Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 5 • Número 242
São Paulo, de 18 a 24 de outubro de 2007
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Daniel Cassol
Elite do Rio Grande do Sul ataca sem-terra Há um mês, cerca de 1,7 mil sem-terra marcham, em três colunas, pelo Rio Grande do Sul até a fazenda Coqueiros, latifúndio de quase 9 mil hectares que emprega só 20 pessoas. Os trabalhadores, porém, sofrem com a arbitrariedade de juízes locais, como a magistrada que proibiu a entrada dos militantes no município que abriga a fazenda. Pág. 3
Governo Lula “vende” sete estradas Em todo o país existem quase 12 mil quilômetros de estradas concedidas ao capital privado. Em vez de reduzir gastos financeiros e utilizar o orçamento da Cide, tributo criado para a melhoria das estradas, o governo federal decidiu leiloar sete rodovias e fomentar as concessionárias com financiamento do BNDES. Pág. 5
No Rio Grande do Sul, 1,7 mil sem-terra marcham há um mês em direção a Coqueiros do Sul; em Cruz Alta, Justiça proibiu a participação dos sem-terrinha na mobilização
Vale e EBX pressionam Congresso para privatizar o urânio brasileiro Mineradoras e investidores estrangeiros estão fazendo lobby no Congresso para ver se conseguem derrubar o monopólio estatal de exploração do urânio (base para geração de energia e armas nucleares). Desde 2004, o preço da libra do minério no mercado internacional subiu de 12 para 90 dólares, despertando a cobiça de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce e a holding EBX. Na imprensa corporativa, o presidente da CVRD, Roger Agnelli, explicitou que “onde houver potencial de urânio, a gente vai buscar”. Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, como os engenheiros Luiz Pinguelli Rosa e Bautista Vidal, criticam a possibilidade de o Estado entregar à iniciativa privada um recurso natural estratégico para a soberania nacional. Pág. 7
Presidência da República do Equador
Alexandre de Oliveira Saconi
As guerras e o espetáculo da informação Rafael Correa determina que 99% do lucro excedente do petróleo fique com o Estado equatoriano
No Equador, petrolíferas ficarão só com 1% dos lucros excedentes O presidente Rafael Correa determinou que o Estado deverá arrecadar 99% do lucro excedente obtido com a produção do petróleo. Antes, o percentual era dividido igualmente: 50%
para o Estado; 50% para a empresa. O presidente do Equador – quinto maior produtor de petróleo cru da América do Sul – segue os passos dos presidentes da Bolívia e da Venezuela,
que usam receitas obtidas com recursos naturais para financiar suas gestões populares. O decreto, além da Petrobras, atinge empresas da Espanha, França, China e EUA. Pág. 9 Divulgação
Militares Marcha contra criticam anistia a reforma da a Lamarca Previdência A Justiça Federal suspendeu os efeitos da portaria de anistia, que pagaria R$ 902 mil à família do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca pela promoção post-mortem do comunista à patente de coronel do Exército. A alegação é de que Lamarca não poderia ser beneficiado pela lei de anistia porque desertou do Exército para lutar contra o regime militar. Para defensores de direitos humanos, a indenização é legítima e a liminar reflete um espírito revanchista dos militares. Pág. 8
A Conlutas e a Intersindical convocaram para o dia 24 uma marcha em Brasília (DF). O objetivo é cobrar do governo Lula as questões abordadas no plebiscito popular pela anulação do leilão da Companhia Vale do Rio Doce. Mauro Puerro, da Conlutas, conta que um peso maior será dado à questão da reforma da Previdência, “a bola da vez” entre as propostas neoliberais e privatizantes. Participam também movimentos de moradia, estudantil e pastorais sociais. Pág. 7
CULTURA BRASILEIRA
mamulengueiros
preservam a arte popular
Pág. 12
A espetacularização da informação na guerra. Essa é a tônica da entrevista do jornalista português Carlos Fino. Conhecido mundialmente por ser o primeiro a noticiar o início da Guerra do Iraque em abril de 2003, quando era correspondente da Rede de Televisão Portuguesa, deu o “furo” jornalístico antes mesmo da rede estadunidense CNN. Pág. 11
Transnacionais avançam sobre milho do Brasil O processo de oligopolização do mercado de milho acelerou-se nos últimos meses. Em agosto, a Agromen, que detinha 10% da produção brasileira, foi adquirida pela Dow. No mês seguinte, a Monsanto comprou a Agroeste. Uma das razões é a elevação do preço do milho decorrente da produção de etanol. O outro motivo é a liberação no Brasil de três espécies transgênicas do cereal, apenas neste ano. Pág. 4
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editorial UM NOVO avanço da agenda neoliberal. Esse é o significado da privatização de sete trechos de rodovias federais, efetuada no dia 9. Cerca de 12 mil quilômetros de estradas foram entregues a grupos privados. Só a transnacional espanhola OHL ficou com cinco rodovias; a sua conterrânea Acciona comprou uma; e a BRVias, única empresa brasileira, adquiriu outra. Os grupos privados foram contemplados com o direito de explorar 36 postos de pedágio em vias importantes como a Fernão Dias – que liga São Paulo a Belo Horizonte – e a Régis Bittencourt – São Paulo a Curitiba. Ao ser informado sobre o desfecho do leilão pela ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), o presidente considerou o resultado “espetacular”. Resta perguntar a Lula – para quem esse resultado foi “espetacular”? As empresas, sabemos, saíram satisfeitas. Pagaram pelas rodovias menos do que vão receber em lucros durante 25 anos controlando pedágios. É a simples lógica capitalista, com a questão particular de que, aqui, não há competição nem disputa de mer-
debate
O “espetáculo” da privatização O Estado se colocando como um financiador e garantidor dos negócios privados. Um eficiente gestor dos projetos capitalistas cado: pedágio em rodovia é receita garantida. Já o povo vai pagar tanto pelo investimento a ser feito nas rodovias quanto pelo enriquecimento dos acionistas neste quarto de século. O desfecho no processo de privatização de rodovias federais, iniciado há dez anos pelo governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, evidencia como a gestão petista vem assumindo a agenda neoliberal. Contraria até mesmo o discurso de Lula que, em meio à campanha pela sua reeleição em 2006, condenou as privatizações. E por que o seu governo pode dilapidar o patrimônio público? O debate dos projetos está rebaixado a tal ponto que o “enfrentamento” entre o governo Lula e seus críticos tucanos se restringe apenas a discutir quem é o melhor
gerente. O governo petista garantiu um preço nos pedágios mais barato – negociou valores de até R$ 0,02 centavos por quilômetro para as rodovias federais. Nas rodovias privatizadas de São Paulo pelo governo tucano, os usuários pagam até R$ 0,12 centavos por quilômetro rodado. A questão, no entanto, é bem mais ampla. A privatização das rodovias, em ambos os modelos, segue o padrão de dilapidação do patrimônio público para benefício de alguns grupos privados. A manutenção e a qualidade das rodovias, nessa perspectiva, é o que menos importa. Caso esse fosse, sim, a real intenção dos governos, caberia a pergunta: por que os recursos da Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (Cide) são desviados de sua fina-
lidade? Segundo o que determina a Constituição, o governo deveria utilizar parte da verba arrecada por esse imposto para investir em melhorias nas rodovias. Ou seja, o povo brasileiro já paga pelo investimento nas estradas. No entanto, o governo desvia esse dinheiro – a maior parte para pagar os juros da dívida pública aos banqueiros – e as rodovias ficam abandonadas. Não é pouca monta. Só em 2006, a Cide arrecadou R$ 7,8 bilhões para os cofres públicos. Enquanto o governo vende as estradas com o descabido argumento de que não tem verba para fazer investimentos, a Procuradoria Geral da República pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) que proíba o mesmo governo de desviar os recursos da Cide. Mas, como disse Lula, o resultado
crônica
Vito Giannotti
De acordo com o filme “Tropa de elite”, “favelado bom é favelado morto” “HOMENS DE preto, qual é sua missão? É entrar na favela e deixar corpo no chão”. Começo este artigo copiando a abertura de outros dois artigos dos que mais gostei no mar de análises sobre o filme “Tropa de elite”. Cláudia Santiago e Ivan Pinheiro iniciam seus textos reproduzindo o refrão cantado pelo Bope nos seus treinamentos. É nele, exatamente, que está a linha geral do filme que, independentemente das intenções do produtor e dos atores, é um hino ao Bope (Batalhão de Operações Especiais que atua nas favelas do Rio). Nesse refrão, está a mensagem central do filme. Discute-se muito se o filme é de direita, se é fascista ou nazista. Para mim, ele contribui para consolidar, entre a população, a idéia de legitimidade das ações policiais que exterminam pobres e moradores de favelas no Rio de Janeiro. E faz isso no momento em que militantes de direitos humanos travam, na cidade, uma luta para pôr fim a essa violência. Fruto dessa batalha, inclusive, foi criada a Rede Nacional de Jornalistas Populares que, em seu lançamento, contou com a presença da mãe de uma das vítimas da violência policial. Ou seja, independentemente da vontade de seus executores, o filme serve muito bem às idéias que a direita semeou: todo pobre é perigoso, é ladrão, é bandido. Todos. Basta ser pobre, de preferência negro, para ser, no mínimo, suspeito. Se a missão do Bope é “entrar na favela e deixar corpo no chão”, a mensagem que o filme passa é de que na favela só tem criminoso, assassino, traficante a ser deixado no chão. Essa é a primeira, a segunda, a terceira, a quarta idéia do filme. É a idéia mais nociva. Ivan Pinheiro, ao final do seu artigo, propõe uma interpretação, com a qual estou de acordo, sobre o resultado ideológico-político do filme: “Em qualquer país em que “Tropa de elite” passar, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, o filme estará contribuindo para que a sociedade se torne mais fascista e mais intolerante com os negros, os imigrantes de países periféricos e delinqüentes de baixa renda”.
Um festival de idéias de direita Há um hábito, no Brasil, de quase ninguém se assumir como de direita. Hoje, esse costume se reforça com a balela de que direita e esquerda não existem mais. Acabou tudo. O filme nos mostra que, ao contrário, a diferença entre direita e esquerda está mais viva do que nunca. “Tropa de elite” não só apresenta, por meio da narrativa da filosofia do Bope, um grande quadro de idéias de direita, mas também as mostra de maneira simpática, dinâmica e as justifica. O público, obviamente, se comove com o policial com síndrome de pânico, embora este seja torturador de homens, crianças e mulheres e assassino. E se encanta com aquele que reconhece a miopia do menino. Se é tão bom, é possível compreendê-lo quando se transforma, devido à perda do amigo que queria ajudá-lo, em assassino e torturador. Então, justifica a barbaridade dos homens de preto que têm como missão “entrar na favela e deixar corpo no chão”. Ou seja, não interessa se de propósito ou não, o filme faz campanha e reforça, no co-
Se a missão do Bope é “entrar na favela e deixar corpo no chão”, a mensagem que o filme passa é de que na favela só tem criminoso, assassino, traficante a ser deixado no chão ração e na mente de milhões, idéias contra as quais a esquerda se bate há séculos. No artigo de Cláudia Santiago existe um roteiro de algumas das idéias altamente nocivas do filme. Ela afirma: “Os membros do Bope são mostrados como heróis incorruptíveis, dispostos a combater o crime a qualquer custo, mesmo que esse custo seja ‘esculachar moradores’, condenar sem julgamento, torturar crianças e companheiras de traficantes e matar”. Para ela, a prática da tortura, da pena de morte aplicada de maneira informal e a ridicularização da luta pelos direitos humanos são algumas das várias lições de direita que o filme dá aos espectadores. A culpa do tráfico jogada em jovens estudantes “maconheiros”, sem procurar os grandes responsáveis pelo tráfico que não querem que ele acabe, é outro ponto forte do filme.
Extermínio dos moradores O filme faz sucesso por dois motivos: - Trata do tema que mais preocupa a sociedade brasileira: a violência e a segurança. - Retrata e reproduz as idéias dominantes da sociedade sobre a favela, os pobres, os negros, ideologia espalhada pelos quatro Cavaleiros do Apocalipse da comunicação de direita nacional: Folha de S. Paulo, Estadão, Globo e Veja. A capa dessa revista, no seu número 2.030, do dia 17, não deixa dúvidas sobre o caráter do filme. A manchete é “Pegou geral”. Em seguida, Veja nos esclarece com a seguinte legenda: “O filme ‘Tropa de elite” é o maior sucesso de nossa história porque trata bandido como bandido e mostra usuário de droga como sócio dos traficantes”. Essa mensagem, que tanto agrada à revista, não é novidade. Não foi o José Padilha quem as inventou. Sempre se falou que “Bandido bom é bandido morto”. Sempre, entre a classe dominante, desde o tempo da casa-grande e da senzala, existiu o pavor-pânico das “classes perigosas”, isto é, dos pobres. Sempre se confundiu pobre com criminoso. São idéias que têm origem na tradição secular de uma sociedade escravocrata dividida entre a casa-grande e a senzala. O que o filme faz é simplesmente reforçar toda essa ideologia.
Há várias falas e imagens, ao longo do filme que consagram a idéia de que a favela é lugar de bandido: “O farda preta entra na favela para matar”, se ouve lá pelas tantas. Sim, matar. Matar quem? Lógico, aqueles bandidos favelados.
A raiz da guerra do tráfico Desde as primeiras cenas aparece a tal “guerra”. Guerra de quem contra quem? A quem interessa essa guerra? Por que não se acaba com ela? A única solução que o filme aponta é o extermínio. De quem? Dos generais dessa guerra? Não. Não há chefões, não há gente interessada em não acabar com essa guerra. Ela existe e ponto final. Quem disse que essa guerra precisa existir? Não há outras hipóteses? Não há a possibilidade de as “drogas serem vendidas em drogarias”? Não há a possibilidade, por meio da liberação, de acabar com o tráfico e com essa guerra? Há muita gente que acha que assim diminuiria o uso de drogas. Já se tentou imaginar uma sociedade sem tráfico... sem corrupção policial, sem armas contrabandeadas, sem propinas para advogados e juízes? E, sem tráfico de drogas, como ficaria a lavagem de dinheiro praticada por muitas empresas? Outra pergunta: o tráfico é coordenado por quem? Será que os chefes do exército do tráfico são aqueles garotos de olhos esbugalhados que ficam lá no alto dos morros dando tiros sem saber em quem e pra quê? O filme não fala nada sobre essa parte da realidade. Então, não venham me dizer que o filme refletiu a realidade. Não. Refletiu a parte da realidade que queria ver. A outra foi deixada no escuro e não vai ser vista por quem o assistir. A imagem que fica é a do morador de favela, traficante. Esse tem que morrer, porque os heróis que o filme apresenta para nossa sociedade idolatrar, os Bope, vestidos de preto, continuam cantando que sua “missão é entrar na favela e deixar corpo no chão”. Corpo de pobre, evidentemente. Não daqueles que vivem da guerra dos meninos do tráfico contra os homens de preto, que rende bilhões de dólares anuais para os verdadeiros chefões do tráfico. Vito Giannotti é coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação
foi “espetacular”. É o que devem ter dito os acionistas da transnacional espanhola OHL. Simplesmente porque 70% dos gastos da empresa em manutenção e conservação dos cinco trechos arrematados no leilão serão financiados pelo BNDES. Dinheiro público. É verdade que o governo Lula preconiza um Estado forte. Mas a pergunta é: um Estado forte para quem? A privatização das rodovias e o investimento financiado pelo banco público repetem a lógica das Parcerias Público Privada (PPPs), defendidas tanto pelo PT quanto pelo PSDB. O Estado se colocando como um financiador e garantidor dos negócios privados. Um eficiente gestor dos projetos capitalistas. E a privatização das rodovias é apenas o começo; a lista inclui grandes obras de infra-estrutura, como as usinas hidrelétricas do rio Madeira e a transposição do rio São Francisco. Para quem duvida, é só pegar o próprio cronograma do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que registra: até dezembro de 2008, serão oferecidos ao setor privado negócios de R$ 30 bilhões.
