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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 5 • Número 253

São Paulo, de 3 a 9 de janeiro de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Laura Feldguer

Estudantes na luta pela qualidade do ensino público A ação do movimento estudantil em 2007 foi marcada por ocupações de reitorias em todo o país. Como causa comum das mobilizações, a rejeição a medidas dos governos estaduais e federal, que avançam no processo de sucateamento do ensino público brasileiro. A ação dos estudantes, entretanto, não ficou restrita à pauta universitária: em Belo Horizonte (MG), por exemplo, eles participaram da ocupação da sede da Companhia Vale do Rio Doce, durante a jornada de lutas em defesa da educação pública. Pág. 7

Campanha da Vale quer um plebiscito oficial este ano O objetivo da campanha pela anulação do leilão que privatizou a Companhia Vale do Rio Doce para este ano é organizar, junto às bases, uma mobilização de massas para a realização de um plebiscito oficial de iniciativa popular. Para lideranças de movimentos populares, a consulta popular realizada em 2007 foi um dos momentos mais importantes da luta de classes no ano, além de ter dado seqüência à unidade entre as organizações de esquerda iniciada pelas manifestações do dia 23 de maio. Pág. 6

Após dois anos, nem todos que levaram Morales à presidência estão contentes com seu desempenho

Evo, entre a conciliação e a radicalização na Bolívia Marina Gomes

Nem todos que levaram Evo Morales à Presidência estão contentes com seu desempenho, passados pouco mais de 20 meses da sua posse. Na questão dos Estivadores hidrocarbonetos, por exemplo, críticos capixabas: mais de 90 anos alegam que Evo não decretou a de organização nacionalização, pois as transnacionais continuam operando no país. Outro Estivadores capixabas se organizam em meio aspecto que indicaria o caráter ao contexto neoliberal na busca por alternativas que reformista da gestão atual seriam as defendem a autonomia e os direitos dos trabalhadores. No Sindicato dos Esti- políticas assistencialistas, que não vadores e dos Trabalhadoatacam a estrutura, com programas res em Estiva de Minérios do Estado do Espírito Santo (Setemees), 90 anos parecidos com o Bolsa Família. Por após uma caminhada fim, analistas argumentam que, na marcada pela resistência e organização e diante da prática, a Assembléia Constituinte conflituosa lei dos Portos, o desafio é formar os quafortaleceu partidos tradicionais e dros diretivos e de base e “disputar projetos” nos alijou protagonistas da Guerra portos que se sobreponham aos de governos e do Gás. Págs. 10 e 11 empresários. Pág. 8

Sem superavit, crescimento da economia seria ainda maior

A cientista política Vânia Bambirra

A utopia marxista frente ao mundo globalizado Em entrevista ao Brasil de Fato, uma das intelectuais que participou da formulação da Teoria da Dependência, Vânia Bambirra, analisa

os limites do capitalismo e das experiências socialistas colocadas em prática para resolver as contradições sociais. Págs. 4 e 5

Os números da economia brasileira em 2007 foram motivo de comemoração para o governo. O crescimento do PIB ficou em torno de 5% e a taxa de desemprego foi a menor desde 2002, voltando a ter um índice com menos de dois dígitos. No entanto, especialistas apontam que o desempenho da economia poderia ser ainda melhor se o governo afrouxasse sua política econômica de ajuste fiscal, que destina 38% do orçamento para o superávit primário e o pagamento da dívida pública. O crescimento do emprego formal, por sua vez, é animador em termos numéricos. Entretanto, dados do IBGE apontam que a renda média salarial do trabalhador sofre um processo de estagnação desde 2002. Pág. 3

Yuri Martins Fontes

Florestan e a Revolução Cubana

Etiópia, historicamente, um território em disputa

Lançado pela editora Expressão Popular, o livro Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana discute a história do processo revolucionário de Cuba, desde suas origens históricas até a implantação do poder popular, a partir da análise do sociólogo Florestan Fernandes. A publicação faz parte da coleção “Assim lutam os povos”, que tem por objetivo estimular o avanço da classe trabalhadora. Pág. 12

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Crianças etíopes: população triplicou em duas décadas, mas sem infra-estrutura

Ao lado da Somália, Eritréia e Djibuti, a Etiópia – ou a Terra das Caras Queimadas – faz parte da região chamada de “Chifre da África”. Como um país tão rico e verde pode ser tão pobre? Invadido pelos italianos, ocupado pelos ingleses, o país, hoje capitalista, já viveu sob regime socialista entre 1976 e 1991. O alto índice de deficientes físicos, vítimas da guerra, é a lembrança viva dos contínuos atos de violência. Quase não existe uma classe média. É o que relata o viajante Yuri Martins Fontes. Pág. 9


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editorial ESTAMOS INICIANDO mais um ano. E é importante fazer um balanço das lutas sociais no nosso continente. Fazer uma reflexão que nos permita olhar para o horizonte de 2008 e refletir sobre os avanços e dificuldades dos movimentos sociais, das organizações populares democráticas, das classes trabalhadoras em todo o continente. A América Latina tem vivido uma “onda longa” de conquistas e experiências de progresso social, consolidando direitos democráticos e experiências que, em toda a enorme diversidade do continente, permite antever um 2008 ainda mais avançado. Isto não nos exime de examinar, também, as enormes contradições que este processo apresenta. Apesar de todas as campanhas midiáticas contra a idéia de integração do continente, que ridicularizam os menores avanços como os ocorridos no Mercosul – ainda um mecanismo essencialmente econômico –, o progresso na direção da Comunidade Sul-Americana de Nações e que, principalmente, atacam com ferocidade as experiências mais avançadas como são Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador, as elites do continente não conseguem deter este processo. As iniciativas de caráter revolucio-

debate

Avanços nas lutas sociais na AL nário ou mesmo aquelas que poderiam ser chamadas de um “reformismo avançado” parecem ter um fôlego maior que os ataques do Império: avançam iniciativas como a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a aliança neocolonialista proposta pelos Estados Unidos, apesar de algumas adesões como as do Peru e da Colômbia, não parece poder determinar o curso da história. Ao contrário, as propostas mais avançadas predominam, como a formação do Banco do Sul, as nacionalizações, a crescente integração entre os povos, as propostas de ampliação do poder popular a partir de órgãos de participação direta. Afirma-se o papel de Cuba, como referência moral e de justiça social, e da Venezuela, como inspiradora de audazes iniciativas antiimperialistas. A irmandade entre estes dois países dá frutos, irradia-se e inspira os outros povos a verem que “um outro mundo é possível”. A “questão” indígena, outrora associada à idéia de lutas de minorias por seus direitos, hoje é questão primordial em países como

a Bolívia e o Equador, adquiriu institucionalidade, e através de experiências como as Assembléias Constituintes naqueles países, alteram fundamentos importantes do Estado para dar lugar pela primeira vez e irreversivelmente à cidadania das populações originárias. A ideologia neoliberal é colocada em questão abertamente, não por grupos intelectuais e opositores de esquerda somente, mas por governos que tomam posse e proclamam querer prosseguir por outros caminhos. Iniciativas estatais e institucionais reafirmam uma opção diversa das “décadas perdidas”. Mesmo a questão ambiental adquire cidadania, hoje nenhum governo pode desconsiderar o tema ao pensar em empreender uma grande obra. Imediatamente levantam-se vozes, movimentos, clamando por garantias, impondo limites. Lutas importantes têm sido travadas contra os latifúndios, o agronegócio, a transgenia, e vão continuar. É obrigatório constatar que, entretanto, as elites mais retrógradas não foram derrotadas definitivamente em nenhum dos países do

Continente, e conspiram ativamente para retomar o pedaço de poder perdido, com apoio declarado e extremamente perigoso do império estadunidense. As intentonas separatistas na Bolívia, a permanente conspiração contra o governo venezuelano, a recente provocação contra o governo recém-eleito na Argentina, a agressividade do governo colombiano contra a Venezuela – e a presença maciça das forças militares dos Estados Unidos, tudo isso mostra que existem perigos de retrocessos que não devem ser subestimados. Sem contar com a oposição mais “democrática” – como no Brasil, na própria Argentina – que visa reconduzir por vias “normais” os velhos caciques entreguistas aos governos, bloqueando definitivamente até mesmo os processos de reformas sociais mais limitados. O “Socialismo do Século XXI” é ainda uma promessa, uma digna tentativa de resgatar a melhor herança do socialismo do século passado, mas não encontra ainda unânime tradução entre a intelectualidade, nos movimentos sociais, sindicatos e nas mais variadas or-

crônica

José Luís Fiori

Os “poliglotas descalços” HEINZ ALFRED Kissinger, o diplomata norte-americano mais influente, da segunda metade do século 20, nasceu em Fürth, na Alemanha, em 1923. Mas imigrou para os Estados Unidos e se nacionalizou estadunidense em 1943, antes de doutorar-se na Universidade de Harvard, em 1954, onde foi professor e diretor do Centro de Estudos Internacionais e do Programa de Estudos de Defesa, até 1971. Apesar disso, Kissinger não foi um acadêmico, foi sobretudo um consultor, funcionário e executivo da segurança nacional e da política externa dos Estados Unidos. Desde 1953, no governo de Dwight Eisenhower, até o final da sua gestão como conselheiro de segurança da Presidência, e como secretário de Estado das administrações de Richard Nixon e Gerald Ford, entre 1968 e 1976. Nesse último período, em particular, Kissinger exerceu uma diplomacia pouco convencional e extremamente ágil, como formulador e operador direto de suas próprias decisões, cioso de suas idéias e do seu poder pessoal e institucional. Foi nessa época que ele tomou algumas decisões e liderou iniciativas do governo dos Estados Unidos, que deixaram marcas profundas na história da segunda metade do século 20. Entre suas iniciativas com sinal “positivo”, destacam-se: a distensão das relações com a União Soviética, e a negociação dos tratados de “não proliferação nuclear”, de “limitação das armas estratégicas” e de controle dos “mísseis balísticos”, na década de 1970; as negociações de paz, no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em 1973; e, finalmente, a mais famosa de suas acrobacias diplomáticas, as viagens secretas a Pequim e suas negociações pessoais, com Chou en Lai e Mao Tse Tung, em 1971 e 1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China, nas décadas seguintes. Por outro lado, entre suas decisões e iniciativas “sangrentas”, destacam-se: a autorização do bombardeio aéreo do Camboja e do Laos, tomada sem a autorização do Congresso, em 1969; o apoio à guerra do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladesh, em 1971; o apoio e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974; o apoio à invasão sul-africana de Angola, em 1975; e, também em 1975, o apoio à invasão do Timor Leste, pela Indonésia, que se transformou numa ocupação de 24 anos e custou 200 mil vidas. Separadamente, a América do Sul ocupa um lugar de destaque nessa lista “negra” das grandes decisões tomadas por Kissinger, entre 1968 e 1976. Basta ler os documentos oficiais dos Estados Unidos que já estão disponíveis e as várias pesquisas jornalísticas e acadêmicas que apontam para o envolvimento direto, do ex-secretário de Estado norte-americano, com a preparação e execução dos violentos golpes militares que derrubaram os governos eleitos do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. Além disso,

ganizações de base. O que há de comum é uma luta quase programática, de princípios, uma infinidade de iniciativas, uma compreensão quase programática de que o Estado ainda pode ser uma alavanca importante de progresso e de resgate da dívida social, que as economias devem estar voltadas para a superação das desigualdades, que os direitos básicos devem ser assegurados a todo custo e que os direitos democráticos dos povos são sagrados. Este programa difuso adquire materialidade à medida que surgem lideranças resolutas, decididas, como Hugo Chávez, Correa, Evo Morález – cada um com suas distintas características – que lideram processos concretos e materiais de transformações, em representação – é preciso que se reconheça – de ao menos heróicas lutas das massas populares que conquistaram a superação do deserto neoliberal dos anos 90. Um bom auspício, então, para as lutas e a caminhada que se anuncia desafiadora, mas cheia de esperanças para 2008! Comecemos, então, por derrotar o separatismo reacionário e elitista da oligarquia e do agronegócio bolivianos, e por conquistar um governo popular para o Paraguai.

