Integração Nacional, Gilmar Ferreira da Silva, trata-se de um “projeto de garantia hídrica, porque água acumulada não é igual à água disponível”. Ele acrescenta que, com a conclusão das obras, “a gestão das águas caberá a agências criadas nos Estados”. Mesmo sem deixar claro como os Estados arcarão com as despesas, ele sustenta que as comunidades a 10 km dos canais serão atendidas. Vale ressaltar que esta entrevista aconteceu em uma agrovila distante cerca de 5 km do reservatório de Itaparica e que, durante 20 anos, consumiu água bruta ou levada por caminhão pipa. Gilmar afirma ainda que o sistema operacional será mantido pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) para “evitar o roubo de água”, pelas “comunidades do entorno”. Sobre os índios e outros povos que vivem nas terras por onde se pretende construir canais, “terão um rio artificial correndo no meio das terras”. Porém, em seguida, Gilmar ressalva: “eles podem até tirar a água, desde que com autorização”.

“Outros usos” A outorga condicionada pela Agência Nacional de Águas (ANA) para a transposição é de 26,4m³/s. Mas o projeto prevê capacidade de retirada de 28m³/s, no eixo Leste, e 99m³/s, no eixo Norte. Isso significa 127m³/s, quantidade que só será retirada quando a barragem de Sobradinho alcançar vazão máxima.

O lago de Sobradinho foi formado há quase 30 anos, desde então aconteceram cheias apenas duas vezes. “É pelo menos estranho argumentar sobre um projeto com essa quantidade de dinheiro para funcionar a cada 15 anos”, comenta Marina Rocha, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de Juazeiro (BA), sobre os investimentos do governo federal de mais de R$ 6 bilhões, previstos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do superprojeto. “É burrice ser contra um projeto desses. Petrolina (PE) é um paraíso por causa da irrigação. Isso aqui quando estiver funcionando será concorrente de Petrolina na exportação de manga e outras coisas”, fala com empolgação o tenente-coronel Gurgel, responsável pelas tropas do Exército que iniciam as obras de transposição do São Francisco no eixo Leste. Ainda assim, Gilmar mantém a afirmação de que 100% da água transposta será para consumo humano e animal. Os dois BECs, reforçados pelos batalhões de infantaria, pretendem permanecer na região até 2010. A primeira parte dos trabalhos está prevista para 10 meses. O Exército está sendo usado pelo governo federal devido às pendências e impedimentos legais. Abastecimento de água, plantio e tráfico de maconha, geração de trabalho e renda e atendimento às necessidades básicas de moradia e segurança estão entre os problemas mais graves. “O representante do Ministério da Integração promete que serão gerados mais de 80 empregos, mas eu mesmo é que não vou carregar pedra, fazer o serviço que eles não fazem e ainda levar grito”, anuncia Eduardo. (CM)


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américa latina Wilson Dias/ABr

No Equador, Correa constrói hegemonia na Constituinte NOVOS RUMOS Partido do governo, a Aliança País, conquista a maioria das cadeiras na Assembléia; presidente defende fechamento do Congresso Claudia Jardim de Caracas (Venezuela) O PROJETO de “Refundação do Equador”, encabeçado pelo presidente Rafael Correa, saiu vitorioso das urnas no dia 30, quando os equatorianos escolheram seus representantes na Assembléia Nacional Constituinte. Com pelo menos 72 das 130 cadeiras da bancada, o partido do presidente – a Aliança País (AP) – alcançou a maioria simples que deverá compor a Assembléia Constituinte. O resultado significa uma maior margem de manobra para Correa implementar alterações na Carta Magna sem ter que, necessariamente, negociar com a oposição. A segunda força política na bancada será a do partido Sociedade Patriótica, do ex-presidente Lúcio Gutierrez, que conquistou 13 vagas, seguido do PRIAN, do ex-candidato e magnata bananeiro Álvaro Noboa (6 cadeiras). Ambos representam os principais líderes da direita equatoriana. Os números são extraoficiais e foram apurados pela ONG Participação Cidadã e não incluem os votos das comunidades no exterior, que elegerão 6 dos 130 assembleístas

Vitória popular

“As projeções são claras. A vitória da cidadania é inquestionável. Permitam-me felici-

tar aos candidatos da Aliança País pela extraordinária campanha que desenvolveram”, disse Correa em discurso no Palácio de Carondelet, sede do Executivo. “No dia de hoje se concretizam de maneira formal as esperanças de mudanças urgentes que a pátria necessita. O povo equatoriano venceu a mãe de todas as batalhas. E o fez de maneira contundente”, afirmou o presidente, logo após o anúncio dos primeiros resultados. A Assembléia Constituinte deverá ser instalada no próximo dia 31 de outubro e terá um prazo de 180 dias, prorrogável por mais dois meses, para a elaboração da nova Carta Magna. O texto final da Constituição será submetido a um referendo antes de entrar em vigência. A convocação de uma Constituinte foi a principal bandeira de Correa durante a campanha eleitoral do ano passado.