Leonardo Boff
O Semi-Árido: o mais chuvoso do planeta O ROMANCISTA Graciliano Ramos, o pintor Di Cavalcanti e o cantor-sanfoneiro Luis Gonzaga nos acostumaram a associar o Semi-Árido nordestino à seca. Mas se trata de uma visão curta e parcial. Os últimos anos conheceram notável mudança de leitura. Estudos minuciosos e trabalhos consistentes suscitaram uma visão revolucionária. Fala-se menos de seca e mais do Semi-Árido com o qual se deve conviver criativamente. Nessa tarefa ganham relevância ONGs, comunidades eclesiais de base, a Articulação do Semi-Árido (ASA) que inclui 800 entidades ao redor do projeto “um milhão de cisternas” (já se construíram 200 mil) e o Movimento de Organização Comunitária (MOC) de Feira de Santana (BA), que atua em 50 minicípios. O melhor apanhado desse processo práticoteórico nos é oferecido pelo exímio conhecedor da bacia do São Francisco, Roberto Malvezzi, com seu livro “Semi-Árido: uma visão holística” (Pensar o Brasil 2007). O eixo central é entender o Semi-Árido como bioma e a estratégia consiste na convivência não com a seca, mas com o Semi-Árido. Tal bioma, chamado caatinga, recobre uma área de 1.037.000 km quadrados com rica biodiversidade. Na época da seca quase tudo hiberna. Mas basta chover, de setembro a março, para, em alguns dias, tudo ressuscita com um verdor deslumbrante. Não há falta de água. Como média caem 750 mm/ano. É o Semi-Árido mais chuvoso do planeta. Mas pelo fato de o solo ser cristalino (70%), impedindo a penetração da água, acrescentando-se ainda a evaporação por insolação, perdem-se anualmente cerca de 720 bilhões de litros de água. Recoletada, seria mais que suficiente para toda a região.
De fato, o ser humano não nasceu para passar fome, mas para irradiar, como diz um de nossos poetas-cantadores A estratégia da convivência com o Semi-Árido “visa focar a vida nas condições socioambientais da região, em seus limites e potencialidades, pressupondo novas formas de aprender e lidar com esse ambiente para alcançar e transformar todos os setores da vida”. Com efeito, os vários grupos que por lá atuam, utilizam o método Paulo Freire que consiste, fundamentalmente, em criar sujeitos ativos, autônomos e inventivos. Assim aprendem a aproveitar todos os recursos que a caatinga oferece, utilizando tecnologias sociais de fácil manejo com o propósito de garantir a segurança alimentar, nutricional e hídrica por meio da agricultura familiar e de pequenas cooperativas. Entre muitos, três projetos são notáveis: o da construção de um milhão de cisternas de bica que recolhem água da chuva dos telhados, conduzindo-a diretamente para o reservatório de 16.000 litros hermeticamente fechado. O outro é “uma terra e duas águas” (o “1+2”): visa garantir a cada família uma área de terra suficiente para viver com decência, uma cisterna para abastecimento humano e outra para a produção. Por fim, o Atlas do Nordeste, proposta da Agência Nacional de Águas para beneficiar 34 milhões de nordestinos do meio urbano, custando a metade da transposição. Esse projeto se opõe à transposição, qualificada como “a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio”. Os referidos projetos, se implementados, custarão muito menos, atenderão a mais gente e não causarão impactos ambientais. Por fim, cito duas outras iniciativas do MOC: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), oferecendo educação contextualizada às crianças, e o Baú da Leitura. São baús cheios de livros que percorrem as comunidades entretendo as pessoas com leituras, interpretações e teatralizações, fazendo o povo pensar. De fato, o ser humano não nasceu para passar fome, mas para irradiar, como diz um de nossos poetas-cantadores. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo FIlho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
Sem-terra prosseguem marcha por fazenda Coqueiros, no RS REFORMA AGRÁRIA Apesar de interdito proibitório imposto pela Justiça de Carazinho, MST prossegue marcha pelo Estado Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) NEM A FORTE chuva que tem assolado o Rio Grande do Sul conseguiu desanimar os 1,7 mil sem-terra que marcham há um mês no Estado. Muito menos a Justiça de Carazinho que impetrou uma ação de interdito proibitório na Comarca, que abrange o município de Coqueiros do Sul, impedindo que os sem-terra entrem na cidade onde fica a Fazenda Guerra – destino final das três marchas. No dia 16, data de fechamento desta edição, uma coluna com 600 pessoas estava em Passo Fundo; uma outra com 500 estava em Ibirubá; e a última com 600 estava em Palmeira das Missões. A expectativa é de que as três marchas se unam no final do mês. No próximo dia 25, os sem-terra participam de audiência com ministros em Passo Fundo para garantir que a chegada da marcha em Coqueiros do Sul ocorra sem violência. Desde o dia 11 de setembro, trabalhadores e trabalhadoras rurais partiram de três regiões gaúchas diferentes em direção à Fazenda Coqueiros, no município de Coqueiros do Sul, na região Norte. Eles reivindicam a desapropriação da área de pouco mais de 9 mil hectares por interesse social. No local, em que hoje trabalham até 20 pessoas, poderiam ser assentadas cerca de 460 famílias sem-terra.
Os sem-terra reivindicam a desapropriação da Fazenda Coqueiros, no município de Coqueiros do Sul. Na área, de 9 mil hectares, em que hoje trabalham até 20 pessoas, poderiam ser assentadas cerca de 460 famílias sem-terra “Justiça” Nas últimas duas semanas de marcha, nas grandes cidades pelas quais as colunas da marcha passam, geralmente alguma suposta denúncia contra o MST é julgada pela Justiça. A decisão que provocou mais polêmica foi a da juíza Marlene Marlei de Souza, da 2ª Vara Cível de Carazinho, que proibiu a entrada de sem-terra e ruralistas na Comarca, que abrange o município de Coqueiros do Sul, onde fica a Fazenda Guerra. Apesar do argumento de que a decisão visa evitar um confronto entre as duas partes, lideranças sem-terra enxergam a medida tomada para impedir o MST de chegar à Fazenda Coqueiros. “É claro que a medida tomada pela juíza é para impedir que os sem-terra cheguem a Coqueiros do Sul. Afinal, é difícil identificar os ruralistas, diferentemente dos sem-terra, que possuem bandeiras e atuam organizadamente. Além disso, quem terá coragem de não deixar algum ruralista entrar na cidade?”, indaga Cedenir de Oliveira, da direção estadual do MST. Crianças As crianças também são alvo da tentativa de atrapalhar a marcha. A juíza Jocelaine Teixeira, da 1ª Vara Cível de Cruz Alta, emitiu uma decisão em que proibia as crianças sem-terra de estarem na marcha. Depois, em uma reunião de conciliação com o MST, foi decidido que as crianças poderiam seguir até a cidade vizinha, Ibirubá, mas não poderiam sair do município em direção à Coqueiros do Sul. A juíza considera que sair de Ibirubá e se aproximar da
Daniel Cassol
Fazenda Coqueiros representa perigo para os pequenos, o que é duramente criticado pelos sem-terra. “Os pais rechaçaram a proposta porque eles têm o pátrio poder, o direito de levarem seus filhos junto de si para onde quiserem. Além disso, essas denúncias de que as crianças são maltratadas no MST são falsas. Elas têm comida e roupa; também estudam durante a marcha, já que as escolas itinerantes acompanham as três colunas. O sofrimento delas se deve ao fato de não terem onde morar, porque o governo não faz a reforma agrária. O perigo da violência é gerada pelos ruralistas, pela Brigada Militar, que agem com repressão contra o movimento”, critica Irma Ostroski, da direção estadual do MST.
Passo Fundo Em Passo Fundo, na região do Planalto, uma entidade de classe entrou no Ministério Público com requerimento para que o MST deixasse a cidade, alegando possibilidade de conflito na região. Em resposta, cerca de 30 organizações, sindicatos, entidades, movimentos sociais e advogados estiveram com os Ministérios Públicos Estadual e Federal na semana passada, reivindicando a permanência dos sem-terra. Em nota, as entidades avaliam que “é direito do MST, como de qualquer organização social ou cidadão, poder ir, vir, permanecer ou sair de qualquer local, de se manifestar na sociedade e reivindicar por seus direitos”. Para Milton Viário, presidente da Federação dos Metalúrgicos do RS, a marcha do MST cumpre o seu papel de movimento social. “A marcha do MST mostra à sociedade gaúcha que há pessoas que ainda acreditam em mudanças e em um desenvolvimento econômico e social sem ser baseado nas transnacionais ou no sistema do agronegócio”, diz. Retaliações Por todo o caminho percorrido, os sem-terra receberam críticas e apoios. As críticas são geradas principalmente por ruralistas e os setores conservadores do interior, que encontram respaldo, muitas vezes, em prefeituras de direita e nas ações truculentas da Brigada Militar. A violência psicológica e a coação também são utilizadas para amedrontar os sem-terra e as comunidades interioranas. “Um dia antes de chegarmos em São Sepé, perto de Santa Maria, fomos conversar com as direções das escolas públicas para confirmarmos as palestras que iríamos realizar com os jovens. A maioria dos diretores voltou atrás e negou o espaço que tinham confirmado anteriormente com o MST. E isso aconteceu em outros lugares. Mesmo que não exista uma decisão pública da Secretaria Estadual da Educação em não ceder espaço ao MST, é certo que coordenadores regionais ou políticos locais pressionaram os professores”, relata Irma Ostroski. No entanto, a população em geral, comunidades religiosas e sindicatos e entidades têm se mostrado apoiadoras da luta pela desapropriação da Fazenda Coqueiros. Em alguns casos, como o ocorrido em Júlio de Castilhos, na região central do Estado, a população discorda até mesmo do prefeito. “Na semana passada chegamos em Júlio de Castilhos e o prefeito não quis ceder espaço para que as famílias montassem um acampamento na cidade. Fomos para as rádios do município denunciar a situação e uma comunidade da cidade nos cedeu o campo de futebol para que pudéssemos acampar”, conta Márcio da Silva, integrante da marcha que saiu da região Sul. Doações de roupas e alimentos, assim como convites para palestras, também são comuns nas cidades em que as três colunas passam.
Manifestantes tentam manter a terra, que já foi de Sepé Tiaraju e dos indígenas, nas mãos do povo
Cobertura da mídia é tendenciosa de Porto Alegre (RS) Com raras exceções, a cobertura da marcha pela mídia convencional não deixa de criminalizar o MST e as suas lutas. A marcha e a desapropriação da Fazenda Coqueiros são tratadas como fatos isolados, sem fazer referência à lentidão da reforma agrária no Rio Grande do Sul. Em casos específicos, como o do jornal Zero Hora, do grupo RBS, o MST não somente é criminalizado, como suas idéias de reforma agrária são consideradas ultrapassadas e de “uma esquerda que se perdeu no tempo”. O jornal se limita a fazer análises políticas por meio de um conhecido jornalista, que acompanha o MST desde a sua formação no Rio Grande do Sul. Na última matéria de peso escrita por ele, no final de semana do dia 6 de outubro, o jornalista afirma que as marchas já são vitoriosas porque acabam com os “rachas políticos internos que ameaçavam reduzir os sem-terra do Rio Grande do Sul a um grupelho”.
O jornalista também avalia que os confrontos do MST com os ruralistas e com a Brigada Militar no Estado serviram para que as lideranças gaúchas se tornassem respeitadas em todo o país, transformandose “em lobistas do MST nos grandes centros, como Brasília. Os que voltaram, se encastelaram na direção do movimento e não permitiram a alternância de poder”, critica ele. Já o grupo Caldas Júnior, comprado recentemente pela Rede Record, da Igreja Universal, encontrou no MST uma chance para angariar a audiência da RBS TV. Os sem-terra não se pronunciam e nem concedem entrevistas à RBS há três anos, como forma de protesto pela criminalização que a empresa imprime sobre o movimento. O novo dono do jornal Correio do Povo e da Rádio e TV Guaíba tem acompanhado todas as atividades da marcha, mas sempre deixando claro em seus editoriais que os propósitos do MST são ultrapassados. As críticas dos sem-terra em relação ao agronegócio mal são citadas nas matérias. (RC)
A Reforma Agrária no Rio Grande do Sul Atualmente, existem 2,5 mil famílias acampadas no RS. Algumas há mais de 5 anos. Nesse mesmo período, apenas 800 famílias foram assentadas, um número menor do que o período da ditadura militar. O governo Lula não atingiu as metas de assentamento em nenhum dos quatro anos do primeiro mandato de governo. Já o governo estadual não assenta uma única família sem-terra desde 2003, início do governo de Germano Rigotto (PMDB). Ao mesmo tempo, os assentamentos comprovam o desenvolvimento das regiões. Na antiga Fazenda Annoni, que abriga um grande assentamento do MST na mesma região da Fazenda Coqueiros, as famílias produzem, por safra, cerca de 20 mil sacas de trigo, 6 milhões de litros de leite, 150 mil sacas de soja, 35 mil sacas de milho, 45 toneladas de frutas, 800 cabeças de gado, 5 mil cabeças de suínos e 10 mil quilos de hortaliças.
Daniel Cassol
A marcha do MST Cerca de 1,7 mil integrantes do MST marcham desde o dia 11 de setembro no Rio Grande do Sul. Três grupos saíram das regiões Sul, Norte e Grande Porto Alegre em direção à Fazenda Coqueiros, no Norte do Estado. As famílias reivindicam a desapropriação da área por interesse social. A fazenda, que tem pouco mais de 9 mil hectares, ocupa 30% do município de Coqueiros do Sul e emprega 20 pessoas. As caminhadas das três colunas da marcha: Região Metropolitana A coluna com 600 pessoas partiu da cidade de Nova Santa Rita no dia 12 de setembro em direção a Porto Alegre, onde ocupou a Superintendência Regional do Incra. Depois, seguiu para Canoas, São Leopoldo, Campo Bom, Sapiranga e Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. No caminho para Soledade, os sem-terra liberaram, por três horas, as cancelas do pedágio de Marques de Souza, o mais caro do RS. Seguiram ainda para Tio Hugo e Ernestina. No fechamento desta edição, as famílias estavam em Passo Fundo, município vizinho a Coqueiros do Sul.
Região Norte Cerca de 600 pessoas partiram de Bossoroca, na região das Missões, no dia 11 de setembro. As famílias já passaram por Santo Ângelo, São Borja, São Luiz Gonzaga, Condor e Ijuí. No fechamento desta edição, estavam em Palmeira das Missões.
