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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 245

São Paulo, de 8 a 14 de novembro de 2007

João Zinclar

www.brasildefato.com.br

Na Venezuela, ex-ministro de Chávez vai para a oposição A revolução bolivariana teve uma expressiva baixa. O ex-ministro da Defesa Raúl Isaías Baduel, uma destacada figura para a derrota do golpe da direita em 2002, decidiu engrossar o coro da oposição contra a reforma constitucional defendida por Hugo Chávez. O general reformado declarou que as mudanças vão consolidar “um golpe de Estado”. Um dia antes, Chávez já alertava que à medida que o processo revolucionário se aprofundar haverá baixas entre seus aliados, acrescentando que isso “fortalecerá sua força física, moral e ideológica”. Pág. 9

R$ 2,00

Manifestação na sede da empresa Syngenta Seeds em Paulínia, região de Campinas (SP), contra o assassinato de Keno, militante do MST

Caso Syngenta: polícia indicia empresário por homicídio Nerci de Freitas, proprietário da NF Segurança, foi indiciado por homicídio pela polícia estadual do Paraná. O empresário é suspeito do assassinato de Valmir Mota de Oliveira, o Keno, morto em ataque promovido, no dia 21 de outubro, por 40 milicianos à serviço da NF contra militantes da Via Campesina. A empresa havia sido contratada pela transnacional suíça Syngenta Seeds para retirar os sem-terra de um campo experimental ocupado em protesto contra testes ilegais com transgênicos. Para Plinio Arruda Sampaio, omissão do governo federal contribui para mortes no campo. Pág. 6

Fórum do governo fracassa; impasse na reforma da Previdência continua O Fórum Nacional da Previdência Social encerrou as suas atividades no mês de outubro, após 8 meses de debates. O fórum teve uma resolução final que aponta para uma Previdência

mais inclusiva, mas os pontos mais polêmicos não obtiveram consenso. Agora, o governo sinaliza que pretende realizar uma nova etapa da reforma da Previdência, para aumentar o tempo

de contribuição dos trabalhadores que ingressarem no mercado de trabalho após as mudanças. O movimento sindical promete resistir às retiradas de direitos. Pág. 3

Reprodução

Douglas Mansur

Venda da Vale foi ainda mais irregular do que se pensava

Cartaz da Copa de 1950

Copa do Mundo, entre a elite e o povo Em entrevista ao Brasil de Fato, Sócrates e Tostão dizem não acreditar que a Copa de 2014 trará benefícios sociais ao país. A realização do evento comporta riscos de diversos tipos de manipulação por parte daqueles que visam o lucro, até a da identidade do povo. Pág. 5

Os militantes que promoveram, em setembro, um plebiscito pela anulação da privatização da Vale do Rio Doce tinham como um de seus argumentos o fato de a estatal ter sido vendida por uma quantia 30 vezes inferior ao seu patrimônio. No entanto, esse dado pode estar incorreto. Segundo o economista Adriano Benayon, as ilegalidades cometidas em 1997 foram ainda maiores. Em artigo, ele demonstra que nem mesmo os R$ 3,3 bi do lance ganhador foram pagos. Além disso, considerando as reservas de metais preciosos da companhia, seu patrimônio real poderia atingir R$ 3 trilhões. Assim, a empresa pode ter sido vendida por uma quantia mais de mil vezes inferior ao seu valor real. Pág. 4

A vilolência contra os palestinos em números De 1º a 30 de setembro, mês sagrado do ramadã, as tropas de ocupação israelense assassinaram 35 palestinos, entre os quais cinco crianças e uma anciã; feriram 172; realizaram 229 ataques; 720 incursões; detiveram e seqüestraram 414 palestinos; demoliram 8 casas; invadiram 39 residências; realizaram 6 toques de recolher; promoveram 156 barreiras; 445 controles militares; cercaram as mesquitas de Nablus e Belém; fecharam a mesquita de Abraão em Hebron, além de diversas escolas; e confiscaram terras para a construção de novas bases militares. Fonte: blogdobourdoukan.blogspot.com

Mística realizada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) durante comemoração dos 20 anos da regional de Promissão, em São Paulo. O evento celebrou a ocupação da fazenda Reunidas, a quarta organizada pelo MST no Estado, ocorrida no dia 2 de novembro de 1987

Filme retrata luta de líderes comunitários Longe dos estereótipos criados em torno das favelas cariocas, o documentário “Meu Brasil”, da diretora Daniela Broitman, mostra uma outra face dos moradores dessas comunidades: a militância social. O filme registra ainda a passagem de três líderes comunitários pelo 5º Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 2005. “Queria mostrar esse outro lado, de pessoas honestas, batalhadoras”, comenta a diretora, em oposição à badalada produção atual “Tropa de Elite”. Pág. 8

Congo lidera abuso contra mulheres Ao lado da região sudanesa de Darfur, a República Democrática do Congo é o país com o maior índice de violência contra a mulher no continente africano, de acor-

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raro, homens ficaram sob a mira de revólveres e foram obrigados a violentar filhas, mãe e irmãs”, diz relatora da ONU enviada à região de Kivu do Sul. Pág. 12 Reprodução

90 ANOS

Em debate, a

atualidade da Revolução

Russa Págs. 10 e 11

9 771678 513307

do com relatório divulgado no final de outubro pelas Nações Unidas (ONU). Estupros, escravidão sexual e feminicídio ocorrem comumente no país. “Não


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editorial Um leal deputado do governo descobre o plebiscito “Fiz uma pesquisa e constatei que na maioria dos países desenvolvidos o presidente tem o poder de convocar plebiscitos para consultar a população sobre temas importantes. Aqui, só o Congresso pode fazer isso”. A declaração é do deputado federal Devanir Ribeiro (PT-SP), ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que priva do círculo mais íntimo de compadres-colaboradores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A partir dessa pesquisa , o parlamentar prometeu apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que dê ao presidente o poder de convocar plebiscitos. Na próxima semana, o deputado Devanir vai ao Senado, a convite da senadora Ideli Salvatti (PT-SC), para explicar seu projeto à bancada do partido. Antes tarde do que nunca, diríamos da descoberta do deputado (e do presidente). Há décadas diversos movimentos e organizações dos trabalhadores e do povo vêm alertando para a importância dos plebiscitos. Três plebiscitos históricos Essas organizações e movimentos têm insistido que, para a construção de uma democracia de interesse

debate

Mais uma vez, o presidente será o último a saber popular, os mecanismos de representação existentes são insuficientes. Seria necessário combiná-los com intrumentos de democracia participativa e outros de democracia direta. Entre os últimos, apontam o plebiscito como imprescindível para que a maioria possa opinar e decidir sobre as questões estratégicas que envolvam os destinos do país e do povo. Por isso, sob a iniciativa de diversas dessas organizações e movimentos, e à revelia do Estado e dos governantes, foram realizados três plebiscitos: o Plebiscito da Dívida Externa (2000), o da Área de Livre Comércio das Américas – Alca (2002) e, em setembro deste ano, o da Companhia Vale do Rio Doce, todos bem sucedidos. Ao que tudo indica, o deputado Devanir e o presidente não estiveram informados sobre o assunto. Antecedentes nada exemplares Além disso, o deputado dá mostras de lidar com referências históricas defasadas: desconhece as recentes experiências plebiscitárias e parece se inspirar em antecedentes his-

tóricos pouco recomendáveis: sua proposta tem como objetivo central conferir ao presidente Luiz Inácio o poder de convocar plebiscito sobre sua própria reeleição. Ou seja, o plebiscito é apenas um expediente, como vários outros já foram usados, com objetivos semelhantes. Em 1965, o marechal-presidente Humberto de Alencar Castello Branco traiu aliados golpistas, decretando o Ato Institucional nº 2, que prolongou seu mandato e estabeleceu eleições indiretas para a Presidência. Um dos resultados – ainda que natimorta – foi a Frente Ampla, que tentou reunir o governador Carlos Lacerda, o presidente deposto João Goulart, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e outros tantos, numa miscelânea inimaginável. Algo como se algum dia flagrássemos a senadora Heloísa Helena (PSOL-AL), tucanos, pefelistas e o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) de braços dados, dançando uma quadrilha naturalista (vulgo cancan) durante CPIs promovidas por probos tucanos e ilibados pefelistas, contra membros do governo do presidente Luiz Inácio e do PT

– certamente hipótese absolutamente improvável, e só possível enquanto fruto das nossas mais pervertidas fantasias. Em 1977, o general-presidente Ernesto Geisel ampliou de cinco para seis anos o período de mandato do seu sucessor, o general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo. Mas esses seis anos durariam somente até o governo do presidente José Ribamar Sarney: então, volta tudo para cinco anos.Daí, tivemos até um plebiscito (1993), onde enfrentamos o ridículo de ter de escolher entre República e Monarquia (além de presidencialismo X parlamentarismo). Na ocasião, decidiu-se também que o mandato presidencial seria de apenas quatro anos, mantida a cláusula que proibia a reeleição em mandatos consecutivos para o cargo. Essa cláusula seria derrubada a peso de ouro garimpado pelo ministro Sérgio Motta (PSDB-SP), e distribuído a mãcheias no primeiro grande “mensalão tucano”, para permitir a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998. Agora....

crônica

Maria Luisa Mendonça

Tropas das Nações Unidas violam direitos humanos no Haiti NO DIA 15 de outubro, o Conselho de Segurança da ONU decidiu estender o mandato da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), até 15 de outubro de 2008. O Exército brasileiro coordena as forças da MINUSTAH, composta por cerca de nove mil soldados. Porém, há pouco debate na sociedade brasileira sobre o papel do Brasil na ocupação do Haiti e, principalmente, sobre as denúncias de participação das tropas da ONU em violações de direitos humanos. Um dos casos documentados por organizações haitianas de direitos humanos foi o massacre ocorrido dia 22 de dezembro de 2006 na comunidade de Cité Soleil, após a organização de um protesto de cerca de dez mil pessoas que demandavam o retorno do presidente Jean-Bertrand Aristide ao país e a saída das forças militares estrangeiras. Segundo relatos da população local e imagens em vídeos produzidos pela organização Haiti Information Project – HIP (Projeto de Informação do Haiti), as forças da ONU atacaram a comunidade e mataram cerca de 30 pessoas, inclusive mulheres e crianças. Em resposta às críticas das organizações de direitos humanos que denunciaram o massacre, a MINUSTAH justificou suas ações com o pretexto de combater supostas gangues em Cité Soleil. Porém, as imagens gravadas pela HIP revelaram que as tropas da ONU atiraram a partir de helicópteros contra civis desarmados. A agência de notícias Inter Press Service (IPS) documentou a situação da comunidade logo após o ataque e registrou marcas de balas de grosso calibre em muitas casas. O diretor do HIP, Kevin Pina, acusa a MINUSTAH de atuar em conjunto com a Polícia Nacional Haitiana em execuções sumárias e prisões arbitrárias e avalia que, “neste contexto, é difícil continuar vendo a missão da ONU como uma força independente e neutra no Haiti”. Em entrevista à jornalista Claudia Korol para a agência Adital, Camille Chalmers, professor da Universidade do Haiti, explica que “a MINUSTAH tentou construir legitimidade dizendo que estão lutando contra bandidos. Mas muita gente percebe que a única coisa que pode realmente reduzir a insegurança são políticas públicas e serviços sociais. Ao contrário, o que temos é um aparato militar violento”. Outra operação militar violenta ocorreu em julho de 2005. Nessa ocasião, foram registrados 22 mil marcas de tiros, durante um ataque da MINUSTAH a Cité Soleil. Os informes do HIP citam depoimentos de moradores denunciando que foram encontradas pessoas mortas e feridas dentro de suas casas. Esses depoimentos revelam que os soldados atiraram indiscriminadamente contra a comunidade, causando um

