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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 246

São Paulo, de 15 a 21 de novembro de 2007

www.brasildefato.com.br

Corporações transnacionais avançam sobre terras africanas

Bancos obtêm lucros recordes e aumentam exploração do trabalho O início deste mês foi mais um período marcado pelo anúncio de recordes nos rendimentos dos bancos brasileiros. Dia após dia as cifras eram divulgadas, apontando para crescimentos que chegaram a superar os 100%. Entre janeiro e setembro, o Itaú, por exemplo, faturou R$ 6,444 bilhões, o Bradesco R$ 5,817 bilhões e o Unibanco R$ 2,621 bilhões. Ou seja, nesse período, apenas essas três instituições somadas ganha-

R$ 2,00

Dezenas de países da África já estão produzindo agrocombustíveis para atender a transnacionais do setor energético. E a tendência é que essa produção aumente. Com isso, os recursos naturais e a soberania alimentar dos africanos estão ameaçados, conforme aponta um relatório da African Biodiversity Network. O documento apresenta estudos de casos em quatro países e conclui que os agrocombustíveis trarão mais problemas do que soluções. Pág. 11

ram mais do que a projeção de investimento para educação em todo o ano: R$ 13,8 bilhões, de acordo com o Ministério da Educação (MEC). Tamanho rendimento faz com que os bancos busquem maximizar seu potencial no setor produtivo, criando conglomerados por meio da aquisição das ações de grandes empresas. Assim, o mercado financeiro mostra que não pode prescindir da exploração do trabalho. Pág. 6

A nova bacia de petróleo retoma debate por projeto de soberania Ricardo Stuckert/PR

A descoberta de uma nova reserva de petróleo na Bacia de Santos foi anunciada pelo governo federal com a notícia de que o Brasil pode se tornar exportador do produto. Especialistas defendem, no entanto, que o óleo seja usado para assegurar abastecimento interno, tendo em vista que há uma tendência de crise de energia mundial. As entidades defendem também uma alteração na lei que permite a privatização do petróleo brasileiro e exigem a suspensão da 9ª Rodada de Licitações da Agência Nacional de Petróleo (ANP), programada para o fim deste mês. Págs. 2 e 3

Com petróleo nas mãos: nova reserva deve transformar o Brasil no 12º maior produtor de petróleo do mundo

Latuff

Polêmica sobre o imposto sindical Extinção imediata acirra os ânimos na esquerda

MST encerra marcha, Incra faz promessa

Acabar com o imposto sindical sempre foi uma bandeira do sindicalismo combativo. No entanto, dirigentes acirram os ânimos por conta de uma emenda do deputado federal Augusto Carvalho (PPS-DF) que retira a obrigatoriedade do

Depois de 62 dias marchando, sem-terra receberam do Incra a promessa de que 2 mil famílias serão assentadas em 2008, no RS. Devido a um interdito proibitório, eles não puderam finalizar o protesto na fazenda Guerra. Pág. 5

imposto, mas somente nas entidades de trabalhadores. Para as associações patronais, a contribuição segue sendo compulsória. A emenda foi aprovada na Câmara dos deputados e deve ser apreciada pelo Senado. A CUT rechaça a extinção ime-

diata do imposto; PSOL e Conlutas querem o fim imediato da taxa para golpear o “peleguismo”. A polêmica, forçou o governo e o Parlamento a retomar os debates com as centrais sindicais, que devem deliberar por uma nova proposta. Pág. 4

Igor Ojeda

TRADIÇÃO POPULAR Relator da ONU recebe boné do MST da advogada Fernanda Vieira

Relator da ONU recebe denúncias de violência Numa visita de dez dias ao Brasil, o relator sobre execuções arbitrárias, sumárias ou extrajudiciais da Organização das Nações Unidas (ONU), Philip Alston, percorreu São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Brasília. No Rio de Janeiro, onde visitou o Complexo do Alemão – considerado, por muitos, local em que ocorreu a primeira chacina assumida de fato pelo poder

público –, não foi recebido pelo governador Sérgio Cabral (PMDB). Quando o relatório for finalizado, possivelmente em abril de 2008, o governo brasileiro terá 30 dias para prestar explicações à ONU. Pág. 8

Os rostos, os cabelos, os gestos, as falas, as

roupas são

indígenas... éa

Festa das

Ñatitas, celebração dos mortos pelo povo boliviano Pág. 9

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editorial NO AUGE da ofensiva neoliberal, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o capital internacional, aliado à burguesia brasileira, se apoderou de boa parte de nossos recursos naturais e de nossa economia, protagonizando um dos maiores assaltos econômicos já registrados. Privatizaram serviços públicos lucrativos como energia elétrica, telefonia, estradas, saneamento básico, água, ferrovias, portos, extração de minérios etc. Por outro lado, desmontaram a estrutura estatal que ainda poderia representar um pouco da velha política de garantia de bem-estar social, difundida pelo modelo de industrialização, ainda que dependente. Retiraram o poder de o Estado controlar setores importantes e criaram um sistema de agências “reguladoras”, que apenas agem em prol dos interesses do capital, sob controle das empresas. O exemplo patético da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que jogou o país na maior crise da aviação de sua historia, é por si só revelador. Mas o governo FHC não teve coragem de privatizar totalmente a Petrobras: por tudo o que ela representa no imaginário popular,

debate

Pelo fim dos leilões de petróleo É um absurdo que o governo Lula continue leiloando nossas reservas de petróleo, cada vez mais escasso e caro. A melhor política é guardar para as gerações futuras, e utilizar o nosso petróleo em proveito de todo o povo, e como matéria-prima da petroquímica, sequer como combustível poderia provocar revoltas. Mas, na mesma direção, foram “comendo pelas beiradas”, como diz o ditado popular. Primeiro, criaram um fantasma chamado Agência Nacional do Petróleo (ANP), que passou a ter o poder de regular as reservas de petróleo, sem que o povo tenha elegido alguém para isso. Segundo, venderam mais de 50% das ações da Petrobras na bolsa de Nova York (Estados Unidos), garantindo, assim, que a maior parte dos lucros auferidos pela empresa, no final, seja distribuída entre acionistas estrangeiros, a maioria bancos. Hoje, o governo brasileiro continua indicando a maior parte da diretoria da Petrobras. Mas a maior parte dos lucros fica com os capitalistas estrangeiros.

Para completar, iniciaram, a partir de 1998, um sistema de leilões das reservas de petróleo. Um disparate. A Petrobras investe bilhões em pesquisa, são anos buscando novas reservas de gás e petróleo em nosso território. Depois que encontra e delimita o mapa da nova reserva, é obrigada a entregá-la para a ANP fazer um leilão no qual outras empresas – estrangeiras – se candidatam a explorá-la. Desde 1998, foram feitos oito leilões. Dois no governo Lula, que infelizmente segue a mesma política. O resultado é que hoje existem cinco empresas transnacionais explorando nosso petróleo em alto-mar, nas bacias de Campos (RJ) e de Santos (SP): Shell, Repsol, Wintershall, Amerada Hess e Chevron.

Pela exploração desses recursos, elas pagam apenas uma taxa ridícula no leilão e, depois, um percentual de royalties, inferior a 8%. Não pagam um centavo de imposto, já que a Lei Kandir isenta de tributos as exportações de matérias-primas agrícolas e minerais. Levam direto das plataformas marinhas para seus navios e seus países. Ninguém tem nenhum controle. Pois bem, agora a Petrobras encontrou mais uma imensa reserva, na bacia de Santos, o megacampo de Tupi. Segundo os cálculos iniciais, elevaria em 50% as reservas de petróleo e gás existente em nosso território. É verdade que o governo prometeu não incluir esses campos no próximo leilão, que está marcado para os dias 27 e 28 de novembro, em

crônica

Eduardo Tamayo G.

Mercenários com “impunidade” INFORME DA Organização das Nações Unidas (ONU) qualifica como mercenárias a maioria das atividades das corporações militares privadas que atuam no Iraque e em outros conflitos armados. Essas empresas, que estão a serviço dos Estados Unidos e de outros países, cometem assassinatos, torturas e outros abusos, gozando de total impunidade. O grupo de trabalho sobre a utilização de mercenários da ONU, presidido pelo espanhol José Luis Gómez del Prado, denuncia que, nos últimos dez anos, tem “aumentado enormemente o número de empresas militares e de segurança privados relacionadas com as situações de conflito no Afeganistão e no Iraque” e que a imunidade que alguns Estados dão a estas “pode converte-se numa impunidade de fato, pois, ao que parecem, esses soldados privados somente prestam contas à empresa para qual trabalham”. O documento questiona o projeto de guerra dos Estados Unidos que só no Iraque deixou mais de 500 mil vítimas desde a invasão em março de 2003 para se apoderar das riquezas petrolíferas daquele país. Nos últimos meses, o tema dos mercenários voltou a ocupar a atenção mundial, pois, poucos dias depois que a ONU tomou conhecimento do documento sobre os mercenários, empregados da empresa Blackwater USA, uma das 236 contratadas pelos EUA para a invasão do Iraque, mataram, em 16 de setembro, 17 civis iraquianos.

Guardas ou mercenários O governo Bush rechaçou o informe, negando que os membros das CPM são mercenários. “As acusações de que os guardas de segurança contratados, de qualquer nacionalidade, são mercenários é imprecisa e desvaloriza quem arrisca sua vida cada dia para proteger a gente e as instalações” governamentais, assinala uma declaração entregue em Genebra pela missão desse último país na ONU. Washington prefere chamar de “guardas de segurança” as pessoas que cumprem tarefas nas suas bases, instalações militares e embaixadas. No entanto, a definição e sobretudo as evidências mostram que muitos deles, na realidade, são mercenários, se por tais entendermos a “tropa que por dinheiro serve na guerra a um poder estrangeiro”. O perfil de muitos empregados dessas empresas militares privadas indica que se tratam de ex-militares que têm servido a ditaduras ou governos repressivos ou participado em atividades contra-insurgentes, cometendo violações de direitos humanos. No Iraque, operam ex-militares chilenos da época de Pinochet, os tristemente célebres kaibiles guatemaltecos, que se especializaram em mutilar as suas vítimas com machados, mercenários que estiveram a serviço do apartheid, entre outros. A utilização de mercenários corresponde a atual fase do capitalismo neoliberal, na qual as elites mundiais levam a guerra a distintos pontos do

Em busca da paz, Mark Kanazawa

planeta para exercer seu domínio geoestratégico. Nos conflitos na ex-Iuguslávia, na Colômbia, em Angola, Serra Leoa e, nos últimos anos, no Afeganistão e no Iraque, as potências mundiais têm empregado agentes armados privados dentro da chamada “guerra de baixa intensidade”. Os Estados Unidos, após a derrota no Vietnã, elaboraram essa doutrina que “prevê, no marco da condução psicológica da guerra, a formação de grupos paramilitares para a luta contra-insurgente”. As companhias militares privadas têm sido acusadas de graves violações aos direitos humanos nos países onde operam. Desde que os EUA e seus aliados invadiram o Iraque, seus mercenários têm estado envolvidos em casos de torturas, abusos e assassinatos de civis. A matança dos 17 iraquianos por parte dos empregados da Blackwater USA é só mais um caso. Essa mesma corporação, que se apresenta como uma empresa humanitária e tem seu centro de treinamento na Carolina do Norte, foi acusada de assassinar a balas, em 2006, a jornalista do canal de televisão Al Atyaf, Suha Shakir, quando ela ia para seu trabalho. Cinco dias antes, três guardas iraquianos foram assassinados no escritório da cadeia estatal iraquiana Media Network por franco atiradores da Blackwater, que dispararam do outro lado da rua. Segundo autoridades iraquianas, os guardas dessa empresa estariam envolvidos em outros seis episódios que deixaram um saldo de pelo menos 10 iraquianos mortos e 15 feridos, segundo o boletim eletrônico Democracy Now. Empregados das empresas Caci e Titán, ambas contratadas pelo governo dos EUA, estão, direta e indiretamente, envolvidos em casos de tortura na prisão de Abu Ghraib.

Vantagens e impunidade A utilização de mercenários nas guerras contemporâneas oferece algumas vantagens aos Estados agressores. Em primeiro lugar, as baixas nas filas mercenárias passam despercebidas, portanto, não provocam reações sociais ou custos políticos incômodos.

Babilônia - Medalha da infâmia, Thomaz Mann

Em segundo lugar, o país agressor não se responsabiliza pelos atos das empresas de segurança privada contratadas e não tem que responder perante tribunais de justiça nacionais ou estrangeiros. Simplesmente atribuem “os excessos” a essas empresas e ponto. No entanto, tem que dizer que os EUA dão aos seus mercenários não só imunidade diplomática, mas impunidade. O pró-cônsul do governo de George W. Bush, Paul Bremer, impôs uma lei nesse sentido pouco antes de ir ao Iraque em junho de 2004. Com os últimos acontecimentos, o governo do Iraque anunciou que tiraria a imunidade dos empregados das empresas militares privadas, porém isso não tem sido obstáculo para que os responsáveis pela morte dos 17 iraquianos retornem aos Estados Unidos sem serem processados. Existe um “espaço legal” para esses agentes armados privados, pois suas atuações “não estão dentro da Convenção de Genebra, já que, ainda que levem armas, não são combatentes legais pois não usam uniformes oficiais, nem respondem a uma hierarquia”, assinala a jornalista espanhola Ana Muñoz. A contratação de mercenários, que foi utilizada durante vários séculos pelos EUA, foi criminalizada no final do século 20. Em 1989, a ONU aprovou a “Convenção Internacional contra o recrutamento, a utilização, o financiamento e o treinamento de mercenários”. Trinta Estados ratificaram essa convenção. Os Estados Unidos, claro, não. Portanto, não está obrigado a acatar as recomendações do grupo de trabalho sobre mercenários. Nada raro para uma potência que pisa em vários instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, não reconhece a Corte Penal Internacional e não acata inúmeras resoluções da ONU. Eduardo Tamayo G. é jornalista da Agência Latino-americana de Informação (Alai). Artigo publicado originalmente na Alai: www.alainet.org

algum hotel luxuoso do Rio de Janeiro. De qualquer forma, é um absurdo que o governo Lula continue com a lógica de leiloar reservas de petróleo, que cada vez mais escasso e caro. A melhor política é guardar para as gerações futuras e, oportunamente, utilizar o nosso petróleo em proveito de todo o povo, como matéria-prima da petroquímica, sequer como combustível. As empresas estrangeiras estão pressionando, todos os dias pela mídia corporativa e pelos arautos do neoliberalismo, com ar de “indignação”, afirmando que “as regras precisam ser cumpridas...”! Mas as regras foram feitas por elas, sem o povo. Por isso um conjunto de entidades da sociedade brasileira, como a Federação Única dos Petroleiros (FUP), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Via Campesina, sindicatos e pastorais iniciaram uma campanha com um abaixoassinado para exigir ao presidente Lula que cancele toda essa política de leilões de petróleo e gás. Aliás, nossa Constituição é clara: todas as riquezas do subsolo pertencem ao povo e em seu proveito devem ser utilizadas. Só falta o governo ter um pingo de coragem para cumprir o que diz a própria Constituição.