Batalhão de Choque da Brigada Militar bloqueia marcha
Região Sul 500 integrantes do MST fecharam, no dia 11 de setembro, a entrada do horto florestal da empresa Votorantim Celulose, em Capão do Leão, para protestar contra o avanço do setor da celulose na região. Depois, as fa-
mílias seguiram para Pelotas, Bagé, São Sepé, Santa Maria, Júlio de Castilhos, Cruz Alta e Ibirubá. No fechamento desta edição, estavam se encaminhando para Selbach. Essa coluna foi a que recebeu mais agressões por parte dos ruralistas.
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brasil Divulgação
Transnacionais controlam o milho brasileiro OLIGOPÓLIO Liberação de três espécies transgênicas apenas neste ano acelera processo de aquisições; quatro corporações dominam mais de 80% do mercado Rui Kureda de São Paulo (SP) OS RECENTES noticiários da mídia corporativa dão a idéia de que a produção de milho no Brasil vive um momento de euforia. É verdade que estamos testemunhando um momento inusitado. Afinal, nunca se exportou tanto milho. As previsões apontam para um aumento da área plantada para 2008. E, segundo as análises de portavozes do agronegócio, as expectativas são de que o país se torne o principal exportador mundial do grão. Por outro lado, o quadro nunca esteve tão sombrio para a agricultura familiar e a soberania alimentar. Há muito tempo, as grandes corporações transnacionais têm investido para ampliar seu controle sobre o conjunto da cadeia alimentar em escala global. E, nessa estratégia, a indústria de sementes ocupa um lugar de destaque por ser um elo chave dessa cadeia. Grandes corporações têm adotado uma política agressiva de aquisição de empresas produtoras de sementes em todos os continentes, configurando um processo de crescente oligopolização do setor. Um exemplo é a Monsanto que, segundo um relatório de 2005 do Grupo ETC, controla 41% do comércio global de sementes de milho. No Brasil, a realidade não é diferente. Desde os anos de 1990, as transnacionais vêm aumentando cada vez mais a sua participação no mercado de sementes. Logo após a aprovação da Lei de Proteção aos Cultivares, em 1997, 22 empresas de sementes foram adquiridas por essas companhias. E a indústria do milho,
em particular, tem sido um dos alvos preferenciais dessa ofensiva, apresentando uma clara situação de oligopólio.
100 milhões de dólares Nos últimos meses, o anúncio de duas grandes transações aprofundou ainda mais essa situação. Em agosto, a Agromen, que detinha 10% do mercado brasileiro de sementes de milho, foi comprada pela Dow Agroscience. No mês seguinte, a também estadunidense Monsanto anunciou a compra da divisão de sementes de milho da Agroeste. Estima-se que tanto a Dow quanto a Monsanto tenham desembolsado algo em torno de 100 milhões de dólares cada uma.
O programa estadunidense de produção de etanol a partir do milho tem provocado um efeito devastador, gerando uma grande diminuição na oferta do grão e o seu conseqüente encarecimento Com a aquisição da Agromen, a participação da Dow no mercado de sementes de milho passou a cerca de 20%. Já a Monsanto ampliou para 30% a sua participação, aproximando-se da líder Dupont/ Pioneer (dos Estados Unidos), que detém 33% do mercado. Essas três empresas, mais a suíça Syngenta, controlam a quase totalidade das empresas de sementes de milho brasileiras. Mas as trans-
Quanto
41,5% foi elevação do preço do milho na Europa, desde julho de 2006
nacionais não demonstram disposição para parar. Agora, ao que tudo indica, a bola da vez é a empresa Santa Helena, de Minas Gerais. Christian Pflug, gerente de biotecnologia e licenciamento de milho da Monsanto, deixou clara essa disposição em uma entrevista ao jornal Valor Econômico: “Vamos aproveitar todas as oportunidades que surgirem para consolidar nossa posição no mercado de sementes de milho, assim como foi feito nos Estados Unidos”.
Mercado aquecido Uma das razões para essa corrida desenfreada das transnacionais é o momento particularmente favorável do mercado internacional de milho. O programa estadunidense de produção de etanol a partir do milho tem provocado um efeito devastador, gerando uma grande diminuição na oferta do grão e o seu conseqüente encarecimento. Além disso, é certo que esse mesmo problema atingirá outros produtos, pois está havendo uma corrida de agricultores dos Estados Unidos para a produção de milho para etanol. Com isso, a forte demanda de milho, principalmente na Europa, causou uma grande elevação do seu preço, passando de 116,60 dólares por tonelada em julho de 2006 para cerca de 165 dólares em 2007. Embora o Brasil seja um grande produtor de milho, o grão nunca ocupou um lugar
Transgênicos potencializam os problemas do oligopólio Variedades convencionais correm risco de contaminação genética de São Paulo (SP) O aquecimento do mercado global de milho, por mais importante que seja, não é o único e nem o principal fator que impulsiona a ofensiva das corporações sobre as empresas de sementes de milho. Há interesses maiores em jogo. Frei Sérgio Antônio Görgen, da Via Campesina, alerta para o fato de as quatro empresas (Dow, Monsanto, Pioneer e Syngenta) que controlam a indústria de sementes de milho serem, todas elas, empresas de biotecnologia. “Corremos o risco de, dentro de algum tempo, termos apenas milho transgênico”, afirmou. Para Rubens Nodari, gerente de recursos genéticos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a oligopolização da indústria de sementes de milho pelas corporações da biotecnologia tem duas conseqüências graves. A concentração do setor impede a oferta de outros tipos de sementes e coloca em risco o cumprimento das regras de coexistência entre as variedades transgênicas e não transgênicas. De fato, o risco de contaminação de milhos convencionais por transgênicos é grande, como garante Jean Marc von der Weid, da Assessoria e Serviços em Agricultura Alternativa (AS-PTA). Ele cita o exemplo do México onde,
Segundo Nodari, do MMA, a concentração do setor impede a oferta de outros tipos de sementes e coloca em risco o cumprimento das regras de coexistência entre as variedades transgênicas e não transgênicas apesar da proibição de milhos transgênicos, houve contaminação em nove províncias. No caso de um mercado oligopolizado, essa probabilidade é ainda maior. Para Jean Marc, a estratégia do agronegócio é um “tiro no pé”, pois a aceitação do milho brasileiro, principalmente no mercado europeu, se dá justamente por ele não ser transgênico.
Olho gordo Todas essas preocupações são corroboradas por declarações de representantes do agronegócio e das corporações transnacionais. Após o anúncio da aquisição da Agroeste pela Monsanto, Cássio Camargo, secretário-executivo da Associação Paulista dos Produtores de Sementes e Mudas (APPS), declarou que as aquisições no setor eram parte de uma preparação das empresas para uma concorrência acirrada que se estabeleceria após a liberação e a comercialização das variedades de milho transgênico: “Haverá uma briga de foice entre as indústrias”. Essa análise foi reforçada pela declaração de Christian
Pflug, gerente de biotecnologia e licenciamento de milho da Monsanto, que admitiu que o objetivo da transnacional, com a aquisição da Agroeste, é garantir infra-estrutura para a produção de milho transgênico.
Insegurança Neste ano, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) deu parecer favorável para a liberação de três variedades de milho transgênico. Mas uma ação cívica pública, movida por entidades e movimentos sociais, conseguiu uma liminar na Justiça Federal do Paraná suspendendo a liberação do milho Liberty Link, da Bayer. A decisão foi estendida às outras duas variedades liberadas, os milhos da Monsanto e da Syngenta. A luta promete ser árdua. O momento favorável do mercado internacional de milho tem servido de pretexto para afirmações sobre a baixa produtividade do milho brasileiro e, é claro, a necessidade de agilizar a liberação e comercialização das variedades de milho transgênico. (RK)
Dia de Campo, evento organizado pela Agromen para mostra de produtos
de destaque na pauta de exportações. Até este ano, o recorde de exportação de milho havia sido alcançado em 2001, quando foram embarcadas 6 milhões de toneladas do cereal. Em 2006, foram 4 milhões de toneladas. Mas a forte demanda global causou um verdadeiro boom nas exportações brasileiras. Estima-se que, até o final deste ano, mais de 8 milhões de toneladas de milho serão exportados, o dobro de 2006. E a conjuntura favorável tem gerado expectativas ainda mais “otimistas”. O próprio Ministério da Agricultura considera a possibilidade de as exportações de milho superarem a casa dos 10 milhões de toneladas. E tais expectativas não se limitam ao curto prazo. Estendem-se, no mínimo, pelos próximos dois ou três anos, período no qual o governo estadunidense pretende aumentar substancialmente a produção de etanol.
Para entender Oligopólio – Situação semelhante a do monopólio. Acontece quando um grupo reduzido de empresas domina a oferta de produtos ou serviços de determinado mercado.
Reprodução
Alimentos ficam mais caros de São Paulo (SP) Além dos riscos decorrentes da oligopolização e da contaminação transgênica, a explosão das exportações brasileiras de milho está gerando outros problemas graves. Já são sentidos os reflexos da alta do preço do milho, principalmente na produção de ração para aves e suínos, composta por 60% de milho. Suinocultores e avicultores alertam para um aumento inevitável do preço do frango e da carne suína para o consumidor. Além disso, é possível que, tal como ocorre nos Estados Unidos, agricultores deixem de produzir outros produtos agrícolas para plantar milho, o que acabará ocasionando escassez e elevação de preço de produtos necessários para a alimentação. Assim, a euforia demonstrada pelo agronegócio, que vê seus lucros se multiplicarem, poderá significar carestia e falta de alimentos para a população. (RK)
DEBATE
Conferências debatem América Latina Realizados simultaneamente entre os dias 22 e 26, eventos vão debater a prática e o pensamento transformador na região Jorge Pereira Filho da Redação Um encontro da prática transformadora com o pensamento crítico latino-americano. Essa é a proposta da 1ª Conferência Internacional Vozes de Nuestra América, que será realizada de forma simultânea em Fortaleza e no Rio de Janeiro, entre os dias 22 e 26. O evento terá como pano de fundo as idéias de latinoamericanos, como o cubano José Martí, o venezuelano Simón Bolívar, o nicaragüense Augusto Sandino, o peruano José Carlos Mariátegui, o argentino Ernesto Che Guevara e os brasileiros Rui Mauro Marini e Florestan Fernandes. Essa diversidade de práticas e reflexões vai inspirar o debate entre militantes de movimentos sociais, estudantes, professores e interessados no pensamento crítico latino-americano. “A Conferência deseja propiciar o exame e o debate de idéias, assim como o intercâmbio das variadas experiências construídas pelos movimentos sociais em seu fazer-se”, explica uma das organizadores do evento em Fortaleza, a historiadora Adelaide Gonçalves, também coordenadora do Núcleo de Documentação Cultural da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A Conferência nasce como desdobramento dos programas de estudo da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) – do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O evento dialoga com o atual momento da América Latina, marcado pelos ventos transformadores que sopram no continente. Entre os assuntos debatidos, estarão a experiência dos venezuelanos na Revolução Bolivariana, das revoltas populares na Bolívia, dos piqueteiros argentinos e do sandinismo na Nicarágua. “Nos momentos de conjuntura singular, como este, temos que reafirmar a necessidade do estudo do pensamento crítico como ferramenta fundamental para o fortalecimento da luta social. Assim é desde a história como memória e a história em movimento que esta Conferência busca sua inspiração e pretende se conectar diretamente ao exame das experiências insurgentes em curso na América Latina”, afirma Adelaide.
A metodologia da Conferência foi pensada de forma a facilitar a interação entre pesquisadores e intelectuais comprometidos com as lutas sociais e a experiência dos movimentos e organizações. Entre os convidados, estão a mexicana Ana Esther Ceceña, o uruguaio Raúl Zibechi, o mexicano Ruben Valencia e o salvadorenho Santiago Flores. Destaque também para as atividades culturais. Em Fortaleza, os participantes e a população da cidade terão acesso a espaços de celebração da cultura latino-americana, como mostras de cinema e uma homenagem da Feira do Livro, na Praça do Ferreira, a duas obras de escritores latino-americanos: “Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, e “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel Garcia Márquez. Além da ENFF e da UFC, também realizam o evento em Fortaleza a Prefeitura Municipal e o Governo do Estado. Mais informações: www.nuestraamerica.ufc.br
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Governo Lula privatiza estradas AGENDA NEOLIBERAL Mais sete rodovias federais são concedidas, reforçando a tese de que a gestão do Estado é ineficiente Reprodução
Eduardo Sales de Lima da Redação APÓS A entrega de mais sete rodovias federais em leilão ocorrido no dia 9, serão quase 12 mil quilômetros de estradas concedidas ao capital privado em todo o Brasil. Até a venda, a cobrança de pedágios já ultrapassava os R$ 5 bilhões por ano, o equivalente a dois terços do tributo federal (a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Cide-Combustíveis) destinado a melhorar as rodovias. Desse fato surge a ingênua pergunta, com a óbvia resposta: por que o dinheiro da contribuição, criada em 2001 justamente para arrecadar fundos a serem investidos no transporte, não é repassado para as rodovias? Cobrada na bomba dos postos de gasolina, a Cide já retirou da população R$ 43,1 bilhões. Destes, apenas R$ 25 bilhões cumpriram seu destino original, segundo a ONG Contas Abertas. A outra parte foi, principalmente, para formar superavit primário. Rogério Tizzot, secretário de Transportes do Estado do Paraná, propõe exatamente o contrário: reduzir gastos financeiros (juros) e aumentar os demais. “A Cide já é um pedágio que está sendo cobrado junto com o valor do combustível. E ela foi criada justamente para manter, recuperar e conservar as estradas no país”, explica. Segundo ele, em vez de governos federal e estaduais propiciarem a intermediação administrativa das estradas por meio de concessionárias privadas, bastaria, com os recursos arrecadados pela Cide, contratar as obras e os serviços por meio de licitações das quais o próprio Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit) poderia se encarregar. “Não é necessário ter contrato com uma concessionária que quer ter lucro”, ressalta. No dia 15, Tizzot ganhou no procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, um aliado. Ele entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe o governo de utilizar a Cide em despesas financeiras ou de custeio.
Ponto para o capital Numa avaliação mais política, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) entende que “tudo não passa de uma privatização escandalosa”. Em declaração publicada em seu site pessoal, ele critica o leilão ao entender que a operação “reforça a tese dos tucanos de que o Estado é ineficiente e de que a iniciativa privada é mais capaz de gerir recursos públicos”. Waldemar Rossi, coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, acredita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abandonou as rodovias federais, “deixando-as esburacadas, desviando recursos para fazer superavit primário”. A observação é confirmada por José Carlos da Silva, do Sindi-
Aumento de pedágios encarece diversos produtos, já que 72% das riquezas brasileiras são transportadas por rodovias
Quanto
72% das riquezas pro-
duzidas no Brasil são transportadas por rodovias
cato dos Ferroviários de Bauru (SP), Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Referindose ao trecho paulista do rodovia Transbrasiliana, ele admite não ter “coragem de andar nela, há muitos acidentes”. Mas, se por um lado o governo descuida de algumas estradas, em outras ele prepara a concessão. “Concedida” no leilão do dia 9, a Fernão Dias (15 mil veículos por dia) foi das que mais tiveram investimentos federais nos últimos anos. Segundo o Dnit, a rodovia, que possui 562 km de extensão, recebeu, somente em 2005, R$ 260,7 milhões. Conhecida também como BR381, ela foi adquirida pela empresa espanhola OHL. A OHL apresentou a tarifa mais baixa para outros quatro, dos sete lotes oferecidos. A Acciona (também espanhola) e a BRVias (única concessionária nacional) adquiriram um trecho de estrada cada uma. Haverá um investimento de R$ 19,8 bilhões das concessionárias durante 25 anos.