Poder Legislativo

Logo após a vitória dos aliados de Correa, especula-se no Equador que a dissolução do Congresso poderá ser uma das primeiras medidas a serem tomadas pelos assembleístas. Um dos defensores da idéia é o economista Alberto Acosta, que deverá presidir a Assembléia Constituinte. Segundo ele, “não necessitamos ter um Congresso simultâneo à Assembléia, como em 1998, e acreditamos que essa expe-

riência foi suficiente para não cometer o mesmo erro”. O presidente Correa propôs que, imediatamente após a instalação da Assembléia Constituinte, o Congresso deverá ser fechado para evitar “interferências”. O equatoriano encarregaria uma comissão “para legislar e fiscalizar enquanto trabalha a Constituinte”, sugeriu. “Com o Congresso é muito difícil atuar. Acredito que o pronunciamento do povo equatoriano foi contundente: o Congresso tem que ir para casa”, afirmou. A questão do Congresso é polêmica. A instituição está desprestigiada pela população e, nas últimas eleições, o partido do próprio presidente não lançou candidatos ao Parlamento para não legitimá-lo. A impopularidade da Casa aumentou quando os parlamentares se negaram a aceitar a proposta de realização da consulta popular que determinaria se seria realizada ou não uma Assembléia Constituinte. Após uma crise institucional que durou vários meses, os equatorianos foram às urnas em abril de 2006 e aprovaram, com 82% dos votos a favor, a instalação da Assembléia. O presidente equatoriano propõe também antecipar as eleições presidencial e legislativa logo após o referendo de aprovação da nova Carta Magna.

Para Correa, “a vitória da cidadania é inquestionável”

“Governo precisa se aliar ao movimento indígena” Para sociólogo, projeto do presidente Correa não tem apoio nas bases organizadas e pode naufragar ante à reação da direita de Caracas (Venezuela) Desde que assumiu o poder, em janeiro deste ano, o presidente equatoriano, Rafael Correa, está empenhado em frisar o papel da chamada “sociedade civil”. No entanto, pouco tem se mostrado preocupado em construir alianças com as organizações indígenas do país, que formam o mais combativo movimento equatoriano. Apesar do triunfo de Correa, o sociólogo Milton Benitez, professor da Pontifícia Universidade Católica do Equador (PUCE), em entrevista ao Brasil de Fato, alerta para as perspectivas políticas a partir de agora. Segundo ele, o projeto de “Revolução Cidadã” carece de organicidade e está desconectado das bases sociais do país. “O problema é que Correa e seu projeto de não têm um vínculo social ativo. Não há coesão entre esse grupo cidadão, em sua maioria dispersos, os movimentos sociais e o governo”, explica Benitez. O sociólogo adverte que ainda que embora a Aliança País tenha alcançado a maioria na bancada, Correa não poderá minimizar

as forças da direita representadas por Lúcio Gutierrez e Álvaro Noboa. Inclusive alguns setores da direita estariam no bojo do partido governista. “A incógnita é de como os velhos e tradicionais grupos de poder vão atuar frente a um ambiente adverso. Acredito que tentarão cooptar os assembleístas para manter seus interesses e, como não se trata de uma base orgânica, isso não será difícil que ocorra”, adverte Benitez. Questionado sobre a possibilidade de que a Constituinte equatoriana padeça dos mesmos conflitos que enfrenta a Assembléia instalada na Bolívia, Benitez foi ainda mais pessimista. “A Bolívia conta com muito mais organização social que o Equador. Nosso processo tende a ser muito mais complexo”, diz. Para Benitez, em entrevista ao Brasil de Fato, somente a proximidade com as bases poderá impedir que a Constituinte equatoriana não fracasse. “Se Correa não se aliar aos movimentos sociais não terá força para concretizar as reformas. E a Assembléia Constituinte terá limitações reais e poderá se converter em um verdadeiro fracasso”, adverte Benitez.

