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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 250

São Paulo, de 13 a 19 de dezembro de 2007

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br João Zinclar

Falta consenso na esquerda sobre a questão da CPMF Enquanto um setor da esquerda apóia a prorrogação da CPMF, outro pretende extingui-la. Os defensores afirmam que o tributo tem caráter redistributivo, já que as empresas e os ricos são os responsáveis por um percentual de 94% do montante arrecadado, que financia a saúde e programas assistenciais, como o Bolsa Família. No entanto, essa visão é contestada por um outro setor, para quem a CPMF é um imposto regressivo que onera mais os pobres do que os ricos: pesquisa de fundação ligada à USP indica que o impacto do imposto no orçamento familiar é maior entre as famílias de baixa renda. Pág. 3

África rejeita plano europeu de acordo de livre comércio Durante 2ª Cúpula da União Européia e da África, realizada em Portugal, grande parte dos líderes africanos se recusaram a aceitar a proposta da Europa de criar acordos para livre comércio entre os continentes. Para eles, a liberalização das trocas comerciais vai prejudicar a agricultura e a indústria de seus países. “Esses acordos violam a soberania alimentar, concentram terras e expulsam os agricultores para fora de seus territórios”, afirma o economista angolano Filomeno Lopes. Pág. 11

Frei Luiz Cappio conversa com a atriz Letícia Sabatella, que foi a Sobradinho (BA) prestar apoio à greve de fome do religioso

Aumenta a solidariedade à greve de fome de frei Cappio Continuam crescendo os atos de apoio à greve de fome de frei Luiz Flávio Cappio contra a transposição do rio São Francisco. A maior mobilização ocorreu no dia 9, quando mais de 6 mil participaram de romaria pelas ruas de Sobradinho (BA), cidade escolhida pelo bispo para fazer o protesto. Todos os dias, chegam

cartas e visitantes, anônimos ou famosos, como a atriz Letícia Sabatella. Os movimentos que resistem à transposição avaliam que a estratégia inicial do governo de isolar frei Luiz deverá ser revista. Além da solidariedade que aumenta, no dia 11, a Justiça determinou a suspensão das obras. Págs. 2 e 8 Édino Pereira

Via Campesina faz protestos para expulsar transnacional

Movimentos bolivianos celebram Constituição Mesmo em meio a protestos da oposição, uma nova Carta Magna foi aprovada pela Assembléia Constituinte da Bolívia. A Constituição – que ainda será referendada – é considerada pelo presidente Evo

Morales como fundamental para a refundação do país e para a inclusão da população indígena. “É uma grande alegria para mim e para todo o movimento popular, camponês e operário”, comemorou. Pág. 9

TV digital reforça poder dos donos de emissoras As primeiras transmissões digitais no país ficaram restritas à região metropolitana de São Paulo. O decreto que prevê a implantação da TV digital

traz regalias aos atuais latifundiários da mídia, que receberam, cada um, entre outras coisas, um canal extra, em alta definição, por dez anos. Pág. 4

Pichação na fábrica da transnacional suíça Syngenta em Paulínia, interior de São Paulo

Os movimentos que integram a Via Campesina realizaram protestos em cinco Estados contra a atuação das transnacionais no Brasil. Elas são acusadas de expropriar os recursos naturais do povo brasileiro e desrespeitar o meio ambiente. Os atos também fazem parte da luta para expulsar a empresa suíça Syngenta Seeds do país. A transnacional realizou experimentos ilegais com sementes transgênicas e está envolvida no assassinato do sem-terra Valmir Mota de Oliveira, o Keno, no Paraná, em 21 de outubro. Págs. 2 e 5

Douglas Mansur

CULTURA

Renato Tapajós

resgata filme que

retrata greves dos anos Pág. 12

STJ entre o povo e a Vale do Rio Doce

Estrada altera cotidiano de indígenas no AP

Depois do plebiscito popular realizado em setembro, a batalha contra a Vale segue no Superior Tribunal de Justiça (STJ). São 62 ações populares questionando a privatização da empresa. Em entrevista, a advogada Clair da Flora Martins fala sobre a atual situação das ações populares e a correlação de forças desfavoráveis no Judiciário. Pág. 6

A construção da BR-156 transforma, há 20 anos, as tradições de comunidades da terra indígena Uaçá, no Amapá. E as ameaças tendem a crescer, já que a estrada, que nunca chegou a ser totalmente asfaltada, foi incluída no PAC, e deve ser finalizada. A rodovia exerce um papel contraditório: de um lado, facilita o acesso das comunidades a serviços como saúde e compra de produtos nas cidades; por outro, a chegada, por exemplo, da energia elétrica, mecanizou o trabalho, acabando com os mutirões. Pág. 7

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Cerca de 600 militantes do MST reocuparam o Horto Tatu, na cidade de Limeira (SP), no último dia 11. O ato foi marcado pela emoção, uma vez que o mesmo local havia sido desocupado com truculência em ação irregular da Polícia Militar, que deixou 20 feridos e duas crianças hospitalizadas


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editorial NA SEMANA em que se celebra o Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro), o Brasil vive fatos emblemáticos, produzidos pela ofensiva dos interesses do capital internacional, aliado com fazendeiros capitalistas, sobre os recursos naturais e os direitos humanos. O primeiro caso diz respeito ao projeto de transposição do rio São Francisco. A greve de fome de frei Luiz Flávio Cappio, iniciada dia 27 de novembro, entra num período crítico e preocupante. Enquanto isso, o governo Lula escalou o ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima, que, na campanha eleitoral, era contra o projeto, para agora defendê-lo com unhas e dentes. E não quer mudar nada do projeto. Por que tanta intransigência com a manutenção de um projeto que vai gastar R$ 6,6 bilhões em dois canais mal explicados? O eixo norte despejará água num distrito industrial vizinho a Fortaleza (CE), e nenhuma família de camponeses do Semi-Árido cearense poderá ter acesso à água. Isto quer dizer que o canal é apenas um acordo político com os interesses da burguesia do Ceará. O eixo leste vai cruzar Per-

debate

O agro-hidronegócio e seu aliados internacionais nambuco e levar água até Campina Grande (PB). Os usineiros pernambucanos colocaram propaganda na TV Globo local explicando que já compraram 100 mil hectares nas margens do canal e que agora vão produzir cana irrigada no sertão. Os movimentos sociais e as igrejas ao longo do rio São Francisco defendem o projeto da Agência Nacional de Águas, também ligada ao governo, que propõe soluções locais que, com a apenas R$ 3,6 bilhões, resolveria o problema do acesso à água potável de todos os municípios do Semi-Árido. Defendem também a liberação de recursos para as cisternas familiares, que, com apenas R$ 1 bilhão, resolveria o problema de um milhão de famílias de camponeses. E, para a cidade de Campina Grande, a construção de uma adutora de água na foz do rio poderia resolver o problema. Mas, como disse frei Luiz, não se trata de discutir a solução da seca para os camponeses e pobres. Tra-

ta-se de defender os interesses das empreiteiras que adoram grandes obras e dos grandes projetos que vão usar a água como um negócio, o hidronegócio. Agora, canalizada, a água do rio vira água privada, uma mercadoria valiosíssima. Assim, a sanha do capital é capaz de cobrar a morte do bispo, sem nada recuar.

Syngenta criminosa A transnacional suíça Syngenta Seeds é uma das maiores do mundo. Controla a produção de venenos, e também dos remédios, se alguém ou algum animal ficar doente. Vende sementes transgênicas. Foi pega fazendo experimentos de forma ilegal. E mais: próximo ao parque nacional do Iguaçu, no Paraná. O Ibama a multou em R$ 1 milhão. A empresa recorreu da multa, mais Justiça Federal confirmou a decisão. Esses crimes ambientais eram praticados numa pequena área de

136 hectares, próximos ao parque nacional. O governo paranaense, sabiamente, desapropriou a área para montar um centro de sementes crioulas. Mas a transncaional, com os melhores advogados do Paraná, “convenceram” o Poder Judiciário a suspender a desapropriação. No final de outubro, não satisfeitos, contrataram milícias de pistoleiros, sob o manto de uma empresa de segurança, e, em pleno domingo de manhã, atacaram o acampamento da Via Campesina, matando um dos líderes, Valmir Mota de Oliveira, o Keno. Em protesto, a Via Campesina do Brasil e de todo o mundo iniciou uma campanha de denúncia contra essa empresa. O governador do Paraná, Roberto Requião, chegou a declarar que seria melhor essa empresa deixar o Brasil, que não precisamos dela aqui, que só veio para explorar. Como se pode perceber, os interesses do capital internacional não

crônica

Joaquim Wahl

Alemanha, a pátria não-reunificada ESTE FOI o título de um artigo da revista alemã Der Spiegel no mês de outubro deste ano. O título surgiu na base de um inquérito que a revista fez em relação ao 18º ano da queda do muro de Berlim. Foram interrogadas mil pessoas, entre 14 e 24 anos – exatamente a geração que, no dia da queda, tinha apromimadamente seis anos – e outros, que hoje têm entre 35 e 50 anos. O resultado levou a revista à seguinte conclusão: que mesmo os jovens que à época não tinham idade para avaliar a Alemanha Oriental (República Democrática Alemã, RDA) acham que muitas coisas eram melhores do que agora na Alemanha Federal (Alemanha Ocidental, RFA). Dizem, por exemplo, que o sistema de Educação era melhor. Os que têm de 35 a 50 anos, dizem que a segurança social era um forte traço da RDA. Um resultado muito surpreendente depois de 18 anos de reunificação! No dia da reunificação, 3 de outubro de 1990, Willy Brandt, ex-chanceler da Alemanha Federal, disse: “Agora, pertencemos ao mesmo país.” Será que Willy Brandt estava errado? A realidade mostra que depois de 18 anos, em muitos fatores, o país ainda não corresponde às expectativas geradas pela reunificação. De acordo com levantamento feito pelo instituto de pesquisas DIMAP, dois terços da população alemã acham que na Alemanha Federal não existe igualidade social. Essa opinião não predomina somente na parte oriental do país, mas também na parte ocidental. Na parte oriental, a população está sentindo esta diferença ainda muito mais. A razão possui algumas explicações fáceis. Na parte oriental, o desemprego é muito alto. Existem regiões onde mais de 20% da população não têm trabalho. Aqueles que têm um emprego – ainda hoje, depois de 18 anos da reunificação – recebem somente dois terços do salário que recebe uma pessoa em posição similar na parte ocidental. Está em curso um processo de despovoamento de várias partes do território da Alemanha Oriental. Sobretudo nas partes em que a agricultura domina. Os jovens estão “fugindo” para lugares onde há empregos. Existem instituições “científicas” que, por isso, sugerem estimular esse processo para que esses terrenos fiquem entregues ao “livre desenvolvimento da natureza”.

Trabalhos temporários As grandes empresas, a favor da “concorrência nos mercados internacionais”, têm reformulado o sistema de produção e de organização interna do país. Utilizam dois caminhos para tanto. Primeiro: estão reduzindo o número de trabalhadores. Segundo: estão diminuindo os salários. Essa última atitude tem levado a uma situação na qual pessoas que têm emprego encontram muitas dificuldades de sustentar suas famílias. No lugar dos trabalhadores demitidos, as empresas empregam os assim

medem conseqüência. Eles não só agridem os direitos coletivos do povo brasileiro, sobre nossa água, nossa biodiversidade, nossas sementes, como também ousam patrocinar o assassinato de trabalhadores.

Gama

Hidrelétricas: lucro fácil No dia 10, o governo levou a leilão a construção da primeira usina hidrelétrica do rio Madeira, em Rondônia. Mas a quem interessa as hidrelétricas do rio Madeira, há 5 mil quilômetros dos principais centros urbanos consumidores? A resposta é: a produção de energia se transformou apenas numa mercadoria. Portanto, interessa a quem as exploram – porque tem retorno garantido nas mais elevadas taxas de lucro – e às empresas transnacionais que vêm ao Brasil em busca de energia barata. Tristes tempos do neoliberalismo. Mas certamente, algum dia, o povo brasileiro se dará conta e se levantará. Não apenas para protestar e denunciar, como fez a Via Campesina Brasil e internacional na semana do dia 10. Mas para exigir mudanças na forma de produzir nossa agricultura e na garantia da soberania popular sobre nossos recursos.

Luiz Ricardo Leitão

Crônica de uma tragédia anunciada EMBORA O fatídico evento ainda repercuta nas páginas dos jornais, muitos filhos desta nossa efervescente República de Bruzundangas talvez já tenham esquecido a tragédia da Fonte Nova, o estádio baiano onde um lance das arquibancadas desabou, provocando a morte de sete torcedores do clube mais popular da Boa Terra. Nem sequer o cronista que vos escreve cogitara abordar o tema. Espocam tantos escândalos e absurdos na República, que um assunto sucede o outro sem a mínima parcimônia. De fato, há episódios bizarros de sobra para a mídia, seja o revoltante episódio da menor trancafiada por um mês numa cela masculina no Pará, seja o indiciamento de Dualib e a queda do Corinthians para a Segundona, ou ainda a nova absolvição de Renan Calheiros no Senado. Contudo, uma aguda declaração do filósofo português Manuel Sérgio à grande imprensa me fez retomar o mote baiano. Em visita ao Brasil para debater a democratização do esporte, disse o pensador lusitano que a desigualdade do nosso país está refletida na estrutura do esporte nacional. O que aconteceu na Fonte Nova, afirma ele, “foi um desrespeito, prova de que o povo está em último lugar”. O futebol é, bem o sabemos, um “espetáculo de massa”, jogado entre as ruínas do coliseu tupiniquim, em que a elite serve aos plebeus o panem et circenses do mundo globalizado. “Caso fosse um campo de golfe, freqüentado pela alta sociedade, estaria um brinco” – arremata com boa dose de sarcasmo nosso ilustre visitante.