Novo modelo Por outro lado, o modelo do leilão (tarifa mais baixa) está sendo encarado como menos danoso aos motoristas. O economista José Carlos de Assis acompanhou bem o processo de elaboração do novo modelo ao participar de reuniões no Ministério dos Transportes. “Não tem nenhum sentido licitar serviço público por concessão onerosa (fatura o contrato a empresa que pagar mais, como acontecia no governo Fernando Henrique Cardoso), porque isso acaba revertendo para o valor da tarifa”, explica. Porém, mesmo concedidas por meio da “menor tarifa”, as rodovias não deixam de ser patrimônio público gerido por capital privado. Com o aumento do número de pedágios, preocupa o fato de que 72% das riquezas produzidas no Brasil são transportadas por rodovias e que o encarecimento de diversos produtos é questão de tempo. (Colaborou Vinícius Mansur, de São Paulo-SP)
Pedágio comunitário da Redação Embora assimilada pelos motoristas, a implantação de novos pedágios causa, no mínimo, desconforto no bolso do cidadão. No Rio Grande do Sul, porém, essa sensação é um pouco menos intensa quando os motoristas passam por “pedágios comunitários”. Eles funcionam nos municípios de Campo Bom, nas rodovias RS-239, de Portão, RS-240, ambas na região metropolitana de Porto Alegre, e em Passo Fundo. Gerenciados pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), os pedágios contam com a participação de entidades representativas. “Não acho que o pedágio, em si, seja algo inaceitável para a sociedade brasileira, porque os que têm carro já possuem uma renda diferenciada”, defende o deputado federal Tarcísio Zimmerman (PT-RS). Ele conta que as três praças de pedágios comunitários no Rio Grande do Sul têm uma natureza pública e um compromisso não com o lucro, mas com um retorno da arrecadação em obras de melhorias da infra-estrutura rodoviária. “É um pedágio que pratica preços semelhantes a esses que foram leiloados agora e é controlado pela comunidade por meio dos conselhos”, explica. (ESL)
Dinheiro de impostos financia concessionárias
Rodovias federais privatizadas
Com lucro garantido, capital privado internacional ampliará suas remessas de dividendos da Redação Quando a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, afirma que “investir em estradas é um bom negócio, uma vez que o país atingiu estabilidade e credibilidade, o que deu confiança ao investidor”, esquece de aprofundar o que, de fato, dá essa confiança ao capital privado. As concessionárias – além de se valerem da Taxa Interna de Retorno (TIR), remodelada em 2005 com a queda constante dos juros, quando o governo permite o aumento para que não haja prejuízo – terão um auxílio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A espanhola OHL, que arrematou cinco trechos de rodovias, afirmou que terá financiamento de 70% da instituição pública. Para o economista José Carlos de Assis, trata-se de um procedimento normal tendo em vista que quem financia em longo prazo no Brasil é o BNDES. “A alternativa seria financiamento internacional, mas é bobagem”, afirma.
Lógica perversa Mas o secretário de Transportes do Estado do Paraná, Rogério Tizzot, indigna-se com a falta de praticidade e de visão política do governo federal. “Estão pedagiando estradas construídas com recursos públicos e as concessionárias estão usando recursos do BNDES para fazer essas obras. Por que o banco não financia os Estados para fazerem isso ou o próprio governo federal”, questiona. Para Tizzot, o governo entrega às empresas, que depois vão cobrar o serviço do povo, o dinheiro de impostos para aplicar nas reformas das estradas. (ESL)
Leilão de rodovias eleva vulnerabilidade externa Remessa de lucros ao exterior triplicou no governo Lula, atingindo 60% do total vindo de fora da Redação As privatizações promovidas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso não resultaram apenas em uma dilapidação de um patrimônio público. Um dos efeitos desse processo está repercutindo apenas agora. Dados do Banco Central apontam que a remessa de lucros ao exterior está em disparada. Entre 2003 e 2006, de cada 10 dólares que entraram no país, 6 foram enviados ao exterior. Entre 1999 e 2002, cerca de 20% regressavam para fora do Brasil, como informou a Folha de S. Paulo, no dia 16. A venda de empresas prestadoras de serviços para grupos estrangeiros é uma das causas desse crescimento de remessas de dólares. A aquisição de cinco trechos de rodovias federais pela espanhola OHL contribui com o mesmo processo. “No setor de serviços, há uma sangria das receitas das reservas cambiais porque ele não exporta nada, explora o serviço e remete o lucro para o exterior”, atesta o economista Rodrigo Ávila. Uma empresa como a Telefônica, por exemplo, concessionária do serviço de telefonia no Estado de São Paulo, obtém receita em reais. No entanto, periodicamente, envia seus lucros para sua matriz, na Espanha, em dólar. Para isso, necessita trocar no mercado de câmbio a moeda brasileira pela estadunidense. Hoje, essa operação não representa um problema para o país, pois o mercado de capitais internacional vive um cenário de liquidez, mesmo com a crise financeira nos Estados Unidos. Com excesso de dólares, investidores especulam com as altas taxas de juros pagas pelo Brasil e colocam seu capital no país. Esse é um dos motivos para a desvalorização do dólar frente ao real. Porém, em um momento de crise, esses dólares fogem dos países subdesenvolvidos e a cotação do real dispara. A pressão das transnacionais para remeter seus lucros às matrizes, então, é mais um elemento que eleva a dependência brasileira pela moeda estadunidense, orientando políticas públicas nessas direção – como, por exemplo, prioridade para o agronegócio exportador. Ao mesmo tempo, torna o país mais vulnerável a crises internacionais. (ESL)
Concessões tucanas serão investigadas Modelo petista derrubou preço das tarifas, forçando TCU a investigar privatizações feitas pela gestão anterior da Redação O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou, no dia 10, que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) faça, em 30 dias, uma análise sobre os pedágios cobrados nas rodovias federais privatizadas no governo de Fernando Henrique Cardoso. O tribunal quer saber se esses preços não estão altos demais. O TCU determinou estudos para uma possível revisão das tarifas cobradas na ponte Rio-Niterói; na Presidente Dutra, que liga o Rio de Janeiro a São Paulo; no trecho da BR040 entre Juiz de Fora (MG) e o Rio de Janeiro; na BR-116 entre o Rio de Janeiro e Teresópolis; e no trecho da BR290 do Rio Grande do Sul. No caso da rodovia Dutra, a tarifa cobrada hoje dos carros chega a R$ 7,80. Foi por esse motivo que o TCU demorou para aprovar o modelo de privatização de rodovias proposto pelo governo Lula. O tribunal travou uma dura disputa com a ANTT, porque queria reduzir ao máximo o valor do pedágio. No governo Fernando Henrique, levava a rodovia quem pagasse a maior quantia. Segundo a Associação Nacional do Transporte de Carga e Logística (NTC&Logística), o custo médio dos pedágios dos trechos leiloados no governo Lula ficou em R$ 0,022 por quilômetro. Nas estradas paulistas, concedidas pe-
lo modelo tucano, o preço é R$ 0,123 por quilômetro. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sobre as cinco rodovias federais privatizadas no governo Fernando Henrique, de 1995 a 2005, o valor do pedágio aumentou 40% acima da inflação oficial (IPCA) em quatro delas e 33% em uma. No fim de 1999, a CCR (maior empresa gestora de estradas no Brasil) tinha cobrado de pedágio, em média, R$ 3 de cada veículo que circulou em seus domínios. No fim de 2005, foram R$ 6,6, 120% a mais.
Enorme diferença “Somos contra o pedágio, mas já que o governo federal fez o leilão, o resultado foi muito importante porque vem mostrar que o valor cobrado hoje pelas concessionárias no Paraná é absurdamente alto”, pondera Rogério Tizzot, secretário de Transportes do Paraná. Hoje, a tarifa mínima no sistema de pedágio no Paraná é de R$ 4,30 e o valor máximo R$ 10,90. “Já a tarifa mínima que resultou desse leilão (do dia 9) é R$ 0,99 e a máxima R$ 2,50. A diferença é enorme”, conclui. Ele afirma que existem, hoje, 44 ações representativas do Estado e de cidades paranaenses contra o pedágio no Estado e/ou tentando reduzir essa tarifa. Só no Paraná, as praças de pedágio lucram R$ 100 milhões por ano. (ESL)
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A USP pós-ocupação
saiu na agência Thomas Schlemmermeyer_CC
EDUCAÇÃO Passados quase quatro meses da desocupação da reitoria, direção faz primeira reunião com estudantes Dafne Melo da Redação NO DIA 25 de setembro, a reitora da Universidade de São Paulo (USP), Suely Vilela, fez a primeira reunião com a comissão de negociação de estudantes e funcionários para discutir o acompanhamento das pautas conquistadas na ocupação e na greve de maio e junho deste ano. Rebeca Regatieri, estudante de Economia e integrante da comissão, conta que a direção deixou claro que “não estavam ali para negociar, mas simplesmente para informar”. Os membros da reitoria, ao contrário das reuniões realizadas durante a ocupação, apareceram em peso. Os oito diretores participantes não permitiram que, nas próximas reuniões, os estudantes também possam ser acompanhados de quatro professores observadores. Além disso, a direção rejeitou a participação dos suplentes dos representantes dos estudantes, não permitiu que os estudantes gravassem a reunião nem participassem da sistematização da ata. “O que nós vemos é que não há vontade política de construir e fazer nada, somente quando estamos ocupando é que somos respeitados”, defende Gabriela Iglesias, estudante de Ciências Sociais, integrante da Associação de Moradores do Conjunto Residencial da USP (AmorCrusp) e participante das reuniões específicas sobre a construção de novas moradias estudantis. “Desde o início ficou claro que a pressão política não viria totalmente através da-
USP: quatro meses depois da ocupação, reunião para informar e não para negociar
“Eles não abrirão processos administrativos, mas os criminais já estão ocorrendo”, denuncia a estudante Rebeca Regatieri quela reunião e sim por meio da mobilização do movimento”, complementa a nota divulgada pelo movimento após a reunião.
Andamento Na discussão de cada ponto do termo de compromisso assinado pela reitoria no ato da desocupação, o silêncio e a omissão foram as grandes armas da direção da universidade. O calendário anual de 2008 não incluiu, por exemplo, a realização de 5º Congresso da USP, onde será discutido um novo estatuto, uma das exigências. Há ainda, porém, um prazo para mudança que vai até novembro. O apoio logístico ao evento será avaliado de acordo com as possibilidades financeiras e os funcionários não serão liberados para participar. De acordo com a nota do movimento de estudantes e funcionários, Suely Vilela argumentou que eles vão precisar manter a universidade funcionando; já sobre os estudantes, não se pronunciou.
projeto está em fase de licitação. Mas, em São Carlos, a fase de discussão continua.
Repressão O primeiro ponto do termo de compromisso, a não punição aos participantes da greve e da ocupação, ainda está nebuloso. “Eles não abrirão processos administrativos, mas os criminais já estão ocorrendo”, aponta Rebeca Regatieri. De acordo com a nota, foi formada, no dia 12 de setembro, uma Comissão Sindicante para apurar “danos, prejuízos, abusos e excessos” cometidos durante a ocupação da reitoria da USP. As investigações dessa comissão são sigilosas, assim como seus membros, afirmou Vilela, alegando que nem sua participação é permitida. Depois, ela se contradisse ao afirmar, durante a reunião, que já teriam sido constatados abusos e excessos. “O que se sabe é que os trabalhos serão tornados públicos depois que acabarem as investigações, em novembro”, afirma Gabriela. A partir de então, não se sabe qual será o procedimento. Este ano, outras três reuniões de acompanhamento serão feitas, ainda com datas indefinidas.
As resoluções do 5º Congresso ainda serão avaliadas pela reitoria e pelo Conselho Universitário (CO), que podem acatá-las ou ignorá-las. Em relação às moradias estudantis, Gabriela Iglesias conta que a construção dos novos prédios ainda está em fase de debate. “A reitoria apresentou uma proposta a cada campus e elas estão sendo estudadas pelas comissões”, relata. No campus Butantã, da capital, estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) rejeitaram o projeto. “O prédio teria problema de unidade, não bateria sol, além de outras irregularidades. Os alunos da FAU fizeram uma contra-proposta e encaminharam à reitoria”, informa Gabriela. A previsão é de que as obras se iniciem em maio de 2008. Até a sua finalização, a reitoria se comprometeu a conceder 198 bolsas-aluguel. Já no campus de Ribeirão Preto, a proposta da administração foi aprovada e o
Latuff
Charge proibida Cartunista Latuff é intimado por desenhos do mascote do PAN segurando uma arma cia do Rio, Latuff foi rendido por policiais à paisana e levado junto com uma amiga para a delegacia. “Mais horas de depoimento. Esses incidentes revelam a outra face da chamada ‘liberdade de expressão’ que dizem estar vigorando em sua plenitude no Brasil”, afirma.
Criminalização Latuff conta que desta vez o depoimento foi tranqüilo. “Saí de lá com apenas um depoimento assinado, sem maiores complicações, em princípio”, diz. Por outro lado, os responsáveis pela produção de camisas com a charge e uma jovem da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência foram autuados e indiciados, tendo sido aberta uma inves-
“Estamos esperando uma sensibilidade da comunidade internacional sobre a extrema pobreza em que vivem os povos indígenas. Muitas de nossas comunidades vivem com fome, com desnutrição crônica e, sobretudo, não têm acesso a uma educação que permita que nós possamos ingressar nas tomadas de decisões nos níveis político, econômico e social”, afirmou, ao Brasil de Fato, a guatemalteca Rigoberta Menchú, prêmio Nobel da Paz em 1992, e presente no encontro na Bolívia.
Guerra no Complexo do Alemão
Relatoria Nacional para o Direito Humano e à Educação apura denúncia de que o conflito entre traficantes e
fatos em foco
O Cauê de Latuff denunciava a violência policial
Vivemos, como diria Fernanda Vieira, na plenitude do ‘Estado penal’, em que o peso da lei é utilizado para esmagar as iniciativas dos movimentos populares e seus militantes tigação pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. “Espero que esse processo absurdo não siga adiante. Sabemos que essa não é a primeira nem será a última vez. Vivemos, como diria Fernan-
da Vieira, advogada da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, na plenitude do ‘Estado penal’, em que o peso da lei é utilizado para esmagar as iniciativas dos movimentos populares e seus militantes”, analisa. O cartunista Aroeira também fez charges semelhantes para o jornal O Dia, onde o mascote do PAN ainda aparecia com a cara do governador fluminense Sergio Cabral (PMDB), do prefeito carioca César Maia (DEM, ex-PFL) e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Nem o artista nem esse veículo da ‘grande’ imprensa receberam a visita da polícia ou foram acusados de ‘uso indevido de marca’, fato esse que deixa claro que o incidente que envolve a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e eu é, na verdade, mera represália do poder público travestida de cumprimento da lei”, conclui Latuff. (DM)
forças de segurança provocou o fechamento de escolas, creches e reduziu a jornada escolar, além de restringir o trabalho dos professores.