INTEGRAÇÃO

ALBA

Mercosul na encruzilhada

Enquanto isso, avança a proposta da Alba

Votação da entrada da Venezuela no bloco é novamente adiada. Ao mesmo tempo, cresce o comércio do Brasil com o país caribenho Pedro Carrano, de Curitiba (PR) NÃO FOI desta vez que o Congresso brasileiro autorizou a entrada da Venezuela no Mercosul. A votação desse tema estava marcada para 26 de setembro, porém foi adiada para o dia 24 de outubro. O processo de adesão do país caribenho vem sendo marcado por declarações conservadoras de parte dos parlamentares brasileiros, ao passo que o presidente venezuelano Hugo Chávez atribui a demora da decisão à influência dos Estados Unidos sobre a classe política brasileira. O adiamento da votação se deve a um acordo entre PSDB e PT. A razão alegada pelo PSDB para a mudança das datas seria a falta de conhecimento do partido sobre as razões técnicas do ingresso da Venezuela no bloco comercial. Na opinião do deputado federal Dr. Rosinha (PT-Paraná), vice-presidente do Parlamento do Mercosul e relator do projeto de adesão da Venezuela, trata-se de uma tática protelatória dos tucanos. “Reduzir (o debate) a razões ideológicas era uma campanha que não ganhava simpatia. Passaram a dizer que a questão é técnica”, afirma o parlamentar. Caso seja aprovado em outubro, o relatório será encaminhado para a Comissão de Relações Exteriores da Câmara, ganhando regime de urgência. A adesão plena da Venezuela ao Mercosul foi assinada pelo presidente Lula em 4 de julho de 2006 e encaminhada ao Congresso no fim do ano. Para a entrada do país caribenho no bloco, é necessária também a aprovação dos parlamentares do Paraguai. Argentina e Uruguai já ratificaram o novo integrante do bloco.

De comercial a integração

Em meio à discussão sobre a entrada da Venezuela, a classe política vem sustentando uma posição de veto ao ingresso do país no bloco comercial que

Quanto

225%

é o crescimento das exportações brasileiras para a Venezuela entre 2001 e 2006

nidade para a Venezuela caminhar no sentido de reverter essa dependência, visto que os países da América Latina são responsáveis por 34% do comércio com o país bolivariano.

Venezuela, Cuba, Bolívia e Nicarágua discutem criação de banco regional

Mercosul social

contraria os próprios interesses econômicos. O comércio brasileiro com o país vizinho vem crescendo a cada ano. De acordo com Adhemar Mineiro, economista do Dieese e asessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), a questão está excessivamente politizada. “A grande imprensa tem feito disputa ideológica contra o governo Chávez, que é a base para os congressistas sustentarem isso”, afirma. De 2001 a 2006, as exportações brasileiras para a Venezuela ampliaramse em 225%, de acordo com dados da pesquisa do Observatório Político Sul Americano e do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon), realizada pelos economistas Alexandre de Freitas Barbosa e Ricardo Sennes. Ao mesmo tempo, como a pesquisa indica, existe uma hegemonia dos Estados Unidos nas relações comerciais com a Venezuela. O país da América do Norte é o destino de 43% das exportações e de 31% das importações da Venezuela. O Mercosul seria uma oportu-

Nas palavras de Adhemar Mineiro, o repúdio a Chávez parte de setores que possuem peso político na mídia, porém “não são os setores diretamente envolvidos com o comércio”. Para ele, é necessário mudar a concepção que está no próprio DNA do Mercosul, surgido na década de 1990, no auge do neoliberalismo no continente, com a finalidade de ser apenas um bloco comercial. “É preciso que o Mercosul mude essa concepção de integração comercial, com a pressão dos movimentos sociais, e envolva temas de integração cultural ou colaboração na área de saúde, que não foram discutidos, temas que sensibilizem as pessoas, não apenas comércio e investimentos”, opina. As primeiras negociações para a concretização do Mercosul partiram de governos como o do ex-presidente José Sarney (1985-1990) e Raúl Alfonsin (Argentina). Mais tarde, o próprio governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, sentou à mesa cinco vezes com Chávez para discutir a questão.

A Venezuela no Mercosul Efeito geopolítico. Na opinião de Adhemar Mineiro, a entrada da Venezuela no Mercosul garante o controle por parte do bloco comercial de toda a faixa litorânea que abrange o Oceano Atlântico. Com isso, à parte o domínio naval, ressalta-se também a possibilidade de comércio com a Europa. Energia. O Mercosul se fortalece, a partir da produção energética de hidrocarbonetos (gás e petróleo) nos países andinos (Venezuela, Bolívia, Ecuador), e também de energia hidroelétrica no Brasil e no Paraguai. “Embora possa haver um grande conflito empresarial entre a PDVSA e a Petrobrás, que competem pela hegemonia”, pondera Adhemar Mineiro.

de Curitiba (PR) A recente reunião da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), ocorrida nos dias 20 e 21 de setembro, apontou para um acordo de integração entre países latino-americanos, só que desta vez não no marco dos empresários, mas de povos, governos de oposição ao neoliberalismo e movimentos sociais. Nesta data, as delegações dos países que integram a Alba até o momento (Venezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua) desenvolveram projetos conjuntos em 18 setores, tais como educação, distribuição de água, farmacêutico meio-ambiente etc. No campo

produtivo, os projetos visam a produção de alimentos voltados para o mercado interno. Na reunião, realizada em Havana (Cuba), foram aprovadas declarações de apoio ao governo venezuelano como intermediário nas negociações entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo de Álvaro Uribe; outro apoio é dado no processo constituinte levado por Evo Morales, na Bolívia, e, finalmente, foi aprovada a solidariedade ao povo nicaragüense afetado pelo furacão Félix. Em outubro, será realizada uma reunião em Caracas (Venezuela) para acertar os detalhes da criação do Banco da Alba. (PC)