Me engana que eu gosto Mas, além dos maus antecedentes que o inspiram, o deputado Devanir Ribeiro, candidamente, insiste em afirmar que sua iniciativa não reflete o desejo do presidente Luiz Inácio. Teme-se que, depois de expor seu projeto aos seus companheiros no Senado, ele e sua colega senadora Ideli resolvam contar uma piada de papagaio e outra de português. A negociação possível Caso as organizações e movimentos de trabalhadores e do povo que organizaram os plebiscitos sobre a Dívida Externa, a Alca e a Vale prossigam sua trajetória e sejam capazes de garantir sua unidade, a única negociação possível (pelo menos nos atuais horizontes) para apoiar um plebiscito pela reeleição presidencial seria que este se fizesse preceder de alguns outros, sobre temas como a Dívida, a Alca, a Vale, a limitação de remessas de lucros pelas empresas estrangeiras e vários assuntos desse porte e relevância. Mas isso parece improvável: a PEC proposta pelo nobre deputado-amigo do presidente Luiz Inácio certamente visa manter o cumprimento da agenda neoliberal em curso.

Dirceu Benincá

Se correr o bicho pega, se ficar... ELE COME e fim de papo. O bicho parece bonzinho, mas é devorador e diabólico. Está na cabeça e nas entranhas das pessoas; no mercado, na rua, na mídia, na empresa, na família... e adora também dar uma entrada nas igrejas. Atende por nomes diversos. Porém, um dos mais usados é neoliberalismo. Tenho muito medo desse bicho. Ele vive matando. Prefere o sangue de crianças, trabalhadores, indígenas e pobres em geral. Seu lema é antigo e atual: “decifra-me ou devoro-te”. Sua base é o mercado. Seu negócio é vender. Para isso, trabalha com o desejo dos consumidores. “E quem pensa a partir do desejo nunca tem o suficiente”, explica o professor Jung Mo Sung. Entre os efeitos mais notórios do “bicho papão”, acham-se os seguintes:

Gama

efeito devastador, já que as condições de moradia no local são extremamente precárias. Denunciaram ainda que a MINUSTAH não permitiu a entrada da Cruz Vermelha, o que significa uma violação da Convenção de Genebra. Documentos confidenciais do governo dos Estados Unidos, obtidos por organizações de direitos humanos por meio de demanda judicial baseada no Ato de Liberdade de Informação, demonstram que a embaixada estadunidense sabia que as tropas da ONU planejavam um ataque a Cité Soleil. Organizações sociais locais avaliam que o objetivo dos militares era impedir uma manifestação popular no dia do aniversário de Aristide, que ocorreria em 15 de julho. Um relatório elaborado pelo Project Censored (Projeto Censurado) estima que mais de mil membros do Lavalas, partidários do presidente Jean-Bertrand Aristide, foram presos e cerca de oito mil pessoas foram assassinadas durante o chamado “governo interino”, que controlou o país de 2004 a 2006, a partir do golpe contra Aristide, em 29 de fevereiro de 2004. Camille Chalmers caracteriza essa ação como uma “intervenção liderada pelos governos dos Estados Unidos e da França”. E explica que “solidariedade com o povo do Haiti é ajudar a reconstruir o país, a responder aos problemas sociais mais angustiantes, mas a presença dos militares não ajuda. Ao contrário, pensamos que a presença da MINUSTAH constitui uma violação do direito à autodeterminação do povo do Haiti”. Mais recentemente, em 2 de fevereiro de 2007, as tropas da ONU realizaram outra operação em Cité Soleil, que resultou na morte de duas jovens que dormiam em sua casa. Em 7 de fevereiro, diversas manifestações populares ocorreram no país e, em 9 de fevereiro, novamente ocorre um ataque militar àquela comunidade, denunciado por organizações locais, como o Instituto para a Justiça e a Democracia de Haiti (IJDH). No dia 30 de outubro de 2007, foi

divulgado o seqüestro da Dra. Maryse Narcisse, que pertence à direção nacional do Lavalas e trabalhava com programas sociais de saúde e educação no Haiti. Outro membro do Lavalas, o psicólogo e defensor dos direitos humanos, Lovinsky Pierre-Antoine, desapareceu no dia 12 de agosto. Organizações locais acusam as tropas de ocupação da ONU de gerar instabilidade política e atacar defensores da democracia e dos direitos humanos no país. O papel dos militares latino-americanos no Haiti hoje é semelhante à força multilateral que permaneceu na República Dominicana após da invasão pelos Estados Unidos em 1965. A República Dominicana viveu um longo período de ditadura militar até 1961, com a morte do ditador Rafael Trujillo. Em 1962, Juan Bosch é eleito presidente, mas é deposto por um golpe militar após sete meses de governo. Em abril de 1965, uma série de manifestações populares pede a volta do ex-presidente Juan Bosch. Foi nesse período que o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, ordena uma invasão militar à República Dominicana, com cerca de 20 mil marines. Algumas semanas depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA) envia a “Força Interamericana de Paz”, composta por 1.129 soldados. Naquele período, quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar, a função das tropas brasileiras na República Dominicana era semelhante à que exercem atualmente no Haiti. As diversas denúncias sobre o papel negativo das tropas da ONU no Haiti não são levadas em conta pelo governo brasileiro. Sob o pretexto de tentar conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU (o que seria muito improvável atualmente), a política brasileira em relação ao Haiti serve para legitimar um golpe de Estado e reforçar os interesses do governo dos Estados Unidos na região. Maria Luisa Mendonça é jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

1. Exclusão social: Cresce a categoria dos considerados “não gente”. Hoje, quem “não tem” poder econômico “não é”. Os excluídos não contam porque, ao sistema, nada acrescentam. Por esse motivo, são tratados como “coisas que falam”, expressão utilizada pelos romanos em se referindo aos escravos. Existiam “as coisas que falavam” e as “coisas que não falavam”. Escravos eram “coisas que falavam”, mas não eram escutados. 2. Culpabilização da vítima: O sistema leva você a acreditar que todo o fracasso é culpa sua. Quem não consegue competir, passa a pensar que ele é o incompetente e que sua incompetência tem um preço. Quem se sente culpado, habilita-se a aceitar que deve pagar uma pena. E, quem é penalizado constantemente vai perdendo a auto-estima e a dignidade. Quem perde a dignidade, passa a pensar que não têm direitos. E quem acha que não têm direitos, perde também a vontade de lutar.

É fundamental resistir, articulando as múltiplas forças que desejam alcançar outros horizontes: da sociedade justa, solidária e sustentável 3. Crescimento da violência: O fenômeno é complexo. A violência não se reduz a um impulso oriundo de quem tem fome e está sem “comida”. Entretanto, sem comida distribuída entre todos os que têm direito a sentir fome, não pode existir paz. Vale lembrar que, no mundo, de cada cinco pessoas, duas vivem com menos de R$ 6,00 por dia. As causas da violência são múltiplas, mas não podem ser ignoradas as de caráter socioeconômico. 4. Consumo ilimitado: O neoliberalismo cria símbolos e ídolos. O ídolo passa a estimular “desejos miméticos”. Instiga a querer o mesmo que o outro deseja. Assim, se fortalece a concorrência e a corrida ao consumo. Imprimir essa lógica nos indivíduos é tudo o que o sistema de mercado deseja. Se você entrar nesse esquema, o bicho já te pegou. Livrar-se dele não é tarefa fácil. Se, por um lado, há desejos que são necessidades e precisam ser satisfeitos; por outro, existem desejos que devem ser vigiados e controlados, pois são verdadeiros instintos do sistema. 5. Estresse globalizante: Hoje vivemos os efeitos de uma globalização sedentária. O capitalismo nos quer assim: não críticos e ativos, mas ativistas (ou desocupados) ingênuos. Enquanto fazemos coisas, não paramos para pensar. E se não paramos para pensar, não questionamos. Não questionar, é tudo o que ele espera. O ativismo tem seus agregados: a irritação, a angústia existencial, a tensão, a intolerância etc., levando à depressão, à doença e até a morte. De tudo é salutar livrar-se. Para impedir que o “bicho” nos pegue e nos devore de vez é preciso prendê-lo pelos “chifres”. E não adianta ir sozinho, pois ele tem força. É fundamental resistir, articulando as múltiplas forças que desejam alcançar outros horizontes: da sociedade justa, solidária e sustentável. Não podemos imitar o bicho que exclui, devora e depreda. Se estivermos bem organizados, quem vai ter que correr é o bicho. Podes crer! Dirceu Benincá é doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo FIlho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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DIREITOS Trabalhadores e empresários não chegam a consenso em mudanças, mas formulam resolução final que defende a universalização da seguridade

Fotos: Valter Campanato/ABr

Fórum fracassa; mas o governo quer a reforma da Previdência nos também foi uma vitória dentro do fórum.

Tergiversações Já o economista Guilherme Delgado avalia que esses consensos são tergiversações para não tocar nos temas centrais. “A tentativa de conciliar interesses absurdamente opostos não dá em nada. O ministro (Luiz Marinho), nesse processo, fica num discurso confuso, que não é nem o dos sindicalistas e nem o da ultradireita”, afirma o economista, para quem o fórum deveria deliberar planos decenais de inclusão previdenciária. Sobre o discurso dessa ultradireita, Delgado afirma que, ao menos, ele se mostrou frágil no fórum, já que não teve poder para emplacar a desvinculação da aposentadoria ao salário mínimo, por exemplo. O economista entende que deveriam haver mudanças na Previdência e defende uma reforma inclusiva visando o futuro. “Estamos em um período de inclusão, por meio do aumento da formalização. Mas também crescem problemas, como a demanda por Seguridade Social oriunda da precarização e a superexploração do trabalho, que devem ser combatidas”, analisa.