Protesto em Curitiba
Estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) fizeram uma caminhada, no dia 18, em Curitiba (PR), em protesto contra o Reuni – decreto do governo federal em vias de ser aprovado pelo Conselho Universitário da instituição. Em alguns Estados, universidades estão adiando a decisão devido à pressão dos estudantes. Os estudantes criticam que, para receber recursos do governo, as universidades terão de cumprir metas como a relação de 1 professor para cada 18 alunos – atualmente, a média nacional está em 1 para 10.
Hamilton Octavio de Souza
História apagada Alvo de ações populares e de uma campanha para a sua reestatização, a Companhia Vale do Rio Doce vai mesmo mudar de nome e de logomarca. Em novembro, deve iniciar uma campanha publicitária com esse objetivo. O que interessa é apagar da memória dos brasileiros o fato de que já foi uma empresa estatal construída com o dinheiro do povo. Sobre heroísmo
Você sabia que a vida útil do cortador de cana hoje é menor do que a do escravo do século 19? Que as variedades de cana mais leves aumentaram em 40% o trabalho do cortador que ganha por peso? Que a média diária de corte por trabalhador é de 12 toneladas ao preço de R$ 2,70 por tonelada? Que os cortadores sofrem todos os tipos de tendinites e dores musculares? Quem são os heróis?
Sabujo acadêmico
Arquivo pessoal
Não é a primeira vez e dificilmente será a última. No dia 24 de julho, o cartunista Carlos Latuff foi intimado a depor por conta da autoria de charges sobre os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, realizados na segunda quinzena daquele mês. Nos desenhos, o mascote Cauê aparece com uma metralhadora na mão, em referência às mega-operações realizadas, pela Polícia Militar fluminense e pela Força Nacional de Segurança, no Complexo do Alemão pouco antes do evento. As ações deixaram, oficialmente, 19 mortos. “Dois policiais civis vieram à minha residência com a intimação na mão. Um deles, mais velho e com um sorriso no rosto, me disse: ‘já sabe até o que é, né?’. Retribuí o sorriso e disse que sabia, sim. Resolvi prestar depoimento naquela mesma hora”, conta Latuff. Em 17 anos de carreira, essa foi a terceira intimação que o cartunista carioca recebeu por conta de charges que tratam da violência policial. A primeira vez foi em 1999, após fazer a série “A Polícia Mata”. “Coladores dos cartazes da exposição foram levados pela PM à delegacia e tive de ir até lá para prestar horas de depoimentos”, relembra. A segunda intimação veio um ano depois. Enquanto fazia um grafiti sobre a chamada “banda podre” da polí-
Reportagem exclusiva da Agência Brasil de Fato cobriu o Encontro Mundial dos Povos Indígenas, realizado na Bolívia, entre os dias 10 e 12. A cúpula, convocada pelo presidente boliviano, Evo Morales, celebrou a aprovação pelas Nações Unidas do Direito dos Povos Indígenas e divulgou um documento final com 14 mandatos. Entre eles, destaque para o trecho que critica a concentração de capital em poucas mãos e a exploração irracional dos recursos naturais terem “ferido de morte a Mãe-Terra”. Direitos Indígenas 2
REPRESSÃO
da Redação
Direitos Indígenas 1
Ex-reitor da Unicamp, ex-ministro da Educação no governo FHC, o deputado federal Paulo Renato (PSDB-SP) foi pego no mais vergonhoso servilismo com a classe dominante: submeteu um artigo seu – com críticas ao Banco do Brasil – para a aprovação do presidente do Bradesco, Márcio Cypriano. O flagrante confirma o ataque privado articulado contra o que sobrou do patrimônio público.
Comando petista
Injustiça brasileira
Acusados pelos assassinatos de quatro fiscais do Ministério do Trabalho, em Unaí, Minas Gerais, crime ocorrido em 28 de janeiro de 2004, os irmãos fazendeiros Norberto e Antero Mânica continuam livres por determinação do Supremo Tribunal Federal. O processo contra eles faz turismo pelos tribunais de Minas e de Brasília. Essas manobras funcionam para livrar rico e poderoso da cadeia.
Estado privado
A medida provisória que cria a TV Brasil, emissora do governo federal, prevê a constituição de um conselho diretor integrado por quatro ministros, um representante dos funcionários e 15 pessoas indicadas pelo presidente da República. Até agora, os principais dirigentes da futura emissora são oriundos das maiores redes de TV. Parece a inauguração de nova PEP – parceria estatal-privada.
O presidente da República falou e disse: “Depois de vencer todas as barreiras legais, todos os casos criados, finalmente nós tivemos o leilão de sete lotes de rodovias brasileiras que estavam há muito tempo para serem privatizadas, desde o mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso” (O Estado de S. Paulo, 11/ 10/2007). O próximo passo é privatizar o que resta de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos.
Mais propaganda
Cúpula blindada
Luta organizada
Considerado o novo farol ético da classe média, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu pequena mostra a que veio: proibiu a Polícia Federal de fazer indiciamento de autoridades (presidente da República, ministros, senadores, deputados etc.) mesmo quando existam fortes indícios da prática de crimes. É a imunidade da camarilha, uma mão lava a outra e todos se locupletam. O Brasil de sempre!
O governo federal vai gastar R$38 milhões em nova campanha publicitária para convencer os brasileiros de que os programas sociais estão melhorando a vida de todos. Pode até não ser verdade, mas a campanha vai melhorar bem os cofres das grandes redes de rádio e de TV e dos 300 maiores jornais em circulação. Os empresários do setor agradecem por mais essa ajuda dos cofres públicos. O 1º Encontro Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura, de 19 a 21 de outubro, em São Paulo, deve fortalecer a luta de dezenas de entidades, movimentos sociais e culturais, veículos alternativos e populares empenhados na democratização dos meios de comunicação. O encontro poderá aprovar a organização de uma rede alternativa e popular de comunicação social.
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brasil
Mineradoras pressionam o Congresso para privatizar o urânio ENERGIA Empresas como Vale do Rio Doce e EBX fazem lobby no Congresso para derrubar cláusula constitucional que define monopólio estatal Mayrá Lima de Brasília (DF) AS MINERADORAS e os investidores estrangeiros elegeram um novo alvo: derrubar o monopólio estatal de exploração do urânio. Reportagens publicadas pela mídia corporativa, como os jornais O Globo e Valor Econômico, informam que as mineradoras estão fazendo lobby no Congresso para conseguir mudar a Constituição, que veta a exploração privada. Especialistas ouvidos pelas publicações defendem a quebra do monopólio, de olho em um negócio que poderia movimentar US$ 12 bilhões. No entanto, de acordo com o engenheiro e físico Bautista Vidal, o maior perigo de uma abertura da exploração e comercialização do urânio para a iniciativa privada é a questão da produção de bombas nucleares. “Isso é patrimônio que deve ser mantido com o Estado brasileiro. Não tem nenhum sentido privatizar. No fundo, há o interesse militar desse urânio. O uso em energia, no Brasil, ainda é insignificante, pois temos a biomassa que é muito mais poderosa”, explica Vidal. Luiz Pinguelli Rosa, engenheiro nuclear e ex-diretor da Eletrobrás, não vê com simpatia a proposta de abrir para a iniciativa privada a exploração do urânio. “Não vejo isso como uma grande fonte de recursos para o Estado brasileiro. É um material muito sensível, tem as complicações do uso militar. Existe uma lógica do monopólio estatal do urânio brasileiro. Os recursos naturais são estratégicos. Um bem estratégico nacional não pode ser dado simplesmente à iniciativa privada”, disse. O urânio, hoje, é responsável por 17% de toda energia produzida no mundo. Por ser considerado uma fonte de energia “limpa” e que não polui o ar e nem causa grandes inundações (como as hidrelétricas), o minério é visto como um potencial a ser explorado. Além disso, é mais rentável que o carvão ou o petróleo (1 kg equivale a 10 toneladas de petróleo e 20 toneladas de carvão). Dados do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) mostram que existem 30 reatores nucleares sendo construídos no mundo, outros 74 planejados e mais 162 propostos. Hoje, a produção de urânio é controlada pelo Estado brasileiro diante do papel estratégico do minério. É a partir do minério que se produzem bombas atômicas, grande símbolo de destruição da Segunda Guerra Mundial. A exploração e a comercialização sem controles restritos podem ocasionar o uso para fins bélicos, o que não é de interesse da humanidade. As declarações de mineradoras privadas interessadas na quebra do monopólio, como é o caso da Companhia Vale do Rio Doce e da holding EBX, não deixam dúvidas do potencial mercadológico do minério. “Onde houver potencial de urânio, a gente vai buscar. Estamos olhando isso na África, na Austrália, em outros países, para tentar posicionar a Vale do Rio Doce nessa mineração bastante interessante para os próximos anos”, disse Roger Agnelli, o presidente da companhia, ao Valor Econômico, acrescentando que prevê um crescimento da demanda por urânio. A EBX também já declara estar interessada em sua exploração, caso seja alterada a legislação.
Flexibilização? No Brasil, a exploração e o enriquecimento desse miné-
Quanto 17% da energia elétrica
produzida no mundo usa o urânio como fonte principal em reatores nucleares. Essa quantidade deverá dobrar, segundo previsões
rio está a cargo das Indústrias Nucleares do Brasil (INB). A maioria do minério extraído serve para consumo das usinas de Angra I e II (responsáveis por 40% da geração de energia do Rio de Janeiro) e, futuramente, Angra III, ou seja, demanda interna. A jazida de Caetité (BA) produz hoje 400 toneladas/ano de urânio. A INB pretende dobrar a produção diante de um investimento de R$ 30 milhões até 2010. Quanto à comercialização, a INB prevê que, a partir de 2014, atinja o nível necessário para a venda ao mercado externo, ainda com poucos fornecedores e que paga muito caro pelo minério. A cotação do produto passou de US$ 12 em 2004 a libra-peso (equivalente a 450 gramas) para U$ 90 em setembro deste ano. Em junho, a cotação chegou a US$ 135, um aumento superior a 1.000% no período. A tendência é que, nos próximos anos, os preços continuem elevados, diante da previsão do Conselho Mundial de Energia de que haverá a duplicação da geração de energia nuclear no mundo entre 2020 e 2050. Para Leonam dos Santos, chefe de gabinete da presidência da Eletronuclear, seria “ interessante” flexibilizar a mineração de urânio para a iniciativa privada, pois o governo “tem dificuldades em explorar o minério” e de “fazer os investimentos necessários para aumentar a prospecção de urânio”. Contudo, a comercialização deveria ser de propriedade do Estado, defende o executivo. Segundo sua assessoria, a INB se posiciona de maneira contrária à abertura de exploração de urânio para a iniciativa privada. No entanto, a mesma empresa já declarou que irá estabelecer parcerias privadas para o fosfato (que vem em conjunto com o urâ-
“Não vejo isso como uma grande fonte de recursos para o Estado brasileiro. Os recursos naturais são estratégicos. Um bem estratégico nacional não pode ser dado simplesmente à iniciativa privada”, afirma o engenheiro Pinguelli Rosa nio na natureza) na jazida de Santa Quitéria, no interior do Ceará, que entrará em operação em 2011.
Congresso Em junho, o Instituto Brasileiro de Mineração entregou um documento ao presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), pedindo uma possível flexibilização no monopólio de exploração de urânio. Por sua vez, o parlamentar avisou que o tema seria tratado pela Comissão de Minas e Energia, mas já tem membro deixando clara a sua posição. O deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), membro da Comissão de Minas e Energia, declarou ser contra essa proposta. “A exploração faz parte de uma cadeia de controle de um minério que é estratégico, passível de uso militar. Não se pode abrir, sem longo debate. A energia nuclear deve se submetida a exigências rigorosas para o seu uso correto”, explicou. Mesma posição do deputado federal Edmilson Valentim (PCdoB-RJ). “Como o urânio é a base para a geração da energia nuclear, ainda Ricardo Stuckert/PR
Lula visita a Usina Piloto de Produção de Hexafluoreto de Urânio
O urânio no Brasil
é uma questão delicada e deve ficar sob a responsabilidade do Estado”, afirmou. Para o deputado Edson Duarte (PV-BA), membro da Comissão de Meio Ambiente e relator do grupo de trabalho da Câmara sobre fiscalização e segurança nuclear, é um absurdo se pensar em flexibilização ou privatização. “O Estado é quem responderá por eventuais desvios de função da exploração de urânio, que tanto pode ter um destino pacífico quanto bélico. Os acordos internacionais que tratam da segurança nuclear são feitos entre as nações de tal forma que a nação deve ter perfeito e total controle sobre essa atividade”, disse.
Corrida pelo urânio O minério O urânio se distribui sobre toda a crosta terrestre aparecendo como constituinte da maioria da rochas. As reservas desse elemento, para que se tornem economicamente atrativas, dependem do teor de urânio presente assim como da alternativa tecnológica usada para o seu aproveitamento. O principal uso do urânio é na tecnologia nuclear para geração de energia elétrica. Estima-se que, hoje, 17% da eletricidade produzida no mundo tenha o urânio como matéria-prima principal. Também é utilizado na fabricação de bombas nucleares e na composição da bomba de hidrogênio. Por se tratar de um material radioativo, em contato com o ser humano pode provocar envenenamento de baixa intensidade. Entre os efeitos colaterais, estão náusea, dor de cabeça, vômito, diarréia e queimaduras. Exploração atual O Brasil possui a sexta maior reserva mundial de urânio, o que permite o suprimento das necessidades domésticas em longo prazo. Estudos de prospecção e pesquisas geológicas foram realizados em apenas 25% do território nacional. Hoje, o minério extraído em território nacional pelas Indústrias Nucleares Brasileira (INB) abastece as usinas de Angra I e II. Só a jazida de Caetité resolve essa demanda. Se Angra III for construída, a produção de urânio deverá ser maior, com a exploração da jazida de Santa Quitéria (CE).
REFORMAS
Mobilização contra ataque a direitos Marcha convocada pela Conlutas e Intersindical vai protestar contra reformas da Previdência, trabalhista e sindical Dafne Melo da Redação A luta contra a reforma da Previdência, trabalhista e sindical, além dos outros pontos abordados pelo plebiscito popular da Vale do Rio Doce, será a tônica da marcha a Brasília no dia 24 de outubro. Convocada pela Conlutas e Intersindical, a manifestação contará com a participação de pastorais sociais e comunidades eclesiais de base da Arquidiocese de São Paulo, Conlute, Frente de Luta contra a Reforma Universitária, Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e entidades sindicais nacionais como o Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior (Andes). De acordo com Mauro Puerro, da Conlutas, são esperadas 20 mil pessoas. Outras organizações e entidades que participaram do plebiscito popular optaram por não participar da marcha, entra elas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por acreditar que as ações não devem se pautar em apoio ou oposição ao governo Lula. A União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) também não aderiram à manifestação.