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américa latina

Che Guevara além do mito

Arte sobre foto de Alberto Korda

MEMÓRIA Pesquisador critica preconceito da esquerda sobre as idéias do revolucionário e o define como “Lenin latino-americano” Dafne Melo da Redação NÃO HÁ dúvidas de que a imagem de Che Guevara é uma das mais vivas no imaginário de qualquer militante de esquerda, sobretudo na América Latina. Entretanto, o pensamento de Ernesto Guevara de La Serna ainda é pouco estudado, se comparado com outros teóricos marxistas. “Ainda se pensa que Che era apenas um guerrilheiro e que não tinha nada a dizer sobre teorias marxistas e a criação de uma nova sociedade”, avalia o argentino Néstor Kohan, professor da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do pensamento do revolucionário. Kohan esteve presente no seminário internacional “América Latina e Caribe: história recente e desafios atuais”, que ocorreu dos dias 1 a 4 de outubro na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST). Em entrevista ao Brasil de Fato, Kohan fala sobre a atualidade do pensamento de Che. Brasil de Fato – Qual é a atualidade do pensamento de Che? Néstor Kohan – O pensamento de Che Guevara pode ser muito útil para a formação política e creio que é necessário aprofundar distintas dimensões de seu pensamento. O primeiro Che que se conhece é aquele que foi a Cuba, o guerrilheiro heróico, mas depois começou a se perceber que, além de guerrilheiro, especialista em problemas políticos militares, Che tinha também uma visão da sociedade e que havia estudado muitos temas marxistas. Participou, mais de uma vez, de grupos de estudo sistemáticos de O capital durante vários anos. Uma delas, em Cuba, em que compartilhou esse espaço com Fidel Castro. Sabe-se também que foi muito crítico da literatura oficial da União Soviética. O livro Che: el camino del fuego, de Orlando Borrego, companheiro de luta de Guevara, registra que ele tomou notas, criticando o manual de economia política da academia de ciências da União Soviética. Então, se segue descobrindo novas facetas de Che. Recentemente se descobriu uma série de cadernos escritos por ele na Bolívia. O que se conhece de quando ele estava lá é o Diário da Bolívia, mas há uma série de cadernos em que ele tomava notas de pensadores que ia escrevendo conforme lia. Então, parece-me que cada vez mais se vai conhecendo Che. Guevara pode ser muito útil para o debate atual. Pois tem uma visão revolucionaria da sociedade e, ao mesmo tempo, tem uma visão muito crítica do que se passou. Há muita gente de esquerda que reprova a figura de Che por ele fazer parte de um mundo anterior à queda de Berlim. Não é uma crítica válida porque ele criticava muito esse mundo, a URSS. No livro Notas crítica ao Manual Econômico Soviético, ele afirma, em 1965, ou seja, há 42 anos, que a União Soviética estava reorganizando o capitalismo. Essa crítica muito dura – não hoje, mas nessa época – mostra que Che era muito crítico ao estalinismo.

vem, Che estudou um filósofo importante na Argentina, Jose Ingenieros, que escreveu um livro chamado Las fuerzas morales, onde falava sobre o papel dos ideais na luta social, que não se faz apenas com economia, mas com projeto cultural também. E a leitura de Fidel e Che do marxismo engloba esse pensamento. Fidel representava o nacionalismo mais radical de Cuba, que a diferença de outros nacionalismos latino-americanos é democrático e anticapitalista e crítico da burguesia local e internacional. Já Che provinha de uma tradição marxista mais clássica, mas não me parece que existiu rupturas; claro que houve debates e discussões. Há pouco tempo, descobriram-se cartas inéditas de Che a Fidel, de quando ele estava no Congo. Numa delas, escreve: se eu morrer em alguma dessas terras, meus últimos pensamentos serão para você. Quando Che se vai de Cuba com disfarce, há fotos dele com Fidel, o que contradiz a idéia de que saiu de Cuba fugido. Creio que a ideologia capitalista tem tentado construir a imagem estereotipada do socialista. Lenin é o revolucionário violento; Che, o idealista; Fidel o pragmático, maquiavélico. Agora que está doente, ele é o bom e Raul Castro o mau.