Em países injustos, o esporte é injusto, valendo-se como exemplo da situação do Quênia, que possui excelentes fundistas, mas está “imerso na miséria”

Parece que aqui nós temos uma pequena verdade: o capitalismo não resolve os problemas dos povos, mesmo em um país rico como a Alemanha chamados trabalhadores temporários. O número deles cresceu de 175 mil, em 1996, para 600 mil, em 2006. Em 2007, eles já chegam a 1 milhão. Paga-se a os temporários muito menos do que aos trabalhadores regulares, com salários de pelo menos 12 ou 15 euros por hora, quase 10 euros a mais que aos primeiros. Existem empresas como, por exemplo, a BMW, na cidade de Leipzig, na qual 30% dos empregados são trabalhadores temporários. Mas a política neoliberal que realiza o governo alemão não se reflete somente na parte oriental. Ocorrem por aí os mesmos processos, como em qualquer canto do mundo onde predomina a política neoliberal. A Alemanha é um país de milionários. Cresce o número das pessoas e famílias que concentram riqueza. Mas o que se reflete em qualquer lu-

gar da Alemanha é o crescimento da pobreza. As cifras atuais refletem essa situação: no ano de 2003, 50% das famílias recebiam 3,8% dos bens, enquanto 10% dispunham de 46,8% dos bens privados. Segundo o “Relatório sobre Pobreza e Riqueza 2005”, do governo alemão, o número de pobres aumentou de 12,1%, no ano 1998, para 13,5%, em 2003, somando um total de 11 milhões de pessoas. Para efeito comparativo: em 1997, existiam 510 pessoas com mais de 1 milhão de euros por ano na Alemanha; no ano de 2003, já eram 756. A revista Der Spiegel não deve se surpreender com os resultados da sua pesquisa. A revista cita a opinião de 60% dos jovens que dizem que “infelizmente não ficou nada daquilo da RDA do que a gente podia se orgulhar”. No momento, o país passa por uma fase de crescimento econômico. A chancelaria do governo da coalizão cristã-democrática/social-democrática está usando esse argunmento a seu favor, dizendo que uma boa parte desse crescimento também “chega ao povo”, melhorando a sua situação social. Mas existem muitos comentaristas que perguntam: “Como isso afeta uma pessoa desempregada ou que não ganha o bastante para sustentar sua família?”. Parece que aqui nós temos uma pequena verdade: o capitalismo não resolve os problemas dos povos, mesmo em um país rico como a Alemanha. Joaquim Wahl é diretor da Fundação Rosa Luxemburgo no Brasil

Manuel Sérgio é mais um dentre tantos humanistas que combatem o corrosivo processo de “desportização multinacional do planeta”. Para ele, o esporte é uma atividade social, e não apenas física, que jamais poderia ser manipulado como instrumento de exploração ou alienação do homem – em suma, a expressão corporal do desenvolvimento socioeconômico de um povo. Por isso, ele também se manifesta contrário ao esporte “precoce”, estimulado pelo alto espírito de competição da era neoliberal, como ocorre na ginástica artística, em que meninos e meninas estão proibidos de viver a infância e de nutrir sonhos de um autêntico jovem: “Tudo que não está a serviço do homem é mentira”, sintetiza o pensador. De quebra, Sérgio também analisa as intrincadas relações entre Estado e esporte, referindo-se ao uso político do desporto nas sociedades desiguais. Em países injustos, o esporte é injusto, ele afirma, valendo-se como exemplo da situação do Quênia, que possui excelentes fundistas, mas está “imerso na miséria”. E acrescenta, com proverbial sabedoria: “O que faz bem à saúde é viver feliz, em uma sociedade sem medos”. E não reproduzir, por meio do esporte de ‘alto rendimento’, as taras de uma estrutura hipercompetitiva e “vertical”, produto de nossa triste história socioespacial. Gostaria de presenciar um encontro do gajo lusitano com os políticos da Boa Terra, em especial seu Governador, que agora decidiu pôr abaixo o amaldiçoado coliseu. Ou, quem sabe, assistir a uma mesa-redonda do bom Manuel com os ‘próceres’ do nosso esporte, gente do calibre de um Ricardo Teixeira (presidente da CBF), Arthur Nuzman (presidente do COB) e Galvão Bueno (o invento mais bizarro da mídia esportiva tupiniquim), sob cujo império os estádios desabam, os craques batem em retirada e os empresários (e empreiteiros) amanhecem cada dia mais ricos. É claro que o patrício não demoveria a turma do camarote de suas perniciosa concepção de esporte, mas seria deveras ilustrativo e pedagógico que a galera da arquibancada o ouvisse: quem sabe, ao invés de matar-se a paus e pedras nas brigas das ‘organizadas’, ela não resolvesse unir (e organizar) suas ‘forças’ contra as (os) sanguessugas do esporte? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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A CPMF entre a esquerda e a direita ECONOMIA PSDB e PT trocaram de lados com relação ao tributo; economistas divergem sobre quem são os prejudicados com o imposto Renato Godoy de Toledo da Redação O DEBATE acirrado em torno da CPMF criou um quadro político improvável há dez anos. Hoje, a base do governo, encabeçada pelo PT, faz um discurso exaltado, defendendo a continuidade do imposto para garantir investimentos na saúde pública e programas assistenciais. Já o DEM (ex-PFL) e o PSDB vêem a oportunidade de retirar R$ 40 bilhões do orçamento da União e minar um dos principais programas que garantem a popularidade do governo, o Bolsa Família. Em 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o imposto começou a vigorar, também havia polêmica, mas as siglas encontravam-se em trincheiras diferentes. Certamente, a perda orçamentária deve ser drástica para o governo no caso de a CPMF não passar no Senado. Até o fechamento desta edição, a emenda não havia sido votada e informações de bastidores em Brasília davam conta de que o governo, para construir maioria, cogitava deixar a votação para o início de 2008, o que faria com que a União deixasse de arrecadar o imposto até abril. A CPMF tributa em 0,38% toda movimentação financeira. Esse recurso arrecadado é dividido entre saúde (0,20), Previdência (0,10) e programas assistenciais como o Bolsa Família (0,08). Por meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU), 20% da arrecadação da CPMF pode ser desviada, geralmente, para efetuar o pagamento de juros da dívida pública e realizar o superavit primário.

Contrapartidas A fim de aprovar a CPMF, o governo oferece um pacote de contrapartidas para convencer os senadores, mas ao que parece, o poder de persuasão das medidas foi fraco. Entre tais medidas estão a isenção da contribuição para aqueles que têm renda de até R$ 2.894 e a redução gradual da alíquota, que chegaria a 0,30% em 2011. O caráter do imposto divide a opinião de economistas não afinados com a idéia de um estado mínimo. A grande crítica da esquerda ao imposto, desde que foi criado,

Roosewelt Pinheiro/Abr

sempre se centrou no argumento de que o mesmo atinge pobres e ricos da mesma forma, portanto é injusto. No entanto para José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, a CPMF é essencial para garantir os recursos da saúde e do Bolsa Família. O economista argumenta que a isenção daqueles com salário menor do que R$ 2.894 daria ao imposto um caráter ainda mais redistributivo. “Mesmo considerando que a carga tributária do Brasil é injusta, a CPMF é o menos injusto dos tributos. Ele atinge sobretudo os ricos, por isso há esse lobby contra a CPMF”, analisa o economista, que defende o aumento da alíquota da CPMF e a retirada de alguns impostos, como o IPI, que incide sobre a produção. De fato, os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2007 mostram que 50% das pessoas físicas mais pobres contribuem com apenas 2% do total arrecadado pela CPMF, enquanto as empresas contribuem com 72%.

Visão oposta Contra a defesa de Assis e simpatizantes da CPMF, um grupo de economistas aponta que ela onera os mais pobres. É o caso de Rodrigo Ávila, da Auditoria Cidadã da Dívida. Para ele, a CPMF serve para o governo atender melhor aos credores da dívida, visto que as empresas contribuem com um volume maior de recursos para a CPMF, mas embutem esses gastos com o tributo nos preços dos produtos. Ou seja, repassa o impacto da CPMF aos consumidores. Por outro lado, os trabalhadores mais pobres gastam mensalmente uma parte maior do seu orçamento com a CPMF do que os mais ricos. Segundo este argumento, os maiores prejudicados são os que possuem salário menor. “Os mais ricos podem poupar seu dinheiro, fazer aplicações na bolsa, que não paga CPMF”, exemplifica Rodrigo, referindo-se à isenção que o governo Lula concede a quem faz investimentos financeiros. Uma pesquisa da Fipe revela que a carga proporcional de gastos com a CPMF é maior entre as famílias com menor renda, justamente pelos motivos que Ávila cita. O economista acredita que para repor e aumentar os gastos sociais que seriam perdidos com a CPMF, bastaria o

Plenário do Senado durante sessão deliberativa sobre a CPMF

governo extinguir a política de superavit primário e parar de pagar a dívida, que é “altamente questionável”. “Se o Brasil fizesse isso, poderia investir sete vezes mais em saúde e acabar com esse imposto injusto”. Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, em 2006, o Brasil pagou R$ 275 bilhões de juros e amortizações da dívida.

Orçamento menor Outro argumento do economista contra a CPMF é baseado nos gastos anuais com a saúde pública. Dados do próprio Orçamento Geral da União apontam que o investimento em saúde caiu em relação ao PIB, mesmo com o advento da CPMF. Em 1995, o Ministério da Saúde teve orçamento de R$ 14,9 bilhões, o que representou 2,12% do PIB daquele ano. Depois de nove anos do imposto, em 2006, o orçamento foi de R$ 39,9 bilhões, representando 1,72% do PIB. Rodrigo Ávila explica esse processo: “Quando foi criada a CPMF, grande parte das receitas que financiavam a saúde deixaram de ir para o setor e começaram a ir para o pagamento da dívida”.

Tributo acirrou ânimos no cenário político No Senado e na sociedade, CPMF está no centro das polêmicas Da redação Com a prorrogação da CPMF em pauta, governo e oposição passaram a trocar farpas e utilizar ameaças e tons sentimentais. De uma lado, o governo afirma que se não for aprovada a prorrogação, a oposição terá que arcar com o ônus político da falta de verbas para a saúde e programas assistenciais. A votação da emenda já foi adiada por diversas vezes, já que pelos cálculos da base aliada, o governo poderia perder a eleição. No dia 11 de dezembro, o senador

José Nery (Psol-PA) relatou ao Brasil de Fato como estava o clima na Casa. “O que se acordou na reunião das lideranças é que as discussões começam hoje, os encaminhamentos seriam hoje e a votação amanhã. Mas sabemos, pelos bastidores, que o governo tem um plano para votar só no ano que vem”. O senador, contrário ao tributo, acredita que a CPMF será barrada no Senado.

Sonegação O presidente Lula afirmou que a CPMF incomoda muito os ricos e os sonegadores de imposto. De fato, a CPMF

e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) são tributos que dificultam a sonegação. “A CPMF pega o que é ilegal, pega o informal e o tráfico de drogas”, relata o economista José Carlos de Assis. Enquanto no legislativo o PSDB faz forte oposição à CPMF, nos executivos estaduais a situação é diferente. Os presidenciáveis Aécio Neves (MG) e José Serra (SP) são favoráveis à manutenção do imposto, que é interessante tanto para suas gestões nos estados quanto para suas aspirações ao Planalto em 2010.

Mudança da política econômica é alternativa Da redação Os três deputados do Psol votaram contra a CPMF na Câmara Federal e o único representante do partido no Senado, José Nery (PA), segue a mesma orientação do partido, baseada nos mesmo argumentos utilizados há dez anos, quando ainda eram integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT). O senador acredita que, com a perda de R$ 40 bilhões no orçamento, o governo terá que buscar alternativas para financiar a saúde. “Tem uma oposição à CPMF, de direita, que quer uma redu-

ção da arrecadação e dos gastos do governo. Para nós, seria desastroso se o governo cortasse mais verbas da área social”, considera Nery. Para o senador, seria mais razoável se o governo, no lugar de aprovar a CPMF, extinguisse a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e taxasse a especulação financeira, que é isenta do tributo. Como alternativa ao tributo, Nery afirma que o Psol defende uma mudança na política econômica, que passaria pela redução do pagamento da dívida pública e das metas do superávit. “Entendemos que o governo deve ser menos benevolente com os banqueiros”, conclui. (RGT)


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brasil

TV Digital não muda monopólio midiático dos donos das emissoras COMUNICAÇÃO TV passa longe de potencialidades como a interatividade e ainda traz regalias aos atuais latifundiários da mídia Ricardo Stuckert/PR

Mayrá Lima de Brasília (DF) NO ÚLTIMO dia 2 de dezembro, o governo brasileiro iniciou as primeiras transmissões através de sinais digitais restritos à região metropolitana de São Paulo. Com direito a uma suntuosa festa que contou com a presença do presidente da República, o primeiro apertar de botão de Luiz Inácio Lula da Silva, que simbolizou “a estréia”, não causou nenhuma revolução na vida do brasileiro que continua com o modelo analógico atual. E o pior: mantém a atual concentração midiática em torno da televisão brasileira. O decreto nº 5.820/06, que prevê a implantação da TV digital aberta, entrega logo de cara a todo radiodifusor mais um canal de TV para que este faça a “transição” para a nova TV Digital. Este plano de transição garante que os atuais donos da mídia continuem com seus latifúndios e mais: com mais um canal extra, em alta definição, por dez anos. As regalias não param por aí; foi dado às emissoras, para a transmissão digital, o mesmo espaço no espectro que elas utilizam para a transmissão analógica, embora a nova tecnologia demande menos faixa de freqüência. Isso significa que, se poderíamos ter mais canais à disposição – já que a tecnologia digital demanda menos espaço no espectro –, essa possibilidade não vai ser contemplada. Ao contrário, poderemos ter um mesmo canal sendo replicado em até quatro vezes sem precisar de nenhum processo de outorga de concessão para esses “canais brindes” que oferecerão, em tese, serviços de interatividade e transmissão móvel (no celular), e até mesmo outra programação. De acordo com Gustavo Gindre, membro do Coletivo Intervozes, o Brasil está produzindo um latifúndio que pode se tornar improdutivo visto as reais condições das emissoras de televisão do Brasil. “Na TV Digital, as emissoras podem transmitir em até quatro canais simultâneos. Só a Globo e talvez a Record consigam ocupar esse espaço todo. As outras, com certeza, não conseguirão. Já vai ser ruim ter só a Globo e a Record ocupando esse espaço, mas pior é ter outras emissoras não ocupando. Ou esse espaço vai ficar vazio, ou vai acontecer o que a Gazeta já anunciou: criar Shopping Times, cultos evangélicos etc.”, explicou. Para Laurindo Lalo Leal Filho, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, o resultado da política de digitalização da televisão pode ser considerado medíocre. “Ela privilegia apenas os interesses dos radiodifusores que querem manter o controle sobre o espectro, que é limitado e finito na forma analógica. Seria a grande oportunidade de entrada de novos atores, mas houve toda uma política, orquestrada pelas emissoras de televisão, que agora mantém o mesmo controle mantido antes, no sistema digital”, disse “A democratização, o acesso de novos participantes neste jogo, da forma como está, não acontece. Não está claro para a maioria da população para que serve a TV Digital. O anúncio inicial, a interatividade da multiprogramação não é realidade nesse primeiro momento”, conclui Lalo. Na Europa, o processo tem se dado de maneira diferente. Os novos canais que surgem com a digitalização foram outorgados a outras

Lula discursa durante cerimônia que deu início às transmissões da TV digital no Brasil

“Na TV Digital, as emissoras podem transmitir em até quatro canais simultâneos. Só a Globo e talvez a Record consigam ocupar esse espaço todo. As outras, com certeza, não conseguirão. Já vai ser ruim ter só a Globo e a Record ocupando esse espaço. O pior é ter outras emissoras não ocupando”, diz Gustavo Gindre, membro do Coletivo Intervozes operadoras de TV. Se a operadora de TV que funcionava analogicamente quiser adquirir o direito de exibir novas programações e serviços que só a digitalização tornaria possível, ela tem necessariamente de passar por um outro processo de outorga.