Luiz Ricardo Leitão

A Copa do Mundo é nossa? “CACHORRO MORDIDO de cobra tem medo de salsicha”, adverte com rara sabedoria o bordão popular. Escaldadas pelos recentes – e escandalosos – episódios do PAN-2007, várias entidades de Bruzundangas se mobilizam para criar um “Observatório da Copa”, ou seja, uma rede de agentes sociais e organismos de imprensa apta a fiscalizar os dólares, euros e reais que serão investidos na realização do monumental espetáculo. Não é para menos: se gente como o alucinado prefeito César Maia (cuja filiação ao DEMO, ao lado do clã ACM e outros caciques da política tupiniquim, sempre me faz indagar: se estes são os ‘democratas’, quem serão os ‘republicanos’?) ou o sinistro Carlos Nuzman (presidente do COB) ditou as cartas nos Jogos do Rio, imagine o que não farão os Ricardos Teixeiras de plantão com os meganegócios advindos do maior evento midiático do planeta bola. Só pelo aperitivo na Suíça todos já puderam farejar a rota do ouro. Ou será que os dozes governadores provinciais de Bruzundangas e seu monarca falastrão viajaram até o território neutro do grande capital (refúgio de contas secretas bilionárias que os magnatas do III Mundo cultivam sem o menor pudor) apenas para comer fondues e chocolates? O clarividente Dr. Sócrates já alertou, em bela coluna, que, ao verificar quais seriam os prováveis dirigentes da empreitada, já seria possível prever o festival de “apropriação do bem coletivo”, de exercício de “interesses indignos e ilegítimos em benefício de si mesmos” e da encarniçada luta pela preservação do “podereco que eterniza essas práticas no futebol (e no país)”.

Dentre as deslavadas mentiras, consta até mesmo que “não há registro de ocorrências de incidentes de segurança” nos eventos realizados no Brasil na última década O Doutor está, mais uma vez, prenhe de razão. Afinal de contas, para criaturas como João Havelange, Ricardo Teixeira & cia., o futebol não é um fenômeno social, nem tampouco a expressão viva de um componente fundamental de nossa cultura, em suma, um índice eloqüente de nossa identidade, nossos valores e das próprias relações de poder que se teceram nessa experiência periférica de capitalismo. Para eles, obviamente, o velho e violento esporte bretão não passa de um grande e extraordinário negócio, com o qual esperam arrecadar, até 2014, muito mais do que já foi sugado de nossa combalida pátria ludopédica desde que a globalização neoliberal do esporte nos inseriu a fórceps nas artimanhas do circo – e isso inclui desde a investida voraz das redes de TV sobre as competições regionais, nacionais e internacionais, até a venda cada vez mais precoce dos nossos gênios da pelota para os insaciáveis clubes-empresa do futebol europeu. O pior, porém, virá no quesito “obras de infra-estrutura”. O cinismo das autoridades já pôde ser posto à prova nas respostas dadas pelos governos estaduais às questões formuladas pelo famoso “Caderno de Encargos” da FIFA, entidade que há décadas atua como a ONU da pelota (ou, quem sabe, o FMI). Dentre as deslavadas mentiras, consta até mesmo que “não há registro de ocorrências de incidentes de segurança” nos eventos realizados no Brasil na última década. Ou seja: os assassinatos de 2005 entre os torcedores paulistas, o vaso sanitário arremessado por um delinqüente no estádio do Santos ou os banheiros químicos incendiados em um belicoso Grenal de Porto Alegre não passam de um delírio febril deste cronista e de outros obstinados cidadãos que insistem em dizer que o rei está nu. (Aliás, por falar em rei, por onde anda Pelé? Ao que consta, já lhe teriam oferecido R$ 350 mil por mês para tabelar com Teixeira nas próximas efemérides, evitando os arroubos púberes do ex-genro de Havelange durante as coletivas de imprensa...). De qualquer forma, fiscalizemos, meu caro leitor, pois a Copa já está marcada. E como não será o time de Teixeira, Lula, Serra, Aécio & Maia que entrará em campo, mas sim uma gente bronzeada que, apesar de Dunga e dos anões do orçamento, promete fazer bonito nas quatro linhas, talvez valha a pena zelar pela pátria-mãe sempre (sub)traída. Longe do Galvão e sem tortura(s), é claro... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo FIlho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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brasil

Disputa pelo petróleo se acirra ENERGIA Descoberta eleva reservas do Brasil em 50%; governo cogita exportar combustível fóssil Jorge Pereira Filho e Tatiana Merlino da Redação EMBORA A imagem do presidente Lula com um turbante na cabeça seja um tanto quanto despropositada, a euforia no governo com a descoberta da nova reserva de petróleo no campo de Tupi, Bacia de Santos, estimula a imaginação. “O Brasil vai passar de uma nação intermediária para o primeiro patamar do mundo do petróleo. Estamos nos elevando ao nível dos países árabes e da Venezuela”, afirmou a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, escalada para dar as boas novas aos brasileiros no dia 8. O fato: a Petrobras descobriu indícios de uma reserva com um volume entre 5 e 8 bilhões de barris, tipo leve – justamente o mais cobiçado do planeta. Se não é expressiva para o consumo mundial, a quantidade eleva em 50% as modestas reservas brasileiras. Mas o que isso significa? Para alguns especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, o megacampo de Tupi pode, em tese, representar um trunfo para o país, no sentido de estimular o desenvolvimento econômico e social. Mas a questão que se coloca para o país, agora, é: de que forma utilizar essa riqueza natural? Em benefício de quem e de que projeto? No dia do anúncio, Dilma Rousseff apontou o caminho que parece orientar o governo: as novas reservas permitirão que o Brasil se torne exportador do produto. Uma opção que, para Fernando Siqueira, diretor da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), é quase um delírio. “De acordo com estimativas de analistas, em 2015, o valor do barril de petróleo chegará a 180 dólares, e a 300 dólares em 2020”, afirma. De acordo com ele, pensar em exportação está fora de discussão. “O mais importante é assegurar abastecimento interno tendo em vista que há uma tendência de crise de energia mundial”, assegura. Siqueira afirma que o fato de o Brasil ser a 12º maior reserva de petróleo do mundo não significa muito. “O que importa é como o volume do petróleo vai beneficiar a nação brasileira. Precisamos de regras mais favoráveis ao país que sejam diferentes da situação regulatória que temos hoje, que é péssima”. (leia mais ao lado)

Corrida global Como já definiu o economista Carlos Lessa (ex-presidente do BNDES), o petróleo “constitui o pilar das estruturas de produção e é basilar do padrão de vida das economias modernas”. Não por acaso, orienta a geopolítica das potências econômicas, como Estados Unidos, Japão, União Européia e China, que não têm petróleo suficiente para suas respectivas economias. “O consumo de países como Estados Unidos, China e Índia tem crescido de forma mais forte nos anos 1990 e isso está empurrando a cotação do barril para cima”, analisa Claudio Egler, geógrafo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Guerras já são travadas no planeta pelas reservas do óleo. Os Estados Unidos invadiram o Iraque e, agora, ameaçam fazer o mesmo com o Irã, dois dos principais países exportadores do insumo (veja quadro). O clima é de tensão. No dia 14, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, declarou que se os estadunidenses entrarem no Irã, os preços podem saltar para até 200 dólares por barril. O venezuelano afirmou que, se isso ocorrer, suspenderá o fornecimento de petróleo para os Estados Unidos – o país latino-americano é o quarto maior exportador do combustível fóssil ao país governado por George W. Bush. Mas essa é uma briga dos grandes produtores de petróleo, na qual o volume de reservas brasileiras é pouco significativo. Como lembra Fernando Siqueira, da Aepet, o país está bem longe de atingir o patamar de países como Venezuela, que detém reservas de 80 bilhões de barris de petróleo. “É outro ní-

Geopolítica do petróleo Se a descoberta do campo de Tupi for comprovada, Brasil subirá 5 posições no ranking das maiores reservas, mas seguirá como potência média; País é o oitavo maior consumidor global de petróleo; Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Emirados Árabes reúnem 59% das jazidas de petróleo;

Abaixo-assinado será entregue a Lula no dia 22 pedindo a suspensão da 9ª Rodada de Licitações da Agência Nacional de Petróleo (ANP)

Mudar a lei para garantir um país mais digno e soberano “Oito ou oitenta bilhões de barris não vão fazer a diferença”. A avaliação é do diretor da Aepet, Fernando Siqueira, para quem se a legislação brasileira não for alterada, pouco adiantará ao desenvolvimento do país a descoberta de novas reservas. Siqueira explica que o artigo 26 da Lei nº 9.478/97 dá a propriedade do petróleo àquele que o produz. “Enquanto o petróleo está no subsolo, ele pertence à União. No momento em que é produzido, pertence à empresa. Esse artigo é um absurdo”, relata. O engenheiro afirma que, dessa forma, a maior parte do lucro da exploração de petróleo vai mais para o exterior e enriquece os acionistas das transnacionais que arrematam os blocos de petróleo nos leilões da Agência Nacional do Petróleo (ANP). “Temos que fazer uma mudança na lei para que o petróleo volte a ser como era na Constituição, ou seja, da União”. O modelo defendido pela Aepet é semelhante ao aplicado na Venezuela. Nele, as petroleiras internacionais fazem a exploração e recebem pelo preço do seu serviço; no entanto, se elas descobrirem petróleo, ele é da União. Outra questão da Lei nº 9.478/97 é a que permite às transnacionais exportarem todo o petróleo e todo o gás que produzirem. Isso mesmo em um cenário de escassez interna. (TM) vel. Chega a ser irresponsável o governo fazer esse tipo de comparação”. Nossa realidade é outra. Segundo Siqueira, se forem confirmados os 8 bilhões de barris de petróleo a mais, o Brasil seria auto-suficiente por cerca de dez anos. Depois, teria de voltar a comprar barris no mercado internacional, em uma situação bem mais desfavorável.

Suspensão do leilão Após a descoberta, o governo decidiu retirar 41 blocos da 9ª Rodada de Licitações da Agência Nacional do Petróleo (ANP), situados nas bacias de Campos, Santos e Espírito Santo. Essas áreas estão em regiões de influência da descoberta de Tupi. Dilma Roussef classificou a medida como de interesse à soberania nacional. Segundo ela, o governo pretende pensar em um modelo que preserve a exploração dessas riquezas de acordo com o interesse do futuro do país. Hélio Luiz Seidel, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), afirma que a medida do governo foi “arrojada”, mas insuficiente. “Defendemos a suspensão integral da lici-

tação da 9ª rodada. O que precisamos é refazer a discussão da política de hidrocarbonetos no país”, defende. A 9ª Rodada está marcada para ocorrer nos dias 27 e 28. Uma série de organizações sociais, como a própria FUP, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Via Campesina e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), querem que o governo petista suspenda esse leilão, que responde a uma política implementada ainda pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Um abaixo-assinado sobre a política do petróleo será entregue ao presidente Lula no dia 22. Entre as reivindicações da carta estão: a suspensão imediata dos leilões nas áreas promissoras em petróleo e gás; a readequação da lei do petróleo em vigor, Lei nº 9.478/97, para salvaguardar a nossa soberania e garantir que o petróleo e o gás produzidos sejam prioritariamente para abastecer nosso mercado interno; o estabelecimento de um tratamento estratégico no ritmo de produção de petróleo e gás para garantir os interesses do nosso país, com um planejamento em longo prazo.

Reserva pode ser de 80 bilhões de barris A descoberta anunciada no megacampo de Tupi, na Bacia de Santos, fica em uma região denominada de pré-sal, onde os reservatórios se encontram abaixo de uma extensa camada de sal, localizada até a sete quilômetros de profundidade. A Petrobras é operadora da área com 65% do capital, em parceria com a britânica BG Group, que detém 25%, e a portuguesa Petrogal/Galp, com 10%. De acordo com o anúncio, a estatal brasileira também realizou a avaliação regional do potencial petrolífero do pré-sal que se estende pelas bacias do Sul e Sudeste brasileiros e o resultado foi positivo. “Os volumes recuperáveis estimados de óleo e gás para os reservatórios do pré-sal elevarão significativamente a quantidade de óleo existente em bacias brasileiras, colocando o Brasil entre os países com grandes reservas de petróleo e gás do mundo”, diz a estatal, em nota. Apesar dos dados confirmados serem de 8 bilhões de barris, a estatal estima que a reserva de petróleo descoberta em Santos pode chegar a 80 bilhões de barris. Para Fernando Siqueira, da Aepet, caso esse número se confirme, será a “salvação do país, que está em uma situação muito grave em termos de energia”. Segundo ele, o governo brasileiro não tem o menor planejamento em relação à questão energética no Brasil. (TM)

Movimentos tentam barrar leilão A 9ª Rodada da ANP vai levar ao pregão 271 blocos de petróleo; transnacionais já controlam 519 áreas da Redação Em meio à escalada dos preços do petróleo, o Brasil se prepara para repassar o controle de parte de suas reservas de petróleo às transnacionais do setor nos dias 27 e 28. Nesses dois dias está prevista para ocorrer a 9ª Rodada de Leilão da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Nada menos do que 271 blocos de petróleos serão leiloados. Mais de 20 entidades da sociedade civil e movimentos sociais estão preparando uma mobilização popular para barrar a Rodada. No dia 22, será realizado um grande ato público no Rio de Janeiro. A realização da 9ª Rodada coloca o Brasil na contramão da tendência dos governos latino-americanos. Aproveitando-se do aumento da demanda pelo petróleo, Bolívia, Equador e Venezuela, por exemplo, têm utilizado suas reservas para procurar financiar o desenvolvimento local.

Assim, recentemente, ampliaram o controle social sobre a extração de petróleo em seus territórios, elevando as taxas que as transnacionais pagam por explorarem o combustível fóssil. Já o Brasil mantém os leilões, seguindo uma orientação estabelecida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, ainda no auge das políticas neoliberais e das privatizações no país. Naquela época, a cotação do barril estava em cerca de 10 dólares. Hoje, aproxima-se da faixa dos 100 dólares. Com os leilões que ocorreram entre 1998 e 2007, as transnacionais passaram a controlar mais da metade das áreas promissoras em petróleo e gás do país. Hoje, no país, 519 áreas já são exploradas por 55 empresas de diferentes nacionalidades. Apesar de o Brasil ser auto-suficiente na produção de petróleo, as transnacionais podem explorar as reservas que adquirirem no leilão independentemente de sua conveniência para o país. (JPF e TM)


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Debate sobre imposto sindical divide representantes da esquerda Valter Campanato/ABr

Agência Chasque

TRABALHO CUT rechaça proposta de extinção imediata do imposto e sugere transição; PSOL e Conlutas defendem o fim imediato da taxa para golpear o “peleguismo” Renato Godoy de Toledo da Redação A LUTA pelo fim do imposto sindical é uma bandeira histórica dos setores combativos do movimento sindical brasileiro. No entanto, a maneira de extinguir essa herança getulista da legislação sindical tem acirrado o debate no âmbito da esquerda sindical. O acirramento do debate deu-se por conta de uma emenda apresentada pelo deputado federal Augusto Carvalho (PPS-DF), que retira a obrigatoriedade do imposto sindical somente nas entidades de trabalhadores – para as associações patronais, a contribuição segue sendo compulsória. A emenda, que complementa o projeto de lei que legaliza as centrais sindicais, foi aprovada na Câmara dos Deputados e deve ser apreciada pelo Senado após o fim do imbróglio que envolve a CPMF. Também foi aprovada uma emenda, proposta pelo deputado Antônio Carlos Pannunzio (PSDB-SP), que obriga os sindicatos a prestarem contas anualmente ao Tribunal de Contas da União (TCU). Com relação a essa emenda, a esquerda teve uma posição conjunta: o rechaço, já que os sindicatos devem prestar contas à sua base, pois não são órgãos da União. A polêmica gerada pela emenda forçou o governo e o Parlamento a retomar os debates com as centrais sin-

CUT e Conlutas: sindicatos financiados por meio de contribuições associativas e descontos realizados por ocasião das campanhas salariais é ponto comum

dicais, que devem deliberar por uma proposta substitutiva em breve.