Nas academias tradicionais, não se estuda o pensamento de Che. Muito pelo preconceito. Tanto da direita clássica, que o vê como terrorista, quanto de intelectuais de esquerda, que possuem uma postura eurocêntrica

Fotos: reprodução

Fala-se muito de supostas divergências entre Fidel e Che, e que diante de uma derrota ele teria optado por ir ao Congo e à Bolívia. Não acredito que existiam divergências de fundo, mas que tinham personalidades diferentes. Fidel me parece que tinha mais carisma como dirigente político, Che era mais sistemático nos estudos – não que Fidel não fosse – mas este se caracteriza até hoje pelos seus discursos, por ser um bom orador. Che era mais adepto da palavra escrita, tanto que em toda sua vida escreveu, seja na luta guerrilheira em Cuba, no Congo, ou quando estava clandestino em Praga. Ou apenas quando era mochileiro e fazia suas viagens. Então, são estilos distintos, mas creio que há total convergência em posições anticapitalistas, antiimperialistas, pela opção ao socialismo, não entendido apenas no seu sentido econômico, mas também como um projeto político e cultural, em que os valores humanos também são essenciais. Quando jo-

Como as idéias de Guevara podem ajudar ainda hoje no debate que se coloca em Cuba atualmente com o afastamento de Fidel Castro? Che alertava que se a correlação de

forças não te permite avançar, não há outro remédio senão fazer concessões. Quando Lenin estava muito debilitado, teve que fazer concessões. Che não simpatizava com isso, mas a explicava e entendia devido à debilidade de forças. Em Cuba, talvez tenha que ocorrer algo similar, tem que fazer concessões por uma necessidade econômica, apesar das ajudas da Venezuela. Mas Che alerta que ao mercado pode até se fazer concessões, mas nunca é o caminho estratégico para uma nova sociedade. Chávez cita Che Guevara recorrentemente. Como o pensamento de Che reflete no processo bolivariano? Creio que Chávez, por esse processo heterogêneo, pode aproveitar muito das idéias de Che conforme vai radicalizando o projeto bolivariano. Como a idéia de que, a cada reação da oposição, deve-se dar com uma resposta mais forte. Mas o pensamento de Che não é uma receita que pode ser aplicada em qualquer país, naturalmente. Você diz que Che Guevara é um Lenin latino-americano. Por quê? Porque me parece que, no século 20, o grande pensador das teorias anticapitalistas e antiimperialistas foi Lenin. Apesar de estar, hoje, muito mal tratado e esquecido na academia. Creio que foi o primeiro que universalizou o marxismo. Talvez ele tenha transformado o marxismo “de europeus brancos, loiros e de

A ideologia capitalista tem tentado construir a imagem do socialista estereotipada. Lenin é o revolucionário violento; Che, o idealista; Fidel o pragmático, maquiavélico olhos azuis”, em um marxismo que pode ser assimilado por povos indígenas, negros, asiáticos. Então, Lenin universaliza na medida que trazia uma concepção mais ampla de povo. Há um escrito autobiográfico de Ho Chi Min no qual ele diz que, quando leu Lenin pela primeira vez, começou a chorar, pois descobriu que o pensamento marxista poderia servir aos povos originários do terceiro mundo. O socialismo anterior a Lenin era um socialismo para europeus. Parece-me que Che prolonga essa universalização do marxismo de Lenin, e o pensa sob a ótica da América Latina. Por isso, digo que o pensamento o faz o Lenin da América Latina. Na Argentina, houve uma Cátedra Che Guevara, em 1997, onde de fato se tentou difundir e socializar o pensamento de Che, mas nas academias tradicionais não se estuda. Muito pelo preconceito. Tanto da direita clássica, que o vê como terrorista, quanto de intelectuais de esquerda, que possuem uma postura eurocêntrica e têm a mentalidade de que se o pensador marxista não vier de Paris ou de Londres, não vale a pena estudá-lo. E ainda se pensa que Che era apenas um guerrilheiro e que não tinha nada a dizer sobre teorias marxistas e a criação de uma nova sociedade. Mas tenho certeza de que os escritos de Che são muito úteis para entender a dependência da América Latina, as estratégias de luta, que no caso dele sempre está sempre enraizada na experiência dos povos.

Quem é Néstor Kohan é pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e coordenou a Cátedra Che Guevara, na Universidade Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM). Escreveu os livros: El capital: historia y método; Introducción al pensamiento marxista e Ernesto Che Guevara: el sujeto y el poder, não editados no Brasil.