Pautas Divergências à parte, é certo que a maioria da população brasileira é contrária a perda de direitos previdenciários e sociais, fato atestado não só pelos resultados do plebiscito popular, mas também por recente pesquisa feita pelo CNT/Census, divulgada dia 15 de outubro. Na enquete, 78,7% dos entrevistados se declararam contra o aumento da idade mínima de aposentadoria, e 73,7% contra a equiparação do tempo de serviço de homens e mulheres; 20,8% são a favor. Quanto à reforma trabalhista, a maioria dos entrevistados 52,3% é contra alterações na legislação trabalhista para facilitar a contratação de empregados com carteira assinada; 30,4% são a favor. Para 10,7%, dependeria da proposta de mudança. Para Puerro, a impopularidade que essas
reformas teriam é que contribui para que ainda não tenham sido levadas a cabo. Segundo ele, há uma disputa de consciência e, até agora, os defensores das reformas estão perdendo. “Houve uma crise no Fórum Nacional da Previdência Social e por isso eles não estão conseguindo formatar o projeto”, avalia. O Fórum, previsto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), deveria ter terminado e apresentado um projeto no final de agosto, de acordo com sua programação oficial.
Previdência Como a bola da vez das reformas neoliberais é alterar a Previdência, a marcha do dia 24 procurará jogar peso nessa questão. O setor financeiro internacional, ou seja, os bancos são os que mais pressionam para que o projeto saia do papel. “A Previdência é a maior fonte de poupança no Brasil, e os bancos querem abocanhar isso. A privatização, hoje, não é bem vista pela população, então eles fazem as privatizações de forma disfarçada e fatiada, como pode ocorrer com essa reforma”, alerta. Ao seu ver, a tática será fazer com que a Previdência pública não garanta mais do que um salário mínimo (previdenciário, pois não será igual ao do trabalhador na ativa) por mês. “Quem quiser uma aposentadoria maior, terá que ir para um fundo privado”, prevê Puerro. Assim, os bancos garantem mais lucros do que já possuem hoje. De acordo com dados do Orçamento Geral da União, em 2006, o governo brasileiro pagou R$ 275 bilhões para os bancos em juros e amortizações da dívida externa. No mesmo ano, gastou R$ 2,9 bilhões com a reforma agrária, R$ 36 bilhões em Saúde e R$ 17 bilhões em Educação. Puerro argumenta que a questão da Previdência não pode ser vista de forma atomizada, mas relacionadas com essas questões, assim como procurou fazer o Plebiscito Popular. “O problema da dívida não está fora da marcha. Os pontos do plebiscito estão todos relacionados. Tem tudo a ver com a reforma trabalhista, com as privatizações. Embora o capital queira que a gente veja as coisas de forma atomizada, elas fazem parte de um processo único”, finaliza.
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brasil
Exército apela com revanchismo à anistia de Carlos Lamarca DITADURA Justiça do Rio suspende portaria que concedia indenização e anistia política post-mortem ao guerrilheiro e sua família
Reprodução
Tatiana Merlino da Redação
Revanchismo Um dos argumentos apresentados na sentença da Justiça Federal é o de que Lamarca não poderia ser beneficiado pela Lei de Anistia porque desertou do Exército para entrar na luta armada contra o regime militar. A juíza também criticou a decisão da comissão – que chama de “opção política” – e o valor concedido como indenização à viúva. De acordo com ela, é “altamente questionável a opção política de alocação de receitas para pagamento de valores incompatíveis com a realidade nacional, em uma sociedade carente de saúde pública em padrões dignos, deficiente na educação pública, bem como nos investimentos para saneamento básico, moradia popular e segurança”. Para Cecília Coimbra, vicepresidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, o pagamento é absolutamente legítimo. “A liminar da juíza gera preocupação e indignação, pois reflete um espírito revanchista, de vingança entre setores das Forças Armadas. Passados tantos anos, a anistia é um direito que a família e a memória do Lamarca merecem”, analisa. Parecer apelativo A integrante do Tortura Nunca Mais também critica o parecer da juíza, que considera apelativo. “Ela fala da situação financeira da população como se essas reparações fossem atrapalhar ainda mais o problema social do país. São questões completamente distintas, mas que podem gerar confusão”, avalia. Já na opinião do jornalista Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, ao acatar uma ação movida “por militares que se solidarizam com torturadores, a juíza assume uma posição ideológica”. Sobre o argumento de que o ex-guerrilheiro não poderia ser beneficiado pela Lei de Anistia porque desertou do Exército, Seixas afirma: “Foi o Exército que desertou da sociedade democrática”, diz, referindo-se ao golpe de 1964 que instaurou uma ditadura civil militar no país. “Inclusive, há muitos militares que se opuseram ao regime e foram cassados e mortos, como o coronel aviador Alfeu Alcântara Monteiro”, recorda (ver matéria nesta página). Oposição à ditadura Lamarca era capitão do Exército quando abandonou
Cartaz da época tenta identificar o capitão Carlos Lamarca, procurado pela ditadura militar
a corporação para ingressar na luta armada. Como guerrilheiro, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi um dos principais opositores da ditadura militar brasileira. O comunista foi fuzilado em setembro de 1971 por tropas da repressão política no sertão baiano, após meses de perseguição. Em junho, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça havia concedido indenização de R$ 300 mil à viúva e aos filhos de Lamarca pelos 10 anos em que estiveram exilados em Cuba. Com a promoção post-mortem, Maria Pavan Lamarca passaria a receber do Ministério da Defesa uma pensão de R$ 12 mil, correspondente ao montante pago para um generalde-brigada do Exército. “A única coisa que aconteceu foi a aplicação da legislação que assegura aos militares com mais de 30 anos de carreira que eles possam receber proventos um posto acima daquele posto em que eles efetivamente se aposentaram”, afirmou o presidente da comissão, Paulo Abrão. Os crimes ou a deserção do Exército não entraram em discussão porque, em 1979, o país aprovou a Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos durante o regime militar.
Caça às bruxas De acordo com o Tarso Genro, o governo vai recorrer da decisão da Justiça federal. Cecília Coimbra acredita que é muito importante que o caso seja revertido no Judiciário porque “isso é indigno e violento. Uma verdadeira caça às bruxas”. Na avaliação de Cecília, entre todos os países da América Latina que passaram por ditaduras recentes, o Brasil é o mais atrasado no que se refere às reparações. “A reparação financeira é importante, mas ela é o final de um processo, que começa pela apuração e responsabilização. A forma como Lamarca foi morto não pode ser esquecida. Ele foi exterminado”, afirma. O primeiro reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte do guerrilheiro aconteceu em 1996, quando a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça determinou o pagamento de indenização à família. A decisão foi inovadora, já que a legislação vigente limitava o pagamento às famílias dos mortos em dependências policiais. Assassinado em campo aberto, entendeu-se que Lamarca já estava sob o cerco de agentes do Estado, sem condição de reagir. Em 2004, a lei foi alterada e as possibilidades de indenização ampliadas.
Os militares que resistiram ao golpe
“Herói de três pátrias” vira nome de rua no Rio Apolônio de Carvalho, ex-segundo-tenente do Exército, também sofreu com a repressão do Exército Igor Felipe dos Santos
QUATRO MESES depois de o guerrilheiro Carlos Lamarca, sua viúva, Maria, e seus filhos César e Cláudia Pavan terem sido anistiados, por unanimidade, pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, um tribunal federal do Rio de Janeiro concedeu, no dia 5, liminar suspendendo o pagamento de R$ 902 mil à família e a promoção post-mortem do comunista à patente de coronel do Exército. Apesar da decisão da Comissão de Anistia ser considerada “soberana e amparada pela lei”, como afirmou o ministro da Justiça, Tarso Genro, a juíza Claudia Maria Pereira Bastos acatou a ação, propondo a suspensão da indenização, que foi apresentada pelo Clube Militar, entidade que representa um grupo de oficiais do Exército.
da Redação O caso Lamarca não é o primeiro episódio que fez o Exército brasileiro ficar contrariado. Quando se trata de discutir a anistia de militares que deixaram as Forças Armadas para entrar na luta contra a ditadura instaurada no país em 1964, o Exército reage violentamente. A anistia a Apolônio de Carvalho e a tentativa de homenageá-lo foram pivôs de uma polêmica entre o governo Luiz Inácio Lula da Silva e as Forças Armadas. No dia 5 de dezembro de 2003, Apolônio foi considerado anistiado político pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Reintegrado ao Exército, o oficial e guerrilheiro foi indenizado pelo tempo em que ficou afastado da corporação e passou a ganhar uma pensão de R$ 8 mil mensais. Na ocasião, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defendeu que Apolônio fosse promovido a general. O então ministro da Defesa, José Viegas, foi contrário à proposta e uma nota divulgada pelo Comando do Exército sentenciou o impedimento à homenagem: “A promoção contraria frontalmente a legislação em vigor”. Apolônio classificou “de uma agressividade gratuita” a nota do Exército em resposta à obtenção de seus direitos. Dois anos depois, aos 93 anos, Apolônio faleceu no Rio de Janeiro. Cidadão do mundo Uma das mais importantes figuras políticas e sociais da história do país, Apolônio nasceu em Corumbá (MS), no ano de 1912. Neto de camponeses, filho de operário. Na década de 1930, ingressa na Aliança Nacional Libertadora (ANL), que combatia a ditadura de Getúlio Vargas. Em 1935, então segundo-tenente do Exército, acaba sendo expulso. Na cadeia, toma contato com a teoria marxista nos cursos ministrados pelos militantes Partido Comunista Brasileiro ( PCB). Quando o movimento co-
Apolônio de Carvalho
munista brasileiro vive a luta entre reformistas e revolucionários, ele rompe com o “Partidão” e ajuda a fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Apolônio não limitou sua luta às fronteiras brasileiras. Foi veterano da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), da resistência à ocupação nazista da França (1940-1945) e da resistência à ditadura militar (1964-1985). Retornou ao Brasil com a Anistia, em 1979, depois de exílio na Argélia e na França e participou da fundação do Partido dos Trabalhadores. O internacionalismo como bandeira de luta foi recordado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em sua primeira atuação fora do Brasil. Apolônio de Carvalho empresta seu nome à brigada do MST que atua há dois anos na Venezuela. Num decreto aprovado no dia 10, Apolônio de Carvalho virou nome de rua na cidade do Rio de Janeiro. (TM)
Oficiais que lutaram pela democracia foram perseguidos pela ditadura da Redação Assim como Carlos Lamarca, dezenas de militares brasileiros se opuseram à ditadura implantada no Brasil em 1964. Muitos foram mortos, outros cassados. Até hoje, eles lutam pela anistia. “As Forças Armadas não podem ser vistas como homogêneas. Existem lutas internas, desde aqueles que ainda hoje são saudosistas da ditadura e gostariam que a linha dura tivesse perdurado, até os que fizeram compromissos mais democráticos”, afirma Cecília Coimbra, vicepresidente do grupo Tortura Nunca Mais, que teve sua vida salva no dia 1º de abril de 1964 pelo então tenente Ivan Cavalcanti Proença. O militar foi perseguido por ter ajudado estudantes (dentre eles Cecília) que, ao se oporem ao golpe no Largo do Caco, foram atacados por homens do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que os encurralaram na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com bombas de gás lacrimogêneo. Preso, Proença foi levado para a fortaleza de Santa Cruz e, depois, para o forte Imbuí. Cassado e perseguido por 20 anos, até hoje continua sem a anistia ampla e irrestrita. Um dos militares que foram assassinados pelo regime foi o coronel-aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, fuzilado, no dia 4 de abril de 1964, na Base Aérea de Canoas, Rio Grande do Sul. A perícia médica constatou que ele foi assassinado pelas costas por uma rajada de metralhadora, tendo sido encontrados 16 projéteis em seu corpo. Em 1964, ele tentou impedir a posse do novo comandante, nomeado pelos golpistas. (TM)
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américa latina
Correa avança contra os lucros das petroleiras no Equador ENERGIA Medida anunciada pelo presidente Rafael Correa decreta que o Estado ficará com 99% dos lucros extras; hoje, recebe apenas 50%
“Os países têm o direito de tirar vantagem de um recurso que lhes pertence e que, além disso, vai acabar”, afirma o especialista Carlos Mendonza “O petróleo é de todos. Jamais voltaremos a perder nossa propriedade”, anunciou Correa, ao apresentar o decreto que estabelece um maior controle do Estado sobre os recursos petrolíferos. “O governo da Revolução Cidadã considera que é insuficiente que o Estado equatoriano receba 50% dos lucros extraordinários”, avaliou. A proposta de assumir um maior controle dos recursos naturais faz parte de uma antiga reivindicação dos movimentos sociais equatorianos que foi capitalizada por Correa durante sua campanha eleitoral em 2006. O decreto atinge empresas como Petrobras (Brasil), Repsol-YPF (Espanha), Perenco (França), Andes Petroleum (China) e City Oriente (EUA).
EQUADOR 4 de outubro de 2007 – Rafael Correa determina que o Estado deverá receber 99% dos lucros excedentes da extração petroleira. O Equador é o quinto maior produtor de petróleo cru da região.
BOLÍVIA 1º de maio de 2006 – Evo Morales nacionaliza os hidrocarbonetos e estabelece que o Estado deve receber 82% dos lucros obtidos com a extração. As petrolíferas assumem o papel de prestadoras de serviços. A Bolívia detêm a segunda maior reserva de gás da América Latina.
Nacionalismo
A medida de Correa foi interpretada por alguns setores como um passo “radical” de parte do presidente equatoriano. A s companhias transnacionais que atuam no país foram convocadas a uma reunião para renegociar seus contratos e não compareceram. Alegaram que precisavam de mais tempo para consultar as matrizes. Para o especialista em petróleo Carlos Mendonza, a medida equatoriana obedece a uma tendência mundial de parte dos Estados produtores de petróleo que não só tendem a assumir o controle dos recursos, mas também a participar dos lucros, antes destinados exclusivamente às transnacionais. “Os países têm o direito de tirar vantagem de um recurso que lhes pertence e que, além disso, vai acabar. Trata-se de uma reivindicação nacionalista petroleira”, avalia Mendoza.
Presidencia de la República del Ecuador
O decreto firmado por Correa também tende a fortalecer a economia do país. Cerca de 35% dos dólares que entram no país vêm da venda do petróleo. C om a medida, cerca de 840 milhões de dólares anuais deverão ingressar diretamente para os cofres públicos. O ministro equatoriano de Minas e Petróleo, Galo Chiriboga, explicou que os acordos devem mudar de figura jurídica. A partir de agora deixariam de ser um convênio de participação e assumiriam um caráter de prestação de serviços. Ou seja, o novo contrato proposto pelo governo equatoriano reforça que o Estado é o dono do petróleo.