Renato Godoy de Toledo da Redação A TENTATIVA de conciliar interesses entre trabalhadores e empresários fracassou. Mas o governo Lula permanece disposto a conduzir uma reforma da Previdência cujo conteúdo é cada vez mais obscuro. No final de outubro, o Fórum Nacional da Previdência Social (FNPS) encerrou suas atividades. Foram oito meses de discussões entre governo, empresários e representantes dos trabalhadores. Esse tipo de fórum, já uma praxe no governo Lula, almeja solucionar conflitos e construir consenso a partir de grandes mesas de negociações. Como esperado, o FNPS não atingiu esse objetivo. Não houve concordâncias entre trabalhadores e empresários com relação aos temas mais polêmicos no âmbito da Previdência. E fracassou também o governo, em sua intenção inicial de legitimar no fórum uma proposta de reforma que estabelecesse uma idade mínima para a aposentadoria e aumentasse o tempo de contribuição – uma posição endossada pelos empresários. No entanto, o ministro da Previdência, Luiz Marinho, ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), sinaliza que, à revelia do Fórum, o governo pretende elaborar um projeto elevando, entre outras medidas, o tempo de contribuição dos trabalhadores que ingressarem no mercado de trabalho após a promulgação do projeto. Essa proposta vai na direção oposta da resolução final do FNPS, disponível no site do Ministério (www.previdencia.gov.br), que aponta alguns consensos que dão idéia de uma Previdência mais inclusiva e distributiva. O documento defende a necessidade de universalizar o acesso, a garantia de pensão aos par-

Acima, o Fórum Nacional de Previdência Social; logo abaixo, o Fórum Paralelo Itinerante sobre a Previdência Social

Ministro Luiz Marinho afirma que Planalto prepara proposta de reforma da Previdência, mas não detalha seu conteúdo ceiros homoafetivos, a aposentadoria rural e combate à sonegação e à informalidade. Para a CUT, esses temas são de fundamental importância

e representam uma vitória dos trabalhadores contra os ataques planejados pelos empresários apoiados pela imprensa corporativa que, des-

de fevereiro, faz campanha para qualificar a Previdência brasileira como a “mais boazinha do mundo”. “A participação da CUT no fórum foi importante, principalmente porque no início das atividades havia uma visão muito fiscalista, que olhava apenas para os gastos da Previdência. Nós co-

Mulheres prosseguem com fórum itinerante

Falso déficit: argumento para nova reforma

da Redação Desde abril de 2007, o movimento de mulheres realiza o Fórum Itinerante e Paralelo Sobre a Previdência Social. O objetivo é discutir as necessidades da classe trabalhadora, com ênfase na mulher trabalhadora, no setor previdenciário. A iniciativa partiu de organizações de mulheres da cidade e do campo e busca massificar o debate em torno da Previdência, além de tentar desconstruir o mito de que suas contas são deficitárias. Nos dias 30 e 31 de outubro, quando se encerraram os trabalhos do fórum oficial, cerca de 300 mulheres acamparam em frente ao Ministério da Previdência para defender a inclusão dos 46 milhões de brasileiros que estão fora do sistema – a maioria dos excluídos são mulheres. Mesmo tendo sido criado em contraponto ao oficial, o fórum itinerante deve continuar as suas atividades para ampliar o debate entre a sociedade. Para Sônia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres, o fórum oficial teve importantes conquistas no sentido de proteger direitos, mas não conseguiu apontar para a a ampliação de conquistas. “O foco do fórum não devia ser apenas de assegurar direitos, mas sim de interpelar o governo para incluir os trabalhadores que estão fora do sistema, como é o caso de empregadas domésticas e donas de casa”, avalia Sônia. (RGT)

locamos a visão da Seguridade Social, como ficou estabelecido na Constituição de 1988”, considera Artur Henrique, presidente da CUT e representante da central no fórum. Para o sindicalista, a manutenção da diferença do tempo de contribuição entre homens e mulheres e entre trabalhadores rurais e urba-

da Redação

Arthur Henrique Silva Santos, representante da CUT

Entre aqueles que defendem uma nova reforma da Previdência, o principal argumento utilizado é o do “deficit” previdenciário. Essa tese se baseia em um cálculo no qual a única receita da Previdência é oriunda dos descontos das folhas de pagamento, de empregadores e empregados, o que contradiz a Constituição de 1988. Para a Carta Magna, a Previdência está inserida na Seguridade Social, que também abrange saúde e assistência social. Todo o sistema deve ser financiado pelos descontos nas folhas salariais e também por impostos, como a Contribuição para Financiamento de Seguridade (Cofins) e a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL). As contas da União de 2006 desconstroem o argumento do “deficit”: a receita da Seguridade Social superou em R$ 44,4 bilhões a despesa. No entanto, grande parte desse dinheiro foi desviado por meio da Desvinculação da Receita da União (DRU), mecanismo que retira parte da arrecadação de impostos para efetuar pagamento de juros e amortizações da dívida. “Ficou provado que a Previdência brasileira é superavitária, o próprio ministro viu isso numa exposição do fórum”, afirma Sônia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres, que juntamente a outras entidades do movimento de mulheres promove um fórum itinerante, paralelo ao oficial. (RGT)

Intenções do governo No dia 5, o ministro Luiz Marinho confirmou ao jornal paulista Agora a intenção do governo de encaminhar um projeto de reforma da Previdência para o Congresso. Segundo o ministro, o momento atual da Previdência é satisfatório, devido ao crescimento da economia, mas “devese pensar nas próximas gerações”. Marinho não deu pistas de qual seria o conteúdo desse projeto. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Previdência, as resoluções do FNPS devem ser entregues ao presidente Lula em novembro. Posteriormente, a Casa Civil formulará um projeto que pode conter medidas que não foram consensuais no fórum. Os movimentos sociais já iniciaram uma pressão contra qualquer retirada de direitos dos trabalhadores e para revogar o Fator Previdenciário, medida instituída pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, que acaba retardando a aposentadoria dos trabalhadores, sobretudo os mais pobres que começam a trabalhar mais cedo. No dia 24 de outubro, a Conlutas e a Intersindical realizaram um ato em Brasília com cerca de 16 mil pessoas. José Maria de Almeida, coordenador nacional da Conlutas, avalia que as deliberações do fórum geraram uma crise, pois o governo não conseguiu aprovar a reforma da Previdência. Ao mesmo tempo, segundo ele, nada impede que o governo promova a retirada de direitos. “Vamos continuar nossa campanha para exigir que o governo não faça a reforma. Esse Congresso, que absolveu Renan Calheiros, não tem autoridade moral para votar sobre a aposentadoria dos trabalhadores. A resolução do fórum tem a ver com a pressão da sociedade contra a reforma da Previdência”, afirma o sindicalista. Uma pesquisa do instituto Sensus revelou que 73% da população é contra uma nova reforma. Para a CUT, o aumento do tempo de contribuição, tal como qualquer outra mudança nas regras para a aposentadoria, seria um desrespeito às discussões do fórum. Questionado sobre qual seria a posição da CUT perante um projeto com esse conteúdo, Artur é taxativo: “Claro que seríamos contra, assim como fomos contra no fórum”. Artur afirma que, no fórum, o ministro descartou a possibilidade de estabelecer uma idade mínima para aposentadoria, mas defendeu o aumento do tempo de contribuição.


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Copa do Mundo no Brasil, para além do debate econômico FUTEBOL Para antropólogos, torneio expõe a apropriação da paixão pelo futebol como instrumento de dominação Eduardo Sales de Lima da Redação “A REALIZAÇÃO da Copa do Mundo de futebol no Brasil constitui um evento cuja força escapa a toda e qualquer tentativa de domesticação política”, pondera José Paulo Florenzano, antropólogo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), antes que surja qualquer argumento que reforce a antiga idéia, a saber, “futebol é alienação”. Para Florenzano, a Copa comporta riscos simbólicos para as instâncias de poder que sonham em manipulá-la em proveito próprio; expõe a todos os perigos o discurso televisivo que pretende imprimir-lhe uma significação nacionalista-patriótica; e possui uma dinâmica que pode cimentar a unidade nacional, tanto quanto, inversamente, expor as fraturas do corpo social. Tudo o que organização da Copa de 2014 não quer é expor tal fratura. Comemorada, em viagem à Suíça no dia 30 de outubro por cartolas, governadores e até pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a confirmação de que o evento será realizado no Brasil pode ser um risco para a elite. Mas ela pensa à frente. Por que não transformar a paixão pelo esporte em ufanismo? De acordo com Luiz Henrique de Toledo (o Kike), antropólogo da Universidade de São Paulo (USP), será uma boa oportunidade para avaliar o significado da seleção brasileira, “valor tão atacado e fustigado em tempos de globalização de times e selecionados”. Para a antropóloga Bernadete Castro Oliveira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, a “paixão” pelos clubes é manipulada pela mídia em prol da idéia de um selecionado que

represente um “Brasil homogêneo”. “Todo o brasileiro tem uma paixão por um time. Do ponto de vista antropológico, o time funciona como se fosse um clã, reúne os indivíduos por um sentimento, por um ideal comum. Na seleção, se toma essa sensação de clã para um ideal manipulado de nação transportada de um plano para outro que, de certa maneira, vai servir como uma apropriação do povo pela elite, por meio da mídia. Dominação “(O futebol) se tornou um instrumento de dominação. Na década de 1970, por exemplo, o Estado autoritário tentou forçar a construção de um imaginário de povonação por meio da seleção”, lembra Bernadete. Kike reforça esse pensamento. Para ele, a identidade não é uma representação que se sustenta por si mesma, “antes de tudo é projeto político de grupos, de elites, dos governos que se sucedem. Mas acho que, nos últimos tempos, houve pouca instrumentalização do futebol como o maior índice identitário”. Mesmo com toda a força da mídia, a tentativa de homogeneizar o povo brasileiro não “fez gol”. “O futebol não pode ser culpado pelas rixas, essas têm a ver com processos históricos e políticos mais complexos que, de vez em quando, destilam pelo futebol tais rivalidades regionais, mas não vejo como uma Copa do Mundo, um evento episódico, possa fazer da nação um corpo político e cultural homogêneo”, aponta Kike Mais. O antropólogo da USP não acredita nesse tipo de identidade homogênea: “é ingenuidade pensar assim”. E provoca. “A pergunta é: o futebol é amado por muitos

Valter Campanato/ABr

povos e por que só aqui insistimos que ele seja um dos índices de identidade; será que isso se repete na Alemanha, Itália etc. a despeito da sua enorme popularidade? Popularidade e símbolo de identidade nem sempre estão associados. Nós queremos que seja, pelo menos enquanto estiver ganhando”. Brasilidade Na Copa, a brasilidade pode ser reatualizada. “Simbolicamente, o futebol nos diz algo daquilo que convencionalmente chamamos de brasilidade, mas isso também não é algo mecânico e a-histórico, para isso tem que ser reatualizado, ritualizado, reproduzido e reproduzindo seus jogadores, seus especialistas e continuar sendo um fenômeno midiático, outro elemento fundamental para que qualquer fenômeno ganhe modernamente esse statu de signo identitário”, afirma Kike. Noves fora o patriotismo “idiotizado” pela mídia, o fato é que a imagem do brasileiro está sempre ligada ao futebol. “Uma coisa é Copa do Mundo, outra coisa é o futebol”. Essa foi a primeira frase do meia Sócrates em entrevista ao Brasil de Fato. Com Magrão o papo é reto. “Futebol é essência. É o exercício dessa prática. Outra coisa é a Copa, que é um negócio, onde tem um ‘monte de ladrão roubando dinheiro’”, afirma, sem rodeios, um dos grandes ídolos do futebol brasileiro. Outro ícone da seleção brasileira, o atacante Tostão acredita que a festa de 2014 será um motivo de congraçamento dos Estados brasileiros e de unificação do conceito de pátria. “Isso é bom, desde que não seja uma coisa ufanista, de glorificar algo que não é para glorificar e iludir as pessoas”, afirma.