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áfrica

Rebeldes atacam soldados de paz da União Africana em Darfur Gethin Chamberlain

SUDÃO Ataque à base de soldados de “missão de paz” foi o mais mortal em quatro anos de conflito; Nigéria é o país com mais casualidades da Redação Dez soldados mortos, outros dez feridos e cerca de 40 desaparecidos. Esse é o saldo do ataque mais mortal de rebeldes, em quatro anos e meio de conflito, contra uma base das tropas da União Africana em “missão de paz” em Darfur. A Nigéria, que conta com o maior número de soldados “mantenedores da paz” dentre os 7 mil que estão no Oeste do Sudão desde 2004, foi o país que mais teve casualidades nos combates da madrugada do dia 29 de setembro. Sete dos dez soldados mortos eram nigerianos – os outros eram de Mali, Botsuana e Senegal. Entre os 40 desaparecidos, 32 também possuem nacionalidade nigeriana. Acredita-se que por trás do ataque à base de Haskanita esteja uma ramificação de um dos dois principais grupos rebeldes que atuam em Darfur, o Movimento Justiça e Igualdade (JEM, da sigla em inglês) ou o Exército de Libertação Sudanês (SLA, da sigla em inglês). Mas líderes de ambos os grupos negam a autoria do ataque. Na semana passada, Khalil Ibrahim, líder do JEM, havia anunciado que seu grupo continuaria a luta em Darfur apesar de as negociações de paz estarem agendadas para se iniciar no dia 27 de outubro, na Líbia – sob o argumento de que as futuras conversas são mais um truque do governo.

Quanto

200 mil

Cerca de pessoas já morreram e 2,5 milhões tiveram de deixar suas casas em quatro anos e meio de conflito, segundo especialistas No dia 2, para preparar terreno para essa reunião, uma delegação de “ilustres”, incluindo o ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, e o bispo anglicano da África do Sul, Desmond Tutu, chegou em El-Fasher, em Darfur, pedindo paz. O governo do Sudão criticou os Estados Unidos e a União Européia por falharem na imposição de sanções aos grupos rebeldes. O ministro da Justiça Ali al-Mardi disse a Reuters que a comunidade internacional deveria ter punido os grupos que se recusaram a assinar tratados de paz com o governo. “Eu estou falando das grandes potências, em particular dos Estados Unidos e da União Européia”, disse.

Retirada Apesar do ataque, oficiais da sede da União Africana em Adis Abeba, na Etiópia, anunciaram que nenhum país africano que compõem o efetivo que está em Darfur tem planos de retirada de seus soldados do Sudão. Mas o presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, disse que seus soldados vão sair do país se for descoberto que aqueles que foram mortos no ataque não

Soldados do governo sudanês observam comboio da União Africana em Darfur

Para o próximo ano, é esperada a chegada de uma força conjunta de paz da União Africana com as Nações Unidas de 20 mil soldados e 6 mil policiais – o que virá a ser a maior operação de paz do mundo tinham equipamentos para se defender. Para o próximo ano, é esperada a chegada de uma força conjunta de paz da União Africana com as Nações Unidas (ONU) de 26 mil policiais e soldados – que virá a ser a maior operação de paz do mundo. Especialistas estimam que cerca de 200 mil pessoas já morreram no conflito e 2,5 milhões tiveram de

deixar suas casas – só este ano, de acordo com a ONU, os números chegam a 240 mil pessoas. Cartum contesta essas cifras, falando que, até o momento, o número de mortos não ultrapassa os 9 mil.

O ataque Soldados da União Africana disseram à agência Associated Press que cerca de mil rebeldes bem equipados ata-

caram a base de Haskanita de madrugada, surpreendendo os 157 soldados e o pessoal de apoio. Os soldados nigerianos tentaram conter a investida inicial. Depois, os rebeldes lançaram um segundo ataque, usando 30 veículos blindados e lança-granadas. A batalha durou até as 4 da madrugada quando as forças da União Africana ficaram sem munição.

O comandante da futura força híbrida de paz que será composta por soldados da ONU e da União Africana, general Martin Agwai, disse a BBC, direto de Haskanita, que acredita estar convencido de que os ataques foram realizados por um grupo dissidente da facção do Exército de Libertação Sudanês (SLA), conhecido como SLA United. Em 2006, apenas um grupo rebelde assinou um tratado de paz proposto pelo governo. Desde então, os rebeldes se espalharam em mais de 12 grupos rivais. (Com agências internacionais)


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cultura

MÚSICA Em projeto multimídia, Mara Aquino procura retratar 300 anos da história da música brasileira

Divulgação

Mara diz mistérios. Diz marxismo, rímel e gás Valter Campanato/ABr

Dafne Melo da Redação COMO CONDENSAR a diversidade de 300 anos de tradições musicais brasileiras? Esse foi o desafio assumido pela musicista e pesquisadora mineira Mara Aquino em “Cravos na janela – 300 anos de canção brasileira”. A obra consiste em um CD e um livro. No primeiro, intérpretes como Ná Ozzetti, e a própria Mara, dão vida a velhos clássicos brasileiros, ao mesmo tempo em que outras gravações registram cantos tradicionais de povos indígenas e africanos. No livro, entrevista com o pesquisador Nei Lopes e artigo assinado por Magno Córdova, mestre em História Cultural pela Universidade de Brasília, lançam outras reflexões sobre o caráter histórico e popular da música no Brasil. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por Mara Aquino ao Brasil de Fato.