O presidente Rafael Correa durante ato da assinatura do decreto
BRASIL
O caminho da soberania energética
Na contramão, governo Lula vende reservas de petróleo Marcelo García/Prensa Miraflores
Presidentes do Equador, da Bolívia e da Venezuela usam receitas obtidas com recursos naturais para financiar gestão popular de Caracas (Venezuela) A decisão do presidente equatoriano, Rafael Correa, segue o exemplo de outros países – como a Bolívia, de Evo Morales, e a Venezuela, de Hugo Chávez – que utilizam recursos naturais para implementar seus projetos de governos de corte popular. No Equador, por enquanto, Correa afirma que se limitará a regular a participação dos lucros das petrolíferas. Não está em debate a nacionalização propriamente dita, como nos dois países vizinhos. “Obviamente, a conjuntura à esquerda permite que Correa também avance nesse sentido. Sozinho não poderia enfrentar as empresas. Mas os precedentes boliviano e venezuelano lhe dão outras condições”, avalia o especialista em petróleo Carlos Mendoza. Segundo o analista, a medida equatoriana não será facilmente implementada, mas as empresas tendem a aceitar a oferta de Correa. “Simplesmente porque o petróleo é um excelente negócio”, afirma. “Apesar de seu preço, (o petróleo) é a saída mais vantajosa para as empresas e seus países matrizes. O recurso está em escassez e quem controla as fontes controla o mercado, esse é o jogo”, explica Mendoza.
1 de maio de 2007 - Chávez nacionaliza a faixa do Rio Orinoco (que poderá ser certificada como a maior reserva petrolífera do mundo) e estabelece controle do Estado na extração petroleira. A divisão acionária na exploração se estabeleceu em 60% para o Estado e 40% às transnacionais.
Juan Jose Leon
ENQUANTO OS principais países consumidores de petróleo e gás acirram a disputa para garantir o abastecimento de seu mercado, alguns governos da América Latina se impõem regras do jogo na contramão dos interesses das transnacionais e das grandes potências. Desta vez, foi o Equador. “Em nome da soberania nacional” – seguindo os exemplos de Venezuela e Bolívia –, o presidente Rafael Correa determinou que o Estado deverá arrecadar 99% do lucro excedente obtido com a produção do petróleo. Antes, o percentual era dividido igualmente: 50% para o Estado; 50% para a empresa.
Originalmente, os contratos estabeleciam um preço médio de 25 dólares por barril para um período de 20 anos, ficando o Estado excluído dos lucros extras pelo aumento da cotização do petróleo cru no mercado. Em 2006, os contratos foram modificados, dividindo em partes iguais os beneficios adicionais. De acordo com o procurador da República do Equador, Xavier Garaicoa, as transnacionais não cumpriram o pagamento de 50% dos lucros extras. Entre as empresas que atuam com irregularidades, está a estadunidense City Oriente. Apenas em 2006, a transnacional deixou de pagar ao Estado equatoriano cerca de 30 milhões de dólares, segundo informou Garaicoa ao canal de televisão Ecuavisa. Com a nova medida, as transnacionais ficarão apenas com 1% dos excedentes. O governo equatoriano ainda não esclareceu qual será o preço estabelecido nos novos contratos. Até o fechamento desta edição, o preço do petróleo OPEP estava estimado em 88 dólares por barril.
Alex Lanz_CC
VENEZUELA 13 de novembro de 2001 – Hugo Chávez anuncia a lei de hidrocarbonetos colocando um ponto final na liberalização e privatização dos campos petrolíferos. A Venezuela é o quinto maior exportador mundial de petróleo e o maior da América Latina.
Medidas recentes tomadas por governos da região para reassumir o controle do Estado nacional sobre os recursos naturais
Tarijalibre
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
O mapa da reconquista
Os presidentes Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales
A aliança entre Chávez, Morales e Correa tende a preocupar ainda mais o Departamento de Estado dos Estados Unidos, que qualifica os dois primeiros como o “eixo do mal”, ao lado do cubano Fidel Castro. Os estadunidenses são o maior consumidor mundial de petróleo respondendo por 25% do consumo diário de todo o planeta, enquanto abriga apenas 5% da população mundial. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos possuem apenas 3% das reservas provadas, o que aumenta a dependência do petróleo estrangeiro. Na esteira do aquecimento global, processo pelo qual o petróleo aparece como o principal vilão, George W. Bush em sua mais recente aliança com o pre-
Quanto
25% é quanto os Estados Unidos respondem pelo consumo mundial de petróleo; o país tem apenas 3% da população do planeta
sidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende criar um novo mercado energético a partir da produção do etanol. Os agrocombustíveis seriam a saída para a crise estadunidense de abastecimento. Atualmente, os EUA importam 60% do consumo total de petróleo e a estimativa é que em 2025 as importações aumentem em 70%. “O etanol neste cenário ainda é uma ilusão”, avalia Mendoza. (CJ)
País leiloa blocos de petróleo e repassa às empresas transnacionais a decisão sobre o que fazer com as escassas reservas da costa brasileira da Redação Enquanto na América Latina os países exportadores de petróleo reassumem o controle dos recursos naturais, o Brasil navega em direção oposta: em novembro de 2007, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) vai leiloar 20 blocos para exploração do escasso combustível fóssil presente em território brasileiro durante a Nona Rodada de Licitações. Esses blocos vão se somar a outros 519 áreas que já são exploradas por 55 empresas de diferentes nacionalidades. Segundo a Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), a Nona Rodada repassará aos grupos privados valorizados blocos das bacias de Santos (SP) e Campos (RJ), em localizações próximas a de outras áreas já exploradas pela Petrobras. Estimativas apontam que, nesses locais, poderão ser extraídas algumas dezenas de bilhões de barris de óleo de excelente qualidade. O embasamento dessa projeção é o próprio esforço da Petrobras, que investe na descoberta de novas áreas. Em correspondência enviada ao presidente Lula, os engenheiros da estatal alertam para a inconveniência estratégica de se repassar as reservas petrolíferas para as
mãos de transnacionais. “Se esse volume de óleo for apropriado por empresas petrolíferas mundiais estará o Brasil inserindo-se de forma pouco vantajosa no palco de disputas energéticas travadas pelas grandes potências, reduzindo sua capacidade de planejar e gerir o uso do petróleo nacional em médio e longo prazos”, avalia Helói Moreira, presidente do Clube de Engenharia, que assina a carta. Hoje, o Brasil é auto-suficiente na produção de petróleo. No entanto, as transnacionais podem explorar as reservas que adquirirem no leilão independentemente de sua conveniência para o país. O território nacional não possui reservas em grandes quantidades, como as nações vizinhas Bolívia e Venezuela. Diante de um cenário de escassez desse recurso em um futuro próximo e de aumento da cotação do barril de petróleo, o mais recomendável seria explorar com cautela as parcas reservas brasileiras, a partir do interesse nacional – e não respondendo a lógica comercial das transnacionais. Em agosto de 2004, quando a ANP realizou a primeira licitação, o barril de petróleo custava 30 dólares. Hoje, está na faixa de 76 dólares e especialistas apontam que a cotação deve subir para 100 dólares nos próximos anos.
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Os monges revolucionários de Mianmar
Joseph Shemuel_CC
internacional
ARTIGO O país asiático que se chamava Birmânia até 1989 tem sido palco de protestos de monges budistas que se opõem à junta militar que o governa há décadas Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá A BIRMÂNIA passou a ser chamada oficialmente de União de Mianmar desde 1989, um ano após se instalar uma ditadura militar que não mudou apenas o seu nome, mas também todo o seu ritmo de vida e perspectivas. Desde que se tornou uma nação soberana em 1948, após quase um século de domínio imperialista britânico, não se ouvia falar de opressão semelhante naquela região. Trata-se de um regime que prima em desrespeitar eleições democráticas e não dar ouvido a pressões internacionais para iniciar o processo de redemocratização. Birmânia, ou Mianmar, é um país asiático cuja história recente vem sendo escrita à força bruta por seus militares. Em 1960, impediram U Nu, vencedor das eleições nacionais, de exercer seu mandato e, em 1990, ignoraram a vitória absoluta da Liga Nacional para a Democracia (LND) no Parlamento. Para os generais, o controle do país se dá por meio da destruição de povoados inteiros com o intuito de controlar regiões de insurgentes e da intimidação de uma população urbana indignada, que começa a se manifestar espontaneamente. Calcula-
Quanto
200
é o número de mortos calculados nos recentes embates entre oposicionistas e polícia se que o número de mortos nos recentes embates entre oposicionistas e polícia chegue a quase 200. O governo admite apenas dez mortes. Mesmo tendo anunciado a oferta de uma conversa com a dissidente Aung San Suu Kyi, continuam as batidas policiais em busca de qualquer pessoa que esteja na lista de opositores ao regime, não importando suas atitudes pacíficas a despeito da perseguição que sofrem.
Terra dourada A “terra dourada”, conhecida por suas riquezas naturais, vem sendo destruída juntamente com as esperanças dos seus quase 50 milhões de habitantes. Desde 1990, ano do mais recente golpe, foi impedida a expressão de qualquer política de oposição. Nesse período, deixou de ser um país promissor para integrar o clube de nações pobres com suas mazelas típicas: aumento do trabalho infantil, decadência econômica e perseguição política com o recrudescimento de um dos mais abomi-
náveis regimes militares do planeta. Mianmar vem se fechando cada vez mais para fugir dos olhares e questionamentos externos acerca de desmandos perpetrados por seus governantes, que, por último, cortaram o principal provedor de internet local na tentativa de efetivar tal isolamento.
Nobel da Paz O povo birmanês vê sua redenção na figura da principal líder de oposição e prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi. Mas a “dama da Birmânia”, como é conhecida, tem vivido entre prisão domiciliar e cárcere fechado, conforme os caprichos dos militares. Ela guarda por trás de seu delicado semblante oriental uma fortaleza de resistência e a real esperança de um futuro menos sombrio para um povo e um país, onde o horror e a arbitrariedade já se tornaram regra. Pouco se tem feito contra a ditadura que afronta todas as diretrizes de órgãos internacionais e abriga abertamente patrocinadores do narcotráfico. Cerca de 40% da população vive em absoluta pobreza, enquanto o poderio bélico tem crescimento recorde e os investimentos em Educação decrescem, mais uma das estratégias para o controle de uma população cada vez mais insatisfeita.
Manifestante exibe cópia de livro de Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da Paz
[Os monges], em conseqüência de seus atos de coragem, já colorem, com suas mantas vermelhas, uma grande parte dos mais de seis mil presos políticos oriundos da massa de manifestantes sob sua liderança A corrupção praticada pelos militares birmaneses leva o país a ocupar o pior lugar entre os 123 consultados no que tange à prática de Direitos Humanos e seus desdobramentos. A Birmânia ocupa, por seu turno, o segundo lugar na produção de narcóticos no Oriente.
Monges Nesses últimos dias, um novo grupo de birmaneses, nomeadamente religiosos solidários com seu povo, rou-
bou a cena local com o discreto engajamento político e protestos pacíficos pela queda do regime. Esperemos que a força da silenciosa revolução desses monges budistas consiga dobrar o poderio militar e permita emergir a beleza da “jóia da Ásia”, como a denominava Somerset Mougham e tantos outros visitantes que lá buscavam inspiração na exuberância de sua natureza, arquitetura e cultura. Os jovens monges saem às
ruas de mãos dadas, como se fossem apenas pedir, pela força do hábito, donativos à população para o custeio de suas vidas modestas. Em conseqüência de seus atos de coragem já colorem, com suas mantas vermelhas, uma grande parte dos mais de seis mil presos políticos oriundos da massa de manifestantes sob sua liderança. Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)
áfrica Gethin Chamberlain
Guerras na África custaram o mesmo que ajuda ao continente INVESTIMENTO Conflitos entre 1990 e 2005 em 23 países africanos custaram 300 bilhões de dólares, o equivalente à ajuda internacional ao continente da Redação
Criança sudanesa vestida com uniforme militar
Em 15 anos, as guerras na África custaram o mesmo que toda a ajuda internacional para o continente. Entre os anos de 1990 e 2005, os conflitos armados em 23 países custaram 300 bilhões de dólares, segundo relatório divulgado pela Oxfam, pela Rede de Ação Internacional para Armas Leves (Iansa, da sigla em inglês) e pela ONG Saferworld. A publicação do estudo intitulado “Os bilhões perdidos na África” coincide com o encontro em Nova York de diplomatas de todo o mundo para discutir nas Nações Unidas a elaboração de um tratado sobre o comércio de armas, em favor do qual, em 2006, 153 Estados votaram, 24 países se abstiveram e apenas os Estados Unidos votaram contra.
O relatório mostra que uma guerra civil ou uma insurreição reduz em 15% a atividade econômica de um país africano afetado – o que faz com que o continente perca em média 18 bilhões de dólares por ano. “Este é um dinheiro que a África não se pode dar ao luxo de perder”, disse, na introdução do estudo, a presidente da Libéria e ex-funcionária do FMI e do Banco Mundial, Ellen Johnson-Sirleaf. “Essa quantia poderia permitir solucionar a crise do HIV/ Aids, prevenir a tuberculose e a malária e atender às necessidades em matéria de água potável, higiene e educação”, acrescentou.
Armas O estudo concluiu que cerca de 95% das armas usadas nas guerras africanas não são fabricadas no continente, assim como suas respectivas munições. Os rifles usados,
em sua maioria, são o Kalashnikov, como o AK-47. Como as armas vêm de fora, a Oxfam, a Saferworld e a Iansa defendem um tratado internacional de armas que proíba a transferência de armamentos se houver possibilidade de que eles sejam utilizados em violações de direitos humanos. O coordenador para a África da Iansa, Joseph Dube, crê que “o governo cujas fábricas produzem as armas de fogo é tão responsável como o que permite que seus navios as transportem. Igualmente, os países nos quais se desembarca esse material bélico devem se preocupar qual é seu destino. Se não se regula tudo isso, o custo e o sofrimento dos africanos continuarão sendo imensos”.
Países Apesar de o número de guerras no continente estar diminuindo – 38% das guer-
ras no mundo são travadas na África –, não há esperanças de uma solução em curto prazo para países como Sudão ou Somália, por exemplo. O estudo considerou as guerras ocorridas nos seguintes países: Argélia, Angola, Burundi, República Central Africana, Chade, República Democrática do Congo, República do Congo, Costa do Marfim, Djibuti, Eritréia, Etiópia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Níger, Nigéria, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, África do Sul, Sudão e Uganda. Comparados a países que vivem em paz, os países africanos envolvidos em conflitos apresentam em média: 50% a mais de mortalidade infantil; 15% a mais de pessoas subnutridas; a expectativa de vida reduzida em 5 anos; 20% a mais de analfabetismo adulto; 2,5 vezes menos médicos por pacientes e 12,4% a menos de comida por pessoa.
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internacional Elderonda
Relatos de um correspondente de guerra ORIENTE MÉDIO Jornalista que deu o furo do início da Guerra do Iraque em 2003 fala de sua experiência na cobertura de conflitos armados
“SOU UM repórter de guerra acidental.” A frase chega a soar estranha por vir de Carlos Fino, jornalista português que ficou conhecido no mundo todo, especialmente no Brasil, por ser o primeiro a noticiar o início da Guerra do Iraque em abril de 2003, como correspondente da RTP (Rede de Televisão Portuguesa). Antes mesmo da rede estadunidense CNN. Por uma “questão de imperativo categórico e de credibilidade profissional”, mesmo considerando-se despreparado, cobriu sua primeira guerra na Geórgia, enquanto era correspondente em Moscou pela RTP. “Apesar de muitas coisas só serem aprendidas na prática, não aconselho ninguém a fazer o que eu fiz”, afirmou Fino em relação ao seu despreparo para lidar com conflitos armados que, com o tempo, foram moldando seu perfil profissional. Fino trabalhou na capital russa por duas vezes, quando testemunhou a derrocada da União Soviética e as transformações que se seguiram no Leste Europeu. Depois, foi correspondente da RTP em Bruxelas e Washington. Em 2000, assumiu o cargo de subdiretor de informação da emissora portuguesa, pela qual cobriu os conflitos na Palestina e as guerras do Afeganistão e do Iraque, esta última sua experiência mais marcante. Em janeiro de 2004, assumiu a função de âncora do principal telejornal da RTP, mas em agosto deixou a emissora por ter acei-
tado o convite para ser conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal no Brasil. Fino esteve em São Paulo, onde concedeu entrevista coletiva para os participantes do VI Curso de Jornalismo em Situações de Conflito Armado, promovido pela Oboré – empresa prestadora de serviços que desenvolve projetos de formação para estudantes universitários – pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Durante a entrevista, Fino falou sobre a espetacularização da informação na guerra e de sua experiência como correspondente nos diversos conflitos que presenciou, especialmente no Iraque. Leia, abaixo, trechos de sua fala.