Luiz Ricardo Leitão

Entre parcas letras e vastos algarismos (II) OS NÚMEROS se tornaram, neste mundo neoliberalmente globalizado, o índice mais eloqüente dos sonhos cultivados pela nossa juventude, que, apesar de sua rebeldia e inquietude, vê-se cada vez mais seduzida pelo grande fundamentalismo da era pós-moderna: o consumo. Iludidos pelas cifras anunciadas nos contratos dos astros da pelota, os garotos dos sertões e periferias de Bruzundangas desejam sair do país para ‘brilhar’ nos gramados europeus, convictos de que reeditarão, em plagas estrangeiras, o êxito retumbante de Ronaldos & cia. Órfãos da pátria-mãe, deixam a sua terra sem nenhum patrimônio a ostentar. Dos bancos escolares, não levam quase nada: mal sabem ler ou escrever, a exemplo dos aqui ficam, presas fáceis de um sistema que engole gente e reproduz mais-valia para o latifúndio e os grandes monopólios associados ao capital transnacional. Ah, se eles soubessem que o único patrimônio que jamais nos será subtraído é justamente o conhecimento. Ninguém pode roubar as letras e luzes alheias. Já o dinheiro ‘fácil’ das espetaculares transações esportivas logo, logo desaparece, devorado por ‘empresários’ e ‘investidores’ que hoje atuam no mundo da bola como se os atletas fossem meras mercadorias, ou até mesmo ações da bolsa de valores, em cuja rentabilidade eles apostam suas fichas de sorte ou azar. O pior é que este exemplo de “administração” da carreira de um jovem tão somente reitera o “modelo de gestão” dos clubes de futebol do país, que o diga o recente episódio da “parceria” entre Corinthians e MSI, já esboçada, nos anos 90, pelo casamento entre o Palmeiras e a Parmalat, que, depois de desfeito, nada legou aos palmeirenses, agora envolvidos em novos “acordos” com a Traffic e a Fiat.

existem inúmeros processos judiciais – em vários países – envolvendo Kissinger com a Operação Condor, que integrou os serviços de inteligência das forças armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição. Sempre causou perplexidade entre os analistas o apoio de Kissinger e da diplomacia dos Estados Unidos à essas “intervenções militares” que se caracterizaram por sua extraordinária truculência. Mas não é difícil de entender o que aconteceu, quando se olha para os interesses estratégicos dos Estados Unidos, e sua defesa na América do Sul, da perspectiva de longo prazo, traçada por Nicholas Spkyman, em 1942. Spykman definiu o continente americano, do ponto de vista geopolítico, como primeira e última linha de defesa da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Dentro desse hemisfério, ele considerava improvável que surgisse um desafio direto no México, na América Central e Caribe, na Colômbia e na Venezuela. Mas ele considerava que poderia surgir um desafio dessa natureza na região do ABC. E, nesse caso, ele considerava inevitável o recurso à guerra. A sigla ABC, refere-se a Argentina, Brasil e Chile, mas a região do ABC, inclui também o território do Uruguai e do Paraguai, incluindo exatamente os mesmos cinco países que estiveram envolvidos na Operação Condor. Nesse sentido, pode-se dizer que Kissinger seguiu rigorosamente as recomendações de Spykman. Sua única contribuição pessoal foi a substituição da “guerra externa”, pela “guerra interna” das forças armadas locais contra setores de suas próprias populações nacionais. Mas, mesmo nesse ponto, Kissinger não foi original: re-

correu ao método que havia sido utilizado pelos ingleses, na Índia, durante 200 anos. E em todos os lugares em que a Grã Bretanha dominou Estados fracos, utilizando suas elites divididas e subalternas, para controlar as populações locais. Nas décadas de 1980 e 1990, Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve sua influência pessoal e intelectual dentro do establishment norte-americano e dentro das elites conservadoras sul-americanas. Em 2001, ele publicou um livro sobre o futuro geopolítico e sobre a defesa dos interesses dos Estados Unidos ao redor do mundo. Com relação à América do Sul, o autor atenuou a forma, mas manteve o “espírito” de Spykman: segundo Kissinger, a América do Sul segue sendo essencial para os interesses norte-americanos e deve ser mantida sob a hegemonia dos Estados Unidos. Só que hoje, a ameaça a essa hegemonia, já não vem da Alemanha, nem da União Soviética, vem de dentro do próprio continente. No plano econômico: dos projetos de integração regional que excluam ou se oponham à Alca. E no plano político: dos populismos e nacionalismos que, segundo ele, estão renascendo no continente Por fim, mesmo que não tenha escrito de forma explícita, o entusiasmo demonstrado por Kissinger com as reformas liberais dos anos de 1990 e com os governos de Menem e Fernando Henrique não deixa dúvidas com relação à sua preferência e sua estratégia atual, para a “região do ABC”: depois dos militares, os “poliglotas descalços”. José Luís Fiori é professor de Economia Política Internacional no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Dos bancos escolares, não levam quase nada: mal sabem ler ou escrever, a exemplo dos aqui ficam, presas fáceis de um sistema que engole gente e reproduz mais-valia para o latifúndio e os grandes monopólios associados ao capital transnacional. Enquanto isso, os que não logram sair de Bruzundangas podem contentar-se com o “milagre da multiplicação” que as igrejas neopentecostais (os “neobucaneiros da fé”, como apelidou um cronista paulista) promovem por aqui. Em tempos de desemprego e desenfreada violência urbana, por que não associar, sob a ética do lucro, religião e negócios (sobretudo se esta nova “parceria” é capaz de propiciar a salvação do indivíduo “aqui e agora”, algo bem mais promissor do que as utopias coletivistas da esquerda, que demandam árduos esforços e largo prazo para se concretizar)? As cifras, mais uma vez, atestam a eficiência do “projeto”, que, aliando os signos de ascensão social e felicidade pessoal, logrou construir um império de 23 emissoras de TV, 40 estações de rádio próprias e 36 arrendadas, dois jornais de grande circulação, duas gráficas, uma agência de turismo, uma imobiliária, uma seguradora de saúde e até mesmo uma empresa de táxi aéreo. É óbvio que não faltam conexões da corporação de Edir Macedo com os paraísos fiscais do hemisfério Norte, inclusive o de Jersey, para onde igualmente voaram alguns milhões de dólares do Sr. Paulo Maluf. Eis aí, caro leitor, o Éden desta nossa era, regulada pela ordem volátil e vertiginosa do capital financeiro internacional. Como diria um afamado apresentador, protótipo vitorioso do self-made man nacional, “O Show do Bilhão”. Ou, quem sabe, “O Show da Fé”, na versão cínica e canhestra de um pastor midiático. Para eles, a palavra está apenas a serviço de uma tosca retórica de negociantes da vida eterna. Para nós, é ainda um instrumento do logos, que nos ajuda a refletir, entre parcas letras e vastos algarismos, sobre as alternativas que devemos abraçar para construir ao sul do Equador um outro modelo de sociedade, que valorize os seres humanos pela sua produção profissional, seu compromisso social e sua integridade moral. Virtudes que, por certo, não se mensuram em estatísticas ou porcentagens, mas podem ser traduzidas por palavras que ficam gravadas para sempre na memória de um povo. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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Segundo economista, PAC não foi o principal agente do crescimento Roosewelt Pinheiro/ABr

ECONOMIA Especialistas apontam que Programa de Aceleração do Crescimento pode ter influído no crescimento econômico, mas foi fator secundário Renato Godoy de Toledo da Redação O ANO de 2007 foi de comemorações para o governo no campo da economia. De fato, há anos que os números não soavam tão bem quanto neste. Segundo previsões do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 5,2%, em relação ao PIB de 2006, o que caracteriza o maior crescimento durante o governo Lula. O desemprego ficou abaixo de 10% pela primeira vez desde 2002, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A leitura dos dados trazem otimismo ao brasileiro. No entanto, esse otimismo vai se abrandando conforme se esclarecem os motivos dessa expansão. Economistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam que o crescimento deve-se a uma combinação de fatores. Entre eles, a expansão do crédito, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o barateamento do dólar e, por conseguinte, o aumento das importações e do consumo das famílias. A política econômica, baseada no ajuste fiscal e contingenciamento de gastos, teve continuidade em 2007.

“Redução” do superavit A “menina dos olhos” do governo, o PAC, é visto, majoritariamente, como um elemento secundário nos resultados da economia. A redução da meta do superavit primário em 2007, de 4,25% para 3,8%, também não é considerada importante pelos economistas, pois ela foi cumprida com “êxito” e sobra. Na última parcial divulgada, o superavit estava em torno de 5% do PIB. A meta foi reduzida para realocar recursos no PAC, nos chamados Projetos Pilotos de Investimento (PPIs). O economista José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, tem uma visão positiva dos impactos do PAC na economia, mas ressalta que a continuidade do crescimento pode ser abortada se as taxa de juros determinadas pelo Banco Central continuarem em um patamar alto. “O crescimento é uma combinação de duas coisas. Primeiro, uma situação conjuntural, pois a economia brasileira vem funcionando em mini-ciclos, ou seja, tem algum crescimento, depois cai. O PAC tem um impacto tanto real quanto psicológico, pois ele motivou o empresariado e os investimentos estão se expandindo”, analisa. Apesar de considerar que os PPIs representam uma redução real do superavit, José Carlos lamenta que esse contingenciamento de recursos ainda esteja em níveis altos. “Com menos superavit, nosso crescimento poderia ser bem maior”. Guilherme Delgado, doutor em economia pela Unicamp, louva o crescimento, mas acredita que ele é natural. “O crescimento de 5,2% é algo que veio tarde e não é inusitado. Tanto a economia brasileira, quanto a da América Latina têm apresentado uma performance de crescimento a quase há 8 anos. A economia brasileira passou a ter meta de produtos, mas tem que adotar, também, meta de empregos”, considera. Dólar Rodrigo Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida, avalia que o barateamento do dólar aumentou o consumo das famílias e configurou-se como fator importante para os resulta-

José Alencar, Lula e Dilma Roussef : economistas vêem o PAC como fator secundário

Quanto

5,2%

é a previsão de crescimento do PIB brasileiro em 2007 em relação ao de 2006; comparado a países vizinhos, o país cresceu menos do que a Argentina, com previsão de 7,5%, e do que a Venezuela, com 8% dos da economia. Pela primeira vez, desde 1999, a moeda estadunidense voltou a ser negociada num patamar abaixo de R$ 2,00. “O que mais impulsionou a economia foram as importações. Com o dólar barato, aumentou o consumo das famílias”, afirma. Para Ávila, o crescimento econômico no Brasil nada tem a ver com o direcionamento da política econômica do governo, nem com o PAC. “O crescimento do Brasil está sempre relacionado com a ausência de crises financeiras. Em 2000, por exemplo, não houve crise financeira internacional, e o Brasil cresceu 4%. Portanto, não tem nada a ver com o PAC”, lembra o economista, para quem o programa ainda não saiu do papel. “Os projetos que saíram do papel foram a usina do rio Madeira e a transposição do rio São Francisco, que nós lutamos contra”, completa. Segundo o economista, o crescimento do Brasil pode até ser considerado grande, quando comparado aos resultados anteriores do país, mas ele torna-se medíocre quando colocado lado a lado com os resultados de países similares. Para citar apenas países vizinhos, os 5,2% do Brasil ficam atrás dos 7,5% da Argentina e dos 8% da Venezuela.

Esses dados são apenas as previsões do crescimento, já que os países ainda não fecharam as contas do ano.

CPMF Para Guilherme Delgado, em 2008 o governo enfrentará uma instabilidade no equilíbrio das contas motivada pela ação da oposição, que derrubou a Contribuição Provisória por Movimentação Financeira (CPMF). “Com o fim da CPMF, o governo vai cortar aqui e acolá gastos na folha de pagamento do funcionalismo, reduzir o número de contratações. E o país não cresce com corte de massa salarial. Isso (o fim da CPMF) foi um golpe baixo articulado pelo mesmo agente que criou a CPMF, o FHC”, critica. Delgado considera equivocada a leitura de alguns veículos da imprensa, que afirmaram que o PAC estaria comprometido com o fim da CPMF. “O financiamento do PAC não passa pela parte de investimento de estrutura, não passa pelo orçamento. O grosso do programa é custeado pela máquina pública, por estatais como a Petrobras e o BNDES, e também pelas Parcerias Público-Privada. O PAC tira apenas 1% do orçamento”, explica. Com a aprovação da Desvinculação das Receitas da União (DRU), mecanismo que permite ao governo remanejar 20% das receitas vinculadas, Delgado vê um quadro preocupante para a área social e tranqüilo para os defensores do ajuste fiscal. Para ele, o fim da CPMF representará o corte de salários e de investimentos sociais e a manutenção da DRU vai garantir os recursos para o superavit.