Nada de interatividade Quando da escolha do modelo japonês de TV digital, dispositivos como interatividade, acesso da população à tecnologia foram apregoados pelo governo federal como as novidades do que seria a revolução da televisão – não vista desde que passamos a ter cores nas telinhas. No entanto, o que o decreto nº 5.820 prevê como mudanças deverá ficar para um projeto futuro. Os conversores (aparelhos que convertem o sinal digital para que a programação possa ser assistida nas TVs tais como elas são hoje) não possuem a tecnologia necessária para qualquer tipo de operação que envolva interação. De acordo com Gindre, o programa que garante a interatividade, o Ginga, não tem qualquer previsão de implantação, mesmo sendo o único middleware brasileiro a ser implantado no meio da tecnologia japonesa que o Brasil passou a adotar. Para ele, a opção do Estado só beneficia os radiodifusores. “Está claro que os radiodifusores não morrem de amores pela idéia da interatividade. A interatividade plena começa a aproximar a televisão da internet. Isso traz dois problemas para os radiodifusores: o tempo que o usuário estará utilizando outros serviços, banco, jogos, correio eletrônico (...) é o tempo que ele vai estar deixando de assistir televisão já que a audiência dele cai. É um problema para o negócio do radiodifusor, mas é bom para a cidadania”, afirma. Bom lembrar que o governo brasileiro financiou durante um ano pesquisas em torno de um Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), mobilizando diversas universidades e centros de pesquisas brasileiros. Segundo Celso Schroder, do Fó-

rum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o governo Lula, por meio do SBTVD, teria iniciado um debate de “bom nível”, que “ia além da discussão do modelo tecnológico”. No final das contas, a Casa Civil negociou o modelo japonês, mesmo que pudesse encarecer todo o processo, em troca de uma fábrica de semicondutores no Brasil prometida pelos japoneses que, até agora, tem tão pouca previsão quanto o Ginga. “O modelo brasileiro adotado é um modelo insuficiente, que não contempla as mudanças tecnológicas que o mundo precisa. Escolhemos o padrão que democratiza menos, que abre menos. Nada aconteceu com a inauguração. Vai ser uma simulação de digitalização no Brasil. Nós não estamos tratando de TV Digital, mas no máximo de uma rede digital. Estamos no momento de um anticlímax. Fizemos uma escolha muito pequena”, disse Schroder.

Reféns do novo padrão Gindre também critica a escolha por um padrão japonês. “Fizemos opções equivocadas. É política industrial, é geração de empregos, exportação de divisas que deixamos de lado. Gasta-se no Brasil alguns bilhões só em chips. Fizemos uma opção por manter o padrão e ficamos dependendo dos países centrais. Isso gera uma grande dependência tecnológica.”, disse. O problema com os conversores não pára por aí. A maior questão é justamente aquela que mais incomoda o brasileiro: o bolso. O conversor mais barato custa hoje nada menos do que R$ 499,00 e o preço só aumenta, chegando a bagatela de R$ 1.000 por uma caixinha que, por enquanto, só oferece uma imagem melhorada. Até mesmo àqueles que primam por uma imagem

Modelos de conversores para p sistema digital

em alta definição e que poderiam optar por televisores mais modernos, como o LCD ou o plasma, ainda enfrentam preços bem salgados. “É uma tecnologia que só tem no Japão, e ficamos reféns dela. A gente não produz tecnologia brasileira, temos que importar tudo e pagar royalties. Acredito que a primeira constatação é que por um bom tempo a TV Digital será uma coisa para poucos”, lamenta Gindre.

Só quando amadurecer Por outro lado, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou um programa de incentivos na ordem de R$ 1 bilhão, destinados a financiar a compra do conversor pelos consumidores. A tática pode se revelar um desastre com o dinheiro público. De acordo com pesquisa feita pelo Instituto Qualibest, com 2 mil internautas, 44% dos entrevistados não pretendem comprar o conversor agora e vão esperar “o assunto amadurecer”. Outros 56% afirmaram só comprar se o preço chegasse aos R$ 200 reais, como foi prometido pelo ministro das comunicações, Hélio Costa. Segundo Gindre, não se tem, até o momento, acesso aos custos de cada conversor para se fazer um cálculo de preço justo. Para ele, estamos financiando uma tecnologia que não é nossa, diante de um acordo internacional que nem sequer foi aprovado pelo Congresso Nacional, como manda o artigo 49 da Constituição Federal. “Você vai transferir dinheiro para as empresas estrangeiras, e outra parte para os radiodifusores que hoje são políticos, igrejas. Em vez de produzir tecnologia aqui, a gente vai financiar a tecnologia dos outros”, critica.

MORADIA

Polícia agride moradores em ação de despejo de favela em São Paulo Para sociólogo, ação faz parte de uma política de “limpeza urbana” Eduardo Sales de Lima da Redação Em clima tenso, parte dos 4 mil moradores da favela Real Parque, zona sul de São Paulo, sofreram uma violenta reintegração de posse no dia 11. Um grupo bloqueou, por algumas horas, o tráfego na pista expressa da Marginal Pinheiros, uma das principais vias da cidade. “A favela, que não possui uma associação de moradores, foi cercada, e os policiais tomaram todos os becos. Derrubaram os barracos com todos os objetos dentro”, afirmou Paula Tanaka, integrante do movimento hip-hop.

“Uma moradora teve aborto espontâneo em conseqüência da repressão policial”, afirma sociólogo que estava presente na favela Segundo ela, a prefeitura de São Paulo mentiu quando informou que teria enviado uma representante para entregar o documento de reintegração de posse e que os moradores não a teriam deixado entrar na favela. “Ninguém da prefeitura propôs uma alternativa de moradia às pessoas, que estão sendo mandadas a albergues”, denunciou Tanaka. O terreno ocupado pelas famílias pertence à estatal paulista Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A. (EMAE), que conseguiu na Justiça a reintegração. O mandado judicial foi expedido em 9 de novembro pelo juiz Edson Luiz de Queiroz, da 3ª Vara

Civil do Fórum Regional de Santo Amaro.

“Limpeza Urbana” Ao passo que a mídia corporativa destacava que a reintegração de posse e a manifestação dos moradores da favela Real Parque provocavam congestionamentos de mais de 30 km em toda capital paulista, o processo de reintegração se intensificava. A truculência da ação policial deixou diversos feridos com balas de borracha e estilhaços de gás lacrimogênio. O bloqueio total da Marginal Pinheiros durou cerca de cinco minutos, tempo suficiente para que a polícia reagisse usando gás de pimenta. O capitão que comandava a ação negou a ocorrência de agressões e afirmou que o maior problema era a presença de mulheres e crianças. Gisele Vieira de Lima era um desses problemas do capitão. Foi ferida nas nádegas e na perna com balas de borracha e no joelho com estilhaços de bomba de gás lacrimogênio. Dentro da favela, os policiais alternavam momentos de ataque e de calmaria. De acordo com o sociólogo Tiarajú Dandréa, que estava presente no local, uma moradora da favela teve um aborto espontâneo em conseqüência da repressão policial. Tiarajú seguiu com um grupo de moradores feridos da Real Parque até a Defensoria Pública de Santo Amaro para relatarem a repressão do Estado. Depois, foram até a 3ª Vara Civil do Fórum Regional de Santo Amaro para pedir um “ato desagravo” sobre a reintengração de posse e interromper a ação. Para ele, a ação faz parte de uma política de limpeza urbana, instituída pelo atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM, ex-PFL), sobretudo na região sudoeste da capital paulista.


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brasil

Protestos denunciam atuação das transnacionais no Brasil Édino Pereira

10 DE DEZEMBRO Atos reforçam campanha para expulsar a Syngenta do país; em Brasília, ocupação tenta impedir privatização do rio Madeira Eduardo Sales de Lima da Redação MOVIMENTOS sociais do campo transformaram o Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, em Dia Nacional de Luta Contra as Transnacionais. Aconteceram protestos em cinco Estados pela expulsão da empresa suíça Syngenta Seeds do território nacional, além da ocupação da sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para impedir o leilão da primeira hidrelétrica do Complexo do rio Madeira. Atos em apoio à luta de frei Luiz Cappio contra a transposição do rio São Francisco também foram realizados. A fábrica da Syngenta, em São Paulo, foi ocupada por volta das 7h30 da manhã por cerca de 500 trabalhadores rurais da Via Campesina e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A unidade fica em Paulínia, próximo a Campinas, interior do Estado. Os manifestantes paralisaram a produção de agrotóxicos na unidade. No litoral leste do Ceará, outros 250 trabalhadores rurais, também da Via Campesina, realizaram pela manhã um protesto na área da Syngenta, na localidade de Flecheira, município de Aracati. Também há informações de que a empresa estaria realizando no Estado testes com sementes geneticamente modificadas sem autorização do governo. No Espírito Santo, mais 300 trabalhadores rurais da Via Campesina e do MST ocuparam o trevo da Safra na BR-101 Sul, entre os municípios de Cachoeira de Itapemirim e Itapemirim.

Em Sergipe, um protesto de 1.500 trabalhadores rurais, pertencentes também a esses movimentos, paralisou o trânsito da ponte que liga Alagoas a Sergipe, entre Porto Real do Colégio e Propriá, em solidariedade à greve de fome do bispo Luiz Flávio Cappio e contra a transposição do Rio São Francisco. Na Paraíba, mobilizações aconteceram em quatro municípios, como parte da campanha “Syngenta Fora do Brasil”: no município de Sapé, foi fechada a BR-230, na altura do Café do Vento, com 500 pessoas; em João Pessoa, aconteceu uma mobilização na avenida D. Pedro II, com 200 pessoas; em Campina Grande, na região da Borborema, houve uma planfletagem e uma passeata com 200 pessoas. Em Patos, no médio sertão, 300 pessoas entregaram materiais sobre a morte de Keno.

Keno “O assassinato de Keno não foi um episódio isolado, mas uma conseqüência da forma truculenta como as empresas tratam aqueles que se opõem a seus métodos de obtenção de lucros às custas da exploração de trabalhadores e da destruição do meio ambiente”, diz Roberto Baggio, dirigente do MST. A Syngenta, que realiza experimentos ilegais com sementes transgênicas no Brasil, está envolvida no assassinato do sem-terra Valmir Mota de Oliveira, o Keno, morto por uma milícia armada em Santa Tereza do Oeste, no Paraná, em 21 de outubro. Até agora, nove seguranças privados e o proprietário da NF Segurança – em-

presa que era contratada pela Syngenta – foram responsabilizados no inquérito policial sobre a tentativa de expulsão sem autorização judicial de 200 famílias que ocupavam o laboratório de experimentos ilegais da empresa suíça. Na semana passada, a Justiça Federal do Estado do Paraná julgou ilegais as atividades desenvolvidas pela Syngenta no Oeste do Estado. A decisão obriga a empresa a pagar multa de R$ 1 milhão, como determinou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), pela realização de experimentos transgênicos em 2006 na zona de amortecimento de 10 km da área do entorno do Parque Nacional do Iguaçu.

Rio Madeira Pela manhã do dia 10, cerca de 200 manifestantes ocuparam a sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em Brasília, para impedir o leilão da primeira hidrelétrica do Complexo Madeira, a Santo Antônio. Organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denunciam que o modelo energético brasileiro beneficia as grandes empresas, que têm sua energia subsidiada pelo governo. Para o MAB, a hidrelétrica do Madeira provocará o desparecimento de dois povoados, desabrigando 10 mil pessoas. As empresas que disputam o projeto reconhecem que serão apenas 3 mil. O Batalhão Especial da Polícia Militar do Distrito Federal despejou, com violência, os manifestantes que esta-

“Assassina”, denuncia faixa colocada em torre da unidade da Syngenta de Paulínea

vam no prédio da Aneel. Segundo o MST, oito militantes foram algemados, presos e agredidos fisicamente. Além disso, crianças foram separadas das mães durante o despejo. Em Rondônia, cerca de mil pessoas ligadas a movimen-

tos camponeses e urbanos marcharam pela capital Porto Velho em protesto contra as hidrelétricas no rio Madeira. Uma campanha “em defesa das comunidades atingidas e pela Amazônia” prevê que os donos das barragens do Complexo Ma-

deira vão faturar em média R$ 525 mil por hora, com a venda da energia proveniente da usina. Na disputa por Santo Antônio, concorreram três consórcios formados por corporações transnacionais, como Votorantim, Suez Energy e Endesa.

Contra movimentos, governo realiza leilão de usina no rio Madeira Roosewelt Pinheiro/ABr

Rui Kureda de São Paulo (SP) Sob tensão, realizou-se no dia 10 de dezembro o leilão da Usina Hidrelétrica (UHE) de Santo Antônio, no rio Madeira. Três consórcios disputaram o leilão, que teve como vencedor o Consórcio Madeira Energia – formado pelas empresas Furnas, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Cemig, além do Fundo de Investimentos e Participações Amazônia Energia (formado pelos bancos Santander e Banif). O resultado não surpreendeu ninguém, pois o consórcio vencedor era considerado favorito. Ainda assim, a proposta de cobrar R$ 78,87 por megawatt/hora pela energia a ser gerada na UHE Santo Antônio surpreendeu por representar um deságio de 35% em relação ao teto estipulado de R$ 122,00 por megawatt/hora. Para o governo, o resultado do leilão foi uma vitória. “Se Deus quiser, não pararemos mais de ter leilões”, afirmou, na Argentina, o presidente Lula.

Um dia de protestos Mas a realização do leilão, assim como seu resultado, foi alvo de protestos e mobilizações convocados por movimentos sociais e ONGs. Cerca de 300 militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e de outros movimentos sociais ocuparam parcialmente, durante a manhã, o prédio da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), onde o leilão foi realizado. Mas a ocupação não logrou impedir a realização do leilão. Pouco antes das 10 horas, mais de 200 soldados, com cães, escudos e cassetetes, en-

Representantes de movimentos sociais protestam em frente à sede da Aneel contra a construção de usina no Rio Madeira e a transposição do Rio São Francisco

traram em ação, reprimindo a ocupação com violência. Em Porto Velho, centenas de pessoas realizaram marchas pelas ruas do centro da cidade, culminando com uma manifestação que contou com mais de mil pessoas. Segundo Josivaldo de Oliveira, um dos organizadores, as manifestações do dia 10 foram precedidas por intensas discussões envolvendo as comunidades ribeirinhas localizadas às margens do rio Madeira.

Críticas dos movimentos Uma das principais críticas incide sobre o processo de concessão da Licença Prévia. ONGs e movimentos são unânimes em apontar não apenas a ausência de consulta e debates junto às comunidades tradicionais que serão afetadas pelas obras, mas também a negligência na avaliação dos impactos ambientais.