Valter Campanato/ABr

Quais foram suas motivações para produzir “Cravos na janela”?

O que me move de fato é conhecer a mim mesma e o país em que vivo, e partilhar sempre esse processo com as pessoas em geral. E a visita aos velhos guardiões de matrizes de gêneros e tradições musicais, em suas residências, no final do processo de pesquisa, foi a chave de abrir com segurança essa janela retrospectiva da canção brasileira. Ao realizar uma vocação musical de infância – migrei do jornalismo, estreando profissionalmente no palco em 1992, quando estive radicada em São Paulo por 11 anos. Não queria cantar em meu primeiro repertório músicas de compositores contemporâneos conhecidos, mas aquelas que lembrava de memória da adolescência no Norte de Minas. Então fiz perguntas de repórter-cantora: como, quando, onde, com quem surgiu a canção brasileira? Para minha surpresa, nas primeiras leituras de Mário de Andrade, José Ramos Tinhorão, Sílvio Romero, Câmara Cascudo, livros de história do Brasil, dicionários, encartes, muita conversa com pesquisadores e minha mãe, Terezinha Cardoso, cantora de seresta mineira, além de procura objetiva por gravações de músicas tradicionais, vi que modinhas, lundu, valsa, seresta, cirandas, acalantos, bailados e outros ritmos que conhecia tinham a ver com a origem da canção no Brasil. Especialmente o lundu e a modinha, considerados gêneros fundadores da hoje conhecida MPB.

Mara Aquino folheia exemplar de seu livro; ao lado, grupos de samba de roda da Bahia

Quem é Mara Aquino é musicista e pesquisadora mineira e compositora desde a adolescência. Lançou em 2000 seu primeiro CD de canções próprias, “Búfalos no capim”.

Serviço Contato para palestras e para aquisição de “Cravos na janela”: (31) 3222-3242 (Casulo Cultura)

positores da geração da Época de Ouro. É a chamada linha evolutiva, que para mim tem sentido se pensarmos em movimento, impregnação e antropofagia mais do que evolução no tempo histórico. Esse período de 1929 a 1950, especialmente no Rio de Janeiro, representa uma síntese de fusões e tendências da canção popular do período colonial até então. Se tiver oportunidade, gostaria sim, de abrir uma segunda janela, de 1950 até hoje.

No livro, você cita Marku Ribas que diz “o pardo é um ser inexistente”. Se pensarmos que a canção brasileira é resultado do cruzamento de diversas culturas musicais, (ou seja, “o pardo”), como definir o que é música brasileira e o que não é?

O nome “Cravos na janela” tem um significado afetivo, de uma modinha romântica de minha autoria que veio num sonho em 1983. Acordei com ela, cantei o dia todo e anos depois a levei para o meu primeiro repertório e título do show, que evoluiu, e hoje é nome do projeto multimídia “Cravos na janela” – 300 anos de canção brasileira. Mas há um simbolismo profundo nessas flores musicais da memória e identidade do Brasil, nessa janela recortada da memória popular. A tradição está onde sempre esteve, no interior, litoral, floresta e capitais brasileiras, ou seja, é só nos interessarmos por ela e visitarmos com mais freqüência nossa ancestralidade multifacetada.

nante capacidade de expressão e identidade local.

Como você definiria a canção brasileira? Quais as heranças de indígenas, africanos?

Sei muito pouco ainda da música indígena. Como nossa proposta é mais panorâmica que vertical, mostramos especialmente os guarani e tupiniquim, por sua influência e contato com a música européia dos jesuítas. Mas há gêneros como cururu, catira ou cateretê e, em São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, gravei em vídeo o bambelô, uma variação do coco de zambê, que, segundo o mestre Sérvulo, é de origem indígena. Há muito o que ouvir, presenciar e estudar da cultura musical indígena. O acesso não é fácil, a burocracia junto à Funai é lenta e meio confusa. São ainda poucos os pesquisadores que fazem isso no Brasil e os registros fonográficos começam a surgir. Como a importante recolha e estudo da equipe da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), liderada por Rosângela de Tugny, sobre a música dos crenaque, um dos seis povos indígenas de Minas. O projeto “Memória Guarani”, criado e mediado por Maurício Fonseca junto ao povo guarani e tupiniquim do litoral e gran-

Reprodução

Por que esse nome?