Emprego formal cresce, salário de trabalhador não Para economista, há uma tendência de ampliação do emprego e redução dos salários da Redação Pelo cálculo do IBGE, o nível de desemprego no Brasil, em 2007, saiu dos dois dígitos pela primeira vez desde 2002. No entanto, se a economia cresceu cerca de 5%, o mesmo não pode ser dito com relação ao salário do trabalhador. Segundo dados do próprio IBGE, há uma estagnação do rendimento médio do trabalhador. Em outubro de 2002, o valor era de R$ 1.182. No mesmo mês de 2007, o valor teve um pequeno decréscimo, ficando em R$1.137. Por uma questão de metodologias diferentes, as taxas de desemprego medidas pelo Dieese sempre são maiores que a do instituto governamental. Para o Dieese, novembro foi o 7º mês consecutivo de queda na taxa de desemprego, que chegou a 14%. Ao contrário do IBGE, o Dieese contabiliza como desempregados não só aqueles que procuraram empregos nos últimos 30 dias, mas também os que deixaram de procurar empregos e aqueles em que o desemprego está ocultado pelo trabalho precário. Os dados gerais de 2007 ainda não foram fechados pelo órgão, mas a comparação entre os anos de 2006 e 1998, por exemplo, apontam uma tendência: o crescimento da ocupação e a redução dos salários. “Há uma tendência de substituição

dos empregos de maior qualidade para empregos de baixa qualidade”, avalia o economista Rodrigo Ávila. Ávila apresenta um histórico do emprego formal e desconstrói a euforia do governo em torno dos indicadores. “O desemprego subiu em 2003. O quadro começou a se recuperar lentamente, hoje ele está em cerca de 14%, o que não é nada muito diferente, a grosso modo, ao período FHC. Quase 10 anos, depois caiu só 2%. Então, essa panacéia que o governo está colocando não é bem assim, embora o quadro esteja melhorando”, relata o economista, utilizando dados do Dieese. Tal como sua análise sobre o crescimento do PIB, Rodrigo Ávila acredita que o crescimento do emprego sempre é observado em momentos em que não se tem uma crise financeira externa.

Super exploração A tese da expansão de postos de trabalho de baixa qualidade também é sustentada pelo economista Guilherme Delgado. “ É bem verdade que os empregos têm crescido nos últimos seis, sete anos, mas isso se dá de forma não planejada e com uma precarização do mercado de trabalho. Isso é muito preocupante; tem se criado muitos novos empregos na faixa de até três salários mínimos e as condições de saúde dessa população demonstram que há um processo de super exploração do trabalhador”, conclui. (RGT) Rafael Pieroni/CC

Para economista, crescimento não se repete em 2008 da Redação O economista Reinaldo Gonçalves, professor da UFRJ, aponta alguns perigos na economia brasileira, sobretudo no tocante à expansão do crédito, que é apontado como o principal fator de expansão do consumo. “É muito improvável que esse crescimento se repita em 2008, por uma bateria de incertezas externas e pelo esgotamento do processo de endividamento das classes populares”, prevê Reinaldo, para quem o Brasil vive apenas um “mini-ciclo de otimismo”. Se a economia cresceu, o mérito não foi dos investimentos públicos ou de ações do setor público, segundo Reinaldo. Para ele, o Brasil vivia num período de esgotamento da capacidade das forças produtivas e, em 2007, houve uma reação. “Essa expansão é uma ação mais reativa do que pró-ativa”, acredita. Cético, Reinaldo lembra que, em 2004, o Brasil viveu um pequeno período de otimismo, que durou cerca de seis meses. “A questão, agora, é se esse crescimento é um vôo de galinha de granja, de urubu real ou de águia dourada. Eu acho que é de galinha de granja”. (RGT)

Mais empregos de pior qualidade e salários menores




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brasil João Zinclar

Janelas abertas de um plebiscito pedagógico LEILÃO Consulta que teve quase 4 milhões de votos questionou a venda da Vale justamente no momento de sua expansão imperialista Pedro Carrano de Curitiba (PR) REALIZADO DE 1º a 7 de setembro, o plebiscito popular pela anulação da venda da Companhia Vale do Rio Doce – que alterou seu nome simplesmente para Vale – foi um momento importante da luta de classes em 2007. O plebiscito, fortemente vinculado à conjuntura que vive o movimento popular brasileiro, apontou caminhos e gerou mobilização nesse momento de descenso da luta de massas. Como resultado, obteve-se o número de 3 milhões e 700 mil participações, inferior aos dois plebiscitos anteriores, que consultaram a população, em 2002, sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e sobre o pagamento da dívida pública, em 2000. Porém, o plebiscito parece ter escolhido o assunto certo, isto porque questionou a privatização da Vale justamente em tempos de expansão da empresa imperialista – que já é a segunda maior mineradora do mundo (veja quadro ao lado). Em 2007, a Vale realizou uma série de aquisições de outras mineradoras e abriu negócios no Brasil e no mundo. Desta forma, a reação da direção da empresa não podia ser diferente: mobilizou a bancada parlamentar e os principais veículos de comunicação do país em uma campanha para desqualificar o plebiscito, ou atribuí-lo a forças políticas institucionais, quando na verdade o caráter do plebiscito foi dado pelos movimentos populares. No final do ano, a empresa ainda mudou de nome e de logotipo, passando a chamar-se apenas “Vale”. O plebiscito ainda trabalhou com outros três ei-

xos temáticos: o pagamento da dívida pública pelo governo em lugar do investimento em setores essenciais, o tema da energia, produzida para alimentar o modelo primário-exportador, e o tema da reforma da previdência, com a retirada de direitos dos trabalhadores. Na avaliação de Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, o número inferior de votos não significa uma derrota do movimento popular. Gebrim ressalta a importância da campanha em uma conjuntura de recuo das lutas populares e defende que o mecanismo dos plebiscitos se configura como uma ferramenta de mobilização eficaz. “Constituem a mais importante ação pedagógica que as forças populares construíram conjuntamente nestes difíceis anos de refluxo. Enquanto forma de luta, possibilitaram o envolvimento de milhares de militantes em todo o país, desenvolvendo experiências concretas de democracia direta e construção de poder popular. Sua grande característica é que se convertem numa oportunidade para que todas as forças envolvidas canalizem suas energias para uma atividade pedagógica de massas, estimulando milhares de palestras, debates, publicações de jornais, cartilhas e vídeos”, descreve. O plebiscito popular e a campanha A Vale é Nossa foram construídos por mais de 60 organizações, partidos e entidades, ao lado de sindicatos. Mais que isso, contou com a militância de 100 mil voluntários no Brasil todo. Apesar das dificuldades, conseguiu reunir as principais forças da esquerda, dando seqüência à unidade do dia 23 de maio – dia de luta contra a retirada de direitos dos trabalhadores. Em uma conjuntura na qual o ciclo da

esquerda – em torno da figura de Lula – está esgotado, e as organizações procuram se rearticular, com diferenças de tática e programa, o que causa uma inevitável fragmentação, o plebiscito cumpriu um papel de aglutiná-las em torno de uma pauta mínima. “Neste novo cenário, existe uma intensa divergência tática entre as forças que buscam legitimar a construção de seus instrumentos políticos. Assegurar a construção de lutas unitárias em torno de objetivos programáticos assume um papel decisivo”, afirma Gebrim.

Diálogo Na opinião de Edson Carneiro, o Índio, da coordenação da Intersindical, o plebiscito levou até a população temas que não estão no cotidiano. Aparte a questão da Vale, elencou a reforma da previdência, da energia elétrica e a dívida pública. Índio comenta que a reação da companhia na forma de publicidade (leia texto nesta página) foi um sinal da importância do plebiscito. Na sua percepção, o povo traz uma experiência concreta de sofrer a exploração do modelo neoliberal, o que se refletiu no interesse pelo plebiscito. Gebrim, por sua vez, aponta a retomada do diálogo e do trabalho de agitação e propaganda nas ruas, dentro do espaço de cada comitê local e estadual. Nesse sentido, o tema da Vale reverberou. “Sua preparação permitiu um amplo trabalho de diálogo com o povo e a retomada do trabalho de agitação e propaganda em torno dos temas centrais do atual momento político: economia; papel do Estado; o modelo neoliberal e suas privatizações; a memória desse roubo histórico que foi a venda da Vale”, analisa.

Quase 4 milhões de brasileiros participaram do plebiscito

Cronologia de expansão da Vale Outubro de 2006. Aquisição da transnacional canadense Inco, produtora de níquel, faz da Vale a segunda maior mineradora do mundo. Março de 2007. Aquisição da AMCI, empresa australiana produtora de carvão mineral. No mesmo ano, comprou também uma mineradora de carvão mineral em Moçambique (África). Maio de 2007. Anuncia projeto para a construção de três termelétricas que utilizariam a matriz do carvão mineral, sobretudo para a demanda de produtoras de alumínio, como a Alunorte (controlada pela Vale). Produção de energia segue a expansão das atividades econômicas da Vale. Julho de 2007. Acordo com mineradora australiana Dioro Exploration lavra a exploração de urânio naquele país. A Vale investirá US$ 3,4 milhões em exploração nos próximos quatro anos, para obter 60% dos direitos sobre o urânio.

Agosto de 2007. Recebe R$ 744,6 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para ampliar a capacidade de transporte da Estrada de Ferro Carajás (EFC), uma das três principais malhas viárias da companhia. Outubro de 2007. A Companhia Vale do Rio Doce declara o interesse em adquirir jazidas e promover a exploração de urânio. É uma das concorrentes a extrair urânio da jazida de Santa Quitéria (CE). O monopólio de extração é da União, porém o Instituto Nacional de Mineração (INM) deve fazer parceria devido ao fato de que a jazida demanda a exploração de urânio junto ao fosfato – o que também desperta interesse da transnacional de agroquímicos Cargill. Outubro de 2007. Tramita na Câmara Projeto de Emenda Constitucional (PEC), proposto por Rogério Lisboa (DEM-RJ) para quebrar o monopólio estatal da exploração de urânio.

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Para Índio, da Intersindical, controladores da Vale fomentam o Fundos Previ, controlados pelo governo, servem para investir em projetos do capital de Curitiba (PR) O controlador das ações ordinárias da Vale – aquelas com direito a voto sobre o rumo da empresa – está nas mãos do consórcio Valepar, que possui 52,3% das ações. Integram o consórcio além da Valepar, a Bradespar (criada pelo banco Bradesco), a corporação nipônica Mitsui e os fundos de pensão Previ, fundos que gerenciam as contribuições de aposentadoria dos funcionários do Banco do Brasil. Este último é o maior detentor de ações, dentro do consórcio Valepar. Em certo momento, o argumento da mídia, dos partidos de direita e dos antigos membros da esquerda (arrependidos de um dia ter questionado a privatização da Vale) foi o de que a companhia já está em mãos do governo, que é o controlador do Previ. Na opinião de Índio, é certo que o governo federal controla os fundos de pensão, porém trata-se de uma falácia a defesa de que, dessa forma, o povo brasileiro controla as

políticas da companhia Vale. “Os fundos de pensão servem para viabilizar os grandes negócios do capital, foi por meio deles que se permitiu que a Telebrás fosse privatizada”, denuncia. Ao que complementa: “A Previ teria fundos suficientes para pagar os funcionários do Banco do Brasil. Mas quando a Previ comprou a Vale não estava preocupada em garantir a aposentadoria dos seus funcionários, mas em garantir negócios para o grande capital”, denuncia.