Em Brasília, a estátua de Juscelino Kubitschek veste a camisa da seleção brasileira

Marcello Casal Jr/ABr

Copa de 1950, e o racismo vence o jogo Derrota da seleção no Brasil expôs estigma do preconceito

Para Sócrates e Tostão, Copa dificilmente tratá benefícios sociais para o país

da Redação São Paulo, Pacaembu lotado, 44 mil espectadores. O dia, 9 de julho de 1950. O menino Idir, 10 anos, filho de espanhol, chega ao estádio junto ao irmão, ao pai e mais oito funcionários do ferrovelho da família, localizado no bairro da Moóca. Segue em direção às numeradas, eram quase 15 horas. O jogo, Espanha e Uruguai, 2 a 2. “Foi a primeira Copa após a guerra. Para as colônias italianas e espanhola foi um acontecimento muito forte”, afirma, hoje, Idir Martin Ascêncio, aposentado, 57 anos após aquele jogo. A maior parte da colônia espanhola naquela época era formada por exilados da Guerra Civil que, politicamente, estavam alinhados mais à esquerda, contra o regime de Francisco Franco. Nesse contexto, Idir destaca um dos fatos que mais chamou sua atenção: “A Espanha fez 1 a 0. Todos ficaram contentes. Mas um ancião espanhol começou a gritar muito fortemente ‘Arriba Espanha, arriba Espanha’, uma frase tipicamente franquista. O Uruguai empatou. Meu pai e outros espanhóis começaram a ficar bravos. Então, esse ‘velhinho’ foi expulso daquele grupo, mesmo não tendo nada a ver com o Franco”, recorda Idir.

Bigode, Barbosa ... Foi nessa mesma Copa que a seleção brasileira sofreu a sua mais impactante derrota. No Maracanã, 2 a 1 para o Uruguai na

“Carnaval de dinheiro público”

da Redação

Copa de 2014: o esporte como palco para disputa de novas significações sociais

final, diante de 200 mil torcedores. “Uma coisa que me impressiona até hoje é que eu estava ouvindo pelo Pedro Luís (locutor) que, nos últimos minutos, irradiava o jogo chorando”, lembra Idir. O descendente de espanhóis aponta as Copas de 1950 e de 1954 – até o aparecimento de Pelé em 1958 – como o momento em que o racismo era manifestado de maneira mais aberta nos campos de futebol. “Havia comentaristas esportivos que acreditavam que o Brasil perdeu para o Uruguai por conta da (falta de) raça. Inclusive o Nelson Rodrigues dizia que o problema é que havia muito negro no time”, descreve Idir, para quem a crônica esportiva culpava pela derrota Bigode e Barbo-

sa (lateral-esquerdo e goleiro de seleção de 1950) principalmente por serem negros. “De 1950 até 1958 foi vendida uma idéia aos brasileiros de que a falta de raça se relacionava aos negros. Quando ganhamos a Copa, em 1958, o racismo no futebol foi amenizado, principalmente por causa do Pelé e de outros negros que apareceram em outros países”, conta.

Raiz racista Mas, para o meia Sócrates, o racismo, mesmo dentro do futebol, ainda está longe de ser superado. “O racismo no Brasil é enraizado. Em 1934, 1938, os negros eram sempre os culpados e continuaram sendo os culpados de tudo. Por que na Copa de 1986

o Zico não foi tão culpado quanto o Toninho Cerezo em 1982? Essa questão intrínseca não vai ser resolvida com uma Copa do Mundo”, rebate. Contudo, esse estigma social pode ser resolvido a partir do próprio contexto esportivo. O futebol brasileiro, segundo o antropólogo José Paulo Florenzano, influencia a sociedade a partir do momento em que incorpora novos atores (como outrora os descendentes de escravos, e mais recentemente as mulheres), os quais, por sua vez, redefinem a prática cultural do esporte, ampliam as experiências estéticas do jogo e redefinem o campo da disputa com novas significações sociais. Marta e Pelé que o digam. (ESL)

O assunto Confederação Brasileira de Futebol (CBF) inspira cuidados. Com relação à Copa de 2014, paira o temor de não haver investidores para bancar os estádios, justificado pela experiência mundial. A CBF afirma que o único trabalho do governo será oferecer transporte público de qualidade, saúde e outras coisas básicas e recusa ajuda governamental para construir estádios. De acordo com o atacante Tostão, é obrigatório haver algum legado positivo. “Não pode fazer uma festa desse tipo, gastar uma fortuna e não ter nenhum benefício social. Agora, que vai trazer grandes benefícios sociais, a Copa em si, isso é uma mentira muito grande”, atesta o craque de seleção brasileira de 1970. Para Sócrates, a Copa do Mundo no Brasil vai ser um carnaval. “Não só de dinheiro público, um carnaval de 30 dias, vai ser uma puta festa, mas não vai sobrar nada para ninguém. Não vai sobrar nada para investimento. Por que que já inventaram hoje uma terceira reforma no Maracanã? Essa grana vai para alguém, não só para os brasileiros, mas para os suíços (onde fica a sede da Fifa) também. Ele seria muito melhor direcionado se estivesse em boas mãos. O negócio deles é grana no ‘borso’”, garante. Magrão sugere a formação de 100 mil crianças, a partir de hoje, para serem trilíngües e trabalharem como voluntários na Copa de 2014. “Você acha que eles vão se preocupar com isso algum dia? Claro que não. Durante a Copa, nós vamos ter que importar trilíngües, em vez de investir na nossa gente”, afirma o realista ex-jogador da seleção de 1982 e integrante do movimento conhecido como “Democracia Corinthiana”. (ESL)


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brasil www.brasildefato.com.br

João Zinclar

Fabio Pozzebom/ABr

saiu na agência

Bolívia O povo indígena da Bolívia recebeu duas importantes notícias no dia 31 de outubro. A primeira, foi um acordo político que restabeleceu os trabalhos da Assembléia Constituinte. Está previsto para o dia 5 o retorno das atividades. Além disso, o Congresso boliviano transformou em lei a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Protesto

Membros do MST e de outros movimentos sociais participam de manifestação na unidade da Syngenta de Paulínia (SP)

Polícia investiga crime da Syngenta Seeds VIOLÊNCIA Dono da milícia contratada pela Syngenta para matar trabalhador é indiciado por homicídio Pedro Carrano de Curitiba (PR) BERÇO DO nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a cidade de Cascavel (PR) – sede do primeiro encontro do movimento – vive dias de investigação com relação ao ataque de milícia armada contratada pela Syngenta Seeds contra militantes da Via Campesina, ocorrido na sede da transnacional, no dia 21 de outubro. No dia 3, foi feita a exumação dos corpos dos dois mortos durante o ataque da milícia: o militante da Via Campesina e do MST, Valmir Mota de Oliveira, o Keno, de 34 anos, e o segurança Fábio Ferreira, de 25 anos. No dia 7, acontece a reconstituição do crime, no cenário do ataque: a guarita e o portão de entrada da Syngenta. Foram convocados os seguranças que participaram da ação, bem como os integrantes da Via Campesina. Desde o ataque paramilitar até o momento, os sete seguranças presos pela polícia foram soltos, apesar de solicitação de prisão preventiva do Ministério Público. Nerci de Freitas, dono da empresa NF Segurança, contratada pela Syngenta, foi indiciado por homicídio pela polícia estadual, junto com outros dois seguranças da empresa. Os advogados da Via Campesina têm pouca esperança de que os outros 33 milicianos sejam encontrados. Um mês antes do ataque em Santa Teresa do Oeste (PR), cidade próxima a Cascavel, a empresa NF Segurança havia sido indiciada pela Polícia Federal de Cascavel. Maria Ivanete Campos de Freitas, uma das donas da empresa, foi presa por porte ilegal de armas. O outro proprietário, Nerci de Freitas, foi indiciado pelo mesmo motivo. Há ainda acusações de prestação de serviços da NF para a Sociedade Rural do Oeste (SRO), representante dos ruralistas da região. De acordo com a organização Terra de Direitos, a NF segurança “não tem 40 seguranças registrados, eles registram alguns poucos empregados e o restante é pago por dia, pessoas da pró-

pria cidade, pessoas que não têm porte de arma”. Ao lado de Keno, Célia Aparecida Ribeiro e Celso Barbosa, coordenadores do MST na região, estavam ameaçados de morte. Barbosa conta com escolta policial, para ele e para sua família. A militante Izabel Nascimento de Souza, que estava gravemente ferida, há uma semana deixou o hospital. Izabel ficou cega de um olho e teve os movimentos de um dos braços afetado.

Repressão anunciada Na mesma semana do ataque à Via Campesina, a reportagem do Brasil de Fato acompanhou a reunião de representantes do comércio e do agronegócio da região de Cascavel, como a Sociedade Rural do Oeste (SRO), na qual foi definida como estratégia dos empresários pressionar o Governo do Estado. Na visão dos ruralistas, o governador paranaense, Roberto Requião, não cumpre a reintegração de posse das áreas ocupadas. Na prática, não há sustentação material para a tese dos ruralistas, visto que, somente em 2006, houve 55 casos de prisões de trabalhadores rurais no Paraná (quarto Estado do país em prisões), dado que cresce a cada ano, de acordo com da-

dos da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No dia 30 de outubro, o governador Requião declarou que a empresa Syngenta “não é bem-vinda no Paraná”. Manifestações de repúdio à transnacional partem desde coletivos na Catalunha (Espanha) até a declaração da Conferência Nacional Popular sobre Agroenergia, realizada entre os dias 28 e 31 de outubro em Curitiba (PR). A postura de intimidação por parte da Sociedade Rural do Oeste (SRO) aos movimentos sociais do campo é anunciada e divulgada pela própria SRO. Em entrevista dada à jornalista estadunidense Isabella Kenfield, o presidente da SRO, Alessandro Meneghel, idealizador do Movimento dos Produtores Rurais (MPR), braço armado dos ruralistas da SRO, afirmou, ainda em 2006: “Por que a SRO enfrentou o MST e a Via Campesina a se-

Quanto

40 seguranças participa-

ram do assassinato do coordenador da Via Campesina mana passada em Cascavel e tentou bloquear a passagem dos movimentos sociais? Para mostrar que os produtores rurais não aceitam mais pacificamente as invasões de terra e as provocações políticas. Para toda invasão de terra que acontecer na região, haverá uma manifestação à altura da SRO. Somos contra a violência no campo e entendemos que a violência parte dos chamados ‘movimentos sociais’”. Em novembro de 2006, em Santa Tereza do Oeste durante Jornada de Educação do MST, a SRO interrompeu, intimidou com disparos e chegou a atacar os membros do movimento que realizavam uma marcha pacífica.