Essa é uma pergunta crucial. No livro proponho uma reflexão poética e metafísica, mais do que etnomusical. Após essa conclusão espontânea de espanto do Marku – na gravação de Saudação a Exu e batuques do quilombo mineiro, Brejo dos Crioulos –, que diz “o diabo da mestiçagem é o pardo, o pardo é um ser inexistente”, cito a psicanalista discípula de Freud, Lou Salomé, que afirma que “a primeira experiência humana é uma desaparição, o ser desaparece do ventre materno para surgir na forma exterior”. É um pensamento pertinente à condição dos brasileiros, que segundo Darcy Ribeiro, “para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não-negros, eles se vêem forçados a criar a sua própria identidade: a brasileira”. Quem somos nós? Paradoxos à parte e em toda parte, a mestiçagem racial no país é nossa grandiosa matriz e essência, contaminando tudo que produzimos em pensamento, sentimento, comportamento, espiritualidade, cultura em geral e específica na música popular. O que a música brasileira não é? Ela não é música européia, não é música africana, não é música latina, estadunidense, árabe e oriental, é música com liberdade de impregnação estética global e impressio-

Na obra, você propõe um recorte temporal de 1650 até 1950. Por que não retratar os últimos 50 anos?

Porque percebi, cantando e refletindo com os pesquisadores estudados, que há uma unidade na diversidade do caldo musical brasileiro até os com-

Violeiros: reprodução de imagem de vídeo realizado durante pesquisas

de São Paulo, com pesquisa e direção musical dos próprios índios, o que é fundamental: que as próprias comunidades e guardiões em geral façam com autonomia registros fonográficos e documentais da sua tradição. Sobre a herança africana, ela é bem definida e de grande expressão na música popular brasileira. Registramos no “Cravos na janela” duas matrizes rítmicas do que os europeus chamaram de batuques: o coco de zambê do potiguar mestre Geraldo, e o batuque do quilombo norte-mineiro Brejo dos Crioulos. Os europeus nominavam os variados gêneros africanos de batuques, que são os pré-samba, como lundu, samba-de-roda, partido alto, jongo, coco, tambor de crioula, maracatu. Há também os subgêneros do samba moderno em geral, e o choro, que ao estilizar com tanto virtuosismo as canções européias, tornou-se um autêntico gênero brasileiro; o choro que se apropriou também do lundu, importante batuque de herança africana.

Como se deu a chegada das tradições européias e como foi feita essa assimilação? É possível traçar algum paralelo hoje com “invasão” da cultura estadunidense?

As “tradições européias” dos colonizadores vieram na música profano-religiosa católica, congada, autos populares, cortejo de pastorinhas, novenas, romances, chácaras e cantos-dança até o salão carioca da belle époque com o schottisches teuto-escocês, a polca da Boêmia ou a walz alemã e francesa, em modulações imprevistas e síncope temperamental de lundus, maxixes, tangos e mazurcas dos pioneiros do choro, Antônio Calado, Patápio Silva, Chiquinha Gonzaga, Anacleto e Pixinguinha. O choro brasileiro é forma bem sucedida de mestiçagem musical desde o maxixe, inicialmente surgido como dança das camadas populares do Rio de Janeiro, por volta de 1870, tropicalizando a polca dos salões da corte. Sem traçar paralelo com a invasão da cultura estadunidense do moderno capitalismo, observo apenas que desde a “boa vizinhança” do pós-guerra, essa é uma

última e marcante influência musical interativa, com a bossa nova impactando o povo estadunidense no mesmo nível cultural que o rock-in-roll da tropicália, festivais e bandas de 1970, a década pós-maxixe, em que minha geração se soltou. Talvez por isso nossa versão do samba “Não tem tradução”, de Noel Rosa para o disco, tenha soado bossanovística na leveza da interpretação, dialogando com a ironia do compositor sobre o colonialismo cultural brasileiro.

Como foi o processo de seleção das canções que você apresenta no CD? Qual foi o critério de escolha?

Fiquei muito feliz quando a produtora Danusa Carvalho, vendo o potencial coletivo do projeto, propôs que convidássemos vários intérpretes para o CD. Aderi imediatamente. Resultado: 49 músicos e intérpretes de variados temperamentos de gêneros e compositores. O critério mesmo foi pela qualidade musical, afeto e conteúdo histórico e social contido nas letras. Escolhi gêneros fundadores da canção popular brasileira. A música conta nossa história em instrumentos e cantos em louvor aos anscestrais indígenas, que protegem, folia do Divino Espírito Santo e ponto de saudação a Exu, coco, batuque, romance nordestino de tradição ibérica, modinha, ária do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, toada de Sinhô, choro, valsa, samba-choro e o samba “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa. Não tem tradução mesmo o sentimento de mundo nessa transversal civilizatória, a via brasilis expressa em crônicas musicais de ritmado fôlego, repertório particular da formação do povo brasileiro. E, para finalizar esse produto, já estamos captando recurso para o vídeo-documentário que trata dos repertórios dos brasileiros, expandindo, em outra narrativa e suporte, essa prosa bem mineira sobre a canção do Brasil. NE: O título desta matéria, de responsabilidade do editor desta página, parafraseia dois versos do poema “Fulana”, de Carlos Drummond de Andrade


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