As investidas da Vale Na mesma época quando urnas eram instaladas em 3.157 municípios, perguntando à população se a Vale deveria continuar em mãos de investidores estrangeiros, em horário nobre na Rede Globo a voz da atriz Fernanda Montenegro anunciava o fantasioso vínculo da Vale com o meio ambiente e com o Brasil. Este era justamente o calcanhar-de-aquiles que a campanha criticava, ao denunciar a Vale como uma corporação voltada apenas para a exportação de produtos minerais, sem vinculo com a região e os trabalhadores onde tem atividades. Outro detalhe para se anotar é o fato de a publicidade da Vale ter aspectos que fazem lembrar até mesmo a publicidade de uma estatal, talvez para criar entre o público o falso conforto de que se trata ainda de uma empresa que serve aos interes-

ses da população. Silvio Mieli, professor de Comunicação da PUC-SP, acredita que a publicidade da Vale tem um caráter preventivo. Ao analisar a mídia ao longo do plebiscito, sobretudo nas suas semanas decisivas, observa que houve um ataque em uníssono à iniciativa das organizações sociais. “A mídia adotou o discurso da desqualificação do plebiscito em todos os meios de comunicação do país, todos bateram na idéia de que o plebiscito fosse ‘anacrônico’ e absurdo, como se anular o leilão fosse algo impossível de ocorrer”, comenta. Mieli acredita que esta batalha para conquistar a opinião pública é uma questão de primeira ordem para os movimentos sociais. “O terreno da representação é o campo de batalha, é o front, não é mais algo secundário, devido à importância desse campo de luta”, analisa. Por isso, a esquerda precisa criar idéias e imagens para atingir de modo direto a consciência das pessoas. Mieli defende que o modelo do plebiscito popular foi uma forma simples e eficaz de atingir as pessoas. “Enquanto a Vale diz que é ‘coisa nossa’, o plebiscito diz que não é e fala da necessidade de ela ser retomada, pois foi usurpada, fala da necessidade de retomar o usurpado. Enquanto a Vale cria idéia do que é nosso, o plebiscito questiona: é nosso por que dá lucro?”, questiona. (PC)

Movimentos buscam retomar campanha no próximo ano

Para 2008, um plebiscito oficial de iniciativa popular Entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) querem organizar um referendo oficial de Curitiba (PR) De acordo com Júlio Turra, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a avaliação da organização é de que a central sindical mobilizou um contingente de votos entre a sua base, de cerca de 900 mil participações, em torno da primeira pergunta do plebiscito. O objetivo para o ano que vem é o de organizar, junto às bases, uma campanha de massas para a realização de um plebiscito oficial de iniciativa popular, a fim de que o debate sobre a nulidade da privatização da Companhia Vale do Rio Doce se torne um referendo deliberativo. Para que o referendo se torne um projeto de lei, seriam necessárias cerca de 1 milhão de assinaturas. A proposta é que o trabalho se inicie em 2008, a partir da assessoria jurídica do advogado Fábio Konder Comparato. Essa iniciativa se soma à proposta fei-

ta pelo deputado Ivan Valente (Psol-SP), que propôs na Câmara, em outubro, um projeto de decreto legislativo para realizar um referendo em todo o país. Neste momento, circula também o abaixo-assinado encaminhado pela autora de ação popular Clair da Flora Martins (Psol-PR), para que as ações populares não sejam extinguidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Atualmente, o STJ está julgando a reclamação encaminhada pelos advogados da Vale. Através dela, a companhia quer que todas as ações populares que questionam a privatização sejam julgadas improcedentes. A correlação de forças no Judiciário não é favorável às ações populares, afinal, até então, 4 ministros do STJ votaram a favor do pedido da Vale (são eles: Luiz Fux, José Delgado, João Otávio de Noronha e Humberto Martins), ao passo que apenas dois votaram contra e pelo prosseguimento das ações populares (Teori Zavascki e Denise Arruda). (PC)


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brasil

Lutas e fronteiras da universidade EDUCAÇÃO No primeiro semestre, a ocupação da reitoria da USP durou 51 dias; no segundo, 14 reitorias foram ocupadas Pedro Carrano de Curitiba (PR) EM MAIO de 2007, a ocupação da USP foi vista como um novo fôlego para o movimento estudantil (ME). No segundo semestre, em diversos Estados do Brasil, aconteceram mobilizações por uma educação pública e de qualidade. Entre outubro e novembro, os estudantes ocuparam 14 reitorias de universidades federais, manifestando-se contra o Reuni (leia texto nesta página). O cenário de lutas aponta para novos atores construindo o movimento estudantil, porém sinaliza também que uma ascensão do movimento vem seguida de repressão e falta de democracia no interior das universidades. No caso da USP, a história da ocupação começou com os decretos do governador José Serra (PSDB), que previam novas regras para as instituições de ensino superior estaduais. Serra queria criar uma Secretaria de Ensino Superior, espaço que deliberaria sobre diversos aspectos da vida acadêmica, como, por exemplo, a contratação de professores. Para os estudantes, os decretos de Serra feriam a autonomia universitária, e também separavam ensino, pesquisa e extensão – além de conter a ameaça de privatização do ensino. Os estudantes da USP pediram então audiência com a reitora Suely Vilela, que, no dia 3 de maio, não compareceu e sequer enviou um representante. “A única forma de diálogo com a reitoria foi a ocupação”, comenta o estudante de Geografia, João Vitor. Apesar das ameaças de reintegração de posse por parte da reitoria pairando sobre a ocupação, e dos ataques da mídia comercial, os estudantes resistiram ao longo de 51 dias, deixando a ocupação no dia 22 de junho. Serra foi obrigado a recuar, revogando os decretos. Das pautas do movimento que tiveram êxito, João Vitor cita a conquista da moradia estudantil, refeição e transporte aos finais de semana. Outra pauta importante na luta dos estudantes da USP foi agregar professores e funcionários para discutir reformas do estatuto da universidade, aprovando a partir disso uma Estatuinte. O sociólogo Emir Sader escreveu sobre o saldo da ocupação da USP: “Grande parte das reivindicações internas à USP foram conseguidas: foi freado o projeto do governador

de São Paulo para violar mais ainda a autonomia universitária, foi impedida a intervenção militar preparada pelo governo tucano no campus da universidade, foi chamada a atenção sobre a situação da USP e ficou claro que há força, entre estudantes, professores e funcionários, para defender os interesses da universidade. O que não é pouco em tempos de grande desmobilização”.

Nova linguagem Uma das referências do movimento na USP para o movimento estudantil no geral foi a ênfase na parte cultural, carregada de conteúdo político. João Vitor recorda que, durante a ocupação, os estudantes realizavam atividades culturais paralelas às oficiais que aconteciam na cidade. “Atividades culturais para encarar a ocupação como um espaço lúdico e com função política”, afirma. Outro aspecto importante para realizar uma crítica ao atual cenário do movimento estudantil, e das próprias forças de esquerda no geral, foi a questão da presença de estudantes que, até o momento, não estavam organizados e trouxeram um frescor à luta e à linguagem do ME. Luiz Allan Künzle, vice-presidente da Regional Sul do Andes-Sindicato, que acompanhou a ocupação na Federal do Paraná e participou de conferências com estudantes noutros Estados, aponta a entrada de novos atores na luta do movimento estudantil. Ele aponta que, nesses debates, compareceram os estudantes de cursos como Física e Química, geralmente pouco mobilizados. “Os partidos chegam com uma fórmula pronta, e essa garotada entra com contatos novos com as bases – estes novos atores são importantes”, comenta. Ao mesmo tempo, Künzle opina que setores do movimento estudantil estão deixando de construir somente pautas corporativas e passam a atuar ao lado do movimento popular. Como exemplo, cita temas como a transposição do Rio São Francisco e o leilão das hidrelétricas ao norte do país, nas quais o movimento estudantil tem se engajado. Künzle aponta a criação da Frente Contra a Reforma Universitária como um marco de 2007, na qual diferentes forças de esquerda se uniram contra as reformas propostas pelo governo Lula. Aponta a importância dos setores do movimento estudantil, que

Repressão generalizada Um dado comum nas ocupações das reitorias, no segundo semestre de 2007, foi a denúncia de verticalidade e falta de democracia nas decisões da Universidade. Os espaços dos Conselhos Universitários aprovaram o Reuni à revelia dos estudantes. “Os conselhos têm um mecanismo viciado e pouco democrático. Existe um verniz de democracia, mas não se tratam de espaços democráticos. No caso da Federal do Paraná, os estudantes adotaram uma tática inteligente: não pediam a revogação do Reuni, pediam simplesmente um plebiscito para ouvir a comunidade universitária como um todo – e ainda assim não foi aceito”, lamenta Künzle. Com o objetivo de desmobilizar uma luta que começa a ganhar corpo, os exemplos de repressão por parte de governo e reitorias locais se repetiram, o que mudou foi o grau de intensidade. Na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 18 estudantes foram processados ao ocupar a reitoria. “Processar 18 estudantes provocou um certo receio. Foram intimados em casa por 4 policiais federais armados. É para não mobilizar mesmo”, comenta Moura, estudante de Ciências Sociais da UFES. Em Goiás (UFG), também houve repressão. Após duas tentativas de aprovação do Reuni, os estudantes ocuparam a reitoria. mas o ato teve seu fim após a intervenção da polícia. A reunião do Conselho Universitário da Universidade Federal de Goiás foi transferida para o pouco apropriado prédio da Justiça Federal, junto à sede da Polícia Federal, como informa o jornal A Nova Democracia.

Por uma educação pública Durante uma semana, 100 mil pessoas participaram de ocupações de instituições nas capitais brasileiras; de Curitiba (PR) A Jornada de Lutas em Defesa da Educação Pública (20 a 24 de agosto), organizada por diferentes matizes do movimento estudantil, como UNE e Conlute, definiu-se como um momento de unidade dos estudantes, em parceria com o movimento popular, a partir de uma pauta mínima e da exigência por um ensino amplo e gratuito. A Jornada mobilizou cerca de 100 mil pessoas. Durante a semana, foram organizados debates, passeatas, atos públicos e ocupações de instituições nas capitais brasileiras. Uma das ações ousadas foi a ocupação da sede da Companhia Vale do Rio Doce (hoje chamada apenas Vale), em Belo Horizonte (MG), desencadeando uma violenta repressão da Polícia Militar. Por solicitação da própria Vale junto ao governo de Minas, 136 estudantes foram detidos. A repressão não se limitou ao Estado de Minas. Em São Paulo, foi realizada, na noite entre o dia 21 e 22 de agosto, a ocupação simbólica da Fa-

culdade de Direito da USP. No relato de Renam, estudante de Direito da Universidade, a ocupação era “pacífica, uma intervenção pontual, feita no pátio da faculdade”. Construída ao lado dos movimentos populares, fazia parte da Jornada e aproveitava o reascenso das lutas, iniciado na ocupação da USP. O primeiro entre os 18 pontos da pauta de reivindicações era a duplicação do investimento do Produto Interno Bruto (PIB) na Educação, dos atuais 3,5% para 7%. Ao contrário do que aconteceu na USP, no caso da Faculdade São Francisco, a repressão esteve baseada no discurso de que não eram os estudantes quem realizavam o protesto, mas os movimentos sociais, o que justificou a repressão por parte da direção da faculdade, como analisa Renam. “O diretor da universidade assumiu a intervenção e não exitou em colocar para fora da universidade os movimentos sociais. Ele justificou que as outras ocupações eram de estudantes, e que não tem sentido a ocupação dos movimentos sociais – como se não fos-

Fernando Henrique/CC

fizeram oposição a União Nacional dos Estudantes (UNE) e aos próprios DCES das universidades, que em diversos momentos se mostravam com posições refratárias às ocupações das reitorias. “A Frente e a ocupação da USP para mim foram marcos deste ano e vejo o pessoal começando a sair das amarras. Trata-se de um público não comprometido com a eleição do Lula, pois parte do movimento social ainda está anestesiado entre referendar ou não o governo. É um pessoal que, na primeira eleição do Lula, tinha 15 ou 16 anos, vinculado a um novo ciclo, uma nova aurora que está se mostrando”, aponta.

se possível reivindicar a educação pública estando fora da universidade”, critica Renam. O estudante avalia que a Jornada de Lutas pela Educação foi positiva. “Deu um sentido de luta para a esquerda, que estava órfã do PT, sem saber se dialogava ou se ia para as ruas. Elaborou-se uma plataforma crítica mínima, no sentido de preservar conquistas históricas. Foi possível construir – sem ignorar as discordâncias – e melhorar esta questão da unidade”, ressalta. Renam concorda que a ocupação da USP foi uma referência na inserção de estudantes que antes não estavam mobilizados – o que pode ter renovado a linguagem e a prática do movimento estudantil. Porém, não acredita no desprezo às formas de organização. “Não é de ontem que o movimento estudantil se organiza. Desde a década de 1960, o ME se aliou com as lutas do povo. Hoje, muitos setores se juntaram, o que traz uma dinâmica, mas também esses setores perceberam a dureza do processo de construção do movimento”, comenta. (PC)

Estudantes deixaram a reitoria da USP em 22 de junho, após 51 dias de ocupação

Reitorias ocupadas contra o Reuni De outubro a novembro de 2007, de 200 a 300 jovens decidiram ocupar as reitorias das universidades, em diferentes momentos de Curitiba (PR) O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – conhecido como Reuni – desencadeou uma luta em série contra a medida provisória criada pelo governo Lula. Em síntese, o Reuni é um programa polêmico porque prevê o aumento de 20% nas verbas do governo para as universidades federais que aderirem e ampliarem o número de vagas e aprovações. Professores e alunos denunciam que o aumento não vem seguido de investimento em infra-estrutura, tampouco em melhores condições para os professores, com uma conseqüente queda na qualidade do ensino. A história foi praticamente a mesma em tantos Estados do país: para pedir voz na decisão sobre o Reuni, de 200 a 300 jovens decidiram ocupar as reitorias das universidades, em diferentes momentos. Esbarraram, porém, na verticalidade nas decisões do conselho universitário, na repressão e falta de diálogo no espaço da universidade. Ao todo, 14 reitorias foram ocupadas em vários Estados. À revelia do grito dos estudantes, o Reu-

ni foi aprovado pela maioria dos reitores e dos conselhos universitários. Houve exceções. Na UFRRJ e na UFSC, a aplicação do Reuni foi barrada até o segundo semestre de 2008. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), os estudantes suspenderam a abertura de novos cursos pagos na universidade. No geral, mesmo não tendo cumprido a pauta de reivindicações, devido à atitude anti-democrática da cúpula das universidades, o saldo das ocupações teve o ganho por mobilizar os estudantes e permitir a vitória de DCEs à esquerda em várias universidades. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde o Reuni foi aprovado resguardado pela Polícia Federal, que impedia a maioria dos estudantes de entrar no local de reunião do conselho universitário, os estudantes publicaram o seguinte texto, ao encerrar a ocupação: “(...) Acreditamos que tivemos muitas conquistas com a ocupação, tais como: mostrar que o movimento estudantil não está morto e que não é composto de apenas 30 pessoas (como o Reitor dizia); colocar a pauta do “Reuni” nas discussões de toda a comunidade da UFPR (antes da ocupação muita gente nunca nem tinha ouvido falar sobre “Reuni”. (PC)

O que é o Reuni?

que continua a receber o mesmo salário e trabalha mais”.

O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo Decreto nº 6096 (abril de 2007), é uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC). Para receber os recursos do ministério, as universidades devem cumprir duas metas básicas: atingir a média de 18 alunos por professor e diplomar 90% dos alunos ingressos. Para isso, as universidades devem aumentar o número de alunos. De acordo com a Frente Contra a Reforma Universitária: “Na prática, aumenta-se o número de estudantes sem aumentar o número de professores, o que resulta em salas mais cheias; maior exploração do professor,

90% é o índice de aprovação a ser atingido pelas universidades. Na Federal do Paraná, por exemplo, este índice hoje está em 55%. 70 e 300% é o aumento exigido de alunos na Universidade (segundo o Andes-Sindicato) 18 matriculados por professor é o novo índice que as universidades devem atingir. O índice anterior é de 10 alunos matriculados por professor. O movimento estudantil aponta que os professores serão sobrecarregados. Desse modo, a qualidade da pesquisa e extensão ficam comprometidas.


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nacional SETEMEES

Estivadores realizam o embarque de granito em porão de navio no porto de Vitória

Estivadores capixabas se organizam frente à atual conjuntura neoliberal PORTUÁRIOS Para sindicalista, desafio do Setemees é formar quadros que potencializem “disputa de projetos” no setor

A FUNÇÃO do estivador é organizar as cargas dentro do navio. “Se fizer errado, na ‘primeira esquina’ que dobrar ele afunda”, explica Roselito Ribeiro, com seriedade, destacando a importância desse profissional. Ribeiro é dirigente do Sindicato dos Estivadores e dos Trabalhadores em Estiva de Minérios do Estado do Espírito Santo (Setemees). Além dos estivadores, compõem o espectro portuário os conferencistas, os vigias portuários, os arrumadores que trabalham em “terra firme”, os consertadores de cargas e os que trabalham na administração, que no Espírito Santo, ganha o nome de Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Odaldo Campos, 44, é estivador no Porto de Vitória. Como trabalhador avulso, afirma que, junto a sua categoria, obteve importantes conquistas, tendo em vista a dificuldade de “se manter como um trabalhador sob a Lei 8.630, testemunhando o empresariado atropelar muitos direitos”.

No governo de Itamar Franco, a Lei dos Portos foi sancionada e introduziu a privatização da exploração dos portos e da prestação de serviços portuários por meio de concessões Trabalhadores avulsos como Odaldo têm quase os mesmos direitos que os registrados, porém, quando não há trabalho, não recebem seu soldo. As categorias que trabalham no porto e que têm essa “liberdade”, os avulsos, exercem uma profissão precarizada. Os salários são menores do que os de seus companheiros registrados. Segundo o estivador, a relação entre o patrão e o trabalhador ainda está complicada. Mas admite o avanço de os trabalhadores poderem conversar abertamente com os empresários e entre si. O maior déficit para Odaldo ainda consiste no fator segurança no trabalho, principalmente nos cais onde faltam equipamentos. “Onde há a gestão do setor privado, os equipamentos são melhores”, pondera.

“Sindicato é para negociar” A despeito de benefícios gerados, como a existência de melhores equipamentos, a privatização e a modernização avançaram de maneira conflituosa, principalmente nas relações capital-trabalho, na medida em que a Lei nº 8.630/ 93 pretendeu não só dar as condições para maior competitividade aos portos nacionais e maior es-

“Não se pode um Estado como o Espírito Santo ser dominado pela Vale. Se eu possuo cargas para serem exportadas e sou ‘dono’ do porto, vou exportar a carga de terceiros de outro jeito”, diz Roselito Ribeiro, dirigente do Setemees paço ao investimento privado, mas também, para muitos, diminuir o poder histórico dos sindicatos existentes na orla marítima. No governo de Itamar Franco, a Lei dos Portos foi sancionada e introduziu a privatização da exploração dos portos e da prestação de serviços portuários por meio de concessões. Quanto às relações capital-trabalho, as principais modificações dizem respeito à transferência da gestão de mão-de-obra do trabalho portuário dos sindicatos dos trabalhadores para órgãos gestores de mão-de-obra, e a transferência da prerrogativa de registro e identificação do trabalhador portuário, da União, para uma entidade privada, no caso, o Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO). “O sindicato era híbrido, meio patrão meio sindicato, isso não dá certo”, afirma Ribeiro. Ele lembra que a organização compunha uma estrutura de gestão trabalhista, intermediando a relação patrão-empregado. “Essas prerrogativas, meramente administrativas, foram retiradas da nossa responsabilidade. Nossa tarefa número um é negociar”, diz o dirigente. Ribeiro, no entanto, chama a atenção para o fato de que as coisas não vem ocorrendo como previam os elaboradores da lei. “Não se pode um Estado como o Espírito Santo ser dominado pela Vale. Se eu possuo cargas para serem exportadas e sou ‘dono’ do porto, vou exportar a carga de terceiros de outro jeito”. E cita o exemplo do governo chinês, que, segundo ele, está comprando portos “em todo o canto do mundo”. “Há uma crise no México, pois empresas chinesas com-

ses juízes. O juiz é neutro? O empresário e ele estudaram juntos”, completa o dirigente. Diante desses entraves, Ribeiro aponta para a necessidade de tanto o dirigente sindical, como o trabalhador da base unirem a prática ao estudo. “Temos que disputar projetos com os empresários. Por que só o governo tem que propor? Temos

pram portos de várias regiões do país. Quando a carga vai para a China, eles cobram um valor, quando é destinanada a outro país, o valor é alterado”, relata Ribeiro, que admite ser possível conviver com os dois modelos (público e privado), “desde que o pequeno empresário também possa exportar”.

Compreender o processo “O que ocorreu de positivo quando começou a vigorar a Lei nº 8.630 foi a compreensão do processo e a busca por alternativas, sem perder o princípio de defender os interesses dos trabalhadores”, salienta o dirigente. No Setemees, todos os cerca de mil estivadores são sindicalizados. Ribeiro faz algumas críticas. Segundo ele, alguns dirigentes portuários do Brasil ainda pensam de forma corporativista, e acreditam que esse processo de mudança econômica é meramente portuária e nacional. “Existe uma reestruturação produtiva mundial, na qual quem dita as regras não são os Estados nacionais, e sim a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), ou seja, os países centrais”, defende.

Um dos sindicatos mais antigos do país busca a retomada da luta da Redação

Contexto brasileiro O dirigente aponta para a situação problemática da Justiça no Brasil, principalmente em relação aos trabalhadores. “Na questão portuária, o que os empresários não conseguem na lei, conseguem na Justiça. Os juízes têm acatado absurdos. De quais classes vêm es-

Grupo de estudo organizado pelo sindicato

que estudar e ter as nossas propostas e disputá-las junto à sociedade”, defende o dirigente. Isso é amplamente cabível, pois a lei contempla a criação do Conselho de Autoridade Portuária (CAP), que delega à comunidade local tanto a supervisão da atuação administrativa quanto o planejamento sobre o desenvolvimento do porto.

Estivadores completam 90 anos de resistência

SETEMEES

Eduardo Sales de Lima da Redação

Veio a necessidade de se organizar e ajudar um ao outro. Surgiram, assim, as primeiras “caixas de auxílio mútuo”, entre o fim do século 19 e início do 20, criadas pelos estivadores. Em 20 de julho de 1918, seria fundada a União dos Estivadores de Vitória, já estruturada a moldes semelhantes aos atuais. Como em outros portos brasileiros, o porto de Vitória era composto, no final do século 19, por trabalhadores avulsos, principalmente ex-escravos. Quem trabalhava no porto era considerado “escória” da sociedade local. “Nem o capixaba pobre queria fazer o serviço, por sinal, da pior espécie”, conta o dirigente Roselito Ribeiro. No início do século passado, com a chegada dos imigrantes europeus sem mão-de-obra qualificada, principalmente italianos e espanhóis, boa parte dos estivadores do Brasil passa a ser influenciada por idéias anarquistas. “Nossa bandeira, como de outros sindicatos do setor no país, possui as cores vermelha e negra (do anarquismo). Quando morre um estivador, geralmente colocamos a bandeira em seu túmulo”, explica o trabalhador portuário.

Reconhecimento Em 1934, houve o reconhecimento da categoria profissional de empregados pelo Ministério do Trabalho. Com isso, a organização passou a se chamar Sindicato dos Operários Estivadores de Vitória. No final da década de 1950, com o predomínio da visão do Partido Comunista Brasileiro (PCB), sindicatos rurais do Espírito Santo são organizados a partir do porto. Os estivadores e outras categorias pagavam aos dirigentes para organizar os trabalhadores rurais no interior do Estado.

No golpe de 1964, ocorre a intervenção militar no sindicato. A maioria de nossas lideranças foi exilada, morta. O sindicato sofreu intervenção, e isso gerou um atraso político violento, fazendo até com que dirigentes daquela época adquirissem um discurso contra a esquerda, acreditando estarem no rumo certo ao apoiarem a ditadura. Ribeiro acompanha o Setemees há 26 anos. Salienta que, mesmo no período de redemocratização do país, houve um declínio no engajamento político das lideranças trabalhistas portuárias, inclusive dentro do Setemees. Reflexo da ferrenha intervenção militar. O Setemees não é filiado a nenhuma central sindical, mas integra uma federação de sete categorias portuárias do Espírito Santo, essa filiada à Força Sindical.

Ventos Neoliberais O governo de Getúlio Vargas montou uma série de garantias para esses trabalhadores a partir 1934, que duraram até a Lei nº 8.630/93, com o governo de Itamar Franco. “Vargas reorganizou a estrtura trabalhista, mas também cooptou nossos sindicatos”, pondera Ribeiro. Mas os maiores obstáculos enfrentados pelos portuários no momento emergiram do fatídico período CollorItamar. O governo “impedido” de Fernando Collor, surfando na onda neroliberal, com a missão de “caçar marajás”, tentou reduzir ao máximo os direitos dos trabalhadores portuários. No entanto, somente com Itamar Franco que a polêmica Lei dos Portos saiu do papel e foi sancionada. Até hoje, sua adequação se apresenta como um dos principais desafios organizativos dos trabalhadores dos sindicatos e das próprias sociedades portuárias. (ESL)


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áfrica Fotos: Yuri Martins Fontes

Crianças em sala de aula no interior do país, que apresenta um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano

Uma rica nação chamada Etiópia TERRA DAS CARAS QUEIMADAS Invadida pelos italianos, o país, hoje capitalista, já viveu sob regime socialista entre 1976 e 1991 Dando continuidade à edição anterior, o Brasil de Fato publica texto e fotos do viajante Yuri Martins Fontes, agora, sobre a sua passagem pela Etiópia. No total, Yuri percorreu 42 países em duas etapas, ambas por meio de transportes públicos locais, por via terrestre e fluvial. A primeira, no período de 2001 a 2002, da Bolívia ao México. E a segunda, terminada há alguns meses, com duração de pouco mais de um ano, de Portugal à Índia, cruzando o sul europeu, o norte africano e o Oriente Médio. Para colocar no papel suas experiências, Yuri contou com a colaboração de Waldo Lao Fuentes, editor do jornal A Palavra Latina. Yuri Martins Fontes APÓS MAIS de 2 meses de viagens por países muçulmanos, desde o Oriente Médio, passando pelo norte da África, a iminência da fronteira etíope me dá forças para enfrentar as últimas horas apertadas dentro da perua microônibus que me conduz ao fim do verão sudanês. Conforme a estrada inicia sua subida, a paisagem desértica do Saara dá lugar a uma espécie de cerrado, e não tardará a se mostrar verdejante conforme adentramos o território montanhoso etíope. Surpreende-me a quantidade de riachos e rios. Como um país tão rico e verde pode ser tão pobre? Mas, de fato, é na Etiópia que nasce o Nilo Azul, um dos dois principais afluentes do grande Nilo. Tenho sede e me lembro com satisfação de que, neste país cristão ortodoxo, tomar uma cerveja gelada não é nenhum crime. O povoado da fronteira, Metema, é um conjunto de casebres que se estende ao longo da pista de terra. Certamente é mais extenso do lado etíope. E muitíssimo mais povoado – como é inclusive todo o país, cuja população triplicou em duas décadas. A infra-estrutura, ao contrário, devido às guerras, não acompanhou esse crescimento. Atravesso a pé a ponte sobre o rio, e deixo pra trás o território sudanês. Do lado direito da estrada, o mais alto, ficam as repartições públicas pelas quais sempre um viajante deve passar, esperar, pedir, requerer, agradecer

muito e esperar de novo. Do lado esquerdo, mais abaixo, está o povo, a circular por entre uma infinidade de barracos de madeira com tetos de zinco. São pequenos e escuros estabelecimentos comerciais, botecos, vendas, câmbios duvidosos, cabeleireiros. Uma multidão de meninos magros e enrolados em panos rotos se amontoa à minha volta. Sigo em frente resoluto, em busca do último ônibus rumo a Gonder, a primeira grande cidade ao norte, e rota única para a capital Adis Abeba. São somente mil quilômetros, mas as estradas precárias não permitirão que o trajeto seja feito em menos de 3 dias. Antiga Abissínia, a Etiópia – ou a Terra das Caras Queimadas – faz parte da região chamada de “Chifre da África”, ao lado da Somália, Eritréia e Djibuti. Embora reconhecida como uma das mais antigas civilizações do mundo, a nação tem um dos piores índices de desenvolvimento humano – medida baseada na alfabetização, educação, saúde, riqueza, natalidade e esperança de vida. O cenário etíope é de contrastes. Extensas florestas e cursos d´água abundantes não são suficientes para evitar a fome. Secas decorrentes da mudança climática planetária têm sido freqüentemente a causa de perdas de safras inteiras. O país não tem uma estrutura mínima para suportar qualquer vicissitude. Sua história de múltiplas guerras – tanto com os vizinhos So-

mália e Eritréia, quanto diante das pretensões colonialistas italianas – é uma contínua ameaça ao seu presente. O alto índice de deficientes físicos vítimas da guerra é a lembrança viva dos contínuos atos de violência. Quase não existe uma classe média.

Ambição italiana

No século 19, sob a monarquia absoluta do imperador Menelik I, a Etiópia resistiu a diversas investidas dos colonizadores europeus. Quase na virada do século 20, a ambição italiana por um “pedaço da África” arrasou o interior do país. O golpe, entretanto, não duraria muito, e as guerrilhas montanhesas etíopes expulsariam os invasores na histórica Batalha de Adwa, em 1896. A vitória seria um exemplo ao mundo de como um país rural conseguia não se render ante as ambições de um continente bélico e autoritário. Contudo, a Itália – nova nação européia que há pouco havia sido unificada –, meio século depois, daria novo bote. Foi em 1936, sob o governo fascista de Benito Mussolini. Desta vez, os europeus atingiriam Adis Abeba e lá ficariam por 5 anos. Somente em 1941, a resistência etíope, apoiada pelos ingleses, expulsaria novamente os invasores. Entretanto, o Exército dos “novos amigos” anglo-saxões ocuparia ainda o país até 1952.

Regime socialista

Em 1976, o coronel e revolucionário Mengistu Hai-

le Mariam toma de assalto o poder – o que marcaria uma etapa de progressos no país. Declara um regime socialista e estabelece laços com a URSS e com Cuba. Nacionaliza empresas privadas e inicia a reforma agrária. No ano seguinte, problemas fronteiriços levariam a nova guerra de 2 anos com a Somália. Com a ajuda de 18 mil militares cubanos, a Etiópia, mais uma vez, expulsaria um Exército invasor de seu território. Já em 1991, afetada pela repercussão do início da queda do bloco soviético, sobe ao poder Meles Zenawi, que reconduziria o país ao regime capitalista. Em seu governo, a Etiópia se incorporaria ao FMI e ao Banco Mundial, passando a ser um aliado estratégico – e de ampla maioria cristã – dos Estados Unidos na região norte-africana, majoritariamente islâmica. No entanto, o que se viu desde então foi o acirramento dos problemas. Sérios conflitos começariam a se manifestar nos territórios do nordeste – que não aprovavam as contra-reformas liberais – até culminar na guerra de secessão da Eritréia. Esta nação, desde 1952, havia sido designada pela ONU como uma federação controlada pelo governo de Adis Abeba. Em 1993, um referendo põe um fim parcial às sangrentas disputas. A Eritréia ganha sua independência e a Etiópia, por conseguinte, perde sua saída ao mar.

Etiópia em números Com cerca de 75 milhões de habitantes, em sua grande maioria cristãos, é o 3º país mais povoado da África. Seu território abarca uma área de 1.127.127. O idioma etíope é o amárico, língua ancestral e que preserva sua escrita com caracteres próprios. Também seu calendário é singular: são 13 meses por ano – 12 deles de 30 dias e um último, festivo de 5 dias. Mas a mais curiosa peculiaridade etíope é mesmo seu horário, defasado do horário comum em 6 horas. Assim, naturalmente, à zero hora começa a manhã, que culminará às 6h do meio-dia, e entardecerá às 12 horas da tarde, para dar lugar às primeiras horas da noite.

Somália em números Situada no Chifre da África, ocupa uma posição privilegiada e estratégica por estar muito perto do Estreito de Bab el Mandeb. Tem um território de 638.000 km2 e uma população de quase 8 milhões de habitantes – sendo, na sua maioria, muçulmanos. Conseguiu a independência dos colonizadores ingleses e italianos em 1960. A situação de paz instável se reaquece em 1997, quando voltam as tensões com o país vizinho. São mais três anos de enfrentamentos diretos. Hoje, após quase uma década de um frio rompimento diplomático, o povo etíope se prepara para uma nova guerra que já se anuncia há meses contra seus irmãos eritreus. E não bastassem suas próprias desgraças, em 2002, o Exército etíope – sob patrocínio logístico e apoios aéreo e marítimo estadunidenses – invadiu a Somália. Há décadas desgovernado, este país vizinho iniciava sua reorganização a partir do frá-

gil pacto de paz obtido há alguns anos pelos Tribunais Islâmicos. Contudo, Washington, aproveitando-se da debilidade somaliana, não tardariam a iniciar sua “terceira frente contra o terrorismo islâmico” – ou dito claramente, sua terceira frente pelo domínio energético mundial. O estreito de Bab el Mandeb, na boca do Mar Vermelho, é de preciosa importância estratégica, uma linha delicada entre o petróleo das Arábias e o Canal de Suez – portal do Ocidente. (colaborou Waldo Lao Fuentes, editor do jornal A Palavra Latina)

Monumento da Amizade Cuba-Etiópia e (à direita) bairro central, ambos em Adis Abeba


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Para especialista, novos contratos com Petrobras são retrocesso Marcello Casal Jr./ABr

BOLÍVIA Segundo analista, empresa, antes tida como prejudicial, volta a retomar lugar de domínio na indústria petroleira do país vizinho

NA OPINIÃO de Mirko Orgáz, docente da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz, e especialista em temas energéticos, o poder das transnacionais petroleiras nunca foi afetado pela nacionalização dos hidrocarbonetos, em maio de 2006. Para ele, inclusive, tal medida sequer pode ser chamada assim. Na verdade, “foi uma migração de contratos e um ajuste nos impostos. O status jurídico das transnacionais na Bolívia não mudou”, diz, em entrevista por correio eletrônico ao Brasil de Fato. A seguir, Orgáz critica a relação com a Petrobras que, para ele, continua a mesma de antes. Brasil de Fato – Como o senhor avalia os novos acordos de energia assinados entre Bolívia e Brasil? Mirko Orgáz – Como um retrocesso que o povo boliviano avaliará de maneira negativa, mais cedo do que tarde, por dois motivos. Primeiro, porque o acordo é de baixo perfil, muito pouco ambicioso se nos atentarmos ao que o Gabrielli [José Sérgio, presidente da Petrobras] disse: “Setenta milhões de dólares para San Alberto, San Antonio e todo o resto é projeto”. Segundo, o acordo é mais político que econômico. Convenhamos que não houve nacionalização e que a medida de Evo Morales foi mais de política interna. A nacionalização foi uma migração de contratos e um ajuste nos impostos. O status jurídico das transnacionais na Bolívia não mudou, tanto que o país segue sendo tributário das verdadeiras donas, que são as empresas estrangeiras, via impostos e royalties. Evo fez da Petrobras a causadora de todos os males, politicamente falando. No entanto, com este acordo, a “estatal” do Brasil volta a retomar um lugar preponderante na indústria petroleira da Bolívia, às custas da popularidade de Evo. A Bolívia ainda precisa da Petrobras? As auditorias têm mostrado que não. Com um investimento de 90 milhões de dólares, meu país poderia recuperar 80% da produção de San Alberto e, sob a mesma lógica, também poderia nacionalizar San Antonio. Quando um país tem reservas suficientes, transporte assegurado e mercados cativos, não precisa da intermediação de nenhuma transnacional. Quais são as diferenças fundamentais entre os acordos anteriores e o atual entre a Petrobras e o Estado boliviano? O Brasil tem uma longa história de relacionamento com a Bolívia em matéria de hidrocarbonetos. Desde os acordos de Roboré, na década de 1950, o interesse é o de converternos em fonte segura de provisão energética. Isso se conseguiu em 1997, com a construção do gasoduto para o Brasil. A tônica segue sendo a mesma e todo o resto é um mero falatório de boas intenções, como a famosa “petroquímica”, que nos vêm prometendo desde os anos 1970, sem nunca implementá-la. Muitos diziam que a Petrobras atuava na Bolívia como qualquer

outra transnacional. O senhor acredita que tal comportamento vai mudar? A Petrobras teve, até os primeiros meses de governo Evo Morales, uma forte competidora: a PDVSA [estatal venezuelana]. Esse sócio acaba de se retirar de várias zonas e áreas de exploração, subordinando-se à Petrobras, como já o fizeram desde anos atrás as demais empresas. Aqui, as mais dominantes e prejudiciais são a Petrobras e a Repsol-YPF que, juntas, têm dividido a produção e o mercado na América do Sul. O senhor acredita que os novos investimentos poderão fortalecer a YPFB (estatal boliviana)? Pode ser um caminho para que a Bolívia dependa menos das transnacionais no futuro? Sociedades mistas é o outro nome dos processos de privatização e transnacionalização das economias dos países dependentes. Assim, com os novos contratos, a YPFB continuará sendo a floreira da indústria petroleira na Bolívia. Um mero fiscalizador que não fiscaliza nada, e muito menos opera diretamente. Os acordos têm como objetivo, além de abastecer o mercado externo, garantir o fornecimento ao mercado interno. O senhor acha que isso vai acontecer? Qual a demanda interna de gás natural? A demanda é mínima porque não se quer desenvolver processos de industrialização do gás do país. Esse é o tema pendente. Para nossas necessidades estreitas, do tamanho de um país colonial com zero de industrialização, a Petrobras, além disso, disse que manterá os 18% da produção para o mercado interno, enquanto 82% irão para o mercado externo.

No alto, o Presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, e ministros bolivianos assinam acordos; abaixo, Lula e o presidente Evo Morales

O Estado tenta retomar o controle da economia Governo Evo vem tomando medidas contra a lógica econômica neoliberal, vigente

A Petrobrás e a YPFB trabalharão no estudo de novos poços. Existirão riscos de danos às comunidades locais e ao meio ambiente? Não se esqueça que a operadora será a Petrobras, enquanto a YPFB continuará sendo o que descrevi anteriormente. Meu país tem experiências amargas sobre a indiferença com que a Petrobras trata o meio ambiente. Refiro-me à construção do gasoduto GASYRG, que gerou muitos danos ambientais na região do Chaco. Como estão as duas refinarias da Petrobras compradas pelo Estado boliviano? Não geram mais dinheiro do que antes e, além disso, pagamos muito por elas (cerca de 400 milhões de dólares, frente a 112 milhões de dólares que pagou a Petrobras). Os volumes de refinamento continuam os mesmos. Em suma, a compra das refinarias foi um prêmio de consolação para a incapacidade do governo de Evo Morales de nacionalizar os megacampos para refundar nossa estatal petroleira, a YPFB.

de La Paz (Bolívia) Assim como toda a América Latina, a Bolívia teve o sistema neoliberal como modelo econômico desde os meados da década de 1980. Nos seus dois anos de gestão, o governo do presidente Evo Morales tomou algumas medidas que confrontam os mandamentos do Consenso de Washington. Em 1º de maio de 2006, eliminou a livre-contratação e decretou a chamada nacionalização dos hidrocarbonetos. Em fevereiro de 2007, nacionalizou a Empresa Metalúrgica Vinto, de propriedade da transnacional suíça Glencore. Em agosto, o governo criou a Em-

presa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa) que, com um capital inicial de 24 milhões de dólares, nasceu com o objetivo de garantir a segurança e soberania alimentar. Em novembro, a nova estatal comprou carne do departamento de Beni e abasteceu os mercados de La Paz para abaixar os preços do produto. Logo depois, o governo emitiu um decreto elevando as tarifas de importação de alguns alimentos e obrigou os exportadores a registrarem a venda de produtos básicos, como carne, arroz, milho e farinha.

Estrutura permanece No entanto, para o jornalista Julio Mamani, apesar dessas medidas, a es-

trutura econômica boliviana segue neoliberal. “Ainda que se defenda na nova Constituição o direito ao trabalho e à estabilidade laboral, isso não quer dizer que há uma ruptura definitiva”, diz, citando o exemplo da não-regulação dos preços, a “coluna vertebral do sistema neoliberal”, pelo Estado. Para o ex-dirigente camponês Gualberto Choque, a prova de que a economia segue a mesma é a vigência do decreto 21.060, de 1985, que estabelece a livre importação e abre a economia ao capital privado internacional. “Ou seja, neoliberalismo puro”. No entanto, o governo anunciou que, nos primeiros meses de 2008, apresentará uma série de leis e decretos para acabar com tal norma. (IO)

TarijaLibre

Igor Ojeda Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Quem é Mirko Orgáz é docente da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz, e especialista em temas energéticos

Para Orgáz, o poder das transnacionais não foi afetado


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Governo Evo Morales, reforma ou transformação da Bolívia? BALANÇO Ao completar dois anos na presidência, gestão do ex-líder cocaleiro é posta em xeque por setores da esquerda Laura Feldguer

Igor Ojeda Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) ERA QUASE uma da tarde do dia 1º de maio de 2006 quando o presidente da Bolívia, Evo Morales, pôs em marcha sua medida de governo que mais repercutiu internacionalmente. O decreto supremo número 28.701 determinou que as empresas petroleiras operando no país eram obrigadas a entregar à YPFB (a estatal boliviana) toda a produção. Estabeleceu, além disso, que 82% da renda obtida com os recursos iriam para o Estado, enquanto as transnacionais ficariam com 18%. Antes, ocorria o inverso. A arrecadação, como era de se esperar, aumentou consideravelmente. Segundo dados do Ministério de Hidrocarbonetos e Energia, em 2005, o Estado recebeu 608 milhões de dólares. Em 2007, até o mês de março, o valor chegava a 1,57 bilhão de dólares. Atualmente, já se estima em mais de 2 bilhões de dólares. “O que o presidente fez até agora nenhum outro fez”, comemora Isaac Ávalos, secretário-executivo da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), referindo-se à nacionalização dos hidrocarbonetos, entre outros pontos que destaca nesses dois anos de governo.

Descontentamento A recuperação dos recursos naturais era uma das principais promessas de Evo na campanha presidencial. O fato de ter anunciado o decreto 28.701 apenas três meses depois de tomar posse animou os movimentos sociais do país, que passaram a vislumbrar anos de transformações sociais. No entanto, pouco mais de 20 meses depois, nem todos que levaram Morales à presidência estão contentes com seu desempenho. A questão dos hidrocarbonetos, por exemplo, é um dos temas polêmicos. “Em termos gerais, não houve nacionalização, pois as transnacionais continuam operando. A única coisa que se fez foi tirar delas umas notas a mais. No processo produtivo, não se tiraram todas as atribuições e benefícios. Elas continuam tendo grandes dividendos”, explica o jornalista Julio Mamani, ligado à Central Operária Regional de El Alto (COR- El Alto). El Alto, cidade muito pobre vizinha à La Paz, foi a protagonista da chamada Guerra do Gás, quando seus habitantes se levantaram contra um projeto do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de exportar gás natural para os EUA via um porto do Chile, país que “roubou” da Bolívia a saída para o mar. Agenda de Outubro Dos protestos, e dos mais de 60 mortos pela repressão do Estado, saiu a Agenda de Outubro. Segundo Mamani, em relação aos hidrocarbonetos, três pontos eram exigidos: nacionalização, recuperação e industrialização. Para ele, nenhum se cumpriu no governo Evo. “A nacionalização passava pela desarticulação completa das transnacionais. Na verdade, pela expulsão delas”. A volta dos investimentos da Petrobras é um dos fatores que mostram que isso não aconteceu. Além disso, alguns setores da esquerda reclamam que os recursos adicionais arrecadados com os recursos estejam sendo usados em programas assistencialistas, e não na diversificação do aparato produtivo do país. Para piorar, não há gás para o mercado interno, e a Bolívia precisa, por

Para os críticos, as mudanças prometidas não vieram, e o governo Evo manteve as estruturas

“Em termos gerais, não houve nacionalização, pois as transnacionais continuam operando. A única coisa que se fez foi tirar delas umas notas a mais. No processo produtivo, não se tiraram todas as atribuições e benefícios”, explica o jornalista Julio Mamani, ligado à Central Operária Regional de El Alto exemplo, importar diesel. Para Isaac Ávalos, da CSUTCB, isso ocorre porque o governo central fica com uma parte mínima do dinheiro dos hidrocarbonetos. Boa porcentagem vai para bolsas aos idosos e crianças, enquanto outro montante tem como destino os governos departamentais, as prefeituras e as universidades. Segundo Ávalos, nem os prefeitos, nem os governadores estão aplicando esse dinheiro no setor produtivo. “A única forma de ter mais recursos para o governo é modificando a lei do hidrocarboneto. Há a perspectiva de se fazer isso no futuro”, diz.

Reformas Para Gualberto Choque, exdirigente camponês e ligado ao Movimiento Al Socialismo (partido do presidente), a maneira com que o governo vem lidando tanto com a questão dos hidrocarburetos quanto com outras áreas explica-se por seu próprio cará-

ter reformista. “Não há transformação, não há mudança”, lamenta. Segundo ele, as principais medidas governamentais estão amparadas em políticas assistencialistas, “convertendo a sociedade boliviana em simples perseguidora de um resíduo que se chama esmola”. Julio Mamani concorda: “Em termos gerais, é um governo burguês de poncho, não está atacando a estrutura”. Tanto para ele quanto para Choque, o grande erro de Evo Morales é fortalecer os movimentos indígenas em vez de dar um conteúdo de classe às suas ações. “Ele anda divorciado das organizações sindicais, da Central Operária Boliviana (COB), do movimento minerador etc”, explica Mamani. Segundo Gualberto Choque, isso ocorre porque “a burguesia burocrática se apoderou do governo Morales, e este está levando adiante o programa daquela”.

Alguns avanços do governo Evo, segundo seus apoiadores Alfabetização: no dia 17, a ministra de Educação e Culturas, Magdalena Cajías, anunciou que, em 21 meses de campanha – inspirada no método cubano “Yo, sí puedo” –, 55% da população iletrada da Bolívia foi alfabetizada, enquanto 18% estão em aulas. Saúde: de acordo com o Ministério de Saúde e Esportes, 1.742 profissionais cubanos da saúde estão no país. Até 18 de dezembro de 2006, foram atendidos 2.785.999 pacientes, 52.838 pessoas haviam sido operadas da vista e 3.541 vidas haviam sido salvas. Renda Dignidade: a partir de janeiro de 2008, os idosos acima de 60 anos que não têm direito à aposentadoria receberão cerca de 310 dólares por ano, enquanto os aposentados ganharão aproximadamente 235 dólares. Antes, somente os aposentados acima de 65 anos tinham direito a 235 dólares. Bônus Juancito Pinto: pelo segundo ano consecutivo, entregou cerca de 26 dólares às crianças do primário. Combate à corrupção: Em 2005, a Bolívia era o 117º país mais corrupto do mundo, segundo a organização Transparência Internacional. Em 2007, ocupa o 105º. O governo espera a aprovação no Congresso de uma lei anticorrupção que prevê mais fiscalização e penas.

Constituinte ressuscitou os partidos políticos tradicionais Para analistas, processo da Assembléia fortaleceu “politiqueiros” e alijou protagonistas da Guerra do Gás de La Paz (Bolívia) Um dos principais pontos da chamada Agenda de Outubro, derivada da Guerra do Gás, em 2003, foi a realização de uma Assembléia Constituinte. O foro que refundaria o país também foi uma das maiores promessas de campanha de Evo Morales. Em março de 2006, o Congresso aprovou a Lei de Convocatória e, em agosto, após eleições de seus membros, a Constituinte foi instalada. De acordo com o jornalista Julio Mamani, os protagonistas de outubro de 2003 entendiam que a assembléia deveria ser originária. “O que se falou é que esses setores tivessem representação para que fossem porta-vozes das mudanças que se queria gerar por meio da chamada Guerra do Gás. Mas, lamentavelmente, constituintes legítimos, representativos da cidade de El Alto não puderam chegar”, conta. Segundo ele, o MAS (partido de Evo), por decisão de sua cúpula, levou militantes que “não tinham transcendência nem uma tradição de debate e perspectiva”.

Partidos fortalecidos Outra crítica que alguns analistas fazem é que a Assembléia Constituinte ressuscitou os partidos políticos tradicionais, que es-

tavam amplamente desgastados depois de 2003. “Os povos indígenas queriam a Constituinte para refundar o país, mas a partir de seus filhos, não de representantes politiqueiros”, lamenta o ex-líder camponês Gualberto Choque. O resultado, para ele, não é positivo. A nova Constituição, aprovada no dia 9 de dezembro, em meio a muita turbulência com a direita, e celebrada pelos movimentos sociais, “não ataca os interesses dos latifundiários, dos burgueses burocratas. Só muda algumas coisinhas”, diz. Tanto Mamani quanto Choque chamam a atenção para o fato de a Carta Magna aprovada não tocar na propriedade privada e respeitar as transnacionais. O texto constitucional, que ainda irá a referendo, estabelece, entre outras coisas, a Bolívia como um Estado Plurinacional, cujo modelo econômico é conformado pelas economias estatal, comunitária e privada. Determina também que os recursos naturais são de “propriedade e domínio social, direto, indivisível e imprescritível do povo boliviano, sendo o Estado o proprietário de toda a produção e o único facultado para sua comercialização”. Já a extensão máxima de terras que uma pessoa pode possuir, cinco mil ou dez mil hectares, irá a referendo dirimidor. (IO)

A reforma agrária ainda é lenta Além do pouco apoio à produção camponesa, estrutura latifundiária ainda continua intocada de La Paz (Bolívia) Na Bolívia, dados do Ministério de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente mostram que as pequenas propriedades (de 0 a 50 hectares, 52,7% do total dos imóveis) ocupam apenas 0,46% das terras do país. Já as grandes propriedades, que possuem acima de 2 mil hectares (representando 13,9% do total), ocupam 80% das terras. Por essa razão, uma das principais promessas do presidente Evo Morales é a chamada “Revolução Agrária”: acabar com o latifúndio e desenvolver a produção no campo. De acordo com o governo, foram recuperados, até junho de 2007, 5 milhões de hectares de terras obtidas de maneira ilegal. A expectativa é que se chegue, até o final da gestão, a 8 milhões de hectares. Até agosto deste ano, 5,5 milhões de hectares de terra foram titulados, e 500 mil foram distribuídos. A Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) estima que cerca de 70 milhões de

hectares estão nas mãos de latifundiários e que existem no país mais ou menos um milhão de sem-terra. Por isso, para alguns setores, a reforma agrária caminha num ritmo lento. No entanto, para Isaac Ávalos, secretário-executivo da CSUTCB, a lei 3.545, que entrará em vigor no ano que vem, recuperará mais de 15 milhões de hectares. “Todo latifúndio que não cumpre a função social irá para o Estado. Iremos recuperar muita terra e distribuí-la aos companheiros que não têm”, afirma. Ele reconhece que, até agora, se fez muito pouco em relação à distribuição de terras, crédito, apoio técnico e sementes. “Há um apoio grande com maquinaria, com dois ou três tratores por município. É paliativo, não é solução. Mas temos pendente com o presidente uma reunião grande, em nível nacional, com todas as organizações”, explica. O jornalista Julio Mamani é pessimista: “A revolução agrária não se trata apenas de entregar tratores, e sim de fazer um planejamento, do que produzir, qual o mercado etc. Não há um plano de grande envergadura nesse sentido”. (IO)


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cultura história em processo que, por comunhão ideológica e utópica e também por opção política, é a nossa própria história. Ela permite corrigir o esquerdismo, separando o real e o possível, que estão entrelaçados na construção da história concreta. Nenhuma revolução gravita no vácuo e tampouco caminha segundo as intenções ‘mais puras’, ‘mais sinceras’ e ‘mais revolucionárias’. Quem não gostaria de Cuba como encarnação da utopia socialista? O importante, porém, não é o grau de utopia que se concretiza na história. É a continuidade, o aprofundamento e a maturidade da própria revolução.”

Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana ASSIM LUTAM OS POVOS Coleção da editora Expressão Popular traz livro do sociólogo Florestan Fernandes sobre o processo revolucionário cubano da Redação A HISTÓRIA do processo revolucionário cubano, desde suas origens históricas até as experiências de implantação do poder popular a partir de 1974, pode ser conhecida sob o prisma do sociólogo, professor e militante Florestan Fernandes. Elaborado diretamente a partir dos roteiros das aulas ministradas por Florestan, durante o primeiro semestre de 1979, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o livro Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana consegue harmonizar o “saber do sociólogo com a paixão política do socialista”, como sugere a a apresentação da obra feita por Antônio Cândido. Lançado pela editora Expressão Popular, o livro faz parte da coleção Assim lutam os povos, que tem por objetivo fazer avançar a luta da classe trabalhadora, por meio de refelexões teóri-

cas de personagens que participaram da luta da humanidade por sua emancipação. Leia a seguir alguns trechos selecionados do livro.

gens e a evolução da situação revolucionária e sua relação com a guerrilha como solução política que pode ou não repetir-se.”

“Proponho-me uma tarefa que é, inextricavelmente, intelectual e política; e pretendo enfrentá-la como tal, com a objetividade do sociólogo e o ardor do militante socialista.”

“... temos de estudar Cuba se pretendemos desvendar o futuro e conhecer a história de ritmos fortes, que se abre para a frente e assinala uma ‘nova época de civilização’ no solo histórico da América Latina.”

“Preocupei-me pela revolução cubana de formas diferentes. Quando se deu a revolução, ela causou grande impacto político nos países latino-americanos. Como outros intelectuais brasileiros, compartilhei das esperanças que ela configurava.” “A revolução cubana interessava-me em sua especificidade e como parte do quadro histórico mundial de luta de vida ou morte entre os sistemas de poder capitalista e socialista. Concentrei-me na análise do essencial: as ori-

Assim lutam os povos

“A objetividade do sociólogo é essencial. Ela poderá nos ajudar a entender que não se pode exigir de Cuba o que a transição para o socialismo ainda não chegou a produzir nem na União Soviética, nem na China, nem na Iugoslávia, nem no Vietnã, nem em outros países socialistas. Alguns revelam impaciência histórica, outros intransigência teórica, movidos ou pelo dogmatismo ou pelo ‘revolucionarismo subjetivo’. Ora, se há algo admirável com relação a Cuba, é a forma pela qual a

DA GUERRILHA AO SOCIALISMO: A REVOLUÇÃO CUBANA Florestan Fernandes 352 páginas – R$ 15,00 revolução procurou subjugar e ultrapassar os fatos mais duros e adversos. Não se deve ignorar isso, se se quiser compreender, amar e servir à revolução cubana.” “A paixão socialista militante também é essencial. A revolução cubana está aí, estuante de vida. Ela não é uma revolução dos ‘outros’ – uma revolução dos cubanos. Cuba vive, no presente, o nosso futuro de outra maneira. Temos de entender e participar da revolução cubana como da

“As relações entre revolução e consciência de classe. Nessa esfera, impõe-se reconhecer que mesmo os países ‘mais ricos’ e ‘avançados’ da América Latina acham-se nas malhas do capitalismo dependente. Ao mesmo tempo em que perdem as condições materiais para desempenhar suas tarefas mais criadoras, as burguesias dependentes se vêem forçadas a intensificar, em todos os níveis, o seu egoísmo de classe e se apavoram diante da luta de classes. Existem peculiaridades que decorrem da situação particular dessas burguesias dependentes. Elas crescem no momento em que o capitalismo monopolista atinge, ao mesmo tempo, o seu apogeu e a sua crise, armando-se até os dentes e lançandose à contra-revolução preventiva de escala mundial. O último argumento é sempre o primeiro: a pressão radical precisa ser suprimida, mesmo quando ela possui uma natureza capitalista e uma origem burguesa.” “E o que é peculiar a Cuba? Por causa da situação neocolonial se tornar extremamente viva, a luta contra a ditadura, a luta contra a república títere, a luta contra o imperialismo, que assumia proporções dramáticas, acaba gerando um nacionalismo libertário que desata num processo diferente do resto da América Latina. No resto da América Latina, as revoluções de independência ocorreram no início do século, ou até o meio do século; em Cuba, ela surge em 1868, ressurge em 1893-95 e reflui. Não surge, então, uma burguesia capaz de tomar conta do Estado e usar

o Estado como um elemento de autodefesa e preservação das estruturas coloniais, neocoloniais e de dependência. (diferente de El Salvador, Nicarágua...) a) é o único país na América Latina no qual a descolonização foi apreendida como realidade total e no qual a prática política se organizou para extinguir todos os fatores, efeitos e resíduos do colonialismo e do neocolonialismo. Os revolucionários cubanos – com Fidel Castro à frente – fizeram a crítica implacável da dominação colonial e da dominação neocolonial, embora observando a máxima de José Martí de conter a explicitação da denúncia e de não precipitar os embates decisivos. b) em nenhum país o radicalismo nacional-democrático foi levado às últimas conseqüências. Porque somente em Cuba as classes privilegiadas, em seus estratos altos e médios, não puderam congelar e corromper o último surto da revolução nacional e democrática. A ‘revolução dentro da ordem’ foi um momento real da revolução cubana. Durou pouco e se extinguiu depressa porque só os deserdados da terra se mobilizaram para lutar por ela. A ‘revolução contra a ordem’ tornou-se, alternativamente, uma realidade permanente e em aceleração crescente. c) Cuba ficou permanentemente aberta a todos os caminhos do socialismo. A revolução é sempre lançada para a frente e o grosso da população acompanha os saltos, pois a aceleração da revolução encontra apoio revolucionário maciço na massa trabalhadora. Cuba tentou e explorou vários caminhos que conduzem ao socialismo e há muitas razões que aumentam a esperança otimista de que forjará, em tempo, saídas próprias de construção do socialismo e de passagem para o comunismo.” “O paradigma da revolução – a guerrilha. Os guerrilheiros viam que poderiam apanhar o apoio da massa. Mas o que os guerrilheiros não viam é que a situação revolucionária não foi criada por eles, ela foi produto de uma longa evolução, que não começa sequer em nosso século, começa com o desenvolvimento do sistema colonial, na maneira pela qual a dominação dura até o fim do século e é substituída não pelo regime representativo da burguesia, mas por um regime títere, governos sucessivamente ditatoriais de articulação de interesses burgueses internos e externos, principalmente estadunidenses. Eles não viram que essa situação revolucionária não é a guerrilha que cria, ela é produto da história; o que eles tiveram foi a inteligência de se localizar dentro dessa situação revolucionária e de ver que aquela ditadura poderia ser removida com o poder militar e de levar a revolução até o fim.”

Os outros três títulos que compõem a coleção:

IMAGENS DA REVOLUÇÃO Documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971 Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá (orgs.) 464 páginas – R$ 20,00

HISTÓRIA DO SOCIALISMO E DAS LUTAS SOCIAIS Max Beer 608 páginas R$ 22,00 Livro importantíssimo para toda uma geração de militantes que abriram seus olhos a uma determinada leitura da história e, por meio de suas páginas, desvelaram os preconceitos ideológicos e reencontraram nas lutas de todos os oprimidos suas próprias lutas. Como afirmou Antônio Cândido uma vez: “A leitura que talvez tenha decidido, na adolescência a minha inclinação para o lado do socialismo e funcionou como faísca que ateia o fogo”.

Obra que trata de forma objetiva e profunda os caminhos e reflexões que orientaram a esquerda revolucionária dos anos de 1960. Referindo-se aos períodos que antecedem o golpe militar de 1964 e aos difíceis tempos que o seguiram, o livro permite ao leitor refletir sobre temas da maior relevância nos dias de hoje, desde a relação entre os ideais de mudança revolucionária e os valores da democracia, até o caráter das classes dominantes brasileiras e as formas históricas utilizadas por elas a fim de perpetuarem seus privilégios.

SOBERANIA E AUTODETERMINAÇÃO A luta na ONU: discursos históricos Che – Allende – Chávez – Arafat 120 páginas – R$ 12,00 Os discursos aqui reunidos dão mostra da força política e moral daqueles que fazem de sua vida um compromisso de luta. São esses os que passam para a história, os que são lembrados porque são capazes de despertar o que há de mais fundamental nos dias de hoje: a solidariedade entre os explorados e oprimidos.


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