O furo “Todos já estavam esperando pelo começo da guerra naquela noite (20 de março de 2003). Sabia-se que o Bush (presidente dos Estados Unidos, George W. Bush) havia dado o ultimato a Saddam (Hussein) que os bombardeios podiam começar a qualquer momento. Em Lisboa, para evitar problemas com a programação, foi criado um programa especial sobre a guerra. Mas já eram duas e meia da manhã em Lisboa (cinco e meia da manhã em Bagdá) e não tínhamos mais o que falar ao vi-
vo. Todos os âncoras já estavam cansados e como já não havia a expectativa de que o conflito fosse começar naquela noite, decidiram encerrar o programa. O Nuno Patrício (cinegrafista que acompanhou Fino no Iraque) e eu desligamos todos os equipamentos e justamente quando nos sentamos, frustrados, caiu a primeira bomba (às 5h35 da manhã). E foi difícil convencer Lisboa a restabelecer a conexão com Bagdá. “Como a guerra já começou se a CNN não deu nada até agora?” A sorte foi que o programa ainda não havia sido encerrado, caso contrário a RTP não teria tido a glória de ter sido a primeira a noticiar o início da guerra no Iraque. E a partir desse momento, como também entravamos ao vivo no Brasil através da TV Cultura (eram 11 horas da noite em Brasília), o Heródoto Barbeiro, da Rádio CBN, começou a solicitar minha inserção no ar também durante o plantão da rádio.”
Statu do jornalista “Se houvesse uma evolução maior dos Direitos Humanos, acho que deveria existir um estatuto que protegesse o jornalista em uma situação de conflito armado. Mas na verdade eu acho isso quase impossível de acontecer, já que a informação faz parte do aparato de guerra. A imprensa estadunidense, por exem-
A mídia é usada pelos dois lados (de uma guerra) para cada um mostrar o seu ponto de vista do conflito e esconder o que não deseja mostrar
Soldados estadunidenses descansam ao lado de tanque no deserto
Uma das cenas que me impressionou foi uma família de refugiados do Azerbaijão – de cultura muçulmana –, que nada mais tinham de valor, perseguida pelo exército armênio – de cultura cristã. Tive a sensação de estar assistindo, literalmente, à cena do presépio plo, se colocou como arauta da posição oficial dos Estados Unidos. A mídia é usada pelos dois lados para cada um mostrar o seu ponto de vista do conflito e esconder o que não deseja mostrar.”
Estereótipos “Essa é uma questão crucial para o jornalista, desde o momento em que ouvi o Bush colocar a luta contra o terrorismo como uma guerra e dizer que ‘quem não está conosco nesta guerra está contra nós’. Sendo assim, que papel resta para a imprensa, se qualquer discordância em relação às posições estadunidenses pode ser considerada uma traição? O jornalista pode fazer a diferença em uma cobertura se não se deixar manipular. No caso da Guerra do Iraque, o que mais deu margem para uma maior independência dos jornalistas foi a dicotomia existente entre as posições oficiais dos governos dos países que participaram da invasão e as da opinião pública, contrária à guerra. Para não se deixar manipular o melhor a se fazer é estudar, estudar e estudar; estar informado, conhecer a realidade do local a ser retratado o melhor possível e cumprir um conjunto de preceitos que, ao menos em princípio, garantem ao jornalista não fugir dos fatos, como objetividade e eqüidistância sempre que possível – já que sempre há a subjetividade própria do jornalista.” Jornalistas embutidos “Discutiu-se muito durante a Guerra do Iraque se valia a pena estar dependente de um dos lados do conflito, tendo em vista o papel submisso de alguns jornalistas estadunidenses e de outros países ao acompanharem as tropas dos Estados Unidos durante o conflito, os chamados embutidos. Eles tinham que aceitar uma série de condições que limitavam a atividade jornalística. Compreendo esses jornalistas, porque essa era a única forma que encontrarem de obter algum tipo de informação. E eu também tinha que prestar contas ao regime iraquiano, o que significava estar quase embutido a eles. Se não fosse assim, nunca poderia estar em Bagdá.
Acho que vale a pena pagar um certo preço para poder estar presente na guerra, mesmo que seu papel seja fragmentado e consiga passar alguns lampejos da realidade, a não ser que não seja possível obter nenhum tipo de informação. Os jornalistas que tentaram atuar no Iraque de forma autônoma, sem a cobertura de um dos lados do conflito, foram rapidamente eliminados.”
Espetacularização “O jornalismo é uma profissão contraditória, e uma dessas contradições é o fato de ela ter uma função de serviço público e as empresas de informação visarem o lucro, espetacularizando a informação. E esta projeta o jornalista, que se torna um personagem da mídia, um personagem público. E então o profissional corre o risco de entrar em contradição com a ética do próprio jornalismo. Por outro lado, como lidar com isso em uma época completamente midiatizada na qual o êxito e o sucesso pessoal dependem de sua projeção? Mas acredito que seja possível cumprir a função de serviço público e alcançar a promoção pessoal.” Relação com jornalistas “Na guerra da informação – ou na informação da guerra –, os jornalistas podem chegar a ser quase solidários, mas na verdade continuam cada um por si, cada um querendo ser o primeiro, ter uma informação exclusiva. A troca de informação existe, mas cada um procura ter o seu trunfo na manga. Durante a Guerra do Iraque, percebi que a maneira mais inteligente de ser egoísta é ser solidário, uma espécie de seguro para o caso de os ventos mudarem e a minha situação ficar desfavorável e dependente de outros.” Elaboração das pautas “Uma das fontes permanentes era a própria propaganda do regime iraquiano, que procurava fazer com que produzíssemos matérias favoráveis a eles. Também procurávamos os líderes do regime para falarmos diretamente com eles, às vezes tendo que pagar por isso. Outra linha de pauta que seElderonda
Cerimônia católica realizada no Iraque
Alexandre de Oliveira Saconi
Rodrigo Borges Delfim de São Paulo (SP)
Quem é Carlos Fino é jornalista, nascido em 1948 na região do Alentejo, Portugal. Começou sua carreira como correspondente em 1976 na cidade de Moscou, trabalhando depois em Bruxelas, Washington e Oriente Médio. Desde 2004 vive em Brasília, onde é assessor de comunicação da Embaixada Portuguesa no Brasil. É autor do livro A guerra ao vivo (Editora Verbo, São Paulo, 2003, 296 págs.).
guíamos era retratar a própria realidade que estava diante de nossos olhos: matérias sobre como a população estava reagindo à guerra, como se alimentava, como estava o ensino nas escolas. Éramos nossos próprios editores – em nenhum momento, consultei Lisboa a respeito das pautas. Quanto mais ângulos a informação tiver, mais rica ela será. No caso da Guerra do Iraque, a RTP tinha vários repórteres cobrindo o conflito: uma na fronteira com a Turquia, outro na fronteira com a Jordânia, outro a bordo de um dos porta-aviões estadunidenses que estavam bombardeando o Iraque, outro entrando junto com as tropas dos Estados Unidos a partir do Kuwait e eu em Bagdá. É claro que cada um destes irá estar mais ou menos influenciado pelo local onde se está, mas o repórter não se pode deixar envolver em espécie pelo meio ou lado onde se encontra.”
Risco da insensibilidade “Não seria humano se não tivesse medo. Quando já se percorreu um longo período de vida e se desfrutou de uma letra de sentimentos, você já se encontra mais preparado para a morte. No caso do Iraque, particularmente, minha mãe havia falecido pouco tempo antes, o que me deu uma maior disposição para enfrentar o que viesse a ocorrer. O que mais me preocupava mesmo era ficar incapacitado durante a guerra, como perder um braço ou uma perna. E à medida em que fui participando da cobertura desses conflitos fui ganhando uma tranqüilidade maior. Há ainda o risco de o jornalista se tornar insensível e considerar toda a violência e a desumanidade presentes como espetáculo, julgarse um pouco como Deus e sentir-se imune, acima de todo o conflito em seu entorno. Uma das cenas que me impressionou foi uma família de refugiados do Azerbaijão – de cultura muçulmana –, que nada mais tinham de valor, perseguida pelo exército armênio – de cultura cristã. Tive a sensação de estar assistindo, literalmente, à cena do presépio” .
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cultura Divulgação
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Bonecos com a cara do Brasil
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PATRIMÔNIO CULTURAL Mestres e aprendizes mamulengueiros brincam nas ruas de
Campinas e discutem como preservar a arte popular Áurea Lopes de Campinas (SP) CANSADO DE pedir ao boi Estrela para abaixar a cabeça, sem ser obedecido, Benedito desconfia: - Ô rapai! Depois que foi pro estrangeiro, esse boi parece que num entende mais português. Será que vô tê que falá cum ele em ingles?
A platéia responde: - Fala! Fala! - Então vô falá ingles... com sotaque dos Estados Unidos! E senta uma paulada na cabeça do boi. E a Rosinha, então?! Foi engolida pela cobra! De dentro das entranhas do bicho, a platéia ouve seu lamento: - Ai, meu Deus, e eu que passei quatro horas fazendo chapinha...
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Beneditos, donzelas grávidas, coronéis, cobras e bois-bumbá ganham vida nas toldas (palcos) enfeitadas de chita. Os bonecos, com cabeça de madeira e corpo de pano, são personagens de histórias sempre muito engraçadas, com pitadas de malícia e pelo menos um arranca-rabo obrigatório. Tudo marcado pelo compasso de ritmos nordestinos e afro-brasileiros. Essa é a essência do teatro de mamulengos, manifestação popular que tem mais de um século, praticada originalmente a céu aberto nas áreas rurais do Nordeste, e que deve se tornar um patrimônio imaterial brasileiro, segundo projeto já encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan). Em mais uma iniciativa para preservar essa arte, mamulengueiros de todo o país chegaram à cidade de Campinas, interior de São Paulo, literalmente, de mala e cuia, trazendo seus mamulengos para brincar nas praças, nas escolas, nos pontos de cultura. De 9 a 14 deste mês, a Semana da Criança foi comemorada com bonecos “que não têm cara de apresentadora de TV” – como disseram os organizadores do 1º Encontro de Mamulengueiros em Campinas – mas retratam figuras do povo e do folclore brasileiro. “Eu gostei mais da cobra, que engoliu a mocinha, o pai dela, o padre... todo mundo!”, conta Thiago, de 7 anos, que assistiu ao espetáculo no centro comunitário do bairro onde mora. Júlia, de 13, cantou junto com o Benedito: “A música é fácil, você aprende na hora”. A comunicação com o público é a alma do teatro de bonecos. “Somos um povo de grande riqueza cultural e grande pobreza econômica. Enquanto faz rir, você faz as pessoas se reconhecerem em seus problemas cotidianos, em suas emoções. É assim que a arte transforma a sociedade”, diz o ator Chico Simões, mamulengueiro que tem 22 anos de tolda e dirige o ponto de cultura Invenção Brasileira, em Brasília (DF). Chico iniciou sua carreira como ajudante de mamulengueiro. Em suas andanças fazendo apresentações pelo país, conviveu com mestres como Chico Daniel e Sólon. Hoje, faz da arte popular também uma ferramenta de inclusão social, em projetos de arte-educação.
Valores positivos
Idealizador e anfitrião do Encontro, o ator Sebastian Marques é diretor do ponto de cul-
tura Inventor de Sonhos, em Joaquim Egídio, distrito de Campinas. O Inventor de Sonhos abriga o primeiro teatro de bonecos do Estado de São Paulo e um dos cinco existentes em todo o país. Pesquisador do mamulengo, Sebastian quer criar um centro de referência em teatro de bonecos. Ele acredita que “resgatar identidades, brincadeiras e expressões originais perdidas no universo de mercadorias impostas pela cultura de massa pode ser a chave para soluções que resgatem o que há de humano no ser humano, seus valores positivos”. De Teresina, no Piauí, o artista Afonso Miguel trouxe sua mala e sua gaita. No meio da rua, monta a tolda e cativa quem passa: o bebê de Benedito (mamulengueiro que se preza sempre tem um Benedito!) faz “xixi” na platéia, o velho Zuza - Afonso também é ventríloquo - entoa versos do cancioneiro popular. Mamulengueiro há dez anos, Afonso já levou seus bonecos para vários países e fez teatro de bonecos falando até em holandês. “Temos que nos organizar para preservar a conexão do teatro de mamulengos com a cultura popular. Hoje tem muita gente fazendo teatro de bonecos, mas totalmente descaracterizado, sem compromisso com a função dessa arte, que é valorizar a tradição popular de cada região”, alerta Miguel. Evoluir e atualizar o teatro de mamulengos, sem perder a identidade, foi uma das preocupações discutidas pelos artistas durante o Encontro em Campinas. “Temos que acompanhar a modernização, principalmente nestes tempos em que tudo muda tão depressa. Mas o importante é saber o que pode ser atualizado e o que não pode ser desprezado, sob o risco de perdermos o contato com as raízes dessa manifestação popular”, avalia o mamulengueiro pernambucano Valdeck de Garanhuns, poeta que tem formação em Pedagogia e trabalha em projetos de arte-educação em São Paulo. “Daqui a pouco, o Benedito vai mandar e-mail, atender celular... mas isso não é importante. O importante é manter o mamulengo como um porta voz do povo, aquele que dá a voz ao povo... Esses bonecos são uma espécie de máscaras. Mas não servem para ocultar e sim para revelar nossa cultura, nossa libertação”, completa Chico Simões.
(1) Sebastian Marques e Natasha Faria (2) Simão e Marieta, de Valdeck (3) Danilo Cavalcanti (4) Cena da peça Bendito os Beneditos (5) Valdeck de Garanhuns
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Filhos do campo O teatro de mamulengos surgiu nas comunidades rurais do sertão nordestino. Trabalhadores do campo, pequenos agricultores ainda são em grande parte o público dos espetáculos. As histórias mostram a vida cotidiana e retratam as relações das populações com o meio onde vivem, suas mazelas sociais, mas também a riqueza de sua cultura. O mamulengo autêntico tem a cabeça e as mãos feitas da árvore mulungu e o corpo confeccionado de tecido, como uma luva, para ser manipulado com a mão. Mas hoje já se usam outros materiais, como papel machê. Em Olinda (PE), existe o Museu do Mamulengo, com mais de mil bonecos em exposição.