“Quebra de acordo” Para a maior central sindical do país, a CUT, a aprovação da emenda acaba abruptamente com o imposto sindical e representa uma quebra de acordo. A central acredita que o Congresso deve respeitar as deliberações do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), que foi organizado em 2003 para debater mudanças nas legislações trabalhista e sindical. A CUT ressalta que no FNT sua posição foi vitoriosa, pois conseguiu aprovar a necessidade do fim do imposto sindical, apesar das intenções das centrais que praticam o chamado “sindicalismo de resultados” e defenderam o imposto sindical no fórum. O FNT estabeleceu a necessidade de uma transição para o fim da taxa compulsória, que viria a partir do reconhecimento das centrais como entidades jurídicas. “Nesse momento, reafirmamos nossa posição histórica contra o imposto sindical, mas defendemos uma

Hoje, os trabalhadores têm que destinar um valor equivalente a um dia de trabalho para o imposto sindical proposta gradual. (Com essa emenda) o que vem no lugar do imposto sindical? As entidades, para fazer a luta e a ação sindical, precisam ter um financiamento”, defende Quintino Severo, secretáriogeral da CUT, para quem o fim do imposto não depende apenas da CUT e lembra que há centrais que ainda defendem “ferrenhamente” o imposto. Quintino participará das reuniões em Brasília, acompanhado de outros dirigentes da CUT e das demais centrais, que devem tirar uma proposta de transição. A expectativa do dirigente cutista é de retomar os acordos estabelecidos no FNT.

Taxa negocial Na visão dos cutistas, o imposto deve ser extinto gradativamente para que seja substituído por uma taxa negocial, que seria a única tarifa paga pelo trabalhador e não poderia passar de 1%

Imposto não significa ingerência, afirma dirigente do PcdoB

do salário anual do trabalhador. Essa taxa seria decidida pela categoria depois de suas negociações salariais. Hoje, os trabalhadores têm que destinar um valor equivalente a um dia de trabalho para o imposto sindical, além de outras taxas. “Se os trabalhadores considerarem que a negociação foi ruim, eles podem, inclusive, decidir por não pagar a taxa”, explica. Desde sua fundação, a CUT defende o fim da contribuição compulsória como forma de ampliar a autonomia da atividade sindical. Com sua posição contrária à emenda, a central recebeu críticas pela direita, da imprensa corporativa e de setores da esquerda. A CUT se queixa que a imprensa tem colocado a central como igual àquelas que têm um histórico no sindicalismo de conciliação e construíram grandes estruturas sindicais de fachada.

Segundo Altamiro Borges, desde a Constituição de 1988, os sindicatos receberam autonomia para aplicar o dinheiro onde quiserem da Redação Altamiro Borges, do Comitê Central do PCdoB e editor da revista Debate Sindical, apresenta uma outra leitura sobre o imposto, no campo da esquerda. Altamiro partilha da visão da Corrente Sindical Classista (CSC), dirigida pelo PCdoB, que fundará em dezembro a Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB). Para ele, o imposto sindical foi criado por Getúlio Vargas, em 1943, como uma forma de atrelar os sindicatos ao Estado brasileiro, aos moldes do corporativismo aplicado por Benito Mussolini na Itália fascista, mas hoje não representa mais um “entulho getulista” na legislação brasileira. Getúlio criou o imposto a partir da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e passou a determinar como os sindicatos deveriam utilizar o montante que a eles eram repassados. Assim, os sindicatos deixaram de ser entidades de classe para tornarem-se órgãos assistenciais e de lazer. Em vez de aplicar o dinheiro na luta, os sindicatos viraram uma correia de transmissão dos valores do Estado Novo. “Os sindicatos eram uma espécie de repartição pública”, lembra Altamiro. O que difere a posição do PcdoB das demais correntes da esquerda, é que o partido considera que desde a Constituição de 1988 os sindicatos receberam uma autonomia que lhes permitiu aplicar o dinheiro da forma que melhor entendessem, sem a ingerência do Estado. “O

Taxa compulsória perpetua o peleguismo, diz deputado do Psol Para Ivan Valente, o imposto sindical é utilizado como forma de perpetuação de grandes estruturas sindicais e não é direcionado para a luta Valter Campanato/ABr

O deputado Ivan Valente (Psol-SP) votou a favor da emenda, tal como a bancada de seu partido. O parlamentar acredita que – ainda que inicialmente o fim da obrigatoriedade do imposto gere um problema de financiamento – os sindicatos teriam que voltar a realizar o trabalho de base para que os trabalhadores financiem voluntariamente suas entidades. “Rigorosamente, esse imposto é a base de sustentação da acomodação dos dirigentes sindicais e do peleguismo. O imposto sindical é, muitas vezes, utilizado como forma de perpetuação de grandes estruturas sindicais e não é direcionado para a luta”, diz o deputado. Valente diz que alguns sindicalistas têm se queixado do Psol por este ter votado numa emenda que tira a obrigatoriedade do imposto apenas nas entidades dos trabalhadores. “Mas nós (do Psol) temos apenas três deputados, não poderíamos apresentar uma emenda para tirar a obrigatoriedade do imposto sindical nas entidades patronais, se não, nós apresen-

Para Valente, imposto resulta em acomodação dos dirigentes sindicais e peleguismo

taríamos”, responde o parlamentar, que ressalta sua posição contrária à emenda que obriga as entidades sindicais a prestarem contas ao TCU. Além da manutenção do imposto sindical nas entidades patronais, também permaneceram intactas as contribuições compulsórias dos trabalhadores para o chamado sistema “S”, que é composto por federações de indústrias, de comércio entre outros órgãos representativos dos patrões.

O deputado do Psol afirma que a polêmica em torno do imposto é positiva para se realizar o debate e salienta que a aprovação da emenda “deu um susto em dirigentes que estão acomodados há 30 anos”.

Acusações A Conlutas, entidade sindical encabeçada pelo PSTU, ataca a postura das centrais “governistas” que, segundo eles, queixam-se da emenda porque temem perder R$ 1,2

bilhões anuais, referentes aos repasses feitos para o movimento sindical oriundos do imposto sindical. Em nota, a Conlutas defende que “os sindicatos devem financiar suas atividades por meio das contribuições associativas e descontos realizados por ocasião das campanhas salariais, sempre a partir de decisão soberana dos trabalhadores”. Nesse ponto, há uma congruência com o que a CUT diz ser o seu objetivo final após a transição. (RGT)

Problemas da emenda A emenda que retira a obrigatoriedade do imposto sindical é inconstitucional e confusa, segundo Altamiro. Inconstitucional, pois como o imposto sindical está previsto na Constituição, deveria ser promulgada um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) para extingui-lo. Assim, legalmente os trabalhadores deixariam de recolher o imposto em suas folhas de pagamento, mas teriam que ir até o sindicato pagar o valor. Além disso, Altamiro lembra que quando o deputado Augusto Carvalho (PPS-DF), proponente da emenda, era presidente do sindicato dos bancários de Brasília, não se opunha ao imposto sindical. “Ele está cuspindo no prato que comeu”. (RGT)

Núcleo Piratininga de Comunicação

da Redação

sindicato tem autonomia para aplicar o dinheiro onde quiser, pode desde financiar uma greve até uma campanha de solidariedade a um acampamento de sem-terra”, exemplifica. Altamiro afirma que as classes dominantes e a imprensa corporativa só passaram a reclamar do imposto sindical após a Constituição de 1988. O jornalista também critica o papel da imprensa corporativa no processo atual. “Eles falseam a questão do imposto, dizendo que ele só é obrigatório no Brasil, o que é mentira. Existem contribuições compulsórias em diversos países da Europa, mas com nomes diferentes, como é caso da taxa de solidariedade na Espanha e a contribuição federativa na França”, explica.

Para Altamiro, emenda é inconstitucional e confusa


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brasil

Depois de 62 dias, MST encerra marcha no Rio Grande do Sul Clademir Daron

REFORMA AGRÁRIA Famílias decidem encerrar mobilização; Incra prometeu assentar 2 mil famílias até o final de 2008 Raquel Casiraghi Porto Alegre (RS) O MOVIMENTO dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) encerrou na segunda-feira (12) a marcha em direção à fazenda Guerra, no Norte do Rio Grande do Sul. Em nota, as organizações que apoiavam a manifestação criticaram o Judiciário do município de Carazinho, que manteve um interdito proibitório e inviabilizou o prosseguimento da marcha que já durava 62 dias. Mesmo tão perto da fazenda, os sem-terra não puderam finalizar o protesto, já que a medida judicial emitida pela Comarca de Carazinho impedia as famílias de entrarem na cidade de Coqueiros do Sul, município em que a fazenda se encontra. Apesar de os sem-terra não terem chegado à fazenda, o integrante da direção estadual do MST, Mauro Cibulski, considerou a mobilização muito positiva. “Cumprimos o papel de debate, conseguimos um compromisso do governo federal e vamos ficar vigilantes e fazendo lutas para o cumprimento da meta, que é assentar 2 mil famílias no próximo ano. Se nós conseguirmos isso, será uma grande vitória porque em quase cinco anos apenas 810 famílias foram assentadas no Estado”, disse.

Promessas As famílias sem terra decidiram pelo encerramento da mobilização depois de uma reunião em Passo Fundo. No encontro, ficou acertado que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) irá assentar mil famílias até abril de 2008 e outras mil até o final do próximo ano. O Incra assumiu ainda o compromisso de regularizar o repasse de cestas básicas para os acampados. Segundo o superintendente do órgão, Mozar Dietrich, o Incra deve iniciar agora a aquisição das terras. “O Incra está com o edital aberto para todos aqueles que quiserem ofertar suas terras possam fazê-lo. Nós estamos até o final de novembro com esse edital aberto e aguardamos que as pessoas possam chegar até a superintendência e fazer as suas ofertas”, disse.

Em Passo Fundo, polícia fecha o cerco na primeira audiência entre Incra, MST e governo estadual

A principal dificuldade do Incra, afirma Mozar, está em conseguir as terras para compra a fim de desapropriar e criar assentamentos. O superintendente relata que muitos proprietários vêm sendo pressionados por sindicatos ruralistas e pela Federação da Agricultura do Estado do Rio Gran-

das fazendas Palermo e Mercedes, em São Borja. Boa parte do dinheiro já foi depositado pelo governo federal, mas o Estado não quis pagar o restante do valor. As famílias que participaram da marcha irão voltar para seus acampamentos, na região metropolitana de Porto Alegre, na região Sul e nas

de do Sul (FARSUL) para retirarem as ofertas de compra de terra no Incra. Também há a inoperância do governo estadual, que não se comprometeu em nada com a reforma agrária no Estado. Os sem-terra exigem que a governadora Yeda Crusius estipule um prazo para liberar a verba para a compra

A Fazenda Guerra A fazenda Guerra é um latifúndio de pouco mais de 9 mil hectares localizado no município de Coqueiros do Sul, no Norte do Rio Grande do Sul. A área gera apenas dois empregos fixos diretos e 20 indiretos e impostos que não chegam aos rendimentos de quatro aviários pequenos. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reivindica a fazenda para desapropriação por interesse social, já que ocupa quase 30% da cidade e não gera emprego e desenvolvimento na região. O que faz as famílias sem-terra quererem tanto a fazenda Guerra é uma área ao lado, que hoje é exemplo de assentamento e com-

prova o potencial social e econômico da reforma agrária no Estado. Estamos falando da fazenda Annoni, a primeira área desapropriada para a criação de assentamentos ligados ao MST no RS. Antes de ser desapropriada, a fazenda Annoni era improdutiva, servindo apenas para desenvolver o capim-annoni, hoje considerado uma praga nos campos de pastoreio gaúchos. Atualmente, os assentamentos na área produzem anualmente cerca de 20 mil sacas de trigo, 6 milhões de litros de leite, 150.000 sacas de soja, 35.000 sacas de milho, 45 toneladas de frutas, 800 cabeças de gado, 5.000 cabeças de suínos e 10.000 quilos de hortaliças. (RC)

Missões. Parte delas irão ficar no acampamento do MST que já existe há quase dois anos ao lado da Fazenda Guerra.

As marchas As marchas tiveram início no dia 11 de setembro quando cerca de 1,7 mil integrantes, divididos em três colunas, saíram de seus acampamentos e atravessaram o Estado para chegar até a fazenada Guerra – uma área de mais de 9 mil hectares. As dificuldades enfrentadas durante os 62 dias de marcha foram várias. Fortes chuvas e temporais, interceptação de ruralistas, repressão e violência da Brigada Militar e ações do Judiciário. Mas tudo isso não foi capaz de impedir a manifestação dos sem-terra. Ao contrário, o MST recebeu apoio em todos os lugares por que passou. Inclusive, teve a ajuda da chamada Quarta Coluna, criada por sindicatos, organizações e movimentos sociais apoiadores da luta pela reforma agrária.

O caminho da marcha pelo RS Cerca de 1,7 mil sem terra marcharam durante 62 dias em direção à fazenda Guerra, no Norte do Rio Grande do Sul. Eles reivindicavam a desapropriação da área, que tem pouco mais de 9 mil hectares. Em torno de 460 famílias sem-terra poderiam ser assentadas no local. Coluna da Região Sul: iniciou as atividades no dia 11 de setembro, com o bloqueio da entrada e saída de funcionários e mudas de pínus e eucalipto do horto florestal da empresa Votorantim Celulose e Papel, em Capão do Leão. Depois, seguiu para Pelotas, Bagé, Caçapava do Sul, São Borja, São Sepé, Santa Maria, Júlio de Castilhos, Cruz Alta, Ibirubá, Selbach e Victor Graeff. Encerraram a marcha com um ato em Não-me-Toque. Coluna da Região Central: cerca de 600 integrantes saíram em marcha de Bossoroca, na região Central do RS, passando por São Luiz Gonzaga, São Miguel das Missões, Santo Ângelo, Ijuí, Panambi, Condor, Palmeira das Missões e Sarandi, onde terminaram os protestos. Coluna da Região Metropolitana: cerca de 600 integrantes saíram em marcha de Eldorado do Sul e seguiram para Porto Alegre, onde ocuparam a superintendência regional do Incra. Depois, seguiram para Canoas, Campo Bom, São Leopoldo, Sapiranga, Caxias do Sul (na Serra Gaúcha), Estrela, Lajeado, Marques de Souza (onde liberaram as cancelas de um pedágio por três horas), Soledade, Tio Hugo, Ernestina e Passo Fundo, cidade em que encerraram a marcha.

Pelo mundo, atos simultâneos da Via Campesina repudiam assassinato de sem-terra no PR da Redação No dia 8, embaixadas da Suíça e sedes da Syngenta Seeds ao redor do mundo foram palcos de atos simultâneos organizados pela Via Campesina em repúdio ao assassinato do trabalhador rural sem terra Valmir Mota de Oliveira, o Keno. Aconteceram atos na Coréia, Indonésia, Timor Leste, Estados Unidos, Congo, Espanha, Canadá, Chile, Croácia e Venezuela. Justiça foi a palavra de ordem que marcou o ato da Via Campesina na Venezuela, em frente à embaixada da Suíça, em Caracas. “Agora as transnacionais não somente violam as legislações do país. Com essa ação, inauguram a violência como mecanismo para garantir seus interesses”, avaliou Joaquin Piñero, da Via Campesina. “Nós lamentamos o incidente, mas acreditamos que a responsabilidade está nas

mãos da Justiça brasileira”, disse, por sua vez, o encarregado de negócios suíço. Na própria Suíça, matriz da corporação de agroquímicos, a organização camponesa UNITERRE, também membro da Via Campesina, solicitou à presidente da Federação Suíça, Micheline Clamy-Rey, para acompanhar o caso da Syngenta.

Relator da ONU No dia 13 de novembro, Philip Alston, relator especial em questões extrajudiciais, sumárias ou mortes arbitrárias da ONU (Organização das Nações Unidas), que está no Brasil desde o dia 4 de novembro, recebeu denúncia de execução sumária no caso da Syngenta, elaborada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pela organização não governamental Terra de Direitos, que acompanha o inquérito do assassinato de Keno e do ataque de milícias arma-

das ao acampamento da Via Campesina. Com isso, a organização espera uma aceleração nas investigações, a partir da denúncia do Brasil como um Estado onde ocorrem execuções sumárias. A Terra de Direitos informou que, neste momento, as investigações sobre as mortes de Keno e de Fábio Ferreira de Souza, segurança da NF continuam sendo feitas pela Polícia Federal. Acredita-se que a Justiça reconheça que o objetivo da execução foi o que motivou a ida dos seguranças armados até a fazenda da Syngenta, que havia sido ocupada horas antes. No dia 7, houve a reconstituição do crime no local da tragédia: a guarita e a entrada do campo de experimentos da Syngenta Seeds. A reconstituição contou com a presença de membros da Via Campesina. Os seguranças da NF Segurança receberam a intimação da Justiça, mas

credito

SYNGENTA

Membros de movimentos sociais realizam manifestação na Syngenta, em Paulínea (SP)

optaram por não participar da reconstituição. A Terra de Direitos defende que a Syngenta tinha conhecimento e havia se manifestado sobre um inquérito, no qual o uso de armas da NF Segurança foi denunciado.

Isso aconteceu quando, no dia 20 de julho, no assentamento Olga Benário, localizado no município de Santa Teresa do Oeste – ao lado da fazenda experimental da Syngenta –, famílias do MST foram ameaçadas por “segu-

ranças” armados, que chegaram a disparar contra a bandeira do MST, roubandoa como forma de intimidar as famílias. De acordo com a Syngenta, o uso de armas não está no contrato com a empresa de segurança.


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Dia de greve no Rio Grande do Sul Cerca de 4 mil trabalhadores promoveram manifestações no Rio Grande do Sul, no dia 7, contra o pacote da governadora Yeda Crusius (PSDB/RS) enviado à Assembléia Legislativa. O plano tucano prevê aumento de impostos e de tarifas como energia e combustível, privatizações e demissões. O dia de greve geral mobilizou sindicalistas ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), à Conlutas e à Intersindical, organizações civis e movimentos sociais.

ECONOMIA Empresas têm lucros recordes apropriando-se do capital produtivo e explorando trabalhadores

Bolívia: impasse na Constituinte

Pedro Carrano de Curitiba (PR)

UMA VEZ mais, o lucro dos bancos bate recordes. O Bradesco teve R$ 5,817 bilhões de rendimentos entre janeiro a setembro, um aumento de 73,6% em relação ao mesmo período de 2006. O Itaú, por sua vez, anunciou lucro de R$ 6,444 bilhões, elevação de 112,7%. E o Unibanco chegou a R$ 2,621 bilhões, um crescimento de 123,3%. Pesquisa da consultoria Economática, entre 319 empresas de capital aberto, com ações na bolsa de valores, aponta que os bancos formam o setor mais lucrativo da economia brasileira. Entre janeiro e junho, as 24 instituições financeiras privadas acumularam lucro de R$ 14 bilhões, seguidas pelo setor de gás e petróleo, com R$ 11,3 bilhões, e pelo setor de mineração, com R$ 10,99 bilhões. Somente esses três setores responderam por 51% do lucro obtido pelas companhias de capital aberto. Na opinião de Pablo Díaz, economista e membro do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região Metropolitana, o lucro dos bancos na realidade é ainda maior do que o resultado divulgado oficialmente. Os números apresentados fariam parte do lucro contábil dos bancos e não do lucro efetivo, pelo fato de que essas instituições contam com incentivos fiscais no momento de adquirir outras empresas. “O trabalhador na hora de comprar uma casa paga impos-

saiu na agência credito

Lucro dos bancos financia exploração do trabalhador

to sobre patrimônio, mas o banco não paga na compra de outras empresas, o que favorece a concentração do lucro nessas poucas instituições bancárias”, afirma. Ele completa dizendo que o sistema bancário atualmente é favorecido por mecanismos financeiros de acumulação, como paraísos fiscais.

Produtivo ou financeiro De acordo com Díaz, o lucro de bancos como o Bradesco – um dos controladores administrativos da mineradora Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), empresa que atingiu o lucro nos primeiros nove meses de R$ 10,937 bilhões – causa a formação de conglomerados econômicos, porque empresas do setor produtivo são adquiridas por grupos financeiros. “O lucro dos bancos cresce de maneira desproporcional, o que leva a aquisição de outros setores da economia, em uma grande associação do setor financeiro com o produtivo”, descreve. Esse fator interfere na conjuntura política. Para comprovar isso, basta ver a lista dos presidentes do Banco Central dos governos mais recentes. O atual, Hen-

rique Meirelles, por exemplo, fez sua carreira no Bank Boston, chegando a ser presidente global da corporação em 1996. “Existe um presidente de direito, que é o Lula, e outro de fato, que é o do Banco Central”, comenta Díaz.

Subimperialismo Segundo Díaz, esse processo pode ser observado em empresas como a Petrobrás, que acumulam capital em relação com o capital financeiro. Com isso, essas empresas ganham força para atuar de modo imperialista em outros países vizinhos da América do Sul. “Existe uma transnacionalização de empresas brasileiras, como a Gerdau, a Petrobras e a Vale do Rio Doce, que se fortalecem e ganham musculatura em aliança com o setor financeiro”, comenta. Não se pode esquecer ainda dos mecanismos de acumulação do setor financeiro, como a dívida pública. Nesse formato, os capitalistas viram credores da dívida pública do Estado, de tal forma que, entre 1995 e 2005, 14% do produto interno bruto (PIB) foi destinado para esse fim. Do montante da dívida pública, 33% são transferidos pa-

ra bancos estrangeiros e 67% para credores nacionais.

Exploração No entanto, segundo Ana Paula Rosa de Simone, metalúrgica de São José dos Campos e integrante da Intersindical, as ações de maior valor no mercado especulativo são os papéis de empresas do capital produtivo. Na sua opinião, a financeirização da economia (hegemonia da acumulação a partir de instituições financeiras e bancos) não pode prescindir da exploração da mão-de-obra dos trabalhadores no processo do capital produtivo. Ao contrário. “As principais ações na Bolsa de Valores são do setor produtivo, ou seja, têm origem no processo de produção. A grande mídia passa uma idéia contrária, mas a financeirização da economia parte sempre da exploração no processo de trabalho”, polemiza. A dirigente sindical cita o fato de que, nessa mesma conjuntura de anúncio da lucratividade dos bancos, as montadoras automobilísticas, como a Volkswagen e a Fiat, anunciaram lucro recorde para o período. Um lucro que só havia sido visto no final da década de 1990.

Bancários ganham cada vez menos

Ciranda financeira

Enquanto as empresas batem recordes nos rendimentos, condições de trabalho são precarizadas

Aliança entre capital financeiro e produtivo agudiza dependência das economias nacionais e prenuncia crise mundial

de Curitiba (PR) Se, por um lado, os bancos configuram o setor da economia que mais lucrou no primeiro semestre, por outro, poucos empregos formais foram criados. Com ganhos acumulados de R$ 14,52 bilhões entre janeiro e junho, segundo estudo da consultoria Economática, os bancos geraram 4.320 postos de trabalho com carteira assinada no período. Na opinião de Pablo Díaz, economista e membro do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região Metropolitana, o tipo de emprego gerado pelos bancos pode ser classificado como trabalho precário. Ele aponta que existe uma divisão de trabalho interno no banco, entre o funcionário especializado e um outro grande setor que vive um processo de terceirização. De um lado, explica, está o funcionário com alto grau de qualificação, gerenciando e cumprindo as metas da empresa. De outro, prevalece o trabalhador “taylorista”, aquele que atua em serviços repetitivos, com salários de até R$ 400.

Homem e máquina Com o desenvolvimento da tecnologia e do software corporifican-

do trabalho humano, o funcionário já não necessita de uma especialização para gerenciar a modernização dos serviços do banco. “O banco prescinde do bancário, que fazia o papel de assessor. Todo esse conhecimento está imaterializado pela tecnologia, enquanto o trabalhador ganha R$ 400 para oferecer crédito nas ruas”, opina. Matéria do jornal Valor Econômico do dia 6 de agosto mostra, com bases em dados do Ministério do Trabalho e Emprego e projeções da LCA Consultores, que, entre 2003 e 2006, a ocupação com carteira assinada no país cresceu 20,7%, enquanto no setor bancário a alta foi de 16%. Além disso, a maior parte das contratações foi de não bancários, como promotores de crédito, que, em regra, ganham menos. Levando em conta apenas os bancários, o aumento na ocupação foi de 13%. Isso gerou uma situação tal que, hoje em dia, apenas a receita obtida pelos bancos com prestação de serviços é suficiente para quitar os gastos com pessoal. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2006, as tarifas cobradas pelas 11 maiores instituições financeiras corresponderam a 125,2% da folha de pagamento. (PC)

de Curitiba (PR) De acordo com o economista Marcos Arruda, o capital financeiro se caracteriza por uma grande quantidade de recursos circulando nas mãos de empresas financeiras globais, na ordem de 2 trilhões de dólares ao ano, com a finalidade da especulação, ao passo que o comércio mundial circula entre 7 e 8 trilhões de dólares. Arruda crê que essa situação gera competição entre países e uma economia baseada apenas no valor de troca, na produção para o mercado. No modo de produção atual, segundo ele, “nenhum país depende dos seus próprios recursos, das suas demandas e da sua capacidade produtiva”. Essa situação gera uma dependência que contém dentro de si o anúncio da próxima crise. “Os títulos da dívida do tesouro estadunidense estão nas mãos da China e do Japão. Os Estados Unidos sabem que amarram quem tem títulos ao interesse de um dólar saudável. A China é uma potência e não pode deixar o dinheiro parado, então busca a alternativa de ficar acumulando, por meio da compra de títulos da dívida. Ela empresta aos EUA para acelerar a economia estadunidense que, por sua vez, compra e importa os produtos chineses”, descreve. (PC)

Apesar de um acordo político indicar a retomada da Assembléia Constituinte, os deputados não conseguiram iniciar os trabalhos no dia 9. Manifestantes favoráveis à transferência dos Poderes Executivo e Legislativo de La Paz para Sucre fizeram piquete para bloquear a Constituinte e agrediram deputados do MAS, entre eles, uma indígena de 60 anos.

Fórum Social Sul: a periferia em debate Realidade do Jardim Ângela se torna matéria-prima para debater algumas raízes dos problemas dos bairros mais pobres de São Paulo, durante o 3º Fórum Social Sul. Um dos destaques da

fatos em foco

discussão foram os temas educação e saúde, setores que, historicamente, foram sempre tratados com descaso pelo poder público em todas as suas instâncias.

Reuni na Universidade do Paraná O reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Carlos Augusto Moreira Júnior – possível candidato do PMDB à prefeitura de Curitiba –, permitiu a aprovação do Reuni na instituição, em decisão do Conselho Universitário (Coun) que dispensou a participação dos estudantes. Desde o dia 18 de outubro, cerca de 100 jovens ocupam a reitoria da UFPR. Em todos os Estados, 12 reitorias de universidades federais foram ocupadas até então.

Hamilton Octavio de Souza

Ditadura incorporada Após rememorar os 30 anos da histórica invasão da PUC-SP pelas tropas do coronel Erasmo Dias, em agosto de 1977, em plena ditadura militar, a PUC-SP foi vítima de nova invasão da polícia, na madrugada de 10 de novembro de 2007, para retirar estudantes que haviam ocupado o prédio da reitoria. Só que agora a violência foi solicitada pela própria Reitoria, que jogou no lixo os princípios democráticos do diálogo, negociação e entendimento. Pizzaria Senado

Bolha especulativa

Aos poucos os vários processos que pesam contra o presidente licenciado do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), vão sendo desqualificados e desativados, de maneira que a confraria evite a cassação do neocoronel das Alagoas. Só falta acertar agora o que vão fazer com ele, se retorna para a presidência da Casa ou se deixa o cargo para outro colega do PMDB ou do PT. Tudo em família.

O mercado de ações anda tão “bombado” que até o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que é o porta-voz dos bancos e especuladores em geral, tem alertado para o risco de explosão. O discurso oficial do “crescimento sustentado” serve apenas de escudo para conter demandas salariais, a redução no juro e investimentos voltados para a distribuição da renda e da riqueza. Cinismo puro!

Entreguismo, não

Alta bandidagem

Crime oficial

Megalomania

Neonazismo

Desmonte legal

A CUT está correndo um abaixo-assinado para ser entregue ao presidente da República, no dia 22 de novembro, no qual solicita que a Petrobrás suspenda imediatamente os leilões das áreas de petróleo e gás; e pede a definição de uma política estratégica que preserve os interesses nacionais, já que a metade das reservas existentes está entregue para o capital estrangeiro. Só com algum milagre! O polêmico sucesso do filme “Tropa de Elite” coincide com onda de glamourização e apoio expresso de setores da classe média aos atos de truculência das forças policiais. O sinal da barbárie é tão evidente que o major Ricardo Soares, do BOPE do Rio de Janeiro, contou em detalhes, para a imprensa, como assassinou o preso Sandro Nascimento asfixiando o seu pescoço até morrer. É mole? Em entrevista no 6º Encontro Nacional de Fé e Política, em Nova Iguaçu (RJ), o escritor frei Betto fez várias críticas ao governador do Estado, Sérgio Cabral, do PMDB, por ter atacado a população pobre das favelas e se negado a receber o representante da ONU que investiga a violação dos direitos humanos, e sugeriu ao governador que inaugure uma estátua do líder nazista Adolf Hitler.

Na última semana a Polícia Federal apreendeu mais de R$ 6 milhões em dinheiro vivo no escritório de um doleiro, em São Paulo, que operava para bancos europeus a remessa ilegal de dólares para o exterior. Os presos nessa operação – executivos de bancos – foram todos soltos. Estimase que esse mercado clandestino movimente pelo menos R$ 60 bilhões por ano. Não é coisa de pé-de-chinelo! A Companhia Hidrelétrica do São Francisco, estatal com 5.700 funcionários, aprovou e classificou em concurso público 316 mil candidatos de um total de 856 mil inscritos – para eventuais vagas na empresa. Como renova poucas vagas por ano, por morte ou aposentadoria, o concurso só serve para criar a ilusão de que o enorme exército de reserva ganhará emprego em breve. É muita sacanagem! Uma das medidas mais nefastas aos direitos dos trabalhadores, a terceirização dos serviços de uma empresa, encontrou finalmente um limite: a Justiça do Trabalho de Resende (RJ) determinou que a unidade da Volkswagen do Brasil naquela cidade não utilize mais mão-de-obra fornecida por outras empresas na atividade-fim da montadora. Linha de montagem só com trabalhador registrado. Finalmente!


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brasil Eduardo Marques

A descoberta da democracia POLÍTICA Em meio a um modelo representativo “falido”, Congresso de Participação Popular retoma o verdadeiro conceito de democracia, em Diadema, São Paulo Eduardo Sales de Lima da Redação “TODO O poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Esse é o parágrafo único do artigo primeiro da Constituição de 1988. Colocado isso, os primeiros passos para a participação da população na política começam nos próprios bairros e comunidades, com a formação de fóruns, conselhos e conferências que detectam os problemas e as carências de grupo social. Entre os dias 23 e 25, Diadema (SP) sediará o 5º Congresso Paulista de Participação Popular, fruto do Fórum Paulista de Participação Popular, criado em 1999 por movimentos e organizações da sociedade civil, mandatos de deputados da Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp) e prefeituras. O objetivo é debater experiências de participação popular e fortalecer a democracia participativa direta. Estão sendo aguardadas de 400 a 500 pessoas de 30 cidades. Porém, o fato é que muitos que perfazem o círculo da política institucional impedem o aprofundamento da participação popular. Baseados em um projeto mais radical, os fóruns de participação popular presentes em outras regiões do país pressionam, principalmente, as administrações “fechadas”, como a do Estado de São Paulo, afirma Gabriel Medina de Toledo (de Araraquara, São Paulo), integrante da coordenação do Congresso. Um dos artifícios da Alesp, por exemplo, é “propor” a participação da população, circulando a convocação de audiência pública em

um dia para, no dia seguinte, realizá-la. Uma outra pauta do Congresso é o fortalecimento dos conselhos gestores espalhados por todo o Estado. Gabriel aponta para um esvaziamento dos órgãos, instrumentos da participação civil. “O governante não quer aprofundar os canais e cria barreiras de incentivo”, revela.

Democracia direta O Congresso também objetiva aprofundar o debate sobre a participação e a fiscalização dos espaços do Estado pela própria população, em parceria com os governantes. “Nossa intenção é tirar estratégias para o Fórum Paulista. Criar novos mecanismos de participação, além de fazer diagnósticos”, informa Cátia Lima, de Guarulhos (SP), também integrante da coordenação do Congresso. De acordo com Eduardo Marques (da capital paulista), outro coordenador do Congresso, os mecanismos de democracia participativa, além de estarem baseados na Constituição de 1988, artigo primeiro, se fundamentam nas próprias experiências acumuladas de outros congressos e da regulamentação do orçamento participativo nas cidades. “Esses canais são mais necessários para a radicalização democrática. Só a democracia representativa não deu conta. Na Constituição, há instrumentos para essa radicalização”, salienta. Ele avalia que os movimentos sociais ficam muito sobrecarregados, pois não há sistemas mais efetivos de participação popular dentro da maioria das instâncias governamentais do país. “O modelo de hoje está falido. Uma combinação entre democracia representativa e democra-

Serviço 5º Congresso Paulista de Participação Popular Teatro Clara Nunes Rua Graciosa n° 300 Diadema-SP Entre os dias 23 e 25 Para maiores informações: (11) 4057.7883 ou visite www.diadema.sp.gov.br/ cppp/ cia direta faz com que haja a democratização do Estado e com que ele funcione para a maioria do povo”, reforça Gabriel Medina. Para ele, diferente de outros congressos, quando houve mais espaço para experiências locais, o próximo priorizará o debate organizativo do Fórum Paulista, apontando para os temas dentro do âmbito estadual.

Orçamento Uma das experiências que remetem mais fortemente para o exercício da participação popular é a criação e regulamentação dos conselhos de orçamento participativo nas cidades. Mas o 5º Congresso irá lançar a campanha de coleta de assinaturas para que também exista participação popular dentro do governo estadual. Em Belo Horizonte (MG) e Campinas (SP), por exemplo, as assembléias do orçamento participativo são realizadas a cada dois anos. Então, que a sociedade, juntamente com o poder público, defina se os investimentos serão na área da saúde, educação, moradia, infra-estrutura, lazer, cultura, entre outros serviços. Papel do Legislativo Além dessas duas cidades, outras 300 também realizam a experiência do orçamento participativo. Com is-

Reunião dos conselhos de orçamento participativo em Guarulhos (acima) e Santo André

so, o Legislativo perde seu espaço? “Esse Poder precisa se modernizar e enfrentar novos desafios”, afirma Cátia Lima. Para Marques, isso é fruto, em grande parte, da descaracterização do Legislativo, que teria se transformado em “despachante do Executivo”. Segundo ele, o Executivo,

quando cria esse canais como os orçamentos participativos, cumpre a legislação. Para Medina, no entanto, o orçamento participativo é importante, mas limitado. Ele destaca o problema das “verbas carimbadas”, isto é, resultantes de repasses de outras instâncias de governo e

com destinação específica. Se houve economia nos gastos, por exemplo, é necessário revertê-la à instância que cedeu os recursos, sem utilizá-la em outros programas que beneficiem regiões carentes. “A participação da sociedade precisa ser majoritária dentro desse debate”, pondera.

COMUNICAÇÃO

TV pública cada vez mais estatal Discussão rebaixada Roosewelt Pinheiro/ABr

Especialistas criticam mecanismos de gestão propostos pelo governo para a TV Brasil

Oposição, ligada à mídia corporativa, reclama alegando “desperdício” de dinheiro e não discute direito à comunicação

Mayrá Lima de Brasília (DF) Carro-chefe da medida provisória (MP 398) que cria a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), a TV Brasil, proposta para ser uma emissora pública, já sofre uma enxurrada de críticas. Segundo Valério Britto, pesquisador e professor da pós-graduação em ciências da comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS), a MP teria que ser reeditada para que avance “em vários sentidos”. O modelo de gestão proposto pelo governo federal é o que mais o incomoda. “A indicação dos conselhos de gestão não deveria ser feita diretamente do Executivo. E como pode não ter nenhum tipo de vinculação social? As pessoas precisam representar setores da sociedade”, reclama. De acordo com a MP publicada no dia 24 de outubro, a TV Brasil será vinculada quase que exclusivamente ao governo federal, pela Secretaria de Comunicação Social, comandada pelo ministro Franklin Martins. O presidente Lula, por exemplo, terá o poder de indicar 80% do conselho administrativo e 95% do conselho curador, responsável pelas diretrizes da nova TV, pela sua linha editorial e que seria formado com a participação da sociedade civil com o perfil de “personalidades” isoladas, sem representatividade social.

dentro do Congresso

de Brasília (DF)

O presidente da Abetec, Antonio Aquiles, o deputado Paulo Bornhausen e a presidente da EBC, Tereza Cruvinel, debatem a TV Pública

“Em principio, o Estado não é incompatível com o público, mas corre-se o risco de que haja uma comunicação pouco comprometida com as necessidades da sociedade e venha a ser mais um lugar de apresentação dos órgãos de governo”, analisa Britto.

Anti-democrático Já Murilo Ramos, professor do Laboratório de Políticas da Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), vai mais longe e considera que, “idealmente”, o assunto TV pública deveria ser tratado por projeto de lei (PL), não por MP. “O PL permite que, no Parlamento, haja a possibilidade mínima de ter a discussão por meio de audiências públicas e que exista um debate amplo numa questão tão sensível quanto essa”, disse. O pesquisador da UnB ainda chama atenção para a questão da auto-

nomia financeira da TV Brasil que, segundo ele, não está clara na MP 398. De acordo com Ramos, a autonomia da BBC inglesa, por exemplo, só é garantida por que as taxas recolhidas vão direto para os cofres da TV pública da Inglaterra. “Se o orçamento puder ser contingenciado, ou reduzido por decisão do Executivo, vai haver prejuízo para a autonomia independente do conselho que se implantar.”, explica. Para Ramos, o governo federal entrou no “equívoco” que vem desde a Constituição Federal de 1988. “Em 1988, quando se colocou que haveria a complementaridade entre o sistema público, privado e estatal, aceitamos que pudesse existir um sistema essencialmente privado, o que é um grande equívoco. Todo sistema de radiodifusão é público, o que é dada é uma concessão para exploração comercial”, observa o professor.

Os especialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato, Valério Britto, da Unisinos, e Murilo Ramos, da UnB, concordam que é legítima a criação de um sistema público de comunicação no Brasil, independentemente do formato da TV pública. De acordo com Britto, é “fundamental” um sistema público de comunicação, “não necessariamente estatal”. “É um sistema que permite que a sociedade dialogue com ela própria e que contribui com o que se chama de espaço público, que deve ser um lugar de encontro da sociedade com ela própria. A TV comercial pode até ter um papel desses, mas eles são regidos pela lógica de mercado e isso não é por excelência um espaço onde a sociedade se encontra”, explica. Já Ramos diz “não negar” o que ele chama de “boa intenção do governo”. “O processo é que veio errado, porque ele não leva em conta o todo, mas uma parte”, diz.

Disputa No entanto, na tentativa de barrar a criação de um sistema público de comunicação, a oposição liderada pelo DEM e pelo PSDB não pensa dessa forma. Agarrados na onda da aprovação, ou

não, da CPMF, parlamentares ligados a esses partidos insistem em declarar que o governo estaria “desperdiçando dinheiro” com o que eles parecem considerar irrelevante: o direito à comunicação. “Pergunto: que significado e alcance tem esse dispositivo? Vale para o MST e outros movimentos sociais que atuam à margem da lei, inclusive sem ato constitutivo formal? Talvez seja para esses que venha servir propriamente”, afirmou, em plenário, o deputado federal João Almeida (PSDB/BA). Por outro lado, a bancada governista já dá sinais de que vai apoiar incondicionalmente a MP do Executivo. “Eu acho muito importante a criação da TV pública. Acho que é um marco no que diz respeito a divulgar a diversidade cultural do país, fazendo um contraponto com a TV comercial”, diz a deputada Maria do Carmo Lara (PT/MG). Até mesmo a tramitação por MP é defendida com veemência pelos governistas. Para o deputado Fernando Ferro (PT/PE), a MP é “mais que oportuna”. “Há a critica da oposição de que isso não veio por PL, mas é o tipo de discurso que quem quer jogar esse debate para daqui dez anos. A hegemonia dos setores privados impede a democratização dos meios de comunicação”, afirma. (ML)


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brasil

Philip Alston, da ONU, recebe denúncias sobre execuções no país VISITA Philip Alston esteve em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Brasília; relatório só sai ano que vem Elza Fiúza/ABr

Gisele Barbieri de Brasília (DF) NO PAÍS desde o dia 4 de novembro, o relator sobre execuções arbitrárias, sumárias ou extrajudiciais da Organização das Nações Unidas (ONU), Philip Alston, reuniu-se em Brasília no dia 13 com as entidades que compõem o Fórum de Entidades de Direitos Humanos e outros movimentos como o Movimento Negro Unificado e dos Trabalhadores Sem-Teto do Estado da Bahia, Conselho Indigenista Missionário e Movimento Nacional de Direitos Humanos. Na reunião realizada na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o relator escutou por quase três horas, os relatos dos representantes dessas entidades que denunciaram casos emblemáticos de execução, perseguição e criminalização sofridas por integrantes desses grupos. O movimento Negro da Bahia, durante a entrega de seu relatório, protestou pela cidade não ter sido escolhida como umas cidades para receber a visita do relator. “Todos nós que estamos aqui somos vítimas. A polícia está nos monitorando, sabe onde moramos e nossos irmãos estão sendo mortos. As organizações de direitos humanos na Bahia tem uma política que se diz democrática, mas que na teoria é de nos virar as costas, porque nos considera bandidos”, denunciou Hamilton Borges Walê, integrante do movimento negro da Bahia. Philip Alston lamentou não poder ter ido ao Estado, atribuindo a sua ausência ao pouco tempo de permanência de sua equipe no Brasil. Além da capital federal, o relator esteve em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. No dia 14, ele concederia uma coletiva à imprensa em Brasília, para expor suas impressões sobre as denúncias ouvidas no país.

Só ano que vem O relatório deverá ser finalizado entre abril e maio do próximo ano. Existe a possibilidade de que uma versão seja disponibilizada em português. Depois, o documento será entregue ao governo brasileiro, que terá 30 dias para prestar explicações à ONU. Para Ivônio Barros, integrante da coordenação do Fórum das entidades de Direitos Humanos, “os casos brasileiros são tão explícitos, que temos um Estado aplicando pena de morte, milícias matando sem nenhum tipo de punição, fazendo reuniões nas quais deixam claro que a solução é matar pessoas. A morte do militante do MST Keno é um exemplo disso. Esses relatórios mostram que existe sim no Brasil um processo contra os movimentos populares, população negra e os jovens”. Durante a reunião, o pedido unânime das entidades foi de que esse relatório possa cobrar explicações não somente do Poder Executivo, mas também do Legislativo e do Judiciário. A sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH) em seu relatório mostrou cinco casos de homicídio de lideranças e defensores de direitos humanos, dois deles ocorridos este ano. As entidades acusam os três poderes de omissão por serem muitas vezes aliados dos latifundiários. Para Marco Apolo Santana, isso se percebe pelo grau de impunidade no Estado do Pará e no país. “Todo o ano, mais de 40 casos referentes a assassinatos de trabalha-

O relator Philip Alston e o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, durante reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

O relatório deverá ser finalizado entre abril e maio do próximo ano. Depois, o documento será entregue ao governo brasileiro, que terá 30 dias para prestar explicações à ONU dores prescrevem sem irem a julgamento”, afirma ele. Ele ressalta ainda que muitos dos trabalhadores assassinados pediram proteção várias vezes e o Estado foi omisso. A entidade afirma que hoje mais de 90 pessoas estão ameaçadas de morte no Pará. Marina dos Santos, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entregou dois relatórios a Philip Alston. Um sobre o assassinato de Keno, no Paraná, e outro sobre o massacre de Felisburgo, ocorrido em Minas Gerais, em novembro de 2004, quando cinco trabalhadores rurais foram mortos e outros

13 ficaram feridos, entre eles duas crianças.

Resposta pública Mesmo reconhecendo que o documento que irá produzir não terá tantos poderes como esperam as entidades, Philip Alston deixou claro que o relatório obrigará o governo a responder publicamente pelas acusações. “Vocês deixaram claro que há falhas no Estado, mas eu posso garantir a vocês que no Brasil, comparado a outros países que eu já visitei, existe uma preocupação do Poder Público com os direitos humanos. Todo o problema está em grupos que ainda, motivados pela ditadura, agem dessa forma inconsistente”, concluiu o relator da ONU.

Manifesto contra as políticas de extermínio As afirmativas do governador do Estado do Rio de Janeiro de que as favelas são fábricas de marginais refletem uma política de segurança pública militarizada, que coloca como alvo os setores mais pobres e marginalizados da população. Estes não carecem de tiros e sim de políticas públicas eficientes e competentes. A criminalidade é fenômeno social que permeia as relações em todas as sociedades e, como sabemos, não é exclusiva dos setores pobres e excluídos. A diferença encontra-se, em verdade, no tratamento conferido aos crimes praticados nas diferentes classes sociais. Insere-se nessa ótica turva a declaração do Secretário de Segurança Pública, que distinguiu uma bala perdida em Copacabana daquela no Complexo do Alemão. Nossa preocupação se estende ao posicionamento de certos setores da mídia que reforçam a ideologia do extermínio, em afronta ao Estado Democrático e de Direito, como o contido no editorial de jornal [carioca] de grande circulação do dia 26 de outubro, no qual se lê que “as camadas pobres da população converteramse numa fábrica de reposição de mão-de-obra para o exército da criminalidade”. Repudiamos e denunciamos a política de segurança pública fundada no confronto militar e, sem apreciarmos aqui eventual direito à interrupção de gravidez indesejada, entendemos que o aborto não pode ser tido como instrumento de política demográfica, de saneamento ou de eugenia.

No Rio, relator recebe Manifesto contra governo Sérgio Cabral Fernanda Chaves e Renata Souza do Rio de Janeiro (RJ) O relator sobre execuções arbitrárias, sumárias ou extrajudiciais da ONU, Philip Alston, esteve no Rio na segunda semana de novembro e foi ignorado pelo Poder Executivo, cujo representante maior, o governador Sérgio Cabral, não o recebeu. Já no dia 7, o relator teve um encontro com representantes de entidades da sociedade civil e recebeu um dossiê sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais no Rio de Janeiro, assinado por mais de 15 organizações, entre elas Justiça Global, Raízes em Movimento, Observatório de Favelas, Grupo Tortura Nunca Mais e pelo mandato do deputado estadual Marcelo Freixo (Psol). O documento traz informações sobre a política de segurança pública praticada atualmente no Rio de Janeiro, com especial atenção para a violência policial. Alston, acompanhado de Marcelo Freixo e organizações de direitos humanos, visitou o Complexo do Alemão, onde ouviu os relatos de familiares das vítimas da chacina cometida pelo Estado. O relatório da ONU sobre a visita ao Rio de Janeiro deverá ser divulgado em abril de 2008. Diante desse quadro caótico, artistas, músicos, desembargadores, juízes, professores, estudantes, parlamentares e jornalistas, entre outros, além de diversas entidades como OAB, Tortura Nunca Mais, Justiça Global e MST lançaram o Manifesto Contra as Políticas de Extermínio do governo Sérgio Cabral (ver texto ao lado). O documento ressalta a cumplicidade das corporações de mídia com as

seguidas chacinas policiais. Em reunião na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ocorrida no dia 8, o relator da ONU recebeu o manifesto das mãos do músico Marcelo Yuka.

Situação alarmante A situação da segurança pública no Rio de Janeiro chegou a níveis alarmantes. Representantes de instituições públicas de segurança dão declarações discriminatórias com relação ao tratamento dispensado às favelas e seus moradores, ignoram laudos oficiais sobre excussões sumárias no Complexo do Alemão e até a visita do relator da ONU. O desrespeito aos direitos humanos tem se revelado uma prática consciente por parte do poder público estadual. Os índices de violência no Rio de Janeiro são um indicador da ineficácia desse modelo de ação, que serve apenas para produzir e reproduzir preconceitos e reafirmar a lógica de criminalização da pobreza. O massacre no Complexo do Alemão, ocorrido em 27 de junho, pode ser considerado a primeira chacina assumida de fato pelo poder público. A operação, que envolveu aproximadamente 1.500 policiais, deixou 19 mortos e um enorme rastro de abuso policial, como arrombamento de residências e saques a pequenos comércios. A chacina rendeu ao governador e ao secretário de segurança aplausos de grande parte da opinião pública e elogios do presidente Lula. O deputado estadual Marcelo Freixo (Psol) e o advogado João Tancredo, então presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, estiveram no dia seguinte no Complexo do Alemão e presenciaram o circo de horror deixado pelos po-

liciais. Além de terem o direito de ir e vir cerceado, os moradores denunciaram extorsões e o constante medo das forças policiais.

Execuções confirmadas Na ocasião, foram divulgados os laudos feitos pelo Instituto Médico Legal (IML), que deixaram ainda mais dúvidas sobre o que tinha ocorrido no Complexo do Alemão. Diante desse fato, organizações de direitos humanos questionaram os laudos e pressionaram os órgãos responsáveis, solicitando à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República outro documento que, em 1º de novembro, divulgou um novo relatório. Além de constatar a existência de execução sumária e arbitrária, a perícia enumerou uma série de falhas e imprecisões nos laudos elaborados pelo IML, como falta de objetividade nas descrições, omissão de informações, ausência de exame do local do crime, entre outras. O relatório, portanto, confirma a denúncia promovida pelos movimentos sociais. Em nota à imprensa, o secretário estadual de segurança Mariano Beltrame disse que “o relatório foi encomendado sob pressão daqueles que deturpam a justa causa dos Direitos Humanos”. Ora, um secretário que diz que uma vida na zona Sul vale mais que a vida na favela da Coréia não tem legitimidade para falar sobre direitos humanos em quaisquer circunstâncias. É lamentável que o secretário tente deslegitimar o relatório pelo fato de comprovar as arbitrariedades cometidas na ação policial no Complexo do Alemão. Não deveria ser esse o papel de alguém que responde por um órgão de interesse público.


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américa latina

TRADIÇÃO Milhares de bolivianos rendem culto a crânios humanos, aos quais são atribuídos poderes sobrenaturais

Fotos: Igor Ojeda

O culto popular às ñatitas, entre a fé indígena e a católica

Igor Ojeda de La Paz (Bolívia) DE GORRO marrom-claro e óculos de grau, é por volta do meio-dia que Agustina chega, um tanto apressada, ao Cemitério Geral de La Paz. Está atrasada. Há cerca de 20 minutos, o padre local acabara de celebrar a última missa. Num dia como este, um 8 de novembro de sol forte, presenciar tal cerimônia é imprescindível. Menos mal que Agustina chega a tempo de ser benzida. Caso contrário, as conseqüências poderiam ser desastrosas para quem a acompanha ao cemitério. Ou melhor, para quem a carrega. Pois, há pelo menos 40 anos, Agustina já não pode caminhar sozinha. Ela está dentro de uma caixa de vidro. Além do gorro e dos óculos, traz sobre ela uma coroa de flores. Na cavidade de seus olhos, chumaços de algodão. Agustina é uma ñatita. Melhor dizendo, Agustina é um crânio. Um crânio de verdade. Mais do que tudo, Agustina é parte de uma impressionante tradição de se celebrar os mortos numa Bolívia cada vez mais invadida pelas abóboras do Halloween estadunidense. É a Festa das ñatitas. Mas, diferentemente do “Dia das Bruxas” boliviano, quando se testemunham crianças brancas fantasiadas da classe média para cima, levadas por seus pais a pedirem “doces ou travessuras” pelas ruas da cidade, a celebração das ñatitas é, sobretudo, popular. No Cemitério Geral de La Paz, os rostos, os cabelos, os gestos, as falas, as roupas são indígenas, são dos da classe baixa. Todo 8 de novembro, no encerramento da “Festa de Todos os Santos”, aproximadamente cinco mil dos de baixo aparecem para a celebração. O que significa que, como Agustina, outras milhares de caveiras – ou ñatitas, como são chamadas – se fazem presentes, carregadas por seus donos. Donos que carregam consigo, antes de tudo, uma fé inabalável. “Ela nos protege de todos os que querem nos fazer mal. Cuida da casa. Às segundasfeiras, a velamos, acendemos velas, fazemos com que masque folha de coca. Fazemos pedidos. Para que não nos falte nada. Outras pessoas vêm a nossa casa para acender velas a ela, quando tem alguém doente na família... Quando as pessoas perdem dinheiro, ela faz aparecer, quando têm problemas, ela os soluciona”, explica Reubel Santos, o homem de cerca de 40 anos que conseguiu fazer com que Agustina recebesse a água benta a tempo. Ele conta que sua ñatita é um antepassado distante e que, no passado, pertencia a seus avós. “Ela nos acompanha há 10 anos, é mais uma da família”, diz, num misto de orgulho e carinho.

Lucas, Ricardo e Cirilo, ñatitas antigas na família de Josejina Luna

embora muitas vezes possam ser de parentes e amigos. Os próprios fanáticos os recolhem, em cemitérios ilegais, em covas abandonadas, ou os compram de coveiros que os desenterram de tumbas clandestinas. As ñatitas desconhecidas se comunicam com os vivos por meio dos sonhos destes. Assim, numa noite bem-sucedida e bem dormida, podese descobrir o sexo, a idade e, principalmente, o nome da caveira, com o qual ela será batizada. É também por meio dos sonhos que uma ñatita comunica a seu dono a chegada de doenças ou desgraças. Além de tudo, as almitas, como também são conheci-

das, realizam desejos. A cada 8 de novembro, para que mantenha seus “poderes”, a ñatita deve ser levada ao cemitério para ouvir missa e ser benzida. Mas isso não significa que, durante o resto do ano, possa ser negligenciada. Regularmente, deve-se acender velas e oferecer flores em sua homenagem. Do contrário, tragédias podem ocorrer, e os sonhos não mais virão.

Proteção de Vicky

Para que nada de mal lhes aconteça, Sofía e Maria Aranda, mãe e filha, mantém em sua casa um altar especialmente para Vicky. “Acendemos velas a ela todas as segundas-feiras e fazemos pe-

O culto foi, durante muito tempo, proibido pela Igreja católica, e era realizado quase que clandestinamente

“Ela (Agustina) nos protege de todos os que querem nos fazer mal. Cuida da casa. Às segundas-feiras, a velamos, acendemos velas, fazemos com que masque folha de coca. Fazemos pedidos para que não nos falte nada”, explica Reubel Santos didos. É muito milagrosa. Tudo que queremos ela nos proporciona. Em relação à saúde, ao estudo, ao trabalho... ela também cuida da casa. O que eu peço, se peço com fé, Vicky me dá”, garante Sofía. Falecida há quatro décadas, Vicky era uma amiga da família. “Tiramos do cemitério”, conta, naturalmente, Maria. Fé é o que não falta a Josejina Luna, que, pelo segundo ano seguido, traz, em uma caixa de madeira e vidro, Lucas, Ricardo e Cirilo, ñatitas antigas na família. Eram do seu bisavô, antes de pertencerem a seu avô e a ela própria. Durante o ano, ficam em seu

quarto. “Falo com elas, e, às duas, três da manhã, elas fazem barulho. Se uma pessoa tem fé, elas aparecem no sonho”, conta Josejina, que se sente protegida. “Eu sempre deixo minha casa sozinha e nunca entrou ladrão”.

Sincretismo

Por atribuírem poderes sobrenaturais às ñatitas, seu culto foi, durante muito tempo, proibido pela Igreja católica, e era realizado quase que clandestinamente. Por isso mesmo, impressiona a fusão da tradição religiosa andina com o catolicismo proporcionada pelas milha-

Tradição andina

Ñatitas, “caveirinhas com nariz chato”, em aymara, são almas que ainda não deixaram o mundo dos vivos. Atribui-se a origem de tal culto a épocas pré-coloniais, no altiplano boliviano. Os crânios de posse das famílias são, geralmente, de desconhecidos,

A partir do alto, à esquerda, ñatitas com N. S. de Copacabana, celebração da missa, Sofía Aranda com “Vicky” e ñatita com óculos escuros

res de pessoas que chegam ao Cemitério Geral de La Paz desde as primeiras horas da manhã do dia 8. Quase todas carregando sua ñatita em recipientes de todo tipo e tamanho. Madeira, vidro, papelão. Abertos, fechados. A criatividade também está presente nos adornos dos crânios. Há os totalmente “pelados”, os de óculos escuros, os de óculos comuns. Os de boné, gorro, chapéu, sombreiro. O que nunca falta são as coroas de flores. “ Como se chama?”, perguntam os que se postam diante de uma ñatita. Viviana. Bernabé. José. Rosita. Carlitos. Manuel. Isabela. Ribita. Nico. Dionicia. Ilario. Não importa a resposta. Pétalas de flores e uma ou duas velas, para serem acesas às segundas-feiras, é a oferenda, seguida do sinal da cruz. Empurra-empurra para entrar na igreja do cemitério. Lá dentro, os devotos se espremem para conseguir benzer sua ñatita. No momento da última missa do dia, rezada pelo sacerdote local, silêncio total. Segurando suas caixas com os crânios dentro, os fiéis estão atentos às palavras do padre. Outros deixam suas almitas em um altar em frente à imagem de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira da Bolívia. Todos repetem em coro as palavras do sacerdote. Todos, após o último “amém”, fazem o sinal da cruz. Acabada a missa derradeira, está longe a hora de ir embora. Os fiéis, com suas respectivas ñatitas, espalham-se por todo o cemitério. Instalam-se em algum canto. Das sacolas, saem frangos, arroz, sanduíches de queijo e presunto, salteñas, folhas de coca, refrigerantes, cervejas. Todos começam a comer, a beber, a conversar animadamente e a fumar. O cigarro é uma tradição. Tanto os vivos quanto os mortos – as ñatitas, no caso – fumam nesse dia. Em cada lado para o qual se olha, avista-se um grupo de músicos, que com suas canções ora tristes, ora alegres, homenageia as almas que ainda não se foram desse mundo. E que certamente voltarão ao cemitério de La Paz no ano que vem.


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internacional

Os 90 anos da Revolução Russa Dando prosseguimento à publicação de textos analíticos sobre os 90 anos da Revolução Russa, trazemos nesta edição as respostas enviadas por Ivan Valente (direção nacional do PSOL) e Valter Pomar (secretário de relações internacionais do PT). Ambos respondem à pergunta: 90 anos depois da revolução de 1917, qual a principal reflexão/fato que nos suscitam os dias atuais? “A manifestação”

“Vladimir Ilyich Lenin em Smolny”

Reprodução

Sobre aqueles dias de Revolução Russa, uma enorme invenção política outubro-novembro Ivan Valente EM 2007, a Revolução Russa completa 90 anos. Quase um século depois da primeira experiência socialista do mundo, no momento em que a hegemonia do capital parece ampliar os meios de destruição, no momento em que as relações capitalistas chegam a todos os lugares do globo e no momento em que as promessas de um mundo socialista que iniciou o século 20 sob a marca da revolução de outubro parecem distantes, cabe perguntar se a revolução continua atual. É possível tomá-la como objetivo em tempos em que o próprio pensamento de esquerda é colocado em xeque? Neste ano de comemorações e estudos que retomam as várias dimensões desse grande evento histórico, devemos nos afastar de duas atitudes comuns: a primeira, conservadora, que coloca a revolução russa no “museu da história”, que procura expurgar toda e qualquer possibilidade de reverberação desse acontecimento nas ações do presente. A segunda é uma “leitura astrológica”, que vê na revolução russa a confirmação anunciada do presente, sem levar em consideração o contexto histórico e social onde ela ocorreu e sua profunda invenção política.

Houve abril Toda revolução é única. Nenhuma revolução se repete, mas responde a situações concretas colocadas em cada momento histórico. Essa invenção aparece nos escritos de Lenin, duplamente. Ao buscar compreender a especificidade do capitalismo na Rússia, Lenin é obrigado a pensar o seguinte dilema: se o potencial revolucionário de classe repousa sobre o proletariado, como fazer diante de uma situação em que 85% da Rússia no final do século 19 era agrária? Assim, a tarefa dos revolucionários era construir a unidade necessária entre operários e camponeses, reclamando tarefas democráticas em seu programa. Na transição de fevereiro e outubro, a história se acelera e o governo provisório se mostra incapaz de responder à situação de guerra e desagregação social. Abril é o momento de travessia desse rubicão, em que a condição de realização das medidas da revolução burguesa de fevereiro é avançar a revolução socialista. As tarefas e os objetivos precisam acompanhar esse momento de aceleração histórica: só é possível avançar nas medidas de cunho democrático para toda a Rússia se o poder passar para a mão dos conselhos de operários, camponeses e soldados. Só é possível ser um verdadeiro democrata na Rússia se o socialismo triunfar. Assim, a revolução russa é essa enorme invenção política no momento em que as classes do passado não haviam desaparecido e as classes do futuro não haviam aparecido por completo. Por isso, é caricata a idéia de um sujeito histórico pronto e acabado, de um proletá-

rio destinado de antemão a comandar o processo revolucionário, senão de um sujeito em construção que se faz nos soldados que voltam da guerra imperialista, dos camponeses que se tornam soldados e nessa situação nova que reclama a invenção política.

Invenção na América Latina Marx dizia que mais vale um passo na consciência dos trabalhadores que uma dúzia de programas. Lênin parece seguir essa máxima, captando o momento em que o tempo se acelera e as respostas do passado já eram insuficientes. Hoje, uma conjuntura de invenção política percorre as entranhas de “Nuestra América”. Não se trata aqui de comparar processos incomparáveis. Mas, de ressaltar a necessidade de invenção política num momento excepcional. Mais de duas décadas de neoliberalismo jogaram os países do continente numa crise social, econômica e política de largas proporções demonstrado por processos que desembocaram em vitórias eleitorais das forças progressistas e de esquerda na maior parte dos países do continente. Contudo, o sentido das mudanças e seus desdobramentos variaram profundamente de país para país, sendo que em uma parte seus sentidos foram profundamente alterados. De um lado, os exemplos mais notórios são o Brasil e o Uruguai. De outro, Venezuela, Bolívia e Equador. Enquanto nos primeiros o signo do continuísmo para responder à situação de crise neoliberal foi a tônica, no segundo bloco há a tentativa de invenção política a partir de ações e medidas que recolocam a questão do socialismo na ordem do dia. Duas características chamam a atenção nesse processo: em primeiro lugar, a emergência de novos atores políticos por fora das formas tradicionais de organização da esquerda tradicional; em segundo lugar, um programa construído a quente em que milhões são despertados para a ação política efetiva. É a radicalidade de um programa antiimperialista, antimonopolista, antilatifundiário e democrático radical que coloca o povo em movimento para alcançar as mudanças sociais. Assim como os revolucionários russos procuraram responder excepcionalmente a uma conjuntura de um mundo mergulhado em uma crise de largas proporções, no momento atual é fundamental para um projeto socialista e de esquerda reinventar a perspectiva de mais uma vez os trabalhadores e “os de baixo” conhecerem profundamente sua realidade, reinventarem a esperança e recolocarem na ordem do dia a luta pelo socialismo. Rememorar a Revolução Russa, aprender com sua história, com seus acertos e erros é uma das condições necessárias pra reinventarmos o socialismo no século 21. Ivan Valente é deputado federal e membro da direção nacional do PSOL

Valter Pomar A REVOLUÇÃO Russa é parte importante da tradição da esquerda brasileira. A intensidade e a natureza da influência da Revolução Russa foi se transformando, ao longo do século. Tal influência tampouco foi uniforme. Sempre houve diferentes interpretações sobre os fatos, sobre as opções disponíveis em cada época e sobre o balanço geral da revolução. Vale dizer que grande parte das divergências diz respeito a fatos posteriores à revolução, no sentido estrito da palavra. Os acontecimentos da Guerra Civil, a NEP, o tratamento das nacionalidades, a coletivização, os processos, a política internacional da URSS, a atitude frente à Alemanha nazista e o que se passou durante e após a Segunda Guerra provocaram e seguem provocando imensas polêmicas. Alguns sustentam que tudo o que se passou depois da revolução já estava determinado pelas decisões tomadas em outubronovembro de 1917. Essa idéia da predeterminação é inconsistente. Mas alguma relação existe, é óbvio. Ao decidir tomar o poder num país destruído pela guerra, com maioria camponesa, baixo desenvolvimento capitalista e reduzida experiência democrática, os revolucionários russos estavam dando início à uma experiência histórica sem precedentes e adotando um “plano de vôo” (para a construção do socialismo) bem distinto daquele imaginado por Marx & Engels, pela geração de Kautsky & Plekhanov e inclusive por Lenin.

Bolcheviques Quando debateu a tomada do poder, o Comitê Central do Partido Operário Socialdemocrata Russo (bolchevique) tinha consciência disso. Mas prevaleceu a expectativa de que a Revolução Russa seria apoiada por outras revoluções, em países como a Alemanha. E que o atraso da Rússia seria superado, graças à ajuda do socialismo em países mais avançados. Hoje, sabemos que a revolução russa ficou isolada por muito tempo. Sabemos, também, que nos países capitalistas centrais não houve nenhuma revolução vitoriosa. A combinação entre atraso, isolamento e cerco tem que ser levada em conta, em qualquer balanço histórico sério acerca das peripécias do socialismo (soviético ou não) no século 20. Mais complexo é o debate acerca

das conclusões políticas que devemos tirar da decisão dos bolcheviques de tomar o poder. Há, por exemplo, quem conclua que nunca se deve “assaltar os céus”. Para quem pensa assim, as dificuldades e a derrota final do socialismo soviético decorreriam diretamente da decisão tomada pelos bolcheviques em outubro-novembro de 1917. Lenin à frente, os revolucionários russos teriam cometido o voluntarismo de tomar o poder num país que, até pouco tempo antes, diziam não estar pronto para o socialismo. Há quem vá mais longe e diga que o problema de fundo está na insurreição, na violência revolucionária, na revolução enquanto método.

Debate Nunca saberemos o que teria acontecido se Kamenev e Zinoviev tivessem vencido o debate no Comitê Central bolchevique. Mas sabemos por que eles não venceram aquele debate: a posição de Lenin era a mais realista. Em outubro-novembro de 1917, eram mínimas, se não inexistentes, as chances de um desenvolvimento democrático e pacífico do capitalismo russo,

no curso do qual as forças socialistas pudessem acumular forças para uma etapa posterior de luta pelo socialismo. O mais provável, se os bolcheviques não tomassem o poder, seria uma ditadura de direita, que perseguiria não apenas os bolcheviques, mas também outras correntes socialistas e democráticas. Nesse quadro, tomar o poder parecia e provavelmente era mesmo a alternativa mais realista. Nas condições da Europa de 1917, é natural que a maioria dos bolcheviques acreditasse que a Revolução Russa não ficaria isolada, que haveria outras revoluções socialistas vitoriosas. Aliás, historicamente falando, mil vezes melhor a audácia dos bolcheviques, do que a atitude acovardada da socialdemocracia alemã, poucos meses depois. Que, além de audaciosos, os bolcheviques tenham conseguido vencer, demonstra que seu voluntarismo tinha ciência e base social. E que merecem as homenagens que recebem, 90 anos depois. Valter Pomar Secretário de relações internacionais do PT

COOPERATIVA CENTRAL DE CRÉDITO RURAL DOS PEQUENOS AGRICULTORES E DA REFORMA AGRARIA – CREHNOR CENTRAL CNPJ: 05.879.577/0001-39 / NIRE: 43400088547 DE 28/08/2003 ASSEMBLÉIA GERAL EXTRAORDINÁRIA EDITAL DE CONVOCAÇÃO O Coordenador Geral da Cooperativa Central de Crédito Rural dos Pequenos Agricultores e da Reforma Agrária – CREHNOR CENTRAL, inscrita no CNPJ sob o nº. 05.879.577/0001-39, estabelecida a Av. Duque de Caxias, 1597 – sala 101, município de SARANDI, estado do Rio Grande do Sul, no uso de suas atribuições que lhe confere o Estatuto Social, CONVOCA todos(as) os(as) associados(as) que nesta data somam 07 (sete) em condições de votar, para reunir em ASSEMBLÉIA GERAL EXTRAORDINÁRIA a ser realizada no dia 26 de Novembro de 2007, nas dependências da Sede da cooperativa, situada na Av. Duque de Caxias, 1597 – sala 101 no município de Sarandi, às 08:00(Oito horas ) em primeira convocação com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados em condição de votar, às 09:00 (nove horas ) em Segunda convocação com a presença de metade mais um dos associados em condição de votar e às 10:00 (Dez horas) em terceira e última convocação com a presença de qualquer numero de associadas em condição de votar, para deliberar sobre os seguintes assuntos: 1. Substituição de membro da Diretoria conforme estabelece o Art. 37 do Estatuto Social 2. Alteração do Art. 1º, II do Estatuto Social, com a ampliação da área de abrangência para o Estado do Paraná. 09 de Novembro de 2007. Valdemar Alves de Oliveira Coordenador Geral


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áfrica

Em busca de energia, transnacionais avançam sobre território africano SOBERANIA ALIMENTAR Relatório prevê que investimento de corporações levará destruição ambiental e fome para a África Jonathan Dunbar

Dafne Melo da Redação AS TERRAS férteis africanas estão na mira das transnacionais do setor energético. Os investimentos para a produção de agrocombustíveis têm crescido vertiginosamente e, se depender da voracidade dos países ricos, crescerão ainda mais nos próximos 10 anos. O discurso de líderes mundiais promete desenvolvimento, geração de divisas, emprego e produção de energia limpa para o continente. Todavia, acredita-se que, a exemplo do que já acontece em países da própria África, os agrocombustíveis devem trazer mais problemas do que soluções, incluindo o agravamento de um dos maiores problemas do continente: a fome. Isso é o que aponta o relatório “Agrocombustíveis na África: impactos na terra, alimento e florestas”, feito por pesquisadores da African Biodiversity Network (ABN). O estudo sustenta que, ao contrário das promessas de líderes mundiais, o avanço dos agrocombustíveis almeja, na verdade, a maximização dos lucros de grandes corporações. “Os recursos mais preciosos da África, sua biodiversidade, terra e povos estão sendo explorados para exportar combustível para países com fome de energia, incluindo Estados Unidos, China, Índia e nações da União Européia”, aponta o estudo. A riqueza e a biodiversidade do continente refletem, inclusive, na variedade de cultivos que podem ser destinados à produção dos agrocombustíveis. Além da cana-de-açúcar e do milho, há ainda a palma (no Brasil conhecida como a “palmeira do dendê”), a jatropha (espécie de pinhão); a semente de algodão e o sorgo, dentre outros. Concluído em julho, o relatório sistematiza estudos de caso em quatro países: Benin, Tanzânia, Uganda e Zâmbia, além de apresentar análises e informações sobre outras nações, como Nigéria e África do Sul.

Destruição ambiental Um dos argumentos rechaçados pela pesquisa é o de que, como diversos países carecem de energia para se desenvolverem, a produção de agroenergéticos é estratégica. Timothy Byakola, autor da pesquisa sobre Uganda, contra-argumenta: a produção dos agrocombustíveis é, e continuará sendo, liderada por transnacionais focadas em exportação e não em abastecer o mercado interno africano. Uma vez estabelecido isso, os preços praticados serão de padrões internacionais, ou seja, inacessíveis para a esmagadora maioria dos africanos. Além disso, “o preço internacional do petróleo irá determinar o preço dos biocombustíveis em Uganda. A maioria dos ugandenses deverá continuar enfrentando a já existente falta de energia, além de maior insegurança alimentar”, afirma. À revelia dessas constatações, o governo de Uganda pretende utilizar um terço da floresta tropical de Mabira para a produção de agrocombustíveis, mais especificamente, para o plantio de cana. “A iniciativa pode levar ao desmatamento de 7,1 mil hectares de uma área fundamental para fontes de água do rio Nilo e do lago Vitória”, prevê o estudo. Em abril, pequenos agricultores fizeram diversas manifestações – fortemente reprimidas com a prisão de lideranças e a morte de três manifestantes – conseguindo obrigar o governo a recuar momentaneamente, cancelando os planos de invadir ainda mais a floresta tropical do país. As ilhas de Kalangala e Bugala, localizadas no lago Vitó-

Trabalhadores observam plantação de cana em chamas em Uganda

“A insegurança alimentar irá favorecer a importação e distribuição de alimentos de baixa qualidade, dependência de políticas de doação de alimentos e, possivelmente, a introdução de transgênicos”, projeta Josea Doussou Bodjrenou ria, já foram desmatadas para dar lugar a plantações de árvores de palma. Cerca de 6 mil hectares de floresta nativa foram derrubados. A ilha de Bugala é conhecida por hospedar espécies raras de plantas e animais, que ambientalistas consideram cruciais para a conservação da área.

Aliança Os conflitos em Uganda mostram que os governos africanos, junto com as elites locais, estão dispostos a unir-se com as transnacionais. Benin é outro exemplo disso. Josea Doussou Bodjrenou, responsável pela pesquisa sobre esse país, afirma que, desde o início, as discussões acerca do tema deixaram claro que as diretrizes da produção de agrocombustíveis são a exportação e a maximização dos lucros.

O presidente do país, inclusive, viajou à Alemanha, onde governo e empresários encontraram-se com investidores da Malásia, China e Arábia Saudita para discutir o desenvolvimento do setor. Benin também já possui um acordo com o Brasil para troca de conhecimento em relação ao tema, por meio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Até mesmo ONGs estão envolvidas na promoção do plantio de jatropha, afirmando que a atividade poderá acabar com a pobreza na África. “ONGs nacionais que investem nos agrocombustíveis projetam que, em 2012, deverão ter 240 mil hectares de jatropha em produção”, alerta o relatório. No Benin, o alvo são as terras da região Sul – que corresponde a 7,7% do território

nacional –, onde vivem 50% da população. “Isso mostra que os agrocombustíveis irão competir com a produção de alimentos para essa população. A insegurança alimentar irá favorecer a importação e distribuição de alimentos de baixa qualidade, dependência de políticas de doação de alimentos e, possivelmente, a introdução de transgênicos”, projeta Bodjrenou. Na Zâmbia, agricultores também já são obrigados a lidar com a ofensiva das corporações. Josam Ndaabona, pequeno agricultor da região de Choma, relaciona o caso da jatropha em Benin com o do algodão em seu país. “Há alguns anos, quando a Dunavant [maior produtora de algodão do mundo, de origem estadunidense] chegou aqui, eles nos prometeram que, se nós produzíssemos algodão, nos pagariam com muito dinheiro. Paramos de cultivar milho para, então, ganhar mais com algodão. Mas, quando chegou a hora de comprar, pagaram muito pouco. Passamos fome pois tínhamos deixado de cultivar o milho, nossa produção tradicional”, conta.

Lula, o embaixador do etanol Presidente visitou quatro países do continente para fazer propaganda enganosa a respeito dos agrocumbustíveis da Redação Em outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um giro no continente africano para defender uma revolução. A revolução dos agrocombustíveis. “Angola é uma potência petrolífera. O Brasil é auto-suficiente na produção de petróleo. Não obstante, podemos, juntos, participar da próxima revolução energética: a dos biocombustíveis”, declarou em Angola. A comitiva brasileira, que, além de ministros, contou com 30 empresários, também passou por Burkina Faso, República Democrática do Congo e África do Sul. Reverberando o discurso hegemônico, Lula elencou uma série de benefícios que podem ser trazidos com a ampliação do produção de etanol e biodiesel no continente. Disse que a atividade já teria criado seis milhões de postos de trabalho no Brasil e que tem a capacidade de gerar renda e colaborar para evitar o êxodo rural e o inchaço urbano. “Entre os beneficiados estão pequenos agricultores em zonas semi-áridas deprimidas”, destacou. Entretanto, estudos apontam exatamente o contrário. De acordo com relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a aumento da produção de cana-de-açúcar e etanol tem aprofundado as desigualdades sociais no Brasil. “A expansão da indústria da cana tem trazido sérias conseqüências para o país, como a expulsão dos trabalhadores do campo, constantes violações de direitos trabalhistas e destruição ambiental. O modelo agrícola baseado na monocultura para exportação se contrapõe a propostas de políticas que garantam a soberania alimentar e a reforma agrária. A atual expan-

são desse cultivo em áreas de fronteira agrícola causa conflitos com povos indígenas e com pequenos agricultores”, avalia, no relatório, a jornalista e diretora da Rede Social, Maria Luísa Mendonça. Exclusão no campo Hoje, o Brasil detém 45% do mercado mundial de etanol e a produção de cana é o setor do agronegócio que mais cresce. Esse crescimento, porém, não tem garantido empregos e melhoria de vida para a população rural, além de ser um grande entrave para a realização da reforma agrária. Assim, compromete-se a soberania alimentar do país, já que, segundo o professor da USP, Ariovaldo Umbelino, do total de empregos gerados no campo brasileiro, 87,3% estão nas pequenas unidades de produção, 10,2% nas médias e somente 2,5% nas grandes. O estudo da Rede Social também demonstra que as pequenas e médias propriedades rurais são responsáveis pela maior parte da produção de alimentos. Em Angola, o discurso de Lula, todavia, não foi inteiramente incorporado pelo presidente José Edurado dos Santos. “Transformar em combustível fontes vegetais que são a base alimentar das nossas populações tem de acontecer com a execução de outros projetos que visem o aumento da produção agrícola e agroindustrial, para garantir a segurança alimentar de todos”, enfatizou, embora não rejeite futuras negociações. “Estamos assim abertos à discussão para estudarmos a melhor via para implementar a produção de uma energia não poluente que se tem revelado eficaz na redução do efeito estufa que ameaça o nosso planeta”, disse Santos. (DM, com agências internacionais)

Transnacionais avançam: a nova partilha da África – Prokon (Alemanha): Iniciou o cultivo de jatropha em 10 mil hectares de terras no distrito de Mpanda. – AlcoGroup (Bélgica): Comprou, ainda em 2001, a empresa sul-africana NCP Alcool, maior produtora de etanol no continente. – Socapalm e Socfinal (Bélgica): planejam expandir sua plantação de palma (hoje em 30 mil hectares) em Camarões. – MagIndustries (Canadá): Adquiriu 68 mil hectares de terras onde há plantação de eucalipto. Atualmente, está construindo uma fábrica na República do Congo, com a capacidade de mandar 500 mil toneladas de madeira por ano para a Europa, onde a matéria prima será usada como biomassa. – Viscount Energy (China): Negociações avançadas no Estado nigeriano de Ebonyi para a construção de uma fábrica de 80 milhões de dólares no país, para a produção de etanol a partir da cana-de-açúcar e cassava. – Aurantia (Espanha): está investindo em plantações de palma e em refinarias na República do Congo. – 21st Century Energy (Estados Unidos): Planeja investir 130 milhões de dólares nos próximos cinco anos na produção de etanol a partir da cana, milho e sorgo doce, além de produzir biodiesel a partir da semente de algodão e castanha-de-caju. – Dagris (França): Tem investido na produção de biodiesel a partir da semente de algodão em Burkina Faso. - Sun Fuels (Inglaterra): Em associação com Centro de Investimentos da Tanzânia (TIC, sigla em inglês), adquiriu 18 mil hectares de terras férteis no país, com objetivo de cultivar jatropha. – Bioenergy International (Suíça): Planeja estabelecer uma plantação de 93 mil hectares de jatropha, além de uma refinaria de biodiesel no Quênia. Fonte: “Agrocombustíveis na África: impactos na terra, alimento e florestas”, African Biodiversity Network (ABN).

Falsas promessas na África do Sul “Efeito etanol” elevou o preço do milho, prejudicando quem tem baixo poder aquisitivo e favorecendo fazendeiros da Redação Na África do Sul, o relatório “Agrocombustíveis na África: impactos na terra, alimento e florestas” aponta para outras promessas não cumpridas. No papel, os planos do governo pareciam perfeitos: como o país produzia milho e açúcar para além de suas necessidades, nada mais lógico do que usar o excedente para produzir etanol. Os entusiastas falavam na geração de mais 55 mil postos de trabalho. Mais de 437 milhões de dólares foram investidos. Entretanto, alguns analistas viram com desconfiança a medida. Acreditavam que o excedente de milho não era suficiente e que seu preço, definido pelo mercado internacional, apresentava muita volatilidade. Alertaram ainda que, ao contrário dos fazendeiros estadunidenses, os sul-africanos não receberiam subsídios. Todos esses fatores, conjugados, não trariam lucros aos investidores e produtores sul-africanos. Antes do esperado, essas expectativas se mostraram corretas. Em 2006, o país não produziu a quantidade de milho esperada, gerando deficit, ao invés de excedente. O “efeito etanol”, ou seja, a alta demanda pelo produto no mercado, e uma seca no país, elevaram muito o preço do produto. “Como o milho é a base da alimentação da África do Sul, os pobres são os que mais sofrem. Mas sempre há vencedores em uma crise: alguns grandes fazendeiros se beneficiaram com os altos preços do produto”, conclui o estudo. (DM)


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cultura

A estética da infância e da juventude

condenadas

ARTES PLÁSTICAS Obra de promotor da Justiça provoca debate sobre a falta de perspectivas para os jovens de famílias pobres

DOIS CORPOS deitados no chão, sobre folhas de jornais, cobertos por esterco. Um menino rodeado de objetos de consumo, como celular, Ipods, viagens, lap top. Uma mulher grávida, atrás das grades. Essas são algumas das criações do promotor de Justiça da Infância e Juventude, Wilson Tafner, que há sete anos se aventura pelas trincheiras das artes plásticas. Perpassa sua obra a experiência de sua atuação na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) – hoje Fundação Casa – Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente. Uma provocação à reflexão de uma sociedade que já condenou uma geração de crianças e jovens ao imediatismo. A viverem o hoje, sem o horizonte de um futuro possível: apenas o consumo como auto-afirmação. “A falta de perspectiva para a infância e a adolescência no país se explicita de várias formas, como o trabalho infantil, a prostituição infantil, os meninos de rua e a questão da violência”, comenta o promotor. Abaixo, Tafner comenta sobre sua experiência trabalhando com o tema e as motivações de sua produção artística.

Brasil de Fato – Você tem formação em Direito e atua como promotor da Infância e Juventude. Como as artes plásticas entraram na sua vida?

Wilson Tafner – Eu comecei a pintar sem pretensões no ano de 2000, como passatempo, quando tive aulas com uma artista plástica. Em seguida, participei de uma exposição coletiva e resolvi fazer uma graduação em Artes Plásticas. Foi quando comecei a direcionar minha produção por conta da vivência que eu tinha na Fundação Estadual do BemEstar do Menor (Febem), onde trabalhava há quase uma década. Eu não tinha como fugir de trazer essa vivência para a questão das artes, então esse trabalho inicial de 2003 e 2004 acabou resultando na exposição de maio de 2005 que é “Ninguém nasce bandido”. É um trabalho bem focado na minha experiência como promotor, na vivência na Febem.

Sobre a questão da redução da maioridade penal: “vamos prender as crianças no útero, no berço?” A sua produção atual, que está na exposição “Perspectivas: recortes de um adolescer”, está relacionada à vivência dos jovens infratores?

Sim, mas essa produção de 2007 tem uma diversificação um pouco maior tanto em relação ao tema de infância quanto na forma de execução das obras. Nos trabalhos expostos em 2005, havia pinturas em acrílico, e, na atual, a temática é sobre a falta de perspectiva para a infância e adolescência no país, que se explicita de várias formas, como o trabalho infantil, prostituição infantil, meninos de rua, questão da violência institucional como um todo e o tema da redução da maioridade penal. Para retratá-las utilizei várias formas de trabalho que vão desde a pintura em carvão até instalações, escultura, e outras técnicas.

O tráfico aparece como uma forma de ser aceito nesse meio, mercado de consumo a que não se tem acesso Como seu trabalho como promotor serve de material para a produção nas artes plásticas?

Eu cheguei a fazer outras séries, mas é difícil separar meu trabalho de artes plásticas da vivência muito forte do meu dia-a-dia. Para um promotor de Justiça, talvez fosse mais usual escrever livro, mas eu tinha essa outra habilidade. Acho que as artes plásticas, como as outras manifestações artísticas, têm essa função catalizadora de mexer com o sentimento, que é muito mais capaz de tocar ou sensibilizar as pessoas do que o texto. Muitas vezes a gente esquece o que vimos ou lemos, mas dificilmente esquecemos algo que sentimos, e os trabalhos têm essa intenção de mexer com os sentidos primeiro, de ver textura, olhar, ter impacto visual e, a partir dali, fazer uma leitura daquilo. Por exemplo: o que querem dizer esses dois corpos deitados em cima desse monte de jornal, e esse jornal são matérias sobre violações na Febem, por que a cobertura deles é de esterco. A partir do primeiro choque inicial, porque o trabalho tem intenção de passar esse impacto, e a partir daí trazer uma reflexão. O legal é conseguir ter um veículo diferente que conduza a sensação em primeiro lugar, e não a racionalização.

Como você acha que seu trabalho pode ajudar na discussão desses temas que fazem parte do seu dia-a-dia como promotor?

Como promotor de Infância, vou lidar tanto com jovens que praticam infrações quanto com aqueles que estão nesse caminho. Quando se pega o que produzi sobre trabalho infantil, há o impacto da imagem e, depois, a gente questiona sobre o perfil do moleque que vai para a Febem: são do extremo da zona Leste e zona Sul, com perfis familiares típicos: não têm ensino adequado, vão para a rua e entram para o tráfico por ganhar R$ 50 ou R$ 100. Não há perspectiva de ascensão social pelo estudo, profissionalização, e eles passam a querer viver o imediato, porque não têm a esperança de melhorar de vida, de ganhar mais que sua família. Além disso, há um apelo muito forte de consumismo, ou seja, para ser alguém, precisa ter o tênis, a roupa tal; o tráfico aparece como uma forma de ser aceito nesse meio, esse mercado de consumo a que não se tem acesso. Esse apelo do imediatismo, essa falta de perspectiva mostra por um lado o que passa na cabeça do moleque e por que ele quer viver agora, porque ele sabe que amanhã pode ir para a cadeia, para a Febem, morrer. Então ele quer viver tudo hoje. Temos uma dívida social com a infância e a juventude enormes. Um país que não cuida das suas crianças, dos seus jovens. Então é mostrar isso. Aquele trabalho da grávida, a gravidez severina que tem aque-la grávida com a grade se mostra a morte e a vida severina, a predestinação e também a questão da redução da maioridade penal. Vamos prender as crianças no útero, no berço?

Você acha que a exposição pode trazer

Quem é Promotor de Justiça da Infância e Juventude, Wilson Tafner trabalhou por dez anos na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) hoje Fundação Casa – Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente, no bairro da Luz, em São Paulo. Em 2000, iniciou seu trabalho com artes plásticas e, em 2005, montou a exposição “Ninguém Nasce Bandido”, com temática ligada à sua vivência de promotor com jovens infratores.

discussão de temas como maioridade penal, debate em cima do trabalho...

Tem esse período da exposição, mas estamos pensando em ver outros espaços para atingir um número maior de pessoas, a idéia é conseguir levar algumas ONGs, alguns projetos, tem a Cedeca Sapopemba. Na exposição de 2005, fizemos isso e foi muito interessante com o pessoal do Cedeca Sapopemba. Vieram para a galeria crianças que tinham passado pela Febem, ou estavam em liberdade assistida, e interpretaram o material a partir da perspectiva deles. É projeto de trazer o debate com crianças que estão nessa situação de exclusão. Queremos estender essa exposição em outros espaços de acesso mais fácil para ampliar a discussão.

Não há perspectiva de ascensão social pelo estudo, profissionalização, e eles passam a querer viver o imediato, porque não têm a esperança de melhorar de vida

Imagens: Reprodução

Tatiana Merlino de São Paulo (SP)

Tem um outro trabalho que trata dessa situação de exclusão, que se chama “O carinho”, um menino rodeado de objetos de consumo, como celular, Ipods, viagens, lap top, e consumo referentes... sem carinho, sem referência. A gente tem que refletir sobre as políticas públicas que têm que ser voltadas com um trabalho mais efetivo sobre essa geração que está sendo criada. A perspectiva da exposição é mais triste, não tem cor porque é cinza, preta, cor de terra. SERVIÇO Perspectivas: recortes de um adolescer A exposição tem visitação gratuita e acontece em São Paulo, na Casa Galeria (http:// www.casagaleria.com.br), até dia 23 de novembro. Endereço: Avenida Dr. Cardoso de Melo, 758, São Paulo Telefone: (11) 3841.9620

Qual é a relação entre o tema do seu trabalho e o material que foi utilizado?

De imediato vemos que não existe cor nas obras. Os quadros são carvão sobre tela e os demais são em tons de ocre marrom. Da perspectiva da infância e da juventude sem nada colorido é um significante. Os trabalhos de carvão são bem soltos como se fossem feitos por qualquer criança. Os dois corpos deitados é uma montagem de arame como papel maché e a cobertura é de esterco seco. É um pouco a idéia de como a sociedade vê esses meninos, principalmente aqueles que entraram para o sistema da Febem, como se fosse um cocô, esterco. Mulher Grávida é uma escultura de gesso sobre madeira com pintura acrílica, como uma grade.

Na sua opinião, quais são as perspectivas para a infância e a juventude que estão aí nas ruas ou na Febem?

A partir do alto, Gravidez Severina, Menino e Valete, obras de 2007


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