Um manifesto do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS) afirma:“A Licença Prévia do Madeira foi emitida à revelia de incertezas estruturais do projeto, referentes à dinâmica dos sedimentos, à biodiversidade especialmente de peixes, à contaminação por mercúrio, à expansão desordenada do agronegócio e da mineração, ou seja, que representam risco de desfiguramento irreversível da Bacia do Rio Madeira, dos biomas, comunidades e culturas tradicionais a ela vinculados”. O mesmo documento critica ainda a priorização, pelo governo federal, “da expansão das atividades primário-exportadoras e eletrointensivas, objetivo central do PAC”. Na mesma linha, para Gilberto Cervinski, do MAB, o leilão representa a privatização de parte do rio Madeira e

a entrega da água e da energia para grandes banqueiros e transnacionais. Segundo ele, as hidrelétricas do rio Madeira não estarão a serviço do povo brasileiro.

Mais usinas para quê? A questão de fundo, segundo Gilberto, é que “independentemente da empresa que ganha o leilão, o modelo energético brasileiro está organizado de tal forma que o povo brasileiro paga a conta de tudo isso, enquanto as empresas ficam donas das hidrelétricas e, ainda por cima, recebem energia 10 vezes mais barata do que a população”. Os argumentos apresentados pelo MAB e outros movimentos são corroborados por estudos que mostram serem desnecessárias novas usinas. Bastaria a repotencialização de turbinas antigas e medidas para conter a

perda de energia nas linhas de transmissão. Para o governo federal, entretanto, para possibilitar o crescimento econômico almejado, o país precisa garantir o fornecimento de energia. Assim, além das obras do Madeira, o governo retomou as obras de Angra 3, e planeja construir mais usinas hidrelétricas e nucleares. Para tanto o governo Lula não hesitou em passar por cima de preceitos e princípios socioambientais que o PT sempre defendera enquanto estava na oposição. Esse é um ponto sobre o qual incidem as mais duras críticas dos movimentos e ONGs socioambientais, a redução de desenvolvimento ao simples crescimento econômico.

Levante contra a venda A conclusão do leilão da UHE Santo Antônio, contu-

do, não representa o fim da luta. Ainda há uma ação judicial, movida pela ONG Amigos da Terra, que está para ser analisada pela Justiça. Mas, independente de seu resultado, as organizações sociais e socioambientais prometem resistir. Gilberto Cervinski afirma que é necessário chamar a atenção da sociedade para mostrar que a única forma de mudar este país é por meio da luta popular.“Os governos atendem os interesses de quem financia suas campanhas, por isso, não devemos esperar nada dos governos, eles já deram demonstrações de que lado estão”, afirma. E conclui: “Mesmo que o leilão tenha ocorrido, nossa luta continua, e para isso convocamos da sociedade a fazer parte desse levante contra a venda do rio Madeira”.


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Joka Madruga

saiu na agência São Francisco Uma romaria de seis mil pessoas manifestou, no dia 9, apoio a frei Luiz Flávio Cappio em seu protesto contra a transposição do rio São Francisco. O ato ecumênico em defesa do Velho Chico, realizado em Sobradinho (BA), reuniu comunidades tradicionais, trabalhadores ligados a organizações sociais e movimentos populares, além de pessoas ligadas à Igreja e representantes de partidos políticos. No dia 8, o religioso recebeu o apoio da atriz Letícia Sabatella, que lhe entregou em apoio uma carta do Movimento Humano Direitos. Reforma Agrária

Trabalhadores sem terra ocuparam novamente um terreno em Limeira (SP), no dia 11, do qual haviam sido despejados com truculência pela Polícia Militar. A ação, solicitada pela Prefeitura de Limeira em 29 de novembro, deixou 20 feridos e duas crianças hospitalizadas. No entanto, a área pertencia ao governo federal, que confirmou a destinação do imóvel para fins de reforma agrária, desautorizando a Prefeitura.

A advogada Clair da Flora (a esquerda) durante debate sobre a reestatização da Cia Vale do Rio Doce

O Judiciário entre o povo e os investidores no julgamento da Vale

Pedro Carrano de Curitiba (PR) NÃO FOI em vão o saldo de 3.729.538 participações no Plebiscito Popular realizado na primeira semana de setembro de 2007, sobre a privatização da Companhia Vale do Rio Doce (que mudou o nome para Vale), a dívida pública, energia elétrica e reforma da previdência. Afinal, o plebiscito foi a maior pesquisa de opinião realizada nos últimos anos. Encerrada a consulta, entre as possíveis frentes de luta estão os projetos de lei para que o plebiscito se torne um referendo oficial de iniciativa popular, de modo que a decisão do povo possa se materializar na prática.

O governo Lula tinha a obrigação de determinar a realização da perícia, admitir, em nome da União, os ilícitos do edital, o preço vil pago pela Vale No momento, a batalha acontece no Judiciário, especificamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que julga o pedido de reclamação dos advogados da Companhia Vale, para quem as 62 ações populares questionando a privatização de 1997 deveriam ser julgadas improcedentes. Porém, a luta é para que cada ação seja julgada nas suas particularidades, e não jogada em uma “vala comum”. Clair da Flora Martins (Psol-PR) é uma das autoras de ações populares que questionam o leilão da empresa. A advogada e militante questiona a subavaliação do patrimônio. Os R$ 3,3 bilhões pagos à época do leilão não equivalem à quantidade de jazidas e à infraestrutura da empresa, numa manobra própria do capitalismo na sua fase atual.

Clair defende que sejam usados mecanismos como o do plebiscito oficial, aproveitando o acúmulo deixado pelo plebiscito popular. “As milhares de pessoas que participaram do plebiscito constituem uma nova frente de resistência pela retomada da Vale”. Existem projetos para isso. O primeiro, do deputado Ivan Valente (Psol-SP), que em outubro encaminhou um projeto de decreto legislativo para realizar um referendo em todo o país. O outro é um plebiscito oficial de iniciativa popular, uma proposta que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) promete para 2008. Atualmente, Clair ajuda a mobilizar um abaixo-assinado direcionado aos ministros do STJ, para que levem em conta a importância das ações populares. Na entrevista, ela comenta a atual situação do julgamento das ações populares e a correlação de forças desfavoráveis no Judiciário. Até o momento, entre o povo e os investidores da empresa, o Judiciário está pendendo para a força economicamente mais forte. Brasil de Fato – A luta do plebiscito popular gerou uma mobilização importante, atingindo mais de 3 milhões de pessoas. O que é necessário para que a luta pela anulação da privatização da Vale continue de pé? Clair da Flora Martins – As entidades que realizaram o plebiscito conseguiram mobilizar quase 4 milhões de pessoas, de forma voluntária e patriótica. Esse grande esforço contribuiu para que a sociedade brasileira tome, aos poucos, consciência da importância de recuperarmos para o Estado este patrimônio construído pelos brasileiros e que foi lamentavelmente transferido para particulares, em sua maioria estrangeiros. Por outro lado, avaliamos que muitas pessoas não ficaram sabendo ou não puderam votar favoravelmente pela retomada da Vale devido às dificuldades em realizar, de forma voluntária e com limitações de recursos, um plebiscito como esse em um país de tamanho continental. É preciso também levar em conta que este não é um tema que agrada a uma boa parte da imprensa e àqueles que têm interesse em manter as coisas como estão. A Vale é uma empresa poderosa, uma grande “investidora” em campanhas eleitorais e publicidade nas mídias. Levando em conta todos esses aspectos, o plebiscito foi mais que vitorioso, principalmente porque conseguimos dar visi-

bilidade à luta, inserir na mídia nacional esse tema. Também, tanto o presidente Lula, como a ministra Dilma Rousseff e José Dirceu foram obrigados a se posicionar sobre a reestatização, deixando clara sua posição contrária a ela. Quais devem ser os passos futuros? Temos que avançar e criar mecanismos de pressão para que a vontade do povo brasileiro seja exercida. Um deles é usar nacionalmente o resultado do plebiscito nas próximas eleições. Outro, é pressionar para se fazer um plebiscito oficial sobre a questão. E, principalmente, eleger na próxima eleição um presidente, deputados e senadores comprometidos. Os poderes constituídos não cumprem suas obrigações. O próprio governo Lula é um exemplo disso, porque poderia atuar de forma decisiva para anular o leilão da Companhia Vale do Rio Doce. Ele tinha a obrigação de determinar a realização da perícia, admitir, em nome da União, os ilícitos do edital, o preço vil pago pela Vale. O Congresso deveria fazer uma CPI para investigar todo o processo de privatizações das estatais. O Judiciário tem o dever de reexaminar esse processo, para que o objetivo das ações populares se cumpra. Qual a importância do julgamento do pedido de reclamação da companhia no STJ? O julgamento é fundamental para o reconhecimento jurídico da vontade da população. Mas sabemos que os ministros sofrem pressões, e o julgamento acaba sendo essencialmente político, estando os autores das ações cientes disso. A Vale não quer que o tribunal dê andamento às ações populares e o que está em julgamento é o direito do povo brasileiro saber se de fato o leilão estava dentro da lei, se a Vale foi avaliada de forma correta, se os preceitos constitucionais e legais foram observados etc. Mas embutido nesse julgamento está outra questão jurídica maior, a saber: uma administração tem o direito de alienar um bem que foi construído por gerações de brasileiros, sem consulta popular, sem um rígido debate que demonstre as conseqüências dos seus atos? Era esse o modelo que o Brasil queria? E que direito foi dado à população de opinar? Infelizmente, nem todos os autores das ações populares estão acompanhando todo o processo. Nós já fomos em duas oportunidades a Brasília, por ocasião dos julgamentos do STJ. Estamos engajados nessa campanha.

Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela lançaram o Banco do Sul no dia 9. Movimentos sociais e ONGs, no entanto, defendem que a nova instituição tenha maior transparência e diferenciação em relação às organizações financeiras multilaterais do Norte, como o FMI e Banco Mundial.

Numa das sessões anteriores do STJ, dois ministros reconheceram que as ações populares não podem simplesmente ser extintas. Nas sessões anteriores, ao contrário, três ministros haviam reconhecido o pedido de reclamação da companhia. Qual é a correlação de forças atual no STJ: favorável ou desfavorável aos autores das ações populares? Votaram a favor da Companhia Vale do Rio Doce, ou seja, pela extinção das ações populares que questionam o leilão, os ministros Luiz Fux, José Delgado, João Otávio de Noronha e Humberto Martins. Votaram contra, isto é, a favor do prosseguimento das ações populares que questionam o leilão da Vale, os ministros Teori Zavascki e Denise Arruda. Então o “placar” é favorável à Vale e contra o prosseguimento das ações. Está em quatro votos a favor e dois votos contra. Alguns autores das ações acreditam que existe uma tendência de votos pró-Vale, já que os ministros costumam seguir o voto do relator, no caso o Ministro Luiz Fux, que foi favorável à Vale. Nós, no entanto, acreditamos que esse placar possa ser revertido. Faltam os ministros Castro Meira e Herman Benjamim proferirem os voto. Os ministros também podem mudar o seu votos na sessão. Após o julgamento, caberão alguns recursos que serão intentados pelas partes, seja qual for o julgamento. O destino poderá ser ou a extinção das ações ou o retorno dessas à Justiça Federal de Belém para apreciar o mérito conforme determinado pela Decisão do TRF-1 de Brasília (outubro de 2005). A sociedade e as entidades estão apreensivas com essa decisão, pois o placar até agora está contra nós.

Tabagismo

A Justiça do Rio Grande do Sul condenou a transnacional Souza Cruz a indenizar a

fatos em foco

Quem é Clair da Flora Martins (Psol-PR) é ex-deputada federal, advogada e uma das autoras das ações populares que questionam o leilão da Companhia Vale do Rio Doce.

Servidores do IPEN

Há dois meses, os servidores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) estão em greve, reivindicando equiparação com os vencimentos do serviço público relacionado ao Ministério de Ciência e Tecnologia. A greve dos servidores do Ipen tem colocado também em evidência uma política polêmica do instituto: a venda de substâncias usadas em tratamentos e diagnósticos de câncer apenas para hospitais privados, sem beneficiar o Sistema Único de Saúde (SUS).

Hamilton Octavio de Souza

Monopólio impresso Diante da escandalosa omissão das autoridades, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor entrou com denúncia no CADE – órgão federal de fiscalização econômica – contra o Grupo Abril, que adquiriu a empresa Fernando Chinaglia Distribuidora e agora tem o monopólio da distribuição de revistas no Brasil. Trata-se de uma grande ameaça à liberdade de expressão e aos direitos democráticos. Ação bolivariana A imprensa empresarial brasileira atacou a reforma constitucional do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, centrando fogo na questão da reeleição. Procurou esconder que a reforma proposta tinha aspectos populares importantes, como a jornada de trabalho semanal de 36 horas, proibição do latifúndio, criação dos conselhos comunitários nos governos municipais etc. Seria um avanço social imenso. Acordo intocável Por mais que os movimentos sociais tenham realizado grandes manifestações públicas durante 2007, nada afetou o sólido pacto do governo – e sua ampla aliança partidária conservadora – com o grande capital nacional e internacional. Todos os projetos que interessam aos banqueiros e empresários continuam sendo tocados. Nunca o capital teve tanto lucro sem ser ameaçado. O governo garante.

Theo Marques-SECS

PRIVATIZAÇÃO Clair Martins (Psol-PR), autora de ação popular que questiona o leilão da empresa, alerta que, no momento, o “placar” no STJ é pró-Vale

Banco em disputa

família do ex-fumante Vitorino Mattiazzi. Para a justiça, que há relação entre a morte do Mattiazzi e o uso dos produtos da empresa. A transnacional terá de pagar R$ 490 mil de indenização. “Tratouse de uma situação em que a empresa colocou à venda um produto reconhecidamente nocivo à saúde, sem informar adequadamente o consumidor a respeito dos riscos inerentes à mercadoria”, registra a decisão.

Fama internacional A Justiça de Mônaco já deu demonstrações de que não confia no governo e nem no poder Judiciário brasileiro, que pedem a extradição do exbanqueiro Salvatore Cacciola – aquele que deu um golpe de milhões de dólares no Banco Central durante o governo FHC. Com certeza, os juízes de Mônaco sabem que banqueiro nenhum pega cadeia no Brasil e que a extradição, portanto, pode ser inútil. Acerto político O artigo 54 da Constituição Federal proíbe que os parlamentares tenham concessões de serviços públicos, sob pena de perda do mandato. Ficou provado que o senador Renan Calheiros, do PMDB-AL, utilizou funcionários seus no Senado para “comprar” as concessões de duas emissoras de rádio em Alagoas. Assim mesmo, os senadores o absolveram – em nome da confraria política.

Solidariedade A Câmara Municipal de Guarulhos, cidade irmã do município cubano de Boyeros desde 2005, realizou, no dia 28 de novembro, um ato de solidariedade a Cuba e aos cinco cubanos antiterroristas, injustamente presos nos Estados Unidos. Pela libertação imediata de Ramón Labañino, Fernando Gonzalez, René Gonzalez, Gerardo Hernández e Antonio Guerrero.