Aumento de ações armadas e ameaças no Paraná Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobre os conflitos de terra ao longo de 2006 apontam que 764 famílias foram atingidas, ameaçadas e intimidadas por grupos armados a serviço do latifúndio, um aumento de 23,22% se comparado com o ano anterior.

Omissão de Lula contribui para mortes no campo Para Plinio Arruda Sampaio, opções do governo Lula favorecem ofensiva do agronegócio de Curitiba (PR) Plinio Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), analisa que o assassinato de Keno foi um recado dado pelos latifundiários como um modo de intimidar os trabalhadores do campo, por meio de uma “ação exemplar”. O que favoreceu o acontecimento do assassinato, de acordo com Sampaio, é a posição do governo federal de deixar de sinalizar ao agronegócio que o camponês tem o seu apoio. “Antes, o governo era uma força que detinha o latifundiário, devido à idéia de pacto com os camponeses e que iria reprimir tentativas nesse sentido (como as da segu-

rança da empresa Syngenta Seeds)”, comenta. Sampaio complementa: “O que aconteceu é o resultado da opção pelo ‘etanol’, ou seja, a opção do governo por exportação em larguíssima escala, pelo agronegócio, que ao mesmo tempo tenta amedrontar a massa rural, com fatos exemplares”, diz. De acordo com ele, o agronegócio hoje se caracteriza pelo que a Abra classifica como “modernização técnica sem reformas”, significando aliança entre a grande propriedade e a tecnologia de produção, ignorando a reforma agrária e a distribuição de terras, de acordo com documento publicado este ano pela Abra, intitulado “Qual é a questão agrária atual”. “A essência da modernização técnica sem refor-

mas é uma aliança tácita do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária, sob generoso patrocínio fiscal, financeiro e patrimonial do Estado, promovendo o crescimento integrado dos mercados de agronegócios e concentração da riqueza fundiária”, descreve o documento da Abra. O documento analisa que o modelo do agronegócio segue com uma concentração de terras muito grande no território brasileiro destinado ao cultivo. Atualmente, as grandes propriedades representam apenas 1,6% dos imóveis e ocupam 43,7% do território, ao passo que as pequenas propriedades representam 85,2% dos imóveis e ocupam apenas 20,1% da área. (PC)

No dia 1°, cerca de 100 trabalhadores rurais e urbanos se reuniram para uma manifestação na sede da empresa Syngenta Seeds em Paulínia, região de Campinas, São Paulo. O objetivo do ato foi protestar contra o assassinato do sem-terra Valmir Mota de Oliveira, o Keno, no Paraná.

Capital

A exemplo do que ocorre anualmente, os lucros dos bancos privados novamente bateram recordes. Entre janeiro e setembro, o Bradesco lucrou R$ 6 bilhões, o que representa um crescimento

fatos em foco

de 70% em relação ao mesmo período de 2006. Com esses resultados, os bancos brasileiros continuam sendo os mais rentáveis do mundo.

Bloqueio

Pelo 16º ano consecutivo, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) pediu o fim do embargo econômico, financeiro e comercial que os Estados Unidos praticam contra Cuba desde 1962. A assembléia classificou a atitude do governo estadunidense como desumana. Apenas EUA, Israel, Palau e Ilhas Marshall votaram contra o repúdio ao bloqueio.

Hamilton Octavio de Souza

Unidade sindical Finalmente boa parte do sindicalismo brasileiro deixou o conforto de seus escritórios para promover uma ação coletiva: centenas de dirigentes demonstraram toda a sua combatividade na audiência realizada no Congresso Nacional para debater o projeto de lei que trata da contribuição sindical. Claro, todos defendem o recolhimento compulsório dos trabalhadores. Nem mesmo os petistas e cutistas, que antigamente eram contra o confisco dessa grana, ousam agora contrariar a pelegada. Dinheiro fácil

Verão brasileiro

Ação patriótica

Vergonha nacional

Se o Senado aprovar o mesmo projeto da Câmara dos Deputados, a contribuição sindical deixa de ser obrigatória, não será mais recolhida automaticamente e dependerá da aprovação de cada trabalhador. Alguns sindicalistas e parlamentares defendem que a aprovação da contribuição seja feita na assembléia de cada categoria, mas os dirigentes acomodados querem mesmo o recolhimento obrigatório. A decisão da FIFA de realizar no Brasil a Copa do Mundo de Futebol de 2014 coloca de imediato duas preocupações: uma diz respeito à tolerância do brasileiro para agüentar sete anos de bombardeio ufanista da mídia e das autoridades sobre o evento esportivo; a segunda diz respeito ao número de assassinatos que as forças de segurança precisará fazer para deixar o país “preparado” para a Copa.

Cumplicidade

Está provado: o senador Eduardo Azeredo, do PSDB, recebeu R$8,2 milhões de doações clandestinas para sua campanha eleitoral, em 1998, de seis empreiteiras que haviam embolsado R$296 milhões por obras em seu governo, em Minas Gerais. Praticou crime eleitoral. Assim mesmo a base aliada do governo no Senado não demonstra a menor vontade de cassar o tucano. Por que será?

Verdade histórica

O imperialismo não tem nada a reclamar do Brasil desde o golpe militar de 1964. A ditadura combateu duramente as organizações de esquerda e todos os focos do pensamento socializante, além de ter escancarado as portas do país para a entrada do capital estrangeiro. Era tudo o que imperialismo queria. Mas está ganhando muito mais dinheiro agora, nos governos civis, do que em outra época.

No início do inverno deste ano, a imprensa empresarial e as autoridades brasileiras tripudiaram a Argentina porque o país vizinho foi obrigado a fazer racionamento de gás nos dias mais frios, devido ao excesso de consumo para a calefação. Na época se dizia que o governo Néstor Kirchner havia descuidado da área energética e que o Brasil estava imune a esse tipo de problema. Agora todos estão mordendo a língua. Depois de pedir e não receber explicações do governo brasileiro sobre execuções sumárias praticadas por autoridades públicas, o relator da ONU, Philip Alston, resolveu visitar pessoalmente o Brasil e coletar informações sobre assassinatos da Polícia Militar em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Os governadores estaduais acionam seus esquadrões da morte e o governo federal finge que não sabe de nada.

Zona livre

Pesquisa realizada pelo banco espanhol Santander junto a investidores dos Estados Unidos e da Europa revelou que a maioria considera o Brasil o país mais atrativo, no momento, em especial os setores de petróleo e gás, seguidos pelo financeiro e consumo e varejo. Vale lembrar que o atual governo isentou os especuladores estrangeiros do recolher impostos no Brasil. Quem paga imposto é quem trabalha.

Prêmio midiático

Ele foi um dos mais poderosos ministros da ditadura militar, manipulou os índices de inflação e arrochou os salários para garantir maiores lucros ao capital. Foi também fiel companheiro do empresário Paulo Maluf na Arena, no PDS e no PP. Sempre esteve do lado da Fiesp contra os trabalhadores. Agora Antonio Delfim Netto foi nomeado pelo presidente da República para integrar o Conselho Diretor da TV Brasil – a nova emissora estatal.


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Perseguidos políticos fazem congresso

José Cruz/ABr

brasil

DIREITOS HUMANOS Entre os dias 13 e 14 de dezembro, ex-presos políticos irão debater temas como a abertura dos arquivos e a revisão da Lei de Anistia Tatiana Merlino da Redação NO DIA 13 de dezembro de 1968 foi decretado o Ato Institucional nº 5. Implementado durante o governo Costa e Silva, o AI-5 acentuou o caráter ditatorial do governo militar instalado em 1964 no Brasil. Com ele, o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais foram colocados em recesso e o presidente passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas autoritárias. Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, o assassinato e outros desmandos. Tudo em nome da “segurança nacional”. Na data que coincide com o 39º aniversário do AI-5, o Fórum dos ex-Presos e Perseguidos Políticos pela ditadura militar, de São Paulo, está organizando o 1° Congresso dos Perseguidos Políticos pela Ditadura Militar. De acordo com o jornalista Ivan Seixas, membro do Fórum e ex-preso político, o Congresso pretende ser um espaço político de debates da esquerda e dos velhos combatentes. “Assim como os milicos têm o Clube Militar,

nós também queremos ter um canal de expressão”, diz.

Impunidade O evento, que será realizado nos dias 13 e 14 de dezembro na capital paulista, será uma preparação para o Congresso Nacional dos Perseguidos pela ditadura, ainda sem data prevista, e irá discutir temas como a abertura dos arquivos do regime, a impunidade decretada aos torturadores e a revisão da Lei de Anistia. Os representantes do Fórum criticam duramente o beneficiamento pela Lei das pessoas que cometeram assassinatos e torturas. Os representantes do grupo lembram que o crime de tortura, de acordo com a Constituição de 1988 e a Convenção dos Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, é imprescritível. “Queremos discutir a punição dos torturadores, que até hoje continuam impunes”, garante Seixas. O jornalista questiona a forma como o Estado brasileiro resolveu tratar dos crimes da ditadura, por meio de indenizações. “No Chile, por exemplo, os torturadores estão sendo julgados e presos. No Brasil, infelizmente não existe isso”, completa. Herança maldita Além dos assuntos referentes ao período ditatorial, o Congresso irá discutir temas atuais, como a herança deixa-

da pela ditadura em relação à política de segurança pública. “A tortura e a pena de morte continuam sendo praticadas no país”, salienta. De acordo com Seixas, o evento também é uma manifestação contra “os atos de agressão à democracia levados a efeito pela direita raivosa, insatisfeita em estar fora do comando do país”. Um dos tais atos são as declarações dos militares após o lançamento do livro “Direito à memória e à verdade”, iniciativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) que recupera a história de 474 militantes políticos durante o período 1961-1988. Após o lançamento da obra, o Alto Comando do Exército emitiu nota, expressando ainda uma mentalidade golpista e de orgulho pelas práticas arbitrárias cometidas: “Não há exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido o mesmo exército de Caxias, referência em termos de ética e de moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade brasileira”.

Indenizações Outra investida dos militares que Ivan classifica como “ato de agressão da direita” foi a reação do Clube Militar do Rio de Janeiro à pensão de R$ 12 mil concedida à família do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca, morto em 1971, e o questionamento, por par-

Lula e parentes de mortos e desaparecidos políticos no lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade

Quanto

39 anos se passaram desde o decreto do AI-5 te deles, do pagamento de indenizações aos perseguidos pelo regime. Para o jornalista, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem sido “vascilante” no que se refere a tratar das questões dos crimes cometidos pela ditadura. “É o mesmo papel que teve o governo de Fernando Henrique Cardoso. Não se toma nenhuma providência concreta”, avalia. Seixas acredita que além da iniciativa da SEDH de lançar o livro sobre o período, nada mais foi feito. “Quando se fala em abrir os arquivos, as Forças Armadas se manifestam contra e o governo acata”, critica.

A iniciativa da Fórum permanente dos ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo conta com o apoio de entidades de defesa dos direitos humanos, como o Grupo Tortura Nunca Mais, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), o Movimento Nacional de Direitos Humanos, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, entre outros. Além de ser um evento preparatório para o Congresso, o evento também será organizado em outros Estados, onde ex-presos e perseguidos políticos também estão organizados.

Reparação O Fórum foi criado para lutar pela reparação das injustiças e contra os desmandos, a impunidade e o esquecimen-

to dos atos praticados pela ditadura. A entidade também atua em defesa dos direitos humanos no mundo e age em conjunto com os comitês internacionais de Direitos Humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. No Brasil, apóia as associações que lutam pelos direitos dos anistiados, o Comitê pelos Mortos e Desaparecidos, o grupo Tortura Nunca Mais e os centros de defesa dos Direitos Humanos. O jornalista Ivan Seixas foi preso em 1971, aos 16 anos, junto com seu pai, o metalúrgico Joaquim Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Os dois foram torturados na Operação Bandeirantes, onde Joaquim foi assassinado. O assassinato de Joaquim foi divulgado como morte por tiroteio.


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cultura Divulgação

O outro lado da favela CINEMA Documentário “Meu Brasil” mostra luta de líderes comunitários em favelas do Rio e os acompanha ao Fórum Social Mundial

Brasil de Fato – Como surgiu a idéia de fazer um documentário sobre líderes comunitários? Daniela Broitman – Quando eu fiz o primeiro documentário que co-dirigi e co-produzi, no final de 2002, entrei em contato com vários líderes comunitários e comecei a entender do mundo de-

Carlos Alberto Martins, um dos personagens de “Meu Brasil”, líder comunitário na Baixada Fluminense

Vemos esses filmes (como “Tropa de Elite”) e sabemos que a mídia, em geral, retrata as favelas de maneira estereotipada, com muitos clichês, sempre abordando a violência les, do dia-a-dia. Depois, fiz um projeto com uma professora estadunidense em que eu também trabalhava com líderes comunitários em favelas e fiz mais entrevistas. A partir daí, meu interesse pela liderança comunitária só foi aumentando. Percebi que aqueles que estão realmente na base, na ponta do social, com pé no chão, no dia-a-dia da pobreza, são as pessoas que podem pensar e realizar alguma coisa na comunidade. Também vi que eles eram uma ponte muito importante entre o tráfico, a comunidade, a polícia e o poder público. Como um deles fala no filme, eles têm que fazer um pouco de tudo. Se a comunidade precisa, são professores, são terapeutas, pois muitas vezes adolescentes super problemáticos recorrem a eles. E eu nunca tinha visto nada

sobre o papel deles, nenhum documentário. Como tem sido a receptividade do seu filme pelos personagens e pela comunidade? Tem sido incrível. Os líderes ficaram muito, muito emocionados quando viram o filme pela primeira vez. Na pré-estréia, no Rio, muitos deles foram, assim como pessoas da família e da comunidade. Foi emocionante para todo mundo. Uma líder ficou tão emocionada que passou mal... não que isso seja algo bom. Passamos o filme no Viva Rio para uns 30 alunos estadunidenses da New York University e levei a Gaúcha [uma das líderes]. Foi bacana, eles ficaram muito curiosos, queriam saber mais do projeto, entender as coisas. E isso é fundamental porque esse filme foi feito para dar visibilidade a esses líderes, para mostrar um pouco do mundo deles. Então, quando eles estão presentes é ótimo, pois falam por si próprios. Não sou porta-voz de ninguém e nem acho que eu deva ser. Claro que é difícil porque não temos nenhum patrocínio e toda vez que tem alguma mostra, algum festival, tenho que batalhar financiamento para eles poderem ir. Agora, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, pude trazer um deles, mas para levar os outros dois, tive que correr atrás. No For Rainbow, em Fortaleza (CE), levei a Juliana, já que era um festival de diversidade sexual. Ela virou a rainha lá, fez o maior sucesso.

recem, como a solidariedade entre eles, a ajuda e a rede que formam para superar momentos difíceis. Queria mostrar esse outro lado de pessoas honestas, batalhadoras. A grande maioria é de trabalhadores, tem orgulho de ser honesto, sentem-se dignos de terem seus trabalhos, de não terem passado pelo tráfico. Então, é triste ver como a mídia pega aqueles 2% desonestos e generaliza. Por que essa abordagem tem tanto apelo na classe média, média alta? Pois é, é a grande questão: por que sexo e violência vende tanto? Na cultura estadunidense isso é algo que já está enraizado e eles consomem muito. É claro que a cultura dos países em desenvolvimento acabam sofrendo muita influência daquilo que os Estados Unidos produzem. Acho que o público tem pouca oportunidade de ver outras leituras. A nossa televisão, nossos cinemas, estão sempre transmitindo esses filmes estadunidenses. E os filmes brasileiros não conseguem muito espaço, principalmente os de baixo orçamento. Mas, por exemplo, já houve diversas pessoas que depois de uma sessão do “Meu Brasil” vêm me perguntar “o que fazer para ajudar? Por onde eu começo?”. E não foram duas ou três pessoas, mas várias. Então, o filme cumpre o papel que eu gosta-

ria que ele cumprisse, ou seja, que as pessoas se sintam responsáveis socialmente. Você filma os líderes comunitários no Fórum Social Mundial de 2005 e acaba fazendo um documentário dentro do documentário, sobre o FSM. Era a intenção desde o início levá-los a Porto Alegre (RS)? Já tinha em mente. Fiz um primeiro documentário, “A Voz da Ponta – A Favela Vai ao Fórum Social Mundial”, que também foi sobre o Fórum, mas que fazia uma crítica a ele, de alguma maneira, porque era um evento que propunha inclusão social, mas as pessoas vítimas da exclusão não conseguiam ir, já que durante alguns anos foi um encontro de acadêmicos, intelectuais, classe média alta. Então, o filme tinha críticas ao evento, embora não se resumisse a isso. Isso foi em 2002. Nesse processo eu percebi a importância do FSM para essas pessoas, então, juntei as duas coisas, fiz um projeto audiovisual-social, costumo dizer. Para o “Meu Brasil”, me juntei ao comitê Rio do Fórum de 2005. Importante dizer que esses comitês são separados, independentes da organização do FSM. Então, não tínhamos nenhuma verba, mas consegui o apoio para levar os líderes. Uma coisa muita necessária para eles é conhecer experiências e militantes de outros países, isso é muito enriquecedor para eles. No FSM, isso foi fundamental, para saber o que está acontecendo em outros lugares e formar uma rede.

Divulgação

CLEONIR ALVES, negra, seis filhos, mais conhecida como “Gaúcha”, é líder comunitária em Barro Vermelho, no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro (RJ). Ganhou o apelido por ser do Rio Grande do Sul, de onde saiu na década de 1980 devido à descriminação racial que sofria. Já na capital fluminense, trabalhou como cozinheira na casa de Irineu Marinho, atual presidente das Organizações Globo. Sempre interessada por política, conta que o chefe costumava brincar que ela seria presidente. Desde 2000, milita no Conselho de Mulheres da Zona Oeste (Comzo). Juliana, como gosta de ser chamado Júlio Cardoso, é transexual e moradora de Três Rios, cidade do interior do Rio de Janeiro. Após sofrer preconceitos e agressões ao usar banheiros públicos masculinos, passou a lutar pelo “terceiro banheiro”; a partir daí, iniciou seu processo de conscientização. Hoje, milita na Central de Movimentos Populares (CMP). Já Carlos Alberto Martins da Silva, mergulhador e morador de Parada Angélica, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, mergulhou no ativismo após uma decepção amorosa. Juntou-se a uma ONG da área de meioambiente, reciclagem, saúde e cidadania. Esses são os três personagens principais de “Meu Brasil”, assinado por Daniela Broitman, um dos cinco documentários finalistas da 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (de 19 de outubro a 1º de novembro). Em 2003, Daniela co-dirigiu e co-produziu “A Voz da Ponta – A Favela Vai ao Fórum Social Mundial”. A partir dessa experiência, concebeu “Meu Brasil”. Reuniu

um grupo de líderes comunitários e, no final de 2004, iniciou as gravações. O objetivo, desde o início, era levar as lideranças ao Fórum Social Mundial de 2005. No filme, Daniela registra parte da experiência dos 33 líderes. Se o FSM é um evento que propõe a inclusão social, nada mais óbvio do que garantir a ida de pessoas que vivem diariamente a exclusão. “Durante alguns anos, (o FSM) foi um encontro de acadêmicos, intelectuais, classe média alta”, avalia Daniela. “Então, juntei as duas coisas, fiz um projeto audiovisual-social, costumo dizer”, complementa. Em tempos de “Tropa de Elite”, o filme também chama a atenção por mostrar uma outra realidade dos moradores de comunidades pobres: a luta por uma vida melhor. “Quando o projeto nasceu, foi muito por isso. Nós vemos esses filmes e sabemos que a mídia geral retrata as favelas de maneira estereotipada, com muitos clichês e sempre abordando a violência. Na verdade não é só isso, claro que tem violência, mas assim como no asfalto também tem. Mas há coisas como a solidariedade entre eles, a ajuda e a rede que eles formam para superar momentos difíceis”, explica a diretora. Todo financiamento da obra, que custou R$ 200 mil, foi feito por ONGs e fundações. Assim como sua distribuição, conta Daniela, tocar o filme foi (e ainda é) uma luta constante por verbas. Leia, a seguir, a entrevista com a diretora.

No filme, você aborda um lado diferente dessas comunidades, aspectos que não se costuma ver, por exemplo, em obras de ficção como “Tropa de Elite”. Exatamente. Quando o projeto nasceu, foi muito por isso. Nós vemos esses filmes e sabemos que a mídia, em geral, retrata as favelas de maneira estereotipada, com muitos clichês, sempre abordando a violência. Na verdade não é só isso, claro que tem violência, mas assim como no asfalto também tem. Mas há coisas que quase nunca apa-

Á esquerda, Juliana na marcha de abertura do FSM de 2005

Quem é Divulgação

Dafne Melo da Redação

Daniela Broitman é cineasta, formada em jornalismo pela PUC-SP e mestre pela Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos). Trabalhou como repórter nos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Em Nova York (EUA), estudou produção de vídeo digital na New York University (NYU) e dirigiu o curta-metragem “If I Go Totally Bananas: The Percussive Life of Cyro Baptista” (“Se eu ficar totalmente louco: a vida percussiva de Cyro Baptista”, tradução livre). De volta ao Brasil em 2002, começou a filmar nas favelas do Rio de Janeiro. Completou seu primeiro documentário de longa duração, “A Voz da Ponta – A Favela Vai ao Fórum Social Mundial”, para o qual fez co-pro-


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américa latina

Ex-aliado de Chávez reacende temor de golpe de Estado Nama

VENEZUELA Antigo ministro da Defesa surpreende venezuelanos, critica reforma constitucional e conclama militares a defenderem a “legalidade”

O ANÚNCIO do general reformado e ex-ministro da Defesa Raúl Isaías Baduel surpreendeu os venezuelanos. O militar abandonou a chamada revolução bolivariana. Não é qualquer figura, mas sim um dos principais atores no processo de reestituição da ordem Constitucional e do regresso de Hugo Chávez ao poder durante o falido golpe de 2002, Baduel veio a público no dia 5 conclamar o povo contra a reforma constitucional defendida por Chávez, alardeando que as mudanças vão consolidar “ um golpe de Estado”. Para o ex-ministro da Defesa, as medidas em debate atentam contra “os direitos cidadãos” e concentram poderes nas mãos do poder Executivo e Legislativo. A impactante declaração de Baduel, no entanto, não foi imprevista. Um dia antes, Chávez já havia antecipado o anúncio. “Lamento a atitude de algumas pessoas que formaram parte do governo e que, agora, saltarão o muro”, disse, diante de centenas de milhares de pessoas que tomaram Caracas. Em um discurso inflamado, o presidente venezuelano diagnosticou que haverá baixas na medida em que o processo revolucionário se aprofunda, acrescentando que isso “fortalecerá sua força física, moral e ideológica”. A saída de um dos principais nomes da Força Armada da base de apoio do chavismo se insere no contexto de aprofundamento da polarização na Venezuela. Com a provável aprovação da reforma constitucional, que será submetida a referendo em 2 de dezembro, o processo de transição que estaria sofrendo o Estado tende a conhecer seu fim. A revolução bolivariana – a partir da qual se pretende construir um Estado socialista – assumirá uma nova fase no próximo mês, em que a principal característica colocará a prova os atuais defensores da revolução. Até onde estarão dispostos a chegar com o socialismo venezuelano?

Pegar em armas

Baduel disse que o governo deveria explicar que tipo de socialismo seria aplicado na Venezuela, já que poderia ir desde o instaurado no Camboja ou na União Soviética até o de certos países europeus. “Temos que exigir que nos diga claramente, que não minta com um suposto socialismo a la venezuelana”, questionou. O exministro convocou o povo venezuelano a votar contra a reforma e chamou “seus companheiros de armas” a defender a Constituição. Na opinião do general de divisão reformado Alberto Müller Rojas, a mensagem de Baduel é dirigida diretamente aos oficiais da Força Armada e tem como objetivo provocar uma rebelião. “Quando fala que se trata

de um golpe de Estado, está convocando os oficiais a defender a ordem constitucional”, afirma Rojas, em entrevista ao Brasil de Fato. Müller Rojas, que tem figurado como uma das vozes críticas dentro do governo, havia antecipado a crise atual. O general de divisão reformado se confrontou indiretamente com Baduel e o próprio presidente ao advertir, no mês de junho, que o ex-ministro de Defesa liderava uma corrente conservadora na Força Armada, a qual acredita em um chavismo sem Chávez. “Baduel está buscando protagonismo político e pretende se projetar como um líder alternativo à Chávez”, analisa Müller Rojas.

Apunhalada e traição

Em um programa de televisão, Chávez qualificou Baduel como “traidor” e admitiu que o Alto Comando da Força Armada Nacional (FAN) se reuniu para avaliar as declarações do general reformado. Ainda não se sabe se as declarações do ex-ministro podem gerar alguma conseqüência mais grave no interior da FAN. O analista político Alberto Garrido avalia que Baduel deve estar apoiado por um grupo de militares. “A dúvida é se são militares na ativa ou reformados. Dependendo disso, o panorama pode mudar”, afirma. O general reformado chegou à coletiva de imprensa, quando anunciou sua posição, acompanhado de alguns oficiais, o que gera ainda mais temor sobre a possibilidade de uma divisão entre setores armados. É bem verdade que Chávez tende a estar melhor protegido do que em 2002, quando a divisão no interior da FAN levou a seu derrocamento, por 48 horas. Ao regressar ao poder, o presidente venezuelano “limpou” dos cargos de mando todos os generais opositores. Os que ainda foram mantidos na Força Armada estão à frente de cargos burocráticos, sem a possibilidade de ascender ao corpo operativo de Defesa, informou ao Brasil de Fato uma fonte do governo. Chávez garante que não há possibilidade de sucesso de um golpe de Estado. “Estou completamente seguro de que não há dentro da Força Armada nenhuma corrente que tenha a força necessária capaz de dar um golpe de Estado exitoso”. No entanto, Müller Rojas não descarta essa possibilidade. O general de divisão reformado acredita que uma rebelião é difícil, mas não impossível. Para ele, conforme a processo revolucionário for se aprofundando, mais dissidentes aparecerão, dentro e fora do círculo de seus companheiros de armas. “São necessárias mudanças na Força Armada assim como em todo os setores da sociedade venezuelana. Muitos não aceitarão as mudanças. O socialismo não é unanimidade, mas muitos o apoiamos”, analisa o general Müller Rojas.

Principais propostas da reforma constitucional – Redução da jornada de trabalho de oito para seis horas diárias; – Fim da autonomia do Banco Central – Criação do Poder Popular, que será incluído na escala dos tradicionais poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) – Independência dos Conselhos Comunais da administração pública, seja ela prefeituras ou governos estaduais – Reeleição irrestrita do presidente e mandato de sete anos – Proibição e eliminação dos latifúndios

Venezuelanos participam da primeira grande marcha em apoio à reforma constitucional proposta pelo presidente Hugo Chávez

Oposição dividida aumenta tensão Direita se fragmenta entre boicotar referendo e pedir votos pelo “não”; pesquisas indicam aprovação da reforma por 60% dos votos O grupo do “não”, conformado pelos partidos emergentes Primeiro Justiça e Um Novo Tempo e outros partidos menores, aliados a um setor do movimento estudantil, decidiu encabeçar as primeiras manifestações contrárias à reforma constitucional proposta por Chávez. A reivindicação desse grupo é o adiamento do referendo para fevereiro de 2008. Os protestos geraram enfrentamentos com a polícia metropolitana, ruas bloqueadas e árvores incendiadas. Chávez reagiu exigindo “mão firme” de parte de seus ministros e instituições de inteligência para controlar o que qualificou de atos de terrorismo. “Alerto aos mais desesperados que não permitiremos que levem o país a uma situação convulsionada. Andam buscando mortos, não vamos permitir”, disse.

de Caracas (Venezuela) As declarações do ex-aliado Raúl Isaías Baduel caíram como um presente no colo da oposição venezuelana, mas o alento não deve durar muito. A direita venezuelana chega à disputa da reforma constitucional dividida e com estratégias eleitorais distintas: um grupo convoca a votar pelo “não” à reforma; o outro aposta no boicote. De acordo com uma pesquisa de opinião do Instituto Datanalisis, o “sim” deverá alcançar entre 60% e 65% dos votos no referendo. Segundo a mesma pesquisa, o “não” poderia ter alguma chance de vitória se fosse encampado por toda a oposição e se parte dos simpatizantes do governo se abstiverem.

Resistência

Por outro lado, os partidos tradicionais venezuelanos aliados à Central de Trabalhadores de Venezuela – o mesmo grupo que apoiou o golpe de Estado de 2002 – pretendem impedir ou suspender a realização do referendo. O ex-comandante do golpe de novembro de 1992, Carlos Guyón Celi, já anunciou publicamente que o objetivo dos protestos é fazer com que Chávez renuncie. Para o analista político Alberto Garrido, as ações da oposição são completamente imprevisíveis. “A oposição continua sumamente desorganizada, dividida, sem saber o que fazer. O que se pode prever é que a tensão vai crescer até os dias prévios ao referendo”, afirma Garrido. (CJ)

Desafio de chavistas é derrotar abstenção Batalhões do partido assumem campanha do referendo; cada militante deve conseguir nove votos

Nama

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

de Caracas (Venezuela) “Antes, só participávamos da política na hora de votar. Hoje não; tiramos a venda dos olhos e estamos construindo juntos o país que queremos”, disse o trabalhador informal Leonidas Olívar, após viajar 12 horas para participar da primeira grande marcha em apoio à reforma constitucional proposta pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Olívar entusiasmado, junto a outras centenas de milhares de simpatizantes que tomaram as ruas de Caracas, dia 4, vestia camiseta e boné vermelhos com um “sim” no centro. “Apoiamos a reforma porque ela beneficia os pobres. Pela primeira vez, vou ter direito a seguridade social”, explica Olívar, que afirma ter trabalhado sempre no mercado informal. Uma das mudanças constitucionais prevê o pagamento de seguridade social a todos os trabalhadores inseridos na economia informal, inclusive para as donas-de-casa. Olívar conta que, depois do trabalho, participa das reuniões do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), em que assumiu a tarefa de segundo porta-voz de um batalhão. Com a campanha do referendo, será destacado para uma nova tarefa. Na manifestação, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, anunciou que será tarefa dos batalhões do PSUV assumir a campanha pelo “sim” no referendo da reforma constitucional. “O povo vai derrotar a abstenção, a partir de ca-

Centenas de milhares de simpatizantes tomaram as ruas de Caracas

da batalhão, rua por rua, casa por casa, não ao sectarismo, a unidade revolucionária deve ser o caminho”, discursou.

Campanha contra a abstenção

Repetindo a estratégia utilizada no referendo de 2004 – do qual saiu vitorioso com 60% dos votos –, Chávez leva os batalhões do partido às ruas para assumir a responsabilidade de conseguir nove votos por militante do partido. Mais do que angariar votos, a estratégia do presidente venezuelano é mobilizar a população e, ao mesmo tempo, comba-

ter o principal inimigo que poderá frear a aprovação da reforma: a abstenção. No referendo convocado para aprovar a atual constituição, em 1999, apenas 44% da população foi às urnas. No referendo de 2004, para decidir a permanência de Chávez no poder – 70% dos eleitores votaram. “O grande objetivo é aprovar a reforma constitucional. Mas não de qualquer maneira e, sim, de maneira contundente, para que não fique nenhuma dúvida de que a maioria disse sim”, disse Chávez, no encerramento da manifestação. (CJ)




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áfrica

Violência sexual na República Democrática do Congo persiste MULHERES Apesar de denúncias da ONU, mulheres ainda são violentadas e mortas diariamente no país africano Dan Caspersz

Dafne Melo da Redação NO FINAL de outubro, a Organização das Nações Unidas (ONU) fez um alerta: as mulheres continuam sendo vítimas das mais brutais violências sexuais no Congo. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que a violência contra a mulher “alcançou atrozes proporções epidêmicas”. A fala de Ki-moon foi realizada no Conselho de Segurança da ONU sobre o cumprimento da Resolução nº 1.325, adotada em 2000, que contempla o direito da mulher à segurança e à participação em ações para manter a paz. Essa última definição, garantiria uma maior preocupação com a situação das mulheres, uma vez que as políticas de pacificação e humanitárias também estariam sendo pensadas por elas. Entre os países com maior índice de violência contra a mulher estão a região sudanesa de Darfur e a República Democrática do Congo, onde estupros, escravidão sexual e feminicídio ocorrem comumente. Ainda em julho, a ONU mandou uma relatora para a província congolesa de Kivu do Sul. Yakin Erturk classificou a violência contra as mulheres no Congo como a pior presenciada por ela em quatro anos de trabalho como investigadora especial da ONU para atos de violência contra a mulher. No dia 23 de outubro, Yakin voltou ao assunto na Assembléia Geral do ONU. Ela afirma que os agentes da violência incluem membros das forças aéreas congolesas, de milícias armadas, policiais e, de forma crescente, civis. “A situação é mais aguda em Kivu do Sul, onde grupos paramilitares, muitas vezes estrangeiros, cometem atrocidades sexuais de uma brutalidade inimaginável, e geram a destruição física e psicológoca da mulher”, declarou. O problema, portanto, não estaria circunscrito ao Leste do país, a região mais atingida por conflitos nos últimos anos. Yakin afirmou que um clima de impunidade pelos crimes contra mulheres predomina por todo o país. “Segurança Pública e Judiciário tem falhado em agir e as sobreviventes de violência sexual não tem o cuidado necessário. Estas são

Mulheres em situação de risco em Goma, província de North Kivu, na República Democrática do Congo, participam de curso de capacitação

Mulheres são vítimas de estupro em grupo, em alguns casos diante de familiares. “Não raro, homens ficaram sob a mira de revólveres e foram obrigados a violentar filhas, mãe e irmãs”, diz funcionária da ONU constantemente estigmatizadas”, diz. Nem mesmo a ONU sai ilesa das denúncias de violência sexual. Em 2004, o órgão admitiu que integrantes de sua Força de Paz no país cometeram os crimes. Em 2006, voltou a sofrer acusações. Soldados capacetes azuis (usados por integrantes da entidade) foram acusados de arregimentar esquemas de prostituição de menores no país.

Horror

A funcionária da ONU conta que “as atrocidades perpe-

tradas por esses grupos armados são de uma brutalidade inimaginável e vão muito além do estupro”. Mulheres são vítimas de estupro em grupo, em alguns casos diante de familiares. “Não raro, homens ficaram sob a mira de revólveres e foram obrigados a violentar filhas, mãe e irmãs”. Ross Mountain, também da ONU, afirma que é difícil obter números confiáveis em relação à violência contra as mulheres. “Estamos falando de centenas de milhares de vítimas nos últimos anos”. Ele citou uma pesquisa feita em 2006 pela ONU.

Cerca de 50 mil casos foram registrados em centros de saúde. “Se todos esses casos foram registrados, quantos de fato existiram ali?”, questiona. Na província de Equateur, 78 membros de um batalhão militar foram acusados de estuprar cerca de 120 mulheres. Com apoio da comunidade internacional, “conseguimos fazer com que 12 deles fossem julgados e seis foram condenados”, conta Mountain. Entretanto, a legislação local permitiu com que, depois de um mês, ninguém estivesse preso”, lamenta.

Depoimento Em agosto deste ano, a dramaturga Eve Ensler, autora de peças comerciais de sucesso, leu um discurso perante a assembléia da ONU, chamando a atenção de entidades de direitos humanos de todo mundo. Leia trechos do discurso: “Volto do inferno. Procuro desesperadamente uma maneira para lhes contar o que vi e ouvi na República Democrática do Congo. Procuro uma maneira para lhes narrar as histórias e as atrocidades e, ao mesmo tempo, evitar que fiquem abatidos, chocados ou afetados mentalmente. Não sou a primeira pessoa que denuncia as violações, as mutilações e as desfigurações das mulheres do Congo. Existem relatórios a respeito desse problema desde 2000. Não sou a primeira que conta essas histórias, mas, como escritora e militante contra a violência sexual contra as mulheres, vivo no mundo da violação. Passei dez anos a ouvir as histórias de mulheres violadas, torturadas, queimadas e mutiladas na Bósnia, Kosovo, Estados Unidos, Cidade Juárez (México), Quênia, Paquistão, Haiti, Filipinas, Iraque e Afeganistão. E, apesar de saber que é perigoso comparar atrocidades e sofrimentos, nada do que eu tinha escutado até agora foi tão horrível e aterrorizador como a destruição da espécie feminina no Congo. A situação não é mais do que um feminicídio, e temos que a reconhecer e analisar como tal. É um estado de emergência. As mulheres são violadas e assassinadas a toda hora.

Também é necessário acrescentar as violações das mulheres em frente de seus maridos e filhos. Mas a maior crueldade é a seguinte: soldados soropositivos organizam comandos nas aldeias para violar as mulheres, mutilá-las. Há relatos de centenas de casos de fístulas na vagina e no reto causadas pela introdução de paus, armas ou violações coletivas. Essas mulheres já não conseguem controlar a urina ou as fezes. Depois de serem violadas, as mulheres são também abandonadas por suas famílias e suas comunidades. No entanto, o crime mais terrível é a passividade da comunidade internacional, das instituições governamentais, dos meios de comunicação. A indiferença total do mundo perante tal extermínio. Passei duas semanas em Bukavu e Goma entrevistando as sobreviventes. Algumas eram de Bunia. Efetuei pelo menos oito horas de entrevistas por dia. Almocei e fui a sessões de terapia com essas mulheres. Chorei com elas. O nível de atrocidades supera a imaginação. Não tinha visto em nenhuma parte esse tipo de violência, de tortura sexual, de crueldade e de barbárie. Passei uma semana no hospital de Panzi, vivendo em uma aldeia de mulheres violadas e torturadas. Era como uma cena de um filme de terror futurista. Ouvi histórias de mulheres que viram os seus filhos serem brutal e cinicamente assassinados. Mulheres que foram forçadas,

sob a ameaça de armas, a ingerir excrementos, a beber urina ou a comer bebês mortos. Mulheres que foram testemunhas da mutilação genital dos seus maridos ou, durante semanas, violadas por grupos de homens. Essas mulheres faziam fila para me contar as suas histórias. Os traumas eram enormes e o sofrimento extremamente profundo. As mulheres sofrem imensamente. Estão debilitadas pelas violações, torturas e brutalidade. Não têm praticamente apoio nenhum. Depois de viverem essas atrocidades, são incapazes de trabalhar nos campos ou de transportar coisas pesadas, por isso, deixam de ter renda. Vi chegar pelo menos 12 mulheres por dia a essa aldeia. Chegavam mancando e apoiadas em bengalas feitas à mão. Várias mulheres contaram-me que “as florestas cheiravam à morte”, e que “não se podia dar nem cinco passos sem tropeçar em um corpo”.” A impunidade da violência sexual tem que terminar. Apesar de centenas de milhares de mulheres e jovens violadas, não houve, praticamente, nenhuma acusação. Incumbe a toda a comunidade internacional fortalecer mecanismos na República Democrática do Congo para assegurar que os violadores serão levados à Justiça, e as vítimas protegidas, através de ações judiciais. (Mais mulheres juízas, assim como mais mulheres na polícia e advogadas são essenciais para que isso aconteça).

EXTERMÍNIO

No Quênia, 454 jovens foram mortos pela polícia em 4 meses Organizações de direitos humanos acusam forças policiais em Nairóbi de executar jovens de facção criminosa A Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia, órgão ligado ao Estado, denunciou que entre junho e outubro deste ano 454 jovens, todos homens, foram assassinados pela polícia. Em relatório preliminar divulgado no dia 5 de novembro, a entidade afirma que a maioria dos executados possui marcas de tiros na cabeça, típicas de execuções, e foi encontrada basicamente em dois locais: em frente ao Instituto Médico Legal (IML) de Nairóbi, capital do país, e nas proximidades da área florestal de Ngong. As vítimas encontradas em frente ao IML tinham, todas, apenas um único tiro na cabeça. Embora a polícia negue a participação nos crimes, a presidente da Comissão, Maina Kivi, deixa claro que a autoria é da polícia queniana. “Se não é responsável, por que não tem investigado e tentado conter os assassinatos? Que cidadão ou grupo criminal teria os meios e o atrevimento para transportar cadáveres e deixá-los em estradas e ruas, que estão repletas de controles policiais a cada poucos quilômetros, 24 horas por dia?”, questionou Kivi.

Mungiki

O relatório da comissão liga as mortes recentes à ofensiva das autoridades contra o Mungiki, grupo de jovens acusados de fomentar ações violentas pela capital. De caráter semipolítico, o grupo estaria atraindo a adesão de cada vez mais jovens desempregados. Maina Kivi liga os assassinatos à “guerra” contra o Mungiki, afirmando que o

número de mortos aumentou muito a partir do momento em que a polícia declarou “guerra” ao grupo, em junho. De janeiro a maio, foram 189 mortos. Somente em junho e julho, 223. “O aumento do número de mortos coincide com o período posterior ao governo declarar guerra aos criminosos mais procurados do Mungiki”, diz o relatório. A Comissão de Direitos Humanos relata que há testemunhas que viram corpos serem atirados na área florestal de Ngong, por carros da polícia. Familiares das vítimas também alegam que seus parentes foram presos e, depois, apareceram mortos, ou estão desaparecidos. “Queremos investigação eficiente e imparcial, feitas pela polícia de Gana, África do Sul e Ruanda, já que os quenianos se mostraram incapazes de investigar os crimes a fundo” afirmou Kiai. As autoridades quenianas, entretanto, ainda não fizeram acusação formal, pois alegam que há apenas “provas circunstanciais”. Entidades de direitos humanos têm apontado que a polícia não tem atuado corretamente na investigação das mortes, e que os investigadores responsáveis têm encontrado todo tipo de “obstáculos, obstruções e negativas” por parte da polícia. Eric Kiraithe, porta-voz da polícia declarou que as acusações são falsas. “Convidamos qualquer um que tenha informação sobre os crimes que nos traga a denúncia. Investigaremos o que nos disserem”. Para a polícia, as mortes são decorrentes de brigas entre as facções criminosas. (DM)


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