Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 5 • Número 254
São Paulo, de 10 a 16 de janeiro de 2008
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O desafio da esquerda é construir a unidade e intensificar as lutas Christiane Campos-MST
Marcha de integrantes do MST no Rio Grande do Sul
Mesmo com desavenças políticoeleitorais, a esquerda brasileira construiu uma unidade em três jornadas durante 2007. Um amplo espectro de organizações participou conjuntamente das mobilizações do dia 23 de maio (na luta por nenhum direito a menos), da jornada em defesa da educação e da campanha pela nulidade do leilão da Companhia Vale do Rio Doce. A perspectiva das organizações para 2008 é de promover novas lutas, mantendo a unidade. Neste ano, o Fórum Social Mundial será a primeira atividade do calendário comum. A mobilização descentralizada priorizará atos no dia 26 de janeiro. A União Nacional dos Estudantes (UNE) planeja realizar uma nova jornada da educação ainda no primeiro semestre. Págs. 2 e 3 Ricardo Stuckert-PR
Na Argentina, movimentos buscam a construção do poder popular Solanas analisa o momento das organizações populares Em meio ao clima de crescimento econômico, a política “kirchnerista” obtém a simpatia da maioria dos argentinos. Já os movimentos populares vivem um período do descenso, dentro de um
contexto de desmobilização e sem influência na disputa eleitoral. Situação oposta a de 2001, quando um levante popular iniciou ações com bloqueios de estradas e ocupações de áreas na periferia.
Em entrevista, Pablo Solanas, liderança do movimento piquetero, aponta que construir o poder popular é o desafio das organizações sociais no governo de Cristina Kirchner. Pág. 10 iMC Argentina
Marcha de piqueteros na Argentina
Em debate, uma Privatização de menor jornada prisões nos EUA e Inglaterra tem de trabalho maus resultados Em 2008, as centrais sin-
dicais dedicarão esforços para pressionar o Congresso Nacional a aprovar uma proposta de emenda constitucional que pode reduzir a jornada de trabalho em nove horas, três anos após sua aprovação. Já o economista Márcio Pochmann, presidente do Ipea, acredita ser possível uma jornada de três dias, com quatro horas diárias de trabalho. Pág. 8
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Ao contrário do que afirma o discurso hegemônico, a privatização de presídios não é solução para resolver problemas no sistema carcerário; no caso do Brasil, um setor em crise há décadas. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Laurindo Dias Minhoto, afirma que experiências internacionais nesse sentido têm sido insatisfatórias. A seu ver, nenhuma política carcerária será eficaz se não houver ampliação dos direitos sociais. Pág. 7
Um ano de Ortega e contradições na Nicarágua O primeiro ano de Daniel Ortega no comando da Nicarágua está marcado por um governo “esquizofrênico”, afirma Mônica Baltodano, ex-comandante guerrilheira. Crítica do alinhamento da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) com a oligarquia nicaragüense, Baltodano analisa as alianças que o excompanheiro de trincheira Ortega costura com Cuba e Venezuela, ao mesmo tempo em que mantém as relações privilegiadas do capital internacional. Pág. 9
Etanol redireciona a política externa brasileira O interesse dos Estados Unidos na produção de etanol, materializado na visita que George W. Bush fez ao Brasil em março de 2007, vem alterando a política externa que, no governo Lula, vinha sendo pautada por um certa independência. Fátima Mello, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos, teme que, agora, a diplomacia ceda nas negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC). “O agronegócio diz: ‘temos oferta, mas necessitamos de demanda’, e pressiona o governo a abrir mercados” Pág. 5
Etanol: produção para atender necessidades dos países ricos
Agora, a ofensiva estadunidense é sobre o petróleo da África O petróleo africano tornou-se alvo de investidas do governo dos Estados Unidos. A região do Golfo da Guiné, rica em recursos, foi recentemente considerada uma área de “interesse vital”
para o país. De acordo com o governo estadunidense, em dez anos, o petróleo africano poderá constituir até 35% das importações. Para especialistas, a intervenção militar dos Estados Unidos
na África é muitas vezes justificada para combater o terrorismo. “Assim, há apelos e justificativas aparentes para que haja ‘intervenções’ dos EUA na África”, diz Michael Watts. Pág. 12 Kotsopoulos CC
Navio encalhado na costa da Guiné Equatorial
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editorial FAZER BALANÇOS de períodos históricos e de lutas sociais de forma suscinta é muito difícil. Podese incorrer em reduções e pouco aprofundamento. Mas o Brasil de Fato, que nasceu e se desenvolve colado às lutas dos movimentos sociais, tem a obrigação de refletir em suas páginas e em sua linha editorial sobre as lutas populares e sociais que ocorreram em nosso país em 2007. Acompanhamos as várias reflexões que os movimentos sociais fizeram em diversos espaços de articulação, como na Assembléia Popular, na Coordenação de Movimentos Sociais (CMS), na Via Campesina, na Marcha Mundial das Mulheres, nas pastorais sociais etc. E identificamos alguns elementos políticos comuns nas avaliações. Constatamos que 2007 foi mais um ano que se inseriu num período histórico adverso para os movimentos e lutas populares. Que há uma ampla hegemonia do capital sobre a sociedade e sobre o governo. Que o capital nacional está cada vez mais mesclado com os interesses do capital internacional e do imperialismo. Que o Estado brasileiro presta-se, cada
debate
Balanço de 2007 dos movimentos sociais brasileiros vez mais, a servir aos interesses do capital, usando o poder Judiciário, o Congresso Nacional, suas leis e todo um aparato repressivo. Portanto, vivemos no Brasil um período de refluxo do movimento de massa. E, para completar, há uma crise ideológica explícita nas organizações políticas da classe trabalhadora. Tudo isso faz com que os trabalhadores brasileiros não tenham conseguido produzir uma unidade de classe em torno de um projeto popular. É nesse contexto que se desenvolveu a luta de classes em 2007. Houve muitas iniciativas de mobilizações. As lutas dos movimentos do campo seguiu intensa, com ocupações de terra, hidrelétricas, rodovias e empresas transnacionais da agricultura, como o caso da Syngenta, Aracruz e Cargill. Nas cidades, aconteceram algumas mobilizações como greves, ocupações de terrenos etc. Em algumas universidades, os estudantes
também começaram a se mobilizar pelo direito à universalização do ensino superior. No geral, tivemos diversas ações unitárias positivas que aglutinaram todos os movimentos sociais, como foi o caso da mobilização do 8 de março. Depois, a jornada de protestos do dia 23 de maio, que incluiu também setores importantes da CUT. E no segundo semestre, o fato mais importante foi a campanha pela reestatização da empresa Vale do Rio Doce, com diversas atividades que culminaram com a realização do plebiscito popular, com a mobilização de mais de 100 mil militantes e a coleta de votos de quase 4 milhões de brasileiros. Tudo isso foi positivo. Porém, insuficiente para alterar o quadro adverso da correlação de força para a classe trabalhadora. Isso leva à reflexão de que será necessário redobrar os esforços dos movimentos populares e de
todas as formas de organização da classe trabalhadora brasileira para podermos romper com essa conjuntura adversa. Infelizmente, muitos ainda se iludem com estratégias eleitorais. É fato que participar de eleições e eleger companheiros progressistas de esquerda é necessário; porém, esse caminho não pode ser o centro da tática em períodos tão complexos. Por isso, a reflexão da maioria dos movimentos sociais tem sido no sentido de que é necessário colocar nossas energias prioritárias, agora em 2008, para estimular todas as formas de lutas sociais que consigam avançar e conquistar melhorias para a vida do povo. Como aconselhava Florestan Fernandes, “nossa tarefa é não nos deixar vencer, não desanimar e conquistar avanços para o povo”. Ampliar processos permanentes de formação de militantes e quadros torna-se cada vez mais