Pobreza eterna De acordo com estudo do Banco Mundial, o número de pobres da população brasileira – quem vive em domicílio com renda inferior a uma cesta básica por pessoa – caiu 4% em dez anos, entre 1985 e 2004: era de 33% do total e passou a ser 29% do total. Nesse ritmo o Brasil precisará de pelo menos 70 anos para tirar cerca de 54 milhões de brasileiros da situação de pobreza. Quem sobreviver, verá!

Estrago nacional Além de inundar dois povoados, desalojar 10 mil pessoas e ameaçar de extinção mais de 20 espécies de peixes, as usinas hidrelétricas que serão construídas no rio Madeira – Santo Antônio e Jirau – devem consumir até 100% do dinheiro público em benefício de empresas privadas. Difícil saber o que é pior: as mentiras contidas no Relatório de Impacto Ambiental ou as mamatas dadas pelo governo.

Paraíso tropical Estudo realizado por entidade de empresários – Brazil-US Business Council – constatou que as 201 maiores empresas estadunidenses que operam no Brasil tiveram, no último ano, crescimento de faturamento médio de 18,8%, enquanto a média mundial dessas mesmas empresas é de 4,8%. Ou seja, o Brasil é hoje o paraíso do capital estrangeiro graças aos incentivos fiscais, mão de obra barata etc.


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À margem da estrada do Oiapoque INDÍGENAS A finalização das obras da estrada BR-156 ameaça a tradição na terra indígena Uaçá, no Estado do Amapá Clarissa Tavares

Clarissa Tavares de Oiapoque (AP) A NUVEM de poeira que invade a sala de seu Manoel Macial revela que ali, a poucos metros da porta de casa, passou um carro. Seu Manoel é morador e liderança antiga da aldeia Tukay que fica à margem da BR-156, no município de Oiapoque, Estado do Amapá. Mudou-se com outras famílias para aquele lugar há mais de 20 anos, quando foi aberta a estrada por dentro da terra indígena Uaçá. Dos cerca de 135 quilômetros da rodovia no município de Oiapoque, aproximadamente 80 atravessam ou margeiam a terra indígena Uaçá. A BR-156 tem início na cidade de Laranjal do Jarí, oeste do Amapá (fronteira com o Pará), e se estende até Oiapoque, no extremo norte do Brasil. São, ao todo 804, quilômetros de estrada, dos quais cerca da metade estão asfaltados e o restante, que inclui a terra indígena, segue na piçarra. Nos 40 quilômetros em que atravessa a terra Uaçá, a BR-156 contabiliza em sua margem oito comunidades indígenas dos povos Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur. A estrada separa a área onde vive a maior parte das populações tradicionais das nascentes dos rios Urucauá, Uaçá e Curipi – pertencentes à terra indígena – que são determinantes na vida nas aldeias. Dos rios vem o sustento, por meio da pesca, e são eles também que fertilizam o solo para a agricultura e possibilitam o acesso às comunidades mais isoladas.

Ameaça às tradições Para as populações indígenas, a BR-156, ao mesmo tempo em que proporciona acesso facilitado a diversos serviços – como o atendimento à saúde, à comercialização de farinha e frutas produzidas nas aldeias, a compra de produtos na área urbana – também representa ameaças ao território e ao modo de vida tradicional. Proteger os rios é uma preocupação permanente. “Ficamos com medo de invasão na nossa terra por pessoas desconhecidas e com o que elas podem jogar no rio. Se poluírem o rio, a sujeira vem bater aqui e vai contaminar nossos peixes. O efeito que a estrada pode causar parece longe de nós, que vivemos aqui, mas na verdade também afeta nosso povo”, explica Gilberto Yaparrá, do povo Palikur, que vive na aldeia Kumenê, situada à margem do rio Urucauá e distante cinco horas de voadeira da área urbana de Oiapoque. Além da poluição, os moradores temem a invasão de madeireiros, garimpeiros e caçadores em seus territórios. Porém, as conseqüências da estrada para as comunidades indígenas não se resumem às ações diretas como as invasões e a degradação do meio ambiente. O contato com o modo de vida da sociedade envolvente – que será agravado ainda mais após a finalização das obras da BR-156 – tem ocasionado mudanças na saúde, na organização social, nas atividades produtivas e nas manifestações culturais dos povos do lugar. O aparecimento de doenças nunca antes detectadas como a diabetes, o câncer de mama e de colo do útero, a hipertensão, as doenças sexualmente transmissíveis – inclusive a AIDS – e o alcoolismo é relatado pelos moradores após o contato com a sociedade envolvente. O coordenador da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no Amapá, Gervásio Oliveira, reconhece a gravidade da situação, mas diz que a responsabilidade não é só da Funasa. “É também da Funai, dos governos municipal e estadual e de to-

Família indígena navega pelo rio Curupi, no Oiapoque, estado do Amapá

Nos 40 quilômetros em que atravessa a terra Uaçá, a BR-156 contabiliza em sua margem oito comunidades indígenas dos povos Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur dos os segmentos da sociedade. Não podemos atribuir a responsabilidade a um só órgão. Não temos [a Funasa] recursos para resolver o tamanho do problema que vem aumentando dia-a-dia”, esquiva-se. Sobre a questão, a gestora do Distrito Sanitário Especial Indígena do Amapá (DSEI), Marcela Dias, afirma que o plano do DSEI para o período 2008-2010 inclui a análise epidemiológica relacionada aos impactos nas comunidades indígenas da relação com os não-índios. “Também vamos analisar os impactos causados pela BR-156. Esses contatos trouxeram diversos agravos à saúde indígena”, diz.

Energia elétrica Outros fatores são as contradições geradas pela influência dos padrões de vida externos sobre as comunidades. A energia elétrica, por exemplo, levou facilidades para a vida na aldeia. Os alimentos podem ser conservados por mais tempo com a geladeira, há o conforto da luz elétrica, máquinas são utilizadas na fabricação de farinha e a preparação dos terrenos para a agricultura é feita com o uso de serras elétricas. Por outro lado, essas facilidades, aliadas a outras mudanças, têm levado alguns povos a um novo modo de vida. “Hoje o trabalho é feito de forma individualizada. Quase não tem mais mutirão. Cada família planta a mandioca e faz a sua farinha”, relata o professor Guisel Santos Narciso, do povo Galibi-Marworno, morador da aldeia Kumarumã. O mutirão que envolvia várias famílias da aldeia no desmatamento e na preparação do terreno para o cultivo de mandioca, banana, cará, cana-de-açúcar e batata doce vem dando lugar ao trabalho individualizado ou familiar. O mesmo acontece na fabricação da farinha, principal atividade produtiva das aldeias. O processo artesanal está sendo substituído pelo uso de máquinas de ralar mandioca, trabalho que dispensa o envolvimento de toda a comunidade. Dona

Elza Macial, merendeira da escola e liderança de Kumarumã, conta que há alguns anos participavam do mutirão homens, mulheres e até crianças. “Todo mundo se envolvia. Era um momento de integração da comunidade que hoje só acontece entre poucas famílias”, relata. Hoje parte dos indivíduos que vivem nas aldeias é assalariada. Eles trabalham principalmente nas escolas e postos de saúde. Outra parte vive do comércio de farinha e frutas. Essas mudanças são resultados de múltiplos fatores. Para a antropóloga Lux Vidal, que trabalha com os povos indígenas do Oiapoque há 18 anos, as mudanças nas comunidades já acontecem faz muito tempo e sempre foram superadas pelos povos. “Mas nos últimos anos as pressões têm sido tão grandes que os indígenas estão sentido os impactos de maneira mais forte, e isto está alterando a cultura e a vida deles”, esclarece.

A juventude em foco Em meio à incorporação de outros aspectos ao modo de vida tradicional dos povos, tem chamado a atenção a mudança no comportamento da juventude indígena. Para os adultos, o acesso à programação televisiva, à internet e aos filmes vistos em DVD é a principal causa das transformações. “Eles vêem algo num filme e, no momento seguinte, querem reproduzir aqui na aldeia”, conta Oberto Maciel, diretor da escola de Kumarumã. “A maioria dos jovens não quer mais aprender a caçar, flechar um peixe, plantar. Nas aldeias menores, eles participam mais dessas atividades”, relata Creuza Maria Santos, cacique da aldeia Ahumã. Mas o que mais preocupa os pais é a violência e o consumo de álcool e drogas crescente nas aldeias devido ao contato com a zona urbana do Oiapoque e também de Saint Georges, cidade da Guiana Francesa que faz fronteira com o Brasil. Os sonhos e projeções dos jovens para o futuro são diferentes das ambições das gerações passadas. “Eles

querem estudar pra entrar no mercado de trabalho”, resume Rubimauro Macial, de 25 anos. “A comunidade tem uma visão diferente da que tinha antes. O jovem tem que estudar. Hoje os pais dão mais importância para que os filhos estudem. Antes, achavam que a escola não era garantia de futuro”, complementa Diogo Macial, morador da aldeia Tukay.

BR-156 A BR-156 é a única estrada federal no Amapá. Planejada desde 1943, quando o Estado foi desmembrado do Pará, começou a ser construída no final da década de 1960 e nunca foi finalizada. Atualmente, a abertura da via encontra-se concluída, mas ela não está totalmente asfaltada. A conclusão dos trabalhos ganhou novo fôlego com a inclusão da obra no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal. A rodovia chegará até a fronteira com a Guiana Francesa e será estendida à ponte sobre o rio Oiapoque, que ligará o Brasil a cidade de Saint George, em território francês. “Como faz parte do PAC, o governo destinou para o próximo ano R$ 120 milhões para a construção da BR-156”, revela o governador do Amapá, Waldez Góes. Porém, no trecho em que a rodovia atravessa a área indígena Uaçá, a licença ambiental para que o asfaltamento prossiga não foi renovada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O motivo foi o não cumprimento, por parte do governo, das medidas compensatórias e mitigatórias exigidas pelos povos indígenas para amenizar os impactos da estrada nas suas terras e comunidades. O superintendente do Ibama no Amapá, Edvan Barros de Andrade, acredita que o Estado deveria ter se antecipado em ordenar o uso e a ocupação do território ao longo da BR-156. “Na medida em que o Ibama renova a licença só até o limite da área indígena, deixando esta de fora da obra de asfaltamento, ele reconhece a necessidade de o governo cumprir as condicionantes na terra indígena”, afirma. Mas a questão não pode ser resumida ao impasse entre o governo, que insiste no potencial desenvolvimentis-

ta da rodovia para o Estado, e os povos indígenas, prejudicados com a invasão do seu território e todas as conseqüências dessa ação. Segundo parecer da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), antes do interesse do poder público federal e estadual, no sentido de efetivar o asfaltamento da estrada, é imprescindível esclarecer sobre a possibilidade constitucional de se empreender uma obra como a BR-156 em terra tradicionalmente ocupada por índios. Na compreensão da assessoria jurídica do Cimi, a construção da estrada na terra Uaçá retira a posse permanente dos indígenas sobre o trecho e impede que eles usufruam das riquezas naturais do solo, dos rios e lagos da terra que tradicionalmente ocupam.

Para os adultos, o acesso à programação televisiva, à internet e aos filmes vistos em DVD [por parte dos jovens] é a principal causa das transformações. “Eles vêem algo num filme e no momento seguinte querem reproduzir aqui na aldeia” Com base na Constituição Federal, o parecer sobre a BR-156 considera inválido qualquer ato que retire a posse e o usufruto das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. No entanto, aceita uma ressalva a essa regra ao admitir que atos de relevante interesse da União incidentes nestas terras possam ser admitidos, desde que previstos em lei complementar. Ou seja, constitucionalmente, a única forma de regularizar esta situação consiste em prever, em lei complementar – aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República –, que obras como a da BR-156, incidentes em terras indígenas, são de relevante interesse público

da União, bem como seu asfaltamento. Ocorre que essa lei complementar não existe. “Conseqüentemente, são nulos e extintos quaisquer atos que visem a posse, o domínio ou a ocupação de terras tradicionalmente ocupadas por índios”, conclui o documento. Para o procurador da República no Amapá, Fernando Aguiar, a ausência da lei complementar não constitui impedimento para a finalização da obra. “Essa regulamentação ainda não existe, o que no meu entendimento não impede, constitucionalmente, o governo de fazer estrada em terra indígena desde que seja feita de forma negociada com os índios e respeite suas questões culturais”, afirma.

Acordos não cumpridos Mesmo diante da ilegalidade de construção da estrada, como defende a assessoria jurídica do Cimi, a BR156 foi aberta no território indígena. A promessa de um acordo a ser cumprido pelo governo levou os povos indígenas a autorizar a passagem da estrada. No entanto, nada do que estava no acordo foi cumprido até agora. Para minimizar os impactos da estrada, os povos indígenas exigem, entre outras medidas, a reconstrução das oito aldeias que se encontram à margem da BR-156 em locais mais reservados dentro da área indígena, a construção de três unidades de saúde em diferentes aldeias e seis postos de vigilância devidamente equipados para a fiscalização do local. “Nós não somos contra a estrada, como a população do Oiapoque vem falando. Mas queremos que sejam adotadas as medidas que preservem as comunidades indígenas”, explica o Galibi-Marworno Oberto Maciel. Na tentativa de solucionar o impasse, foram desmembrados recursos do orçamento destinado à construção da BR-156 para cumprir o que estava previsto no Plano Básico Ambiental (PBA) acordado com as populações indígenas. “Conseguimos fazer com que R$ 10 milhões do recurso de 2007 fossem relocados para as medidas do PBA com os povos indígenas. E pretendemos fazer o mesmo com o orçamento de 2008”, é o que garante o governador do Amapá Waldez Góes.


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nacional

Nova liminar da Justiça Federal fortalece luta contra transposição SEMI-ÁRIDO Movimentos que apóiam greve de fome do frei Luiz Cappio comemoram decisão da Justiça que suspende as obras João Zinclar

Luís Brasilino da Redação

Unidade Enquanto isso, os apoios continuam crescendo. Alzení conta que a comunidade de Sobradinho deu suporte imediato à causa de frei Luiz. “As pessoas abrem as casas para os visitantes, tem muita gente de fora morando nas residências daqui. O povo também traz comida para aqueles que estão acampados”, afirma. Além disso, diversos movimentos, artistas e religiosos encaminham declarações de apoio ou até mesmo visitam frei Luiz. No dia 11, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movi-

Romaria realizada em Sobradinho (BA), no último dia 9, reuniu seis mil pessoas em apoio a frei Cappio e contra a transposição

mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o deputado federal Ivan Valente (PsolSP) estiveram em Sobradinho. Três dias antes, frei Luiz recebeu a visita da atriz Letícia Sabatella. Na ocasião, ela declarou: “O presidente Lula deve retomar o governo popular, ouvir o que o povo quer”. No dia 6, três bispos da Bahia passaram pela cidade, Itamar Viana, de Feira de Santana, André de Witte, de Rui Barbosa, e Tomazzo Caccianele, de Irecê. Com isso, os grandes atos de Sobradinho ficam cada vez maiores. Cerca de 4 mil pessoas caminharam ao lado de frei Luiz até o rio na data em que ele completou uma semana sem comer. Já no dia 9, domingo, uma romaria em defesa do São Francisco contou com a participação de mais de 6 mil pessoas.

Governo De seu lado, o governo não dá mostras de recuo. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva permanece sem se pronunciar, o ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional) utiliza a imprensa corporativa

para atacar a figura de frei Luiz, sem jamais discutir o mérito da greve de fome. No entanto, Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entende que o governo ficou numa situação complicada. Na sua opinião, a estratégia inicial de isolar frei Luiz não deu certo. “Somada ao crescente apoio dos movimentos, a notícia da liminar, que determina o mesmo que dom Luiz pede, tem que ser dada e isso não pode ser feito sem falar no bispo. Já identificamos que alguns veículos de imprensa, que antes não nos procuravam, começam a ligar e aparecer aqui em Sobradinho”, observa. Segundo Ruben, o governo espera reunião com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), marcada para o dia 12, para se posicionar. Ele entende que a liminar também foi importante para fazer a cúpula da Igreja se aproximar de frei Luiz e espera que a CNBB apresente na reunião uma “oportunidade de ouro para Lula sair bem dessa história, trocar a transposição pelas alternativas de convivência com o Semi-Árido”.

Decisão desmoraliza obra

Declarações enviadas a frei Luiz “Lula governa para os destruidores da natureza, latifundiários, grandes empresários e representantes do capital. Por outro lado, impõe aos trabalhadores e ao povo pobre do país um governo com ações que degradam o meio ambiente, que retiram direitos, que geram pobreza e desemprego”, Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), central sindical ligada ao PSTU “O projeto de transposição se coloca dentro das políticas públicas convencionais, que se orientam para a construção de grandes obras, a um alto custo financeiro, ambiental e social, e se baseiam em “modelos de desenvolvimento” que priorizam o agronegócio. Somos contrários ao projeto de transposição e favoráveis à revitalização da Bacia do Rio São Francisco e de outras alternativas para a convivência com o Semi-Árido”, Articulação do Semi-Árido, fórum que reúne mais de 700 entidades da região “(Frei Luiz) Torna-se a voz do Rio São Francisco. Seu gesto é, ao mesmo tempo, corajoso, ousado e profético em favor da revitalização do Rio São Francisco. É um gesto profético que igualmente defende um investimento político nos pequenos projetos de cisternas, de aproveitamento da água da chuva e do subsolo, que de fato possa levar a água aos pobres e a todos os que desejam mais vida”, Conferência dos Religiosos do Brasil , entidade que reúne mais de 50 mil freiras e freis João Zinclar

OS MILITANTES de movimentos sociais, ribeirinhos e romeiros que apóiam a greve de fome de frei Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA), receberam uma boa notícia um dia antes do religioso completar duas semanas sem comer. No dia 10, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) deu liminar que suspende as obras de transposição do rio São Francisco. Alzení Thomaz, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), conta que o anúncio foi recebido em Sobradinho (BA) – local onde frei Luiz realiza o jejum – com uma grande festa. “Foi um grito só. A notícia foi dada no momento da celebração da noite, a igreja lotada com umas 400 pessoas”, relata. Entretanto, em meio às comemorações, a saúde de frei Luiz se deteriora. Ao completar duas semanas de jejum, o bispo já perdeu seis quilos e apresenta um quadro de anemia e desidratação. Por isso, desde o dia 6, passou a ingerir soro caseiro e não somente água pura, como fez no início da greve. Mas, mesmo com a liminar, dom Cappio segue determinado a manter a greve de fome até “a retirada do Exército dos eixos e a suspensão do projeto de transposição”. “Foi uma vitória, mas não significa que ganhamos a batalha”, reconhece Alzení, que completa: “o Exército continua lá”. Nesse sentido, ela garante que os movimentos vão continuar mobilizados para pressionar o governo e prevê que outros gestos de solidariedade virão. Por isso, uma grande campanha, nacional e internacional, de jejuns solidários deve ser lançada nos próximos dias.

Liminar anula manobra realizada pelo governo em 2005 para permitir uso econômico das águas da transposição

Alzení Thomaz, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), entende que a decisão do Tribunal Federal desmoraliza a transposição. Isso acontece porque a decisão tomada, no dia 11, pelo desembargador Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), torna nula a resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos que, em janeiro de 2005, autorizou o uso da água para a transposição. Para liberar a obra, o Conselho cometeu três ilegalidades. Primeiro, suprimiu instância do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco que ainda julga a quantidade de água que pode ser desviada pela transposição. Em segundo lugar, viola os princípios da gestão descentralizada da água e da participação popular. E, por fim, o ponto que, na opinião de Alzení, desmoraliza a transposição: a resolução do Conselho entra em conflito com o Plano de Recursos Hídricos da bacia do São Francisco o qual determina que o uso externo das águas do rio só pode acontecer se for destinado ao consumo

humano ou animal, em casos de comprovada escassez. Luciana Khoury, coordenadora das promotorias de Justiça na Bahia, explica que essa condicionante inviabiliza o projeto do governo. “As águas da transposição são para outros usos, como criação de camarão e agricultura”, afirma. A informação pode ser comprovada no próprio estudo de impacto ambiental (EIA) do projeto, produzido pelo Ministério da Integração, que destina 70% das águas transpostas para irrigação, 26% para uso urbano-industrial e 4% para a população difusa do campo. Desdobramentos A anulação da decisão do Conselho acabou parando as obras da transposição, pois iniciou um efeito em cadeia que suspendeu todos os demais atos tomados com base na resolução. Assim, tornam-se nulas as licenças ambientais concedidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a outorga definitiva do uso da água e o certificado de sustentabilidade emitidos pela Agência Nacional de Águas (ANA). Francisco Guilherme Bas-

tos, procurador da República no Distrito Federal e autor do mandado de segurança que culminou na decisão do Tribunal Regional Federal, explica que a liminar ainda pode ser revista. Entretanto, ele entende que o governo terá dificuldades se quiser transferir o julgamento para o Supremo Tribunal Federal (STF). Os movimentos sociais esperam que o governo tente essa manobra pois essa esfera é mais suscetível a pressões políticas. Um exemplo disso são as dezenas de ações contrárias à transposição que estão paradas no STF, aguardando uma decisão, e que não impedem o prosseguimento das obras, nem têm prazo para serem julgadas. Segundo Bastos, o normal seria o caso tramitar no TRF até o julgamento do mérito. Se isso acontecer, o governo deve perder a disputa. “O ato praticado (resolução do Conselho) está eivado de inúmeras irregularidades”, analisa o procurador. Ainda assim, a AdvocaciaGeral da União (AGU) anunciou, no dia 11, que vai recorrer da liminar, tanto no TRF, quanto no STF. (LB)

“O significado de seu gesto é maior do que o senhor mesmo. Ele sinaliza a angústia de quem vê nossas riquezas serem depredadas e roubadas séculos após séculos por uma elite egoísta e indiferente aos destinos de nosso povo. De grande em grande obra, o Nordeste continua com um dos piores índices de desenvolvimento humano do planeta. Irmão dom Luiz, receba nossa solidariedade fraterna. Vamos transformá-la em luta prática e em um chamado a todo o povo, mostrando que sua luta é nossa luta: a busca por um país justo, soberano e ambientalmente sustentável”, Via Campesina , organização internacional de camponeses que, no Brasil, agrega movimentos como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Atingidos por Barragens (MAB), Pequenos Agricultores (MPA), Mulheres Camponesas (MMC) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dentre outros Joka Madruga

da Redação

“Gostaríamos de expressar nossa profunda admiração por seu gesto de coragem ao dedicar a própria vida para salvar o rio São Francisco. Esperamos que finalmente o governo desista das obras de transposição e inicie um debate aberto e verdadeiro sobre as necessidades da população local. Esta mensagem expressa nosso apoio, carinho e solidariedade.”, Letícia Sabatella, Camila Pitanga, Carla Marins, Bete Mendes, Chico Diaz, Cristina Pereira, Dira Paes, Eduardo Tornaghi, Leonardo Vieira, Marcos Frota, Marcos Winter, Osmar Prado, Silvia Buarque, Wagner Moura, Zezé Polessa, dentre outros artistas do Movimento Humanos Direitos

“Caro irmão e amigo, mantenha a fortaleza do Espírito. Caso se abrir a possibilidade de um diálogo transparente e não oportunista não deixe de se abrir a ele. Seu sacrifício terá alcançado seu significado. E se não houver outra alternativa que a imolação, acolha-a no espírito de Jesus que na cruz gritou: ‘Pai em tuas mão entrego o meu espírito’. Passar assim ao Pai é digno de um discípulo de Jesus que como ele soube ‘amar até o fim’”, Leonardo Boff, teólogo


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américa latina

Constituição da Bolívia é aprovada CARTA MAGNA Texto estabelece Estado Plurinacional e modelo conformado pelas economias estatal, comunitária e privada Mario Ronald Duran

Igor Ojeda de La Paz (Bolívia) APÓS MAIS de 15 horas de trabalhos ininterruptos, e em meio a protestos e ameaças da oposição (veja matéria nesta página), a Assembléia Constituinte boliviana aprovou, no dia 9, 99,8% dos artigos da nova Constituição do país, no Centro de Convenções da Universidade Técnica de Oruro, cidade a 230 kms ao sul de La Paz. Apenas a determinação da extensão do latifúndio não foi aprovada por dois terços dos 165 assembleístas presentes (de 255 do total, já que a maior parte da oposição decidiu boicotar os trabalhos) e deverá ser levado à consulta popular antes de ser incluído no novo texto. Tida pelo presidente Evo Morales, do Movimiento Al Socialismo (MAS), como fundamental para a refundação da Bolívia e para a inclusão da população indígena (cerca de 70% do total de habitantes), a nova Carta Magna, que deve ser aprovada em referendo, foi celebrada pelos movimentos sociais do país. A sessão plenária, que teve início no começo da noite do dia 8, não foi reinstalada em Sucre, sede original da constituinte, devido à falta de condições de segurança no local. No final de novembro, a Constituição foi aprovada em seu texto geral enquanto ocorriam duros enfrentamentos entre a polícia e parte da população da cidade, deixando três mortos. Os sucrenses demandavam o retorno da condição de capital do país ao município.

Alegria

No dia 10, em Buenos Aires, onde esteve para a posse da nova presidente da Argentina, Cristina Kichner, Evo Morales comemorou a aprovação: “É uma grande alegria para mim e para todo o movimento popular, camponês e operário”. Na seqüência, criticou a oposição: “Estamos apostando em transformações democráticas profundas, mas sempre existirão setores que não apóiam essa mudança”. O primeiro artigo da nova Constituição boliviana assinala: “A Bolívia se constitui em um Estado unitário, social, de direito, plurinacional, comunitário, livre, autonômico e descentralizado, independente, soberano, democrático e intercultural. Funda-se na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, dentro do processo integrador do país”. Evo explicou que tal caráter do Estado boliviano significa a “unidade na diversidade, respeitando a diversidade de nossos povos e não só dos indígenas, mas também de todos os bolivianos”. O novo texto constitucional estabelece ainda, entre outras coisas, um modelo econômico conformado pelas economias estatal, comunitária e privada. A Carta Magna respeita a propriedade privada, sempre que esta cumpra uma função social. Já a propriedade comunitária contemplará as empresas cooperativas e as chamadas Terras Comunitárias de Origem, reservas cedidas a povos indígenas.

Bolivianos comemoram a aprovação da quase totalidade dos artigos da nova Constituição do país

Desse modo, o novo texto determina que os recursos naturais possuem caráter estratégico e são essenciais para o desenvolvimento do país. Assim, tais bens são de “propriedade e domínio social, direto, indivisível e imprescritível do povo boliviano, sendo o Estado o proprietário de toda a produção e o único facultado para sua comercialização”. No dia 7, foi anunciado que um novo reservatório de gás natural foi encontrado no departamento (estado) de Chuquisaca, no centrosul do país. Estima-se que o poço produzirá cerca de 1 milhão de metros cúbicos diários, que serão destinados, segundo Morales, primeiro para cobrir a demanda interna, e depois para a exportação. Quanto à estrutura territorial, a nova Constituição estabelece quatro tipos de autonomias: departamental, regional, municipal e indígena originária camponesa. A primeira tem servido como um dos principais campos de batalha da oposição (veja matéria nesta página). Em relação à autonomia indígena originária camponesa, o texto aprovado diz que ela é “a expressão de direito ao auto-governo, como exercício da autodeterminação das nações de dos povos indígenas originários, e das comunidades camponesas, cuja população compartilha território, cultura, história, língua e organização –

instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas – próprias”.

Uma só reeleição

No que diz respeito ao latifúndio, a população deverá decidir em referendo qual a extensão máxima de terra que uma pessoa pode possuir: 5 mil ou 10 mil hectares. A altíssima concentração agrária é considerada um dos principais obstáculos à melhoria de vida de camponeses e sem-terras. Estes últimos estão estimados em 1 milhão de pessoas – a Bolívia possui cerca de 9 milhões de habitantes. Sobre o tema da capitalidade, demanda da população de Sucre, foi aprovada uma resolução que determina apenas que as entidades criadas pela nova Constituição serão instituídas nesse município. A Assembléia Constituinte aprovou ainda que, ao Presidente da República, a reeleição será permitida apenas uma vez (a proposta inicial do MAS, partido de Evo Morales, era a reeleição indefinida) e que este poderá ser submetido a um referendo revocatório. Caso sua saída seja decidida pela população, o vice assumirá e convocará novas eleições no prazo de 90 dias. Já o Congresso Nacional passará a ser chamado de Assembléia Legislativa Plurinacional, que será composta por duas câmaras, a de Deputados e a de Representantes Departamentais. Fabio Pozzebom/ABr

Recursos estratégicos

Um dos principais pontos da Carta Magna recém-aprovada diz respeito aos recursos naturais. A defesa desses é uma das principais exigências da Agenda de Outubro, uma referência aos massivos protestos ocorridos na cidade de El Alto (vizinha a La Paz) em 2003, cuja repressão por parte do Estado deixou 68 mortos. Entre outras demandas da denominada Guerra do Gás, estava a nacionalização dos hidrocarbonetos.

Prensa Constituyente

Oposição não aceita o texto aprovado pela constituinte

Oposição desconhece nova Carta Os cinco governadores opositores acusam o texto constitucional de ilegal e ameaçam exercer autonomia de fato de La Paz (Bolívia) No dia seguinte ao encerramento dos trabalhos da Assembléia Constituinte boliviana, as principais forças da oposição ao governo de Evo Morales (hoje de caráter mais regional que partidário) anunciaram desconhecer a nova Carta, para eles aprovada de forma ilegal e antidemocrática. A acusação se deve ao fato de a aprovação do texto geral da Constituição, no dia 24 de novembro, ter se dado no Colégio Militar de Sucre, e sem a presença da maior parte da oposição, que decidiu não comparecer às sessões plenárias marcadas para o local. A Assembléia Constituinte estava paralisada há mais de três meses, devido aos protestos em Sucre em favor de que o foro debatesse o retorno dos poderes Executivo e Legislativo à cidade, condição perdida para La Paz em uma guerra civil ocorrida no final do século 19. Devido à ausência de acordo com os sucrenses e à falta de segurança no Teatro Gran Mariscal Sucre, sede original das plenárias, a diretiva da constituinte decidiu retomar as sessões no colégio militar. Na ocasião, confrontos entre a polícia e parte da população local deixaram três mortos. A oposição também protesta contra a realização, em Oruro, da sessão que aprovou artigo por artigo do texto constitucional, já que na lei de convocatória da Assembléia, determinou-se que Sucre seria sua sede.

Autonomia de fato

Para Evo, uma vitória do movimento popular

Além disso, os cinco governadores departamentais (estaduais) opositores (de um total de nove) anunciaram que, a partir de 15 de dezembro, aplicarão as autonomias departamentais de fato. Os cinco formam parte da chamada meia lua ampliada, uma referência à meia lua original (alusão ao formato geográfico conformado pelos departamentos de Santa

Cruz, Tarija, Beni e Pando, onde o “sim” às autonomias foi vitorioso no referendo realizado em julho de 2006) mais Cochabamba. Segundo o governador deste último, “a Assembléia Constituinte fraturou a democracia e a ordem do país por uma decisão do partido governante”. Já o mandatário de Tarija, Mario Cossío, ameaçou: “Se a Constituinte não entregar, a nossos departamentos, até 14 de dezembro, essa autonomia, nós a exerceremos de pleno direito”. No entanto, o texto constitucional aprovado no dia 9 reconhece a autonomia departamental, em seu artigo 287: “O governo de cada departamento autônomo está constituído por um conselho departamental, com faculdade deliberativa, fiscalizadora e legislativa, exclusiva para emitir normas departamentais no âmbito das competências exclusivas estabelecidas por esta Constituição e pela Lei Marco de Autonomias e descentralização; e um órgão executivo”.

Convocação

Por sua vez, o governador de Santa Cruz, Rubén Costas, fez uma espécie de chamado aos militares. “Entendemos que existe um mal-estar de patriotas das Forças Armadas que, em sua grande maioria, juraram defender a Constituição, e que não vão sujeitar-se a alguns comandos especiais ou a seus comandantes”, disse. Demonstrando que a oposição a Evo Morales não é unanimidade em Santa Cruz, o secretário-executivo da Central Obrera Departamental (COD), Edwin Fernández, declarou apoio à nova Constituição, “porque [nela] há muitas conquistas para os trabalhadores”. Fernández citou a igualdade de reconhecimento salarial para homens e mulheres e a estabilidade no emprego dos dirigentes sindicais por um ano após cumprirem seus mandatos. “Antes, no dia seguinte, você era despedido, sem importarem as conseqüências”, disse. (IO)


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internacional

Os que lucram e os que resistem MUDANÇAS CLIMÁTICAS “Soluções” da indústria para o aquecimento global que preservam lucro, mas não combatem as causas Wilsom Dias/Abr

Silvia Ribeiro

Causas do aquecimento O processo de mudança climática global é conhecido há décadas, mas os Estados Unidos e as indústrias petroleiras e automobilísticas o negavam. Esses mesmos atores têm mudado de estratégia, não porque reconhecem sua vasta e danosa participação na produção das causas do aquecimento global e dos lucros obtidos a partir disso, mas porque aguardam cuidadosamente novas fontes de negócios para manter seus privilégios de lucro e contaminação.

O processo de mudança climática global é conhecido há décadas, mas os Estados Unidos e as indústrias petroleiras e automobilísticas o negavam Nesse sentido, destaca-se a agressiva promoção dos combustíveis agroindustriais em escala global, subvencionados com dinheiro público para o lucro das grandes empresas. Só que, em lugar de mitigar o aquecimento global, vão aprofundá-lo, porque investem em um aumento massivo de suas causas: mais agricultura industrial, mais consumo de petróleo para maquinaria agrícola e agroquímicos, mais deflorestação e mais erosão de sistemas naturais, se isso fosse pouco, são novas fontes de

Um dos painéis da exposição itinerante Aquecimento Global: Apague essa Idéia, do Greenpeace

atropelos aos territórios e direitos dos camponeses que, em todo o mundo, são quem realmente provêm a base da alimentação e a sustentabilidade dos agroecosistemas para a maioria da população mundial.

“Fertilização dos oceanos” Outros tipos de empreendimentos de alto risco, menos conhecidos, são as empresas de “geoengenharia”, ou seja, a modificação do ambiente voluntariamente e em grande escala. Várias empresas têm saído, literalmente, a pescar lucros, com o que chamam de “fertilização” dos oceanos. Baseiam-se na teoria de que, ao dispersar fertilizantes na superfície dos oceanos, aumentará a quantidade de fitoplancton, que absorveria o dióxido de carbono e, portanto, funcionaria como um “eliminador de carbono”, um dos principais gases cuja acumulação provoca o aquecimento global. Porém, estes empreendimentos que se fazem por lucro não são inócuos. Pelo contrário, em novembro de 2007, o Convênio de Londres da Organização Marítima Internacional (que se ocupa da contaminação dos mares por derramamento de dejetos) declarou que este tipo de experimento “não se justifica”, tanto pelos impactos negativos potenciais, como também porque não está claro se trazem algum benefício. Recomenda-se aos governos não aprová-los. Mas as empresas insistem e buscam governos dóceis, que não sejam signatários deste convênio. Uma das iniciativas mais conhecidas é a de Planktos Inc., companhia que vende créditos de carbono a indivíduos e empresas que pretendem derramar nanopartículas de ferro nos oceanos. A Planktos anunciou que se dirigia aos mares próximos às Ilhas Galápagos para fazer um derramamento, mas cancelou a viagem devido à denúncia de muitas organizações locais e internacionais, assim como a oposição oficial no Equador. Outra empresa similar, também na mira de muitas organizações, é a Climos, com sede em São Francisco. Ela quer se legitimar co-

mo agente de “créditos de carbono” com estas atividades de derramamento nos oceanos e pretende ser admitida dentro do chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto. Outra mostra fidedigna de que o MDL é um mecanismo a favor dos interesses comerciais, que legitimam a venda de “permissões de contaminação”, aumentando-a, e promove atividades de forte impacto social e ambiental.

Várias empresas têm saído, literalmente, a pescar lucros, com o que chamam de “fertilização” dos oceanos A empresa australiana Ocean Nourishment Corporation (ONC) se propunha a verter 500 toneladas de uréia no mar de Sulu, próximo às Filipinas, mas teve que mudar seus planos após a oposição do governo filipino, devido à denuncia de várias organizações da sociedade civil pelos impactos sobre os pescadores artesanais e o ambiente marinho. Assim mesmo, a ONC segue com o plano de verter mais de mil toneladas de uréia em águas malaias, e considera também fazer o mesmo no Chile, Emirados Árabes e, possivelmente, Marrocos.

Resistência Os piratas do clima seguem buscando portos vulneráveis e terras desprotegidas para seus lucros inescrupulosos, seja com geoengenharia, agrocombustíveis ou inclusive criando organismos vivos totalmente artificiais para produzir combustíveis comercialmente, como quer o geneticista Craig Venter. Que não lhes restem dúvidas: por todo o mundo, se multiplica também a resistência das organizações da sociedade civil, assim como o alerta ativo dos campesinos e campesinas que, conforme a Via Campesina, desde sua luta e desde sua prática diária combatem o aquecimento global. Silvia Ribeiro é pesquisadora do Grupo ETC

VENEZUELA

Chávez prepara nova reforma constitucional Desta vez, alternativa é fazer referendo via iniciativa popular, que requer o apoio de 15% dos eleitores da redação O presidente venezuelano Hugo Chávez anunciou, no dia 6, que voltará a apresentar sua proposta de reforma constitucional, com a finalidade de aprofundar “o socialismo do século 21”. “Foi uma vitória de merda, e a nossa, uma derrota de coragem”, comentou o venezuelano, rodeado pelo alto comando militar, após a mídia corporativa internacional publicar que teria aceito a derrota no referendo, por cerca de 200 mil votos, apenas por pressão das forças armadas. Durante um programa de televisão da rede estatal, Chávez declarou que usará a via da iniciativa popular – prevista na Constituição e que requer as assinaturas de 15% dos eleitores – para voltar a apresentar a proposta constitucional. “Preparemse que virá uma nova ofensiva com a proposta desta reforma, transformada, simplificada, porque o povo sabe que se, consegue recolher as assinaturas, pode submetê-la, novamente, a um referendo em outras condições, em outro momento. Saibam administrar sua vitória, mas já a estão enchendo de merda; e a nossa, chamem de derrota, mas é de dignidade”, discursou. A oposição, por sua vez, questiona que a Constituição permita a reapresentação da proposta da reforma. A perspectiva é que, caso Chávez realmente lance a iniciativa, será mais um caso que acabará no Tribunal Superior de Justiça. Alguns setores chavistas, críticos das opções feitas pelo governo bolivariano no referendo, viram o anúncio do presidente com otimismo.

“Falar que se apresente por iniciativa popular implica o reconhecimento de um erro”, avalia Reinaldo Iturriza, professor da Universidade Central da Venezuela e um dos críticos “chavistas” da fracassada reforma. Para ele, o pecado original da proposta é que a mesma não surgiu “das bases populares”, mas sim “de cima” e sem discussão. “O debate se deu sobre textos que Chávez já não estava disposto a modificar. Se tivéssemos feito por iniciativa popular, ganharíamos sem dúvida”, avalia.

Guerra Midiática Já no dia 11, o presidente denunciou que o governo dos Estados Unidos está redobrando a guerra midiática contra o seu país e outros povos. “A Venezuela enfrentou um bombardeio midiático e realmente não soubemos rechaçá-lo”, declarou Chávez, em referência à derrota no referendo da reforma constitucional. A avaliação foi feita durante o Encontro da Cultura pela Integração dos Povos de Nossa América, celebrado no Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini, em Buenos Aires. O venezuelano afirmou que o governo boliviano de Evo Morales também está enfrentando essa arbitrária manipulação nos meios de comunicação que, segundo ele, tem se constituído em uma frente de idéias difícil de ser contra-atacada. Chávez explicou também que o presidente cubano Fidel Castro já havia alertado sobre essa campanha dos meios de comunicação privados internacionais. “Na guerra das idéias, o império destina milhões de dólares de distintas formas, mas exatamente com o mesmo formato”, avaliou. (Prensalatina e La Jornada).

Rumpelstiltzkin

A 13ª CONFERÊNCIA das Nações Unidas sobre Mudança Climática será realizada em Bali, Indonésia, em um contexto no qual esse tema é cada vez mais crucial, tanto pela agudização dos impactos desta tragédia anunciada, como pelos fortes interesses comerciais que mobiliza. Este ano, a polarização social global em torno do assunto expressou-se particularmente com a instalação, fora das reuniões oficiais, da “Aldeia de Solidariedade para um Planeta Sem Aquecimento”, organizada por uma ampla coalizão de movimentos sociais e organizações civis indonésias e internacionais. Segundo os organizadores, trata-se de “um espaço aberto para reunir todos que acreditam que o aquecimento global não pode ser abordado mediante soluções de mercado e neoliberais. “Acreditamos que estas somente podem encontrar-se com mudanças fundamentais na maneira em que produzimos, comercializamos e consumimos”. Entre esses grupos, estão organizações internacionais – como Via Campesina, Amigos da Terra e Focus on the Global South – e locais, como a coalizão Movimento Popular da Indonésia contra o Neocolonialismo e o Imperialismo, a Federação Indonésia de Sindicatos Campesinos (FSPI), organizações de direitos humanos, de pescadores, de mulheres, coalizões contra os acordos comerciais. Este tipo de mobilização se opõe às soluções apresentadas pelas indústrias: promover, entre outros, os agrocombustíveis, os “desertos verdes” das monoculturas florestais, as grandes represas, a energia nuclear e outros arranjos tecnológicos que, longe de serem soluções, agregam novos problemas ambientais e sociais.

Partidários do não comemoram a vitória no referendo


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áfrica

Em Cúpula, África rechaça acordo de livre comércio com a Europa APE Durante encontro realizado em Portugal, líderes africanos se recusam a assinar Acordos de Parceira Econômica com a UE Ricardo Oliveira/PM´s Office

Tatiana Merlino da Redação “DE CASABLANCA (no Marrocos) à Cidade do Cabo (na África do Sul), os africanos devem rejeitar o acordo”. A afirmação é do presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, a respeito dos novos acordos comerciais propostos pela União Européia (UE) com os países da África, durante a 2ª Cúpula UE-África, realizada em Lisboa, Portugal, nos dias 8 e 9 de dezembro. Wade, assim como a maioria dos líderes africanos, rejeitou, ao final do encontro, a tentativa de fechar, antes de janeiro de 2008, acordos regionais de livre comércio de impostos entre os dois continentes. A UE pretende substituir os acordos comerciais prestes a terminar por acordos temporários, os chamados Acordos de Parceria Econômica (APE). O prazo é uma imposição da Organização Mundial do Comércio (OMC), que considera o atual Regime de Comércio Preferencial contrário às regras internacionais de comércio, e estabeleceu 31 de dezembro como prazo para substituí-los por APEs.

Novo relacionamento? Durante o encontro, que reuniu líderes de 80 países, o presidente do Senegal disse: “Não vamos mais discutir os APEs, já os rejeitamos. Vamos nos reunir para ver o que podemos colocar no lugar deles. Concordo com o espírito de se criar um novo re-

Representantes de nações européias e africanas posam para foto oficial do evento realizado em Lisboa, Portugal

lacionamento (com a Europa), mas precisamos definir como é esse relacionamento”, disse. Enquanto 13 países africanos concordaram com acordos comerciais provisórios com a UE, a maioria dos líderes africanos acredita que a liberalização das trocas comerciais vai prejudicar a agricultura e indústria africanas. Apesar das divergências, no documento final da Cúpula, entre as conclusões, consta uma declaração sobre a promoção de livre comércio e democracia, o anúncio de uma nova “parceria estratégica”, com planos de ação para oito áreas, incluindo segurança, desenvolvimento, comércio, energia, mudança climática e imigração.

Numa declaração política divulgada durante a cúpula, o Fórum da Sociedade Civil Euro-Africana afirmou que os acordos bilaterais de livre comércio, em particular os APE, são um “claro exemplo negativo” dessa nova parceria estratégica. Segundo a declaração, os acordos são incompatíveis com os processos de integração regional e continental. José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Européia, rebateu a alegação africana de que teria havido pressão em cima dos países com relação ao comércio, dizendo: “Nosso objetivo sempre foi e ainda é concluir Acordos de Parceria Econômica com o objetivo de fortalecer a integração regional

e levar o desenvolvimento genuíno aos países africanos”.

Trocas desiguais Na opinião do economista angolano Filomeno Vieira Lopes, a assinatura de APEs representa uma grave ameaça aos países africanos, que estariam obrigados a adotar as leis da OMC, eliminando barreiras protecionistas e fazendo trocas de maneira desigual. “Esses acordos violam a soberania alimentar, concentram as terras nas mãos de transnacionais e expulsam os agricultores para fora de seus territórios”. De acordo com ele, os temas principais da agenda oficial da cúpula são apenas uma “fachada” para o real interesse da União Européia: assinar os acordos de livre comércio.

O anfitrião do evento, o primeiro-ministro português José Sócrates, abriu o encontro pedindo uma “nova parceria igualitária” entre os dois continentes. “Esta é a cúpula dos iguais. Somos iguais em nossa dignidade humana (...) e também iguais em termos de responsabilidade política”, afirmou. Nas suas mensagens iniciais, Sócrates também fez questão de classificar a relação política entre países africanos e da União Européia como uma relação “de iguais”. Taoufik Ben Abdallah, presidente da organização senegalesa ENDA afirmou que a dita mudança de discurso da Europa em relação a África não é genuína. “Não é a visão da Europa que está mudando, é a realidade que está mu-

dando”. E a realidade é que a China está assumindo um papel cada vez mais importante no continente africano, o que leva a Europa a “querer convencer os africanos a ficarem do seu lado”. A primeira cúpula entre a UE e a África foi realizada em 2000, e uma segunda edição, que aconteceria em 2003, foi suspensa por prolemas políticos relacionados à presença do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe.

Cúpula alternativa Uma das novidades dessa 2ª cúpula foi a realização de uma “cúpula alternativa”, espaço em que entidades da sociedade civil discutiram temas como livre comércio, migração, direitos humanos, agricultura e alimentação. Ao final do evento, os participantes apresentaram um documento final que foi entregue aos representantes da cúpula oficial. Durante um dos painéis do evento paralelo, Lucile Daumas, da ATTAC Marrocos, ressaltou o caráter repressivo das atuais políticas da União Européia sobre imigração. “Esse aspecto não está totalmente fora da cúpula oficial, mas está oculto, com a introdução de uma nova noção, a migração circular, ou seja a circulação legal de fluxos de mão de obra”. Segundo Lucile, a política introduz o conceito de “imigrante que se usa e se joga fora quando já não é mais necessário” em países desenvolvidos, atualmente com falta de mão de obra em alguns setores. (Com agências internacionais)


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cultura Reprodução

Entre o cinema e a literatura ARTE ENGAJADA Escritor e cineasta Renato Tapajós finaliza restauração de Linha de Montagem; filme retrata movimentação política no início da década de 1980 em São Bernardo

Lula é carregado em cena do filme Linha de Montagem, de 1980

Dafne Melo da Redação EM 2008, o cineasta Renato Tapajós irá concluir um importante projeto: a restauração do documentário Linha de Montagem. O filme, com data original de 1980, retrata o movimento grevista em São Bernardo do Campo nesta época. Um dos principais personagens do filme é o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, naqueles tempos ainda um operário. Esse, entretanto, não é o único projeto em vista para Tapajós. Além de um novo livro, planeja fazer uma espécie de continuação do filme agora restaurado. O Chão da Fábrica e o Sindicalismo querem investigar como “os operários se relacionam entre si e com a estrutura de produção”, diante das mudanças verificadas nos últimos 25 anos. “E também retratar como os sindicatos se comportaram diante dessas mudanças”, conta. Em entrevista ao Brasil de Fato, Tapajós fala da recuperação do documentário, avalia os caminhos daquele movimento sindical e discute a relação entre cinema e literatura. Brasil de Fato – Você está fazendo um trabalho de recuperação do filme Linha de Montagem. Como está isso? Renato Tapajós – Estamos na última fase, concluindo a recuperação do som. Devemos obter a primeira cópia em 35 mm por volta do dia 15. Faz parte do projeto lançar um DVD que terá, além do filme, alguns extras que falarão da restauração e também da importância do filme. Uma coisa particular a respeito desses DVDs é que, na versão original, a música é do Chico Buarque, e evidentemente que o grande personagem do filme é o Lula. Quando estávamos gravando os extras, o Chico não quis dar entrevista e, por mais que tentássemos, não conseguimos entrevistar o Lula de novo. Não sei dizer exatamente o que isso significa, não faço nenhuma interpretação particular, mas é simbólico, não acha?

(...) o PT fez pela via eleitoral, descartando outras formas de luta possíveis em nossa sociedade. Não que eu seja contra a via eleitoral, pelo contrário, acredito que seja extremamente importante, mas a opção exclusiva por ela sempre me pareceu um erro da esquerda que vem de muito longe O filme retrata o início de um ciclo no qual se acredita que a esquerda brasileira está se esgotando. Qual sua avaliação a respeito disso? Acho que há um forte grau de verdade nisso. Naquele momento, o processo político que estava ocorrendo era de rompimento com o status quo, tanto da sociedade, quanto da esquerda. Acho que os movimentos que culminaram com a criação do PT tiveram uma originalidade muito grande dentro da esquerda brasileira e continham possibilidades que acabaram não se desenvolvendo. De toda forma, as que acabaram se desenvolvendo, e que deram no que está aí, talvez estejam se esgotando. Digo talvez porque o movimento social é mutável e criativo, então pode acontecer algo que estenda esse processo. Propus a realização de um filme para a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e até o momento não vingou, mas um filme no qual eu me propunha a estudar o que aconteceu nesses 25 anos, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo, ou seja, as mudanças que se implementaram nesse período, chamadas vulgarmente de neoliberalismo e globalização, mas que representam fenômenos muito mais complexos e têm implicações enormes no chão da fábrica, ou seja, na maneira como os operários se relacionam entre si e com a estrutura de produção. E também, retratar como os sindicatos se comportaram diante dessas mudanças.

Cinema e literatura são linguagens muito diferentes, mas claro que se influenciam. Você pode escrever um livro que tem técnica, tempos, ritmos e forma cinematográfica. Isso não quer dizer que ele é mais fácil de se adaptar ao cinema. A influência acontece, mas, no momento em que você estrutura uma coisa em uma das linguagens, ela ganha uma forma própria de expressão Qual a importância de restaurar Linha de Montagem? Acho que tem vários aspectos. Primeiro lugar, tem um aspecto histórico. Vivemos em um momento em que o Lula é nosso presidente da República e há toda uma série de ex-lideranças sindicais ocupando altos escalões da República. Esse processo começou em 1979/80, quando Linha de Montagem foi feito. Acredito que o filme conseguiu captar um momento histórico que, até o momento atual, deu no que está aí. Ele mostra as greves de São Bernardo do Campo antes da fundação do PT. A própria criação posterior do partido, e toda a dinâmica política que se deu no país a partir daí, tem seu nascimento registrado no filme. Do ponto de vista político, é extremamente oportuno um filme que retrata lideranças importantes e atuais no momento em que deslancham nesse processo, e que têm um determinado discurso e posicionamento, que cabe ao expectador analisar em que medida as coisas são as mesmas ou mudaram. Então, há uma discussão político-ideológica muito importante no processo que houve com essas lideranças lá retratadas. Como foi fazer o documentário naquele momento? Tudo teve início alguns anos antes, quando começamos a desenvolver um projeto de cinema em São Bernardo. Esse projeto tinha como raiz a nossa militância. Muitos companheiros que para lá se deslocaram, a maioria ex-presos políticos que estiveram na clandestinidade duramte a ditadura militar, naquele momento podiam botar a cabeça de fora. Isso porque, numa análise superficial, dava para perceber que São Bernardo era o ponto focal do movimento político brasileiro. Tinha muita coisa ocorrendo no Brasil – como a campanha pela Anistia – mas, para quem analisava a realidade brasileira de um ponto de vista, digamos, marxista, não havia dúvida de que lá era o foco mais importante. Muitas pessoas se deslocaram para lá a fim de fazer jornais, cursos e outras atividades ligadas ao sindicato (dos metalúrgicos). Eu, inicialmente, fui para dar um curso de cinema. Em março de 1979, o próprio Lula me ligou e disse: “está começando uma grande greve aqui, vem filmar”. Perguntei se tínhamos recursos para fazer o filme. Respondeu que não, mas que tinha certeza de que se passava algo muito importante ali e que conseguiríamos depois. Então, reunimos vários cineastas que estavam interessados e fomos. Lembro bem que a câmara era emprestada e que, entre as pe-

lículas que usamos, tinha filme até vencido, pois usamos muita doação de produtoras. Iniciamos a filmagem e, tal como o Lula tinha dito, a importância política que o movimento de São Bernardo tomou acabou trazendo a contribuição de muitas pessoas das áreas artísticas e empresariais e, então, conseguimos que o filme fosse feito. Quais foram os erros desse movimento? O fenômeno é bem complexo. Podemos pegar as lideranças sindicais que haviam naquele momento e analisar o comportamento político delas ao longo desse período todo, mostrando a clara opção que o PT fez pela via eleitoral, descartando outras formas de luta possíveis em nossa sociedade. Não que eu seja contra a via eleitoral, pelo contrário, acredito que seja extremamente importante, mas a opção exclusiva por ela sempre me pareceu um erro da esquerda que vem de muito longe. O Partidão (PCB) cometeu-o várias vezes, pois jogam-se todas as fichas na via eleitoral, ou seja, nas estruturas políticas dadas pelas classes dominantes, e com isso sufoca-se a possibilidade de desenvolvimento de outras formas de organização e criatividade do movimento. Neste ano, vimos muitos documentários que abordam a História do país; como você avalia a produção de documentários no Brasil? Acho que, assim como o cinema brasileiro em geral, os documentaristas têm se beneficiado da política cinematográfica desenvolvida nos últimos 13 anos. No início, essa política de incentivos fiscais e outros mecanismos beneficiaram apenas filmes de ficção. Depois, os documentaristas descobriram isso. Cresceu não só a produção como o interesse do público por documentários. Acredito que há outros fatores, como a TV a cabo, que acabou disseminando a idéia de que documentário não é uma coisa chata, e isso ajudou a formar um público. Fora isso, começaram a surgir programas oficiais, tanto do Ministério da Cultura, quanto de secretarias estaduais e municipais e de TVs estatais e públicas, como a TV Cultura, com o projeto DOCTV. Tudo isso fez com que essa produção crescesse de uma forma sem paralelo na História. Tivemos um boom no final de década de 1970, mas foi uma produção que corria à margem do mercado. 90% dos documentários produzidos naquela época eram politicamente definidos, com uma proposta de luta política, de denúnReprodução

Linha de montagem – 1980 Os trabalhadores de São Bernardo do Campo, cidade moldada pela industrialização, estão descontentes com seus salários e a baixa qualidade de vida e resolvem parar as máquinas. É a época da explosão, em São Bernardo e São Paulo, do movimento grevista de 1978/79. Esses trabalhadores darão início às grandes greves e ao renascimento do movimento sindical brasileiro. No comando das paralisações,

aparece o Sindicato dos Metalúrgicos e Luiz Inácio Lula da Silva como grande articulador e líder no panorama sindical. O documentário mostra a força da classe trabalhadora ainda no final da ditadura militar, as grandes assembléias da Vila Euclides, reuniões, depoimentos e a intervenção federal que o Sindicato dos Trabalhadores sofreu na época. (Fonte: Núcleo Piratininga de Comunicação – www.npc.org.br)

Reprodução

Quem é Renato Tapajós nasceu em 1943, é paraense e formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Dirigiu 25 filmes, entre curtas e longas, como a série Acidente de Trabalho, Greve de Março, Teatro Operário e Linha de Montagem. Escreveu “Em Câmara Lenta”, em 1977, além de outros livros infanto-juvenis. Militou, durante a ditadura, na Ala Vermelha, tendo sido preso entre 1969-1974. Quando lançou “Em Câmara Lenta”, foi novamente preso pela ditadura, devido ao conteúdo do livro.

cia das condições da sociedade brasileira e a favor dos direitos humanos. Isso já não existe hoje: a produção está fragmentada em uma porção de tendências, o que pode ser interessante, pois permite pesquisas e profissionalização, mas, por outro lado, reduz o impacto social do documentário. Você também é escritor. Quando tem uma idéia para um projeto, como decide se será livro ou filme, em especial o romance “Em Câmara Lenta”, que parece ter uma linguagem mais cinematográfica? No momento, estou trabalhando exatamente na idéia de roteirizar o “Câmara Lenta” para fazer um filme. Quando as idéias surgem para mim, elas aparecem já de uma determinada forma, de antemão já sei se será um documentário, ficção ou texto. Ultimamente tenho me dedicado muito mais ao cinema do que à escrita. Cinema e literatura são linguagens muito diferentes, mas claro que se influenciam. Você pode escrever um livro que tem técnica, tempos, ritmos e forma cinematográfica. Isso não quer dizer que ele é mais fácil de se adaptar ao cinema. A influência acontece, mas no momento em que você estrutura uma coisa em uma das linguagens, ela ganha uma forma própria de expressão. Todo mundo diz que o “Câmara Lenta” parece um roteiro, mas quando a gente se debruça sobre esse livro, percebemos que há mais dificuldade de roteirizar o “Em Câmara Lenta” do que uma outra obra. Você escreve livros infanto-juvenis também. Como surgiu a idéia de escrever para essa faixa etária? Surgiu de uma confluência muito curiosa. Na época, estava fazendo trabalhos de vídeo para a editora Ática, que faz livros infanto-juvenis. Meus filhos estavam nessa faixa de idade. Acresce-se a isso o fato de estarmos na época do impeachment do (ex-presidente Fernando) Collor. Procurei estabelecer um diálogo de gerações, sobre temas que são importantes para mim. Os resultados dos primeiros livros foram interessantes, e escrevi outros cinco. O problema é que, mais recentemente, me defrontei com alguns problemas. O mais importante deles é que houve uma mudança no mercado editorial – e na distribuição desses livros – que me desagrada. As editoras estrangeiras entraram de sola nesse mercado e a Ática foi vendida para um consórcio estrangeiro e depois, revendida para a editora Abril. Não é um problema de nacionalismo a todo custo, mas quando se trata de uma coisa tão sensível como escrever literatura para os nossos jovens, precisa saber que quem te publica é uma empresa que defende os interesses transnacionais. Sobretudo uma empresa como a Abril (que edita a revista Veja), cuja linha político-ideológica podemos ver por suas revistas. Atualmente, estou trabalhando num projeto voltado para o público adulto chamado Os Aprendizes, que pode ser um romance ou uma série de romances abrangendo um período que vai do final dos anos 1970 até os dias de hoje.


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