crônica
Marcelo Paixão
A diversidade e o multiculturalismo fazem bem ao Brasil e à humanidade RAÇA, ENQUANTO realidade biológica, inexiste. Isso implica que o ser humano, portador de diferentes formas físicas e legados culturais ancestrais, forma uma única espécie. Ou seja, tanto faz tanto fez que uma pessoa tenha a pele clara ou escura, os cabelos lisos ou crespos, narizes, lábios e demais caracteres de um jeito ou de outro: essas diferenças não tornam ninguém mais apto ou capaz para a realização de tudo de bom ou de mau que um coração humano comporta. Contudo, essa constatação informa pouco o que se esconde por trás do tema da diversidade e do multiculturalismo. Pois se raça não existe, por que então debater sobre relações raciais? O fato é que a realidade biológica não pode ser utilizada como único vetor para o entendimento do problema das relações entre seres humanos de aparências diferentes. Quando falamos em relações raciais, não estamos apontando um termo que diga respeito à natureza, mas sim aos modos pelos quais os seres humanos, de diferentes partes do mundo, estabeleceram entre si ao longo da história, relações de dominação econômica, política, cultural e simbólica uns sobre os outros. Assim, se raça não existe, o mesmo não se pode dizer do racismo e do seu primo irmão, o etnocentrismo. O racismo não somente existe como forjou ideologias que, em primeira e última instância, legitimaram múltiplos modos extremamente perversos de exploração (e a escravidão é apenas a sua forma mais estúpida, mas não única), humilhação e violência contra povos de todo o mundo. O termo “relações raciais” se funda na constatação da existência de uma efetiva relação de sujeição de seres humanos, ou povos, sobre outros seres humanos, ou outros povos, que, baseados nas aparências físicas e muitas vezes, em atributos culturais ancestrais, acaba justificando ideologicamente seu projeto de dominação. Que tais fundamentações fantasiosas da realidade se forjem em mitos teológicos – como no período da Idade Média e Moderna – ou em pretensos argumentos científicos, que teve seus dias de glória nos tempos de constituição do Imperialismo, mas que ainda hoje possui muitos adeptos – não muda a natureza da questão. Toda forma de discriminação racial, xenofobia, intolerância e preconceito de raça ou cor ajudam a legitimar a coisificação de semelhantes, abrindo caminho para sua transformação em um ente a ser subjugado e explorado.
Racismo e discriminação No Brasil existem não poucas vozes que supõem que tenhamos superado este tipo de mazela. Muitas vezes tais compreensões julgam que, pelo fato de nosso povo ser essencialmente mestiço – coisa que de fato o é -, nos torne imune às mazelas do preconcei-
necessário. Assim como construir nossos próprios meios de comunicação de massa, sejam boletins, rádios comunitárias, espaços televisivos, páginas na internet ou jornais impressos para que seja possível fazer a disputa das idéias na sociedade, e, sobretudo, com a classe trabalhadora. Além disso, é preciso aprofundar o debate sobre a necessidade de um novo projeto de desenvolvimento para o país que seja antineoliberal e antiimperialista. Portanto, popular e nacional. Articular-se para que, em 2008, logremos realizar mobilizações conjuntas, de todas as forças sociais, independentemente das correntes ideológicas, unindo os movimentos do campo e da cidade. Tudo isso certamente contribuirá em muito para acumular forças populares que possam transformar-se no futuro em um quadro de ascenso dos movimentos de massa. Como se percebe, há muitos desafios e tarefas para os movimentos sociais. Mas somente lutando, formando politicamente o povo e se articulando com todas as forças, poderemos superar o atual contexto adverso para a classe trabalhadadora.
Emir Sader
Os brancos são mais iguais O LEMA fundamental da dominação capitalista e imperialista continua sendo “Civilização ou barbárie”. Civilização para os dominantes e barbárie para todos os outros. Civilização para os brancos, ocidentais, protestantes ou católicos, europeus ocidentais ou estadunidenses. Mas é a cor da pele a bandeira da sua superioridade. Não por acaso, Hollywood, a maior fábrica de racismo do mundo, promove a criminalização das outras “raças”, sejam índios dos EUA, os africanos, árabes, japoneses, chineses, coreanos, mexicanos ou qualquer outra variante dos não-brancos. O único filme produzido nos EUA contra a potência que promoveu a maior “limpeza étnica” da história da humanidade, a Alemanha, foi realizado por um não-estadunidense, Charles Chaplin, com “O grande ditador”. O clima contra ele ficou tão insuportável que precisou sair às pressas dos EUA antes mesmo do lançamento do filme.
Esses raciocínios pseudo-científicos procuram desqualificar as outras etnias e combater algumas conquistas políticas, como é o caso especialmente das cotas to racial ou da discriminação. Outros tantos avançam ainda mais, supondo ser nossa pátria o paraíso da democracia racial. Todavia, entre os mitos e a realidade efetiva existe um amplo hiato. Descortiná-la não é apenas uma tarefa imprescindível aos que mais sofrem os dramas do racismo à brasileira, que são os afrodescendentes e indígenas. Na verdade, o combate ao racismo e à discriminação racial é uma importante missão para o aprofundamento da democracia em nosso país. Mas, por quê? O fato é que, se é verdade que no Brasil somos todos mestiços, não menos verdade é que as pessoas seguem sendo preteridas por conta de suas aparências físicas. Assim, por mais que a realidade biologicamente mestiçada crie formas próprias de relacionamentos raciais diferentes do que ocorre em outros países, onde tal problema se apresenta mais abertamente, não há dúvida de que os portadores das peles mais escuras e de traços faciais mais próximos de um africano sub-sahariano padrão acabarão encontrando maiores dificuldades para ter acesso não somente às oportunidades de mobilidade social ascendente, mas também aos direitos mais elementares. Isso é gerado pela incorporação imaginária de que o tipo físico e a cultura européia formam o objeto a ser admirado e respeitado, sendo os demais tipos e legados ancestrais, mormente quando remetidos aos negros e aos indígenas, tidos como atrasados, rudes e primitivos.
Triste realidade Atualmente, uma em cada cinco mulheres negras ocupada no mercado de trabalho o faz sob a condição de empregada doméstica. A taxa de homicídios de jovens negros é superior a 130 por cem mil habitantes. O percentual de empregadores negros não chega a 25% do número total de empregadores, sendo que, no interior da categoria dos empregadores que empregam acima de cinco empregados os afrodescendentes mal chegam a 10%. Os salários dos negros é metade dos brancos, e as mulheres negras costu-
mam receber um terço dos rendimentos de um homem branco. O número de parlamentares de peles escuras ou de traços notoriamente indígenas é irrisório em nosso Congresso Nacional e nos diversos Parlamentos locais. Esses indicadores não refletem somente que os negros são pobres materialmente, espelhando tão-somente uma discriminação social. Refletem, sim, que a pobreza da população negra está intimamente reportada a um modelo de relacionamentos interraciais, e, por conseguinte, sociais, que naturaliza e reforça permanentemente o baixo papel exercido pelas pessoas deste grupo em nossa sociedade em termos econômicos, políticos, sociais, estéticos e culturais.
Justiça e igualdade A luta pela superação da discriminação racial e de todos os seus elementos motivadores e derivados torna-se imprescindível para o campo democrático de todo mundo contemporâneo, porque aponta para a valorização daquilo que o ser humano possui de mais especial: sua variedade física, de sotaques, de formas, olhares, sabores, musicalidades e culturas. Força de nossa espécie humana, e cuja perda não poderá ser entendida senão como trágica e insana. Em nossa triste nação, por apontar para os mais nobres e profundos sonhos de liberdade forjados ao longo de nossa história – efetivamente iniciados no último suspiro do primeiro índio abatido; nos lamentos contidos nos porões do primeiro tumbeiro a atracar em nossas terras. Dessa capacidade de reviver permanentemente esses sonhos de justiça e dignidade - posto que, conquanto reinventadas, as injustiças daqueles dias chegaram aos nossos – desdobra-se nossa capacidade de tornamos real, um dia que sabe?, a realização de uma utopia chamada Brasil. Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatística das Relações Raciais (LAESER)
Hollywood narrou a história do massacre das populações indígenas nos EUA como uma saga da “civilização”, resgatando palmo a palmo o território dominado por “peles vermelhas “traiçoeiros”. Indômitos cowboys, chamados de “mocinhos”, enfrentando os “bandidos” das populações originárias. Recorrentemente, renascem as teorias e as afirmações racistas sobre a suposta inferioridade intelectual dos negros. Bem antes das declarações do prêmio Nobel sobre o tema, surgiu a “teoria dos sinos”, que repetia a mesma ladainha de sempre. Os negros teriam características que os tornam excelentes para as atividades atléticas. Chega-se ao requinte de elaborar mapas da origem dos africanos, pois certas regiões estariam mais adaptadas para a produção de atletas para corridas de longas distâncias, pela resistência, enquanto, outras, produzem os de curta distância, pela rapidez. Este reconhecimento do desempenho atlético é uma espécie de “compensação” à inferioridade intelectual que se lhes querem impor. Um autor que vive recomendando as melhores leituras para todo o mundo, não hesitou em perguntar onde estaria o Shakespeare africano. Um modo de dizer que só está disposto a rever sua tese sobre a inferioridade intelectual e cultural dos africanos quando estes forem capazes de apresentar conquistas intelectuais similares às européias. A colonização e a escravidão, que parecem fenômenos passageiros, que não deixaram marcas na trajetória nem dos que enriqueceram, nem dos que empobreceram com elas, nunca aparecem nos seus preciosos “cálculos” . Colonização e escravidão foram formas de recrutar uma raça inferior para trabalhar para a raça superior, em nome do “progresso” e do “desenvolvimento”. Colonização e escravidão transformam-se em categorias atemporais que beneficiaram a “humanidade”, a “civilização”, apropriada pelos brancos ocidentais cristãos. Esses raciocínios pseudo-científicos procuram desqualificar as outras etnias e combater algumas conquistas políticas, como é o caso especialmente das cotas. Afinal, de que adianta promover os negros, já que sua inferioridade é genética! Quando esta concepção ganhou a Califórnia, o resultado foi arrasador para os negros, pois os brancos e os de origem asiática repartiram entre si as vagas das universidades e os negros foram praticamente excluídos. É uma manobra intelectual para justificar a imposição da hegemonia das idéias dominantes na sociedade mercantilizada dos EUA: os pobres – entre eles os negros - não são produzidos pela estrutura econômica e social capitalista, eles são os “perdedores” de um jogo no qual tiveram as mesmas oportunidades que os outros, mas foram vencidos no concurso meritocrático da excelência, da produtividade, do custo-benefício. Todos são iguais, mas os brancos são os mais iguais, os mais “civilizados”, os mais inteligentes – e mais ricos, mais poderosos, mais beligerantes, os mais agressivos, os mais discriminadores, os mais exploradores. Emir Sader é professor de sociologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues • Subeditor: Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aldo Gama, Kipper, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
Esquerda alcança unidade em 2007 João Zinclar
BALANÇO Apesar de desavenças, maior parte da esquerda esteve unida em três campanhas no ano
Convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que Lula assinou em dezembro. A primeira garante o direito de negociação coletiva no setor público, enquanto a segunda proíbe as demissões imotivadas.
Renato Godoy de Toledo da Redação O ANO de 2007 contou com três momentos de unidade dos movimentos sociais, fato inédito nesta década. Mesmo com diferenças programáticas, políticas e eleitorais, as entidades mais representativas do movimento social estiveram unidas no dia 23 de maio, na luta por “nenhum direito a menos”; em agosto, na Jornada Nacional em Defesa da Educação, e em setembro, na campanha pela anulação do leilão que privatizou a Companhia Vale do Rio Doce. Além dessas jornadas, categorias realizaram greves por suas pautas específicas, mas sem deixar de lado as questões gerais da classe trabalhadora. No mês de junho, por exemplo, cerca de 100 mil servidores públicos estavam em greve. Dentro de um espectro que vai desde a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) até a Central Única dos Trabalhadores (CUT), passando por União Nacional dos Estudantes (UNE) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há um consenso de que, em 2007, houve um salto qualitativo e quantitativo em termos de mobilizações. A CUT, maior central sindical do país, considera que no ano passado a mobilização dos trabalhadores conseguiu barrar retiradas de direitos e práticas neoliberais. “O ano de 2007 foi muito especial, sobretudo para o movimento sindical. Travamos uma luta contra os projetos que limi-
A campanha pela anulação da venda da Vale do Rio Doce contou com a unidade dos movimentos sociais
“Nesse primeiro ano do segundo mandato de Lula, a política econômica continuou privilegiando as grandes corporações e retirando recursos do país”, observa Zé Maria, da Conlutas tam o papel do Estado e retiram direitos. Com trabalhador na rua, participamos do processo de disputa da hegemonia da sociedade”, avalia Artur Henrique, presidente da entidade. Para ele, o ano de 2008 será repleto de simbolos. “Depois do 1° de maio, faremos uma plenária nacional estatutária, com mais de 1,5 mil representantes sindicais. Em 2008, a Constituição de 1988 faz 20 anos, e a CUT, 25. Também lembraremos os 20 anos da morte de Chico Mendes”, comenta.
Ataques frustrados Ao passo que algumas medidas que retiravam direitos
foram colocadas em pauta pelo Executivo ou pelo Legislativo, os movimentos se uniram na luta pela garantia dessas conquistas. Foi esse o caso da Emenda 3 do projeto que criou a Super-Receita e de um projeto de lei complementar ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o PLP 01. A Emenda 3 proíbe os fiscais do trabalho de autuar empresas que obrigam seus funcionários a tornarem-se pessoas jurídicas, a fim de burlar a legislação trabalhista. A medida foi aprovada pelo Congresso e vetada por Lula. E, formulado pelo Executivo, o PLP 01, valido por dez anos, limita o gasto com a folha de
pagamento no serviço público em 1,5% ao ano, mais a reposição da inflação. O movimento sindical considera que o projeto representaria um arrocho salarial de 10 anos para os servidores, já que esse acréscimo permitido seria todo consumido pelo crescimento vegetativo do funcionalismo, que se dá por meio de promoções e progressões de carreira. Artur Henrique, da CUT, considera uma vitória do conjunto da classe trabalhadora o fato de o veto presidencial à Emenda 3 não ter sido derrubado no Congresso e a PLP 01 não ter sido votada ainda. No entanto, ele acredita que, a qualquer momento, o Legislativo pode voltar a debater o tema e golpear os trabalhadores. Artur revela ter informações de Brasília que dão conta de que está sendo preparado um projeto de lei no Senado similar ao PLP 01, mas nesse novo projeto o limite de aumento seria 2,5%. Segun-
“Governo Lula não cumpriu o que prometeu”, diz dirigente do MST
do Artur, a CUT também seria contra esse projeto.
Trabalhador na rua Para Wagner Gomes, da Corrente Sindical Classista (ligada ao PCdoB), a qual acaba de construir uma nova central, a dos Trabalhadores do Brasil (CTB), 2007 trouxe uma lição para o movimento sindical. “O grande segredo para obter vitórias é colocar o trabalhador na rua e fazer grandes mobilizações. Apesar de termos seis centrais sindicais no Brasil, conseguimos uma unidade”, afirma Wagner Gomes, que preside o sindicato dos metroviários de São Paulo, categoria que travou uma dura luta com o governo estadual de José Serra (PSDB), que demitiu cerca de 60 metroviários após uma paralisação. Gomes acredita que os esforços de unidade levaram a classe trabalhadora a algumas vitórias. Como exemplo, o sindicalista cita a ratificação das
Críticas A Conlutas também julga importante as mobilizações e o processo de unidade, mas considera “um passo atrás” o fato de CUT e MST não terem participado do ato do dia 26 de outubro em Brasília (DF), contra uma possível reforma da Previdência. O ato foi impulsionado por Conlutas e Intersindical, ligadas, respectivamente a PSTU e Psol. Zé Maria de Almeida, coordenador da Conlutas, acredita que as mobilizações se deram em função da continuidade da política econômica. “Nesse primeiro ano do segundo mandato de Lula, a política econômica continuou privilegiando as grandes corporações e retirando recursos do país”, observa. Em 2008, a Conlutas pretende se focar na defesa dos direitos dos setores que podem ser atacados por reformas. A Intersindical esteve junto com a Conlutas no Encontro Nacional, ocorrido no dia 25 de março de 2007, em São Paulo (SP). Na ocasião, as entidades estabeleceram a necessidade de construir datas em conjunto para lutar contra reformas neoliberais e a constituição de um fórum nacional de lutas contra reformas. “A partir de então iniciamos o diálogo com o MST, com pastorais e construímos datas como o 23 de maio”, lembra Pedro Paulo, coordenador da Intersindical FSM Em 2008, a primeira atividade em que as entidades ouvidas pelo Brasil de Fato devem atuar juntas é o Fórum Social Mundial (FSM). Neste ano, o FSM será descentralizado e se restringirá a um dia de mobilização e ação global, em 26 de janeiro.
2008 deve ter nova jornada em defesa da educação
Leonardo Melgarejo
Movimento classifica 2007 como ano de muitas mobilizações, mas critica violência contra trabalhadores
“Estamos apostando muito numa nova jornada já em março de 2008”, revela presidente da UNE da Redação A Jornada de Lutas pela Educação Pública, realizada em agosto, foi um acontecimento inédito na história recente dos movimentos sociais. Ao contrário da tendência atual de mobilizações que exigem a não-retirada de direitos, movimentos ligados à educação foram às ruas de todo o país, durante uma semana, com uma agenda propositiva para o setor. Atos de rua e ocupações de universidade marcaram a jornada. A ocupação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, foi o fato mais marcante da jornada, já que o governador José Serra remontou aos tempos da ditadura e
No ano em que realizou o seu 5° Congresso, com cerca de 18 mil participantes, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) considera que 2007 foi um ano de mobilizações. Mas o fato a se lamentar é que essas mobilizações foram acompanhadas de repressão, sobretudo no campo. Gilmar Mauro, da direção nacional do movimento, aponta que o congresso ocorrido em agosto foi importante para colocar para a militância o agronegócio como inimigo da reforma agrária. “Foi um ano de muitas lutas, muitas marchas e enfrentamentos. No ponto de vista da mobilização, foi positivo. Mas tem um aspecto negativo: a violência no campo aumentou”, avalia Gilmar. O dirigente cita como exemplo desse processo a morte de Valmir Mota de Oliveira, o Keno, assassinado em outubro por uma milícia contratada pela transnacional Syngenta Seeds. O próprio Gilmar foi vítima dessa violência, quando, em dezembro, durante uma reintegração de posse em Limeira (SP), foi atingido por balas de borracha atiradas pela polícia. “Há um processo de criminalização do movimento social muito intenso”, considera Gilmar. Em 2008, o MST planeja realizar mobilizações para recolocar o tema da reforma agrária na pauta nacional. “Em 2007, nós obtivemos poucas conquistas concretas. O governo Lula não cumpriu o que prometeu, apenas pequenas migalhas são con-
Douglas Mansur
da Redação
ordenou à tropa de choque da Polícia Militar invadir o prédio e retirar os estudantes. O movimento exigiu que o governo derrubasse os vetos ao Plano Nacional de Educação (PNE), formulado pela sociedade civil, e passe a gastar, ao menos, 7% do produto interno bruto (PIB) no setor. “Acredito que a jornada foi um momento muito feliz da nossa atuação, e demonstramos que quando estamos unidos ficamos mais fortes”, afirma Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Lúcia anuncia que algumas entidades articulam um movimento similar ao de agosto de 2007. “Estamos apostando muito numa nova jornada já em março de 2008”, revela. (RGT)
18 mil militantes compareceram ao 5º Congresso do MST
cedidas. O que se tem hoje é uma crise na agricultura, políticas compensatórias e repressão”, diz Gilmar, que ressalta a capacidade do MST de se mobilizar mesmo em situações adversas.
O dirigente afirma que para 2008 o movimento deve massificar as ocupações e mobilizações, bem como articular-se politicamente com outros setores, como os cortadores de cana-de-açúcar. (RGT)
Estudantes ocupam a Faculdade de Direito da USP
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brasil Marcello Casal Jr-ABr
Políticas sociais ainda engatinham BEM-ESTAR Estudo do Ipea conclui que programas do governo são insuficientes, mas ação do Estado é essencial para a população
Ingresso prematuro no mercado de trabalho e a queda continuada no total de concluintes do ensino fundamental provocam queda no número de matrículas para o ensino médio Um exemplo pode ser verificado nos movimentos populares por moradia que procuram, por meio de mutirões, construir suas próprias habitações, obtendo resultados qualitativos e de preço melhores do que casas construídas por grandes empreiteiras. Entretanto, na maioria das vezes, esbarram em burocracias e não conseguem efetivar sua participação.
Educação Grande parte do estudo se dedica a avaliar a área de educação. O relatório aponta que,
desde 2004, as regiões Sul e Sudeste vêm registrando reduções no total de matrículas para o ensino médio. A queda foi compensada, naquele ano, pelo crescimento das demais regiões. Porém, em 2005, o movimento expansionista nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste não foi suficiente para fazer frente às 200 mil matrículas subtraídas aos sistemas educacionais do Sul e do Sudeste. Entre as causas do cenário descrito acima, uma situação recorrente no país: ingresso prematuro no mercado de trabalho e a queda continuada no total de concluintes do ensino fundamental. Por outro lado, cresce o interesse e o investimento em programas de alfabetização como o Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em 2006, o programa apoiou a oferta de vagas para 3,3 milhões de alunos matriculados. Cerca de 1,6 milhão concluem. “Em que pese serem números expressivos, persistem os problemas, sobretudo no atual processo de alfabetização. Estes revelam-se pela baixa efetividade na redução do analfabetismo no país, onde a relativa estabilidade dos indicadores de resultado sugere que as ações do programa não parecem alcançar a população analfabeta e que mudanças para engajar esse público-alvo permanecem necessárias”, destaca o relatório. O estudo também aponta o descompasso entre o ensino médio e o superior. Em 2005, as instituições de ensino superior (IES) públicas ofertaram 313 mil vagas, enquanto os diplomados no ensino médio, no ano anterior, somaram quase 1,9 milhão.
Apenas 2% do orçamento da União é destinado à educação
Números e desafios, segundo o Ipea
Saúde Entre 2000 e 2005, as porcentagens do PIB revertidas para investimentos na saúde pública foram de 2,9%, 3%, 3,2%, 3,1%, 3,3% e 3,4%, respectivamente. O total de leitos para internação em hospitais municipais, estaduais e federais – sem levar em conta, portanto, leitos no setor privado – subiu 10%: de 137 mil para 150 mil. Assim, há no setor público um leito para cada 1.200 habitantes. Mas o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é um leito para cada 333 habitantes.
Previdência deve incluir trabalhadores informais
Igualdade Racial Relatório aponta que a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Seppir) foi um grande avanço, mas que o órgão esbarra no limite orçamentário para efetivar suas políticas. O programa Brasil Quilombola, em que participam diferentes ministérios, demonstrou uma baixa execução orçamentária em 2006, executando apenas 36,2% do total autorizado. A baixa execução do programa deve-se tanto ao contingenciamento de recursos destinados à Seppir como à fragilidade da Secretaria em promover a coordenação e o fomento/indução de políticas direcionadas à promoção da igualdade racial junto a outros ministérios.
A seguridade social ainda não é um direito universal no Brasil Marcello Casal Jr-ABr
da Redação
Assistência social e segurança alimentar De 2003 a 2006, o número de beneficiários do Programa Bolsa Família aumentou sua abrangência de 3,6 milhões para 10,9 milhões.
Reforma deve ter caráter inclusivo
vo de garantir o mínimo para essas pessoas”, acrescenta.
Bolsa Família Na área de assistência social e segurança alimentar, o Boletim de Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, do Ipea, afirma que o Programa Bolsa Família (PBF), que, nos últimos três anos, procurou englobar todos os programas previamente existentes (auxílio-gás, bolsa-escola etc), aparece como uma das prioridades do governo federal. O crescimento significativo dos investimentos no programa (ver quadro) reafirmam “a
centralidade” do PBF. Todavia, a maior parte dos gastos do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) continua, conforme os estudos anteriores também apontam, com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), um direito garantido pela Constituição Federal que consiste no pagamento de um salário mínimo mensal a pessoas com 65 anos de idade ou mais e a pessoas com deficiência incapacitante para a vida independente e para o trabalho, onde em ambos os casos a renda per capita familiar seja inferior a um quarto do salário mínimo. (DM)
Antonio Cruz/ABr
Os mecanismos de proteção social estão longe de serem universalizados. O principal deles é a Previdência. Luseni Aquino, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) defende que uma reforma é necessária, mas só surtirá efeitos socialmente positivos se tiver um caráter inclusivo, de ganho de direitos para o trabalhador. “Temos um altíssimo grau de informalidade no mercado de trabalho brasileiro, essas pessoas não contribuem para a Previdência e, portanto, não estão protegidas pelo sistema”, aponta. A seu ver, incluir trabalhadores informais é um dos passos essenciais para se ampliar os direitos sociais no Brasil. A pesquisadora do Ipea aponta que todas as políticas devem ter como norte a distribuição de renda. Assim, embora o essencial seja criar empregos e garantir a universalização e qualidade na saúde e educação, por exemplo, não se pode desprezar políticas consideradas por muitos como assistencialistas, como o Programa Fome Zero ou o Bolsa-Família. “Diante do quadro de pobreza existente no Brasil, não se podem excluir essas políticas, que tem o objeti-
Cultura As práticas domiciliares e de audiovisual estão entre aquelas de maior freqüência. 81% das pessoas sempre assistem TV e 18% sempre ouvem rádio. 83% nunca vão ao teatro e 78% nunca vão a museus. As práticas, entretanto, variam de acordo com a renda e escolaridade. Nas classes A e B, 48% nunca tiram livros de bibliotecas e nas classes D e E, 78%.
Habitação O déficit habitacional aumentou em 2,6 milhões de unidades entre 1991 e 2005, passando de 5,3 milhões para 7,9 milhões. 96% das carências habitacionais estão nas faixas de renda de até cinco salários mínimos. Atingir as populações de baixa renda é o grande desafio.
Desenvolvimento Rural Os conflitos no campo entre 2003 e agosto de 2006 saltou de 925 para 1.657, um crescimento de 80%. No mesmo período, o número de pessoas envolvidas em conflitos cresceu 74%, passando de 452 mil para 784 mil. Em 2006, foram assentadas 136.257 famílias, das quais 54% em novos projetos e as demais 46%, em projetos criados em anos anteriores. Nos últimos quatro anos, as famílias assentadas já somam 381.419. Esses são os números oficiais do governo. Movimento sociais alegam que os números são maquiados e inflacionados. Fabio Pozzebom/ABr
EM UM país onde, em média, 32% do orçamento da União é destinado ao pagamento da dívida pública e apenas 5% vai para Saúde, 2% para Educação e 0,3% para reforma agrária, não é de se estranhar que os avanços das políticas públicas ainda engatinhem. Essa é uma das conclusões que podem ser aferidas com base em estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Semestralmente, o órgão publica o Boletim de Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, trazendo um conjunto de informações que, como explica Luseni Aquino, pesquisadora, faz um balanço do semestre anterior das ações do governo federal na área social. Apesar de ressaltar a dificuldade de se fazer uma análise abrangente do desempenho das políticas públicas ao longo dos sete anos em que o estudo vem sendo elaborado, Luseni acredita que, à despeito de um cenário bastante desfavorável economicamente, e também ideologicamente, “por conta de uma visão de que o Estado deve ter um papel menor na área social”, houve uma efetiva expansão da proteção social nesse período. “Saímos de um sistema de proteção ainda em montagem e hoje temos algo robusto. Houve ampliação dos direitos sociais dos brasileiros. Acredito que está comprovada a eficiência da política social pública como combate à pobreza”, avalia. Sem a ação do Estado, ou seja, sem a execução de políticas públicas, por mais defi-
cientes que ainda sejam, não seria possível observar uma melhora na área social, mesmo que tímida. Dentre os limites de atuação apontados pela pesquisadora estão os modelos de gestão e o limite orçamentário. “Um desafio geral para todas as áreas é o aprimoramento dos mecanismos de gestão, com mais descentralização, participação social, criação e fortalecimento de conselhos. Tudo isso vem operando, mas ainda carece de alguns aprimoramentos”, aponta.
Arquivo Brasil de Fato
Dafne Melo da Redação
Trabalho Recuperação dos salários a partir de 2005, mas só em maio de 2006 a média de rendimentos empatou com a média de janeiro de 2003; aumento das mulheres no mercado, com crescimento de 18,4% no emprego doméstico; menores salários tiveram maiores ganhos reais, com até 9,6% entre os 30% mais pobres; mais bem remunerados tiveram aumentos menores, com ganho real de 3,7% entre os 20% mais bem pagos; entre 2000 e 2006 observou-se crescimento no pagamento do abono salarial (7,2 milhões de benefícios a mais) e do seguro-desemprego (1,8 milhões a mais). Previdência social Desde 1998, a porcentagem de não-segurados entre a população economicamente ativa tem oscilado em cerca de 2% para baixo ou para cima. Em 1998, 46% não possuíam Previdência; em 2002, 48%. Em 2006, essa porcentagem voltou para 46%. Educação De 1995 a 2006, os investimentos em educação nunca ultrapassaram 1,31% do PIB, índice registrado em 1995. Em 2005 registrou-se o investimento de 0,93%; no ano seguinte, 1,03%.
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brasil Ricardo Stuckert/PR
O fator etanol COMÉRCIO Produção de agrocombustíveis voltada para os países ricos altera condução da política externa brasileira Pedro Carrano de Curitiba (PR) EM MEIO à dificuldade para conseguir matrizes energéticas não-renováveis, devido à resistência dos povos e ao aumento dos preços do petróleo e do urânio no mercado, os Estados Unidos vêem no governo brasileiro um aliado na produção da energia necessária para manter a maior indústria e a maior frota de carros do planeta. A produção do etanol, agrocombustível desenvolvido a partir da matriz vegetal, revela-se custosa nos EUA – onde é feito a partir do milho – e mais econômica no Brasil e noutros países tropicais, onde existem fatores como a superexploração do trabalho, clima favorável, grande quantidade de recursos hídricos e terras agricultáveis. Juntos, Brasil e Estados Unidos são responsáveis por 70% dos combustíveis feitos a partir da matriz vegetal da cana-de-açúcar. A expectativa dos países centrais é aumentar a quantidade de álcool misturada à gasolina até 2010. Essa política, ademais, acalma o apelo mundial pela redução de gás carbônico (CO²) emitido na atmosfera pela queima de combustíveis fósseis, ainda que esteja longe de solucionar esse problema estrutural O etanol é, então, o símbolo de um modo de produção voltado para atender às necessidades de consumo dos países ricos, algo que repercute na atual política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A influência da política do “etanol” ficou clara com a visita de Bush ao Brasil (em março de 2007) e com a retribuição de Lula no mês seguinte, viajando aos Estados Unidos para tentar definir uma cooperação entre os dois países na produção de etanol. Como moeda de troca, o presidente barganha apenas a quebra dos subsídios agrícolas dos governos dos países centrais.
Dependência Essa política reflete o modelo econômico adotado pelo Brasil e ressoa em outras nações da América Latina. Em 2007, Lula visitou a América Central para propor a produção
de etanol, assim como o monocultivo da cana também é apresentado como solução ao Haiti, país controlado militarmente pelas tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) sob o comando do governo brasileiro. Esses países utilizariam a tecnologia brasileira e toda produção seria exportada para os Estados Unidos. As vantagens? Os países da América Central e do Caribe não pagam taxas para enviar o etanol aos EUA e têm uma cota de até 7% do mercado estadunidense. Embora a questão dos agrocombustíveis a partir do cultivo das oleaginosas, como a mamona, seja encarada pelos movimentos sociais como um espaço em disputa, a política de produção do etanol, ao contrário, simboliza uma forma de domínio que se estende da África até a América do Sul. Essa situação altera a correlação de forças da política externa brasileira, incapaz de criar um enfrentamento entre os países periféricos e os governos dos países centrais.
Inversão Fátima Mello, secretária-executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), teme que o Brasil flexibilize posições. “Havia pontos nos quais o governo não cedia na Rodada Doha, mas temos o temor de que ceda agora, preocupado em abrir mercados para o etanol. O agronegócio diz algo como ‘temos oferta, mas necessitamos de demanda’, pressionando o governo brasileiro abrir mercados lá fora e o acesso a mercados agrícolas”, explica. De acordo com ela, a política externa do Brasil deveria pressionar os governos de países centrais (Europa e Estados Unidos) a reduzir os padrões de consumo de energia. Mas, ao contrário, o que se vê é o modo de produção nacional se limitando a suprir as necessidades de consumo do dito primeiro mundo. “A política de produção de agrocombustíveis brasileira deveria se voltar para as necessidades internas da população e da região da América do Sul. Se a nossa prioridade fosse a integração regional, recursos deveriam ser voltados para apoiar essa integração”, comenta.
Bush e Lula: monocultura da cana para suprir necessidades dos países ricos
Rodada Doha Ciclo de negociações entre os países ricos, do “Norte”, e os países em desenvolvimento, do “Sul”, que ocorre desde 2001 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). As disputas giram
em torno da redução dos subsídios agrícolas nas nações centrais e abertura dos mercados de produtos industrializados e serviços na periferia, além de acordos sobre propriedade intelectual. O Brasil lidera um grupo de países subdesenvolvidos que só aceita reduzir tarifas se houver contrapartidas
Um modelo de desenvolvimento voltado para fora Países latino-americanos transformam seus territórios em corredores de exportação Ricardo Stuckert/PR
de Curitiba (PR) O Brasil e a América Latina se caracterizam atualmente por políticas e projetos voltados ao investimento em infra-estrutura em áreas como transportes, comunicações e produção de energia elétrica. Isso acontece para facilitar a produção e a circulação de minérios ou produtos agrícolas em busca de mercados. É nesse cenário que a produção do etanol se desenvolve. Na América Central, trata-se do Plano Puebla-Panamá e, na América do Sul, fala-se na Iniciativa para a Integração da Estrutura Regional Sul Americana (IIRSA). No Brasil, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) encarna esse modelo político. Os dois primeiros são aplicados na prática, ainda que sem um marco jurídico aprovado. Marcelo Leal, da cooperativa Cooperbio, que desenvolve projetos alternativos na área de agrocombustíveis, aponta que a política externa do governo Lula está baseada nessa reestruturação da produção. Hoje, segundo ele, o que o capitalismo aproveita dos países latino-americanos são os recursos hídricos para a geração de energia elétrica e, ademais, o potencial para o cultivo das matérias-primas dos agrocombustíveis.
Saque da natureza Na América Central, esse modelo é visível. Em agosto de 2007, por exemplo, Lula visitou a Nicarágua com a proposta de produzir etanol naquele país. Porém, Leal conta que, por ora, organizações nicaragüenses pedem a soberania alimentar, ao invés do mo-
No Brasil, 40 milhões de hectares foram destinados à produção de etanol
nocultivo da cana-de-açúcar. Para ele, a exploração por meio de programas como o IIRSA e o PAC promovem um saqueio dos recursos naturais, a partir de projetos nas áreas de transporte, energia e comunicação. “A exploração energética sai na forma de produtos. Por exemplo, a barragem do rio Madeira não é para resolver o problema de energia da região Amazônica, mas a energia que serve a um projeto de extração mineral. Trata-se da pergunta que o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) faz: a energia para quê e para quem?”, observa. Essa retirada de recursos energéticos dos países não acontece sem uma forte exploração do trabalho humano, como no caso da plantação de cana-de-açúcar. “É algo que não se separa, a exploração do trabalho e a degradação da natureza. A energia ajuda a determinar o grau de força produtiva”, afirma. O povo da Nicarágua dá uma mostra da contradição que tais políticas impõem: de um lado, o
país possui vastas reservas hídricas, enquanto praticamente 50% das pessoas não possuem energia elétrica na própria casa ou possui uma das 250 mil ligações do tipo “gato”. O latifúndio se reorganizou no país após a derrota dos sandinistas e da propriedade coletiva, no início dos anos 1990.
Alternativas Na opinião de Fátima Mello, secretária-executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), o mundo, de fa-
to, precisa produzir alternativas na produção de energia que sejam “antiimperialistas, permitindo ‘empoderamento’ aos países do Sul”. De acordo com ela, o governo brasileiro poderia ser um ator importante e a política externa poderia refletir isso. Mas não é exatamente esse o caminho que está sendo seguido. Tanto no Brasil, como no restante da América Latina, projetos econômicos como o do etanol se apresentam como se a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) fosse colocada em prática pela via dos fatos, como se não precisasse de qualquer marco jurídico. O que predominam são as leis da produção desenfreada de mercadorias, somente como valor-de-troca para exportação. Não é à toa que um projeto comum na América Central, como o das Zonas de Processamento de Exportação (ZPE), tenha sido silenciosamente aprovado pelo governo em 2007. Assim, o Brasil se torna “paladino do livre comércio, mostrando os lugares certos das periferias e semiperiferias”, como descreve em artigo o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon. (PC)
O etanol no Brasil No Brasil, a área destinada para a monocultura da cana-deaçúcar para a produção do etanol alcança entre 20 e 40 milhões de hectares, ou seja, chega a ocupar um território um pouco superior ao Estado do Mato Grosso do Sul. A expansão é visível em São Paulo, onde a transnacional Cargill compra usinas de cana na região de Ribeirão Preto, local que responde por 70% do que se mói de cana no país. Outros Estados, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás podem ter biomas como o Pantanal e o Cerrado afetados pela expansão dos cultivos. (PC)
dos países ricos no mercado agrícola. Essa posição prevaleceu em 2003, em Cancún (México), quando a posição dos países periféricos impediu a assinatura de um acordo. Desde esse episódio, as negociações esfriaram; entretanto, hoje em dia, o Brasil é um dos países que procura retomar a Rodada.
Haiti, uma ocupação econômica Para sindicalista haitiano, dinamismo fomentado pelo agrocombustível será orientado para o beneficio de Curitiba (PR) Ocupado militarmente pela Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), o Haiti tem as portas abertas para políticas que acentuam a contradição entre capital e trabalho. Nas cidades, são as zonas francas de produção de tecido, onde os trabalhadores enfrentam longas jornadas de trabalho; para o campo, a produção de etanol se anuncia: o Brasil pretende oferecer 9,2 milhões de dólares para países da América Central e do Caribe, com o objetivo de que implantem e desenvolvam indústrias de agrocombustíveis. O sindicalista haitiano Didier Dominique, da organização sindical Batay Ouvrye, vem constantemente ao Brasil para denunciar tal opressão econômica e militar. Em entrevista ao sítio da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), ele analisou a inserção do etanol em seu país: “Sem dúvida, o projeto do etanol pode ser bem acolhido não só pelos grandes latifundiários daqui, mas também pelos médios e, em certa medida, até pelos pequenos produtores por trazer, num primeiro momento, certo dinamismo a uma agricultura muito decadente nos últimos anos. Mas esse dinamismo não será mais do que momentâneo, parcial e orientado para o beneficio exclusivo das classes dominantes. Para entender, basta recordar as plantações de sisal que as transnacionais estadunidenses implantaram durante a primeira ocupação, em 1915. Não só destruíram as terras, como trouxeram enormes ondas de migração às principais cidades, que não tiveram tempo nem capacidade para absorver o fenômeno”. (PC)
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brasil Divulgação
Cena de Tropa de Elite: filme reforça o discurso do Estado que dá à ação policial uma dimensão heróica
Como narrar a violência? ANÁLISE A linguagem não dá conta quando a experiência está próxima demais daquele lugar onde as palavras já não mais existem Silvia Beatriz Adoue Mais uma vez, a propósito do filme Tropa de Elite, um colega me dizia que a história poderia ser contada do ponto de vista do Baiano, o “dono do morro”. Eu argumentava que não mudaria tanta coisa assim. O Baiano do longa, afinal, é espelho do Capitão Nascimento. Ambos sabem que estão numa guerra, ambos têm família.
Como seria a história contada por uma das crianças da família que tem sua casa invadida pela polícia durante o café da manhã? Como seria a história contada pela Rose, que é golpeada enquanto é sufocada com a cabeça dentro de um saco plástico? O que o filme deixa fora de discussão é justamente o fato de se tratar de uma guerra. Quem não percebe como os estudantes que mantêm uma ONG no bairro é babaca? A violência, então, aparece justificada: “guerra é guerra”, “ninguém é inocente”. Ou, como diz e repete o protagonista: “quem ajuda traficante é cúmplice”. A frase, que vale para acusar tanto os policiais comuns quanto aos usuários de drogas e os moradores que não dedam os traficantes, é um prenúncio e justificativa para a tortura e o assassinato dos tais cúmplices. A “guerra”, assim instalada no enredo, permite dar à ação dos policiais uma dimensão heróica. Na ficção, eles en-
tram na favela com a cara e a coragem. Não querem a guerra, mas foram empurrados a ela. O inimigo é poderoso e não dá trégua. A classe média – os “burguesinhos” – nem percebe o que “realmente” acontece. Essa construção coincide com o discurso do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O filme reforça a ficção do Estado, essa máquina de produzir narrativas. Na realidade, os “guerreiros” não entram assim, de peito aberto, entram de caveirão. Eles não têm de que se orgulhar. Descem o morro sem histórias para contar para os seus netos, nem para espectador de filme de ação e muito menos para júri do Oscar. Não há relato heróico. Há apenas vítimas e vitimários.
Perspectiva O relato mudaria radicalmente se o ponto de vista fosse o das vítimas. Daquelas que sobreviveram para contar, já que, no que vai do ano, a polícia matou 961 pessoas no Rio de Janeiro. O relato das vítimas, das testemunhas que viram respingar o sangue dos seus e o próprio, não no vidro da câmara, mas diretamente em seus olhos, não será uma epopéia. Como seria a história contada por uma das crianças da família que tem sua casa invadida pela polícia durante o café da manhã? Como seria a história contada pela Rose, que é golpeada enquanto é sufocada com a cabeça dentro de um saco plástico (o “sub-
marino seco” – nome dado a essa técnica pelos torturadores durante as ditaduras na América Latina)? Como seria a história contada pelo garoto que acorda com sua casa invadida e, depois de sofrer a mesma tortura que Rose, é ameaçado de violação com um cabo de vassoura? O relato das vítimas é um relato fragmentado, e duvidoso até para elas mesmas. Foram objeto da violência, que não apenas machucou seu corpo, mas sua capacidade de entender, de dar um sentido ao que aconteceu com elas.
E o algoz não foi um extraterrestre e nem um monstro vindo das profundezas do mar: foi alguém que fala a mesma língua, que pode até torcer pelo Mengo. E que, qualquer dia, a vítima encontra por aí, na praia ou na rua Quais palavras As histórias de sobreviventes dos campos de concentração nazistas e dos cárceres das ditaduras da América Latina têm forma semelhante. A linguagem não dá conta da experiência. Não por-
que não há palavras que dêem conta dos fatos, mas porque foi uma experiência extrema, uma experiência de morte, próxima demais daquele lugar no qual não há mais palavras. Quais palavras seriam suficientes para comunicar a experiência da suspensão completa da possibilidade de reagir aos golpes, ao afogamento, ao choque elétrico, à violação, à mutilação? Com os sentidos ativos, até demais, mas sem conseguir organizar, num relato, o que estes sentidos informam, ou seja, uma memória sem significado. Mesmo assim, às vezes, a vítima relata. Seu relato nem sempre tem nexo, ordenação temporal e muito menos causal. Sua narração parece mais com uma descrição, na qual se acumulam dados, grande parte deles parecendo-nos supérfluos: a cor do céu, o barulho de alguma coisa que quebrou, o cheiro da panela ainda no fogão, uma música que ficou tocando no rádio que a vizinha esqueceu de desligar em meio aos gritos dos policiais... O que diziam os gritos? Na hora, não deu para entender as palavras, só foi guardado seu som. A memória conserva isso, às vezes, como um registro muito material. Não houve seleção, ordenação dos dados, muito menos interpretação. Porque foi uma experiência vivida sem a posse das faculdades que permitem entender, refletir, dar um sentido ao que acontece. Isso faz a vítima até duvidar de ter viviDivulgação
Relato mudaria se o ponto de vista fosse o das vítimas
do aquilo tudo. “Como pode? Como pode ter acontecido isso comigo?”.
Incompreensível Às vezes, narra em terceira pessoa, como se tivesse acontecido a outro. Porque “realmente” aconteceu a um outro. A um outro que, nessa hora, não era capaz de raciocinar. Alguém que deve de ter “morrido”, porque não se pode passar por essas coisas e sobreviver. O humano que há em todos nós narra. E o humano ainda vivo no sobrevivente precisa narrar, mas como? Não tem confiança em sua capacidade de comunicar e ser entendido, porque ele mesmo não entendeu. Procura um ouvido solidário, alguém que o ajude a ordenar toda essa memória. Que o ajude a entender e a se fazer compreender. Precisa desse interlocutor para organizar o relato. Conta todas as minúcias, porque não sabe quais são portadoras de algum significado que lhe escapa. Por via das dúvidas, guarda todas elas, para quando conseguir processar a informação ou para que outro lhe explique.
Às vezes, narra em terceira pessoa, como se tivesse acontecido a outro. Porque “realmente” aconteceu a um outro. A um outro que, nessa hora, não era capaz de raciocinar. Alguém que deve de ter “morrido”, porque não se pode passar por essas coisas e sobreviver Medo Já não confia na sua capacidade de discernimento. Foi pego desprevenido. Entre as vítimas, as crianças são as mais afetadas, justamente porque a falta de experiência faz com que os mais jovens confiem mais nos outros e, por esse motivo, a violência lhes dá em cheio. O tempo fica dividido em antes e depois. Depois, tudo parece ameaçador. Inclusive, e sobre todas as coisas, aque-
las que antes lhe pareciam amigáveis. O mundo familiar resulta assustador, porque foi nesse mundo familiar, que inspirava tanta confiança, que a violência aconteceu. E o algoz não foi um extraterrestre e nem um monstro vindo das profundezas do mar: foi alguém que fala a mesma língua, que pode até torcer pelo Mengo. E que, qualquer dia, a vítima encontra por aí, na praia ou na rua. Então, esses lugares são perigosos. E mais perigosos são aqueles que não o parecem. Inclusive o bairro e o lar, onde os algozes entraram sem qualquer resistência. Não há mais intimidade. Não há mais fora e dentro. A violência atingiu o âmago. Não há um lugar em que se esteja a salvo, nem mesmo o próprio coração. Tudo foi invadido e destruído. Como recompor essa intimidade? E como discernir a quem se pode estimar?
E o afeto? Em quem confiar, se mesmo o afeto dos seus foi impotente para evitar a violência que caiu sobre a vítima? E se o atingido foi um ser querido que o sobrevivente não pôde proteger? Como narrar essa perda e, ao mesmo tempo, esse fracasso do afeto, se este se revela tão fraco para defender os seres queridos? E se o risco de novas perdas se apresenta assim, tão real, como apostar novamente no afeto? Como andar pela vida criando laços? Ainda assim, com teimosia, o sobrevivente muitas vezes tenta o impossível: narra. Narra para denunciar, mas também para entender. Sua história não rende uma epopéia, nem um filme de ação e nem dá roteiro para concorrer ao Oscar. O sobrevivente narra para recuperar a capacidade de entender, para recuperar a confiança de que a vida tem alguma lógica que permite prever e ser, assim, menos vulnerável. Narra, então, para deixar de ser objeto indefeso. Foi reduzido a carne destroçada, mas ele narra. Narra para ser gente. Silvia Beatriz Adoue é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP), doutoranda em Literatura Hispano-americana, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), e professora do curso de Letras do Centro Universitário Claretiano (Ceuclar)
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brasil Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Populismo carcerário POLÍTICA CARCERÁRIA Pesquisador aponta que experiência de privatização de prisões nos Estados Unidos e Inglaterra foram um fracasso Dafne Melo da Redação
Brasil de Fato – Sua tese de doutorado faz um estudo sobre a privatização de presídios nos Estados Unidos e na Inglaterra. Como se interessou pelo tema? Laurindo Dias Minhoto – Foi uma pesquisa comparando EUA, Inglaterra e Brasil. A idéia surgiu a partir da observação de que a crise penitenciária no Brasil já vem se arrastando há pelo menos duas décadas. Em 1992, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, discutiu formalmente a possibilidade do Brasil partir para a privatização do sistema penitenciário como uma suposta estratégia para se enfrentar essa crise, gerada por superlotações, criando um quadro de condições de encarceramento bem deterioradas. Houve o início desse debate no Brasil, interessei-me pela questão e, no mesmo ano, ganhei uma bolsa de estudos para fazer doutorado na Inglaterra. Tomei contato com a experiência inglesa na privatização de presídios e pude também colher muito material sobre a experiência nos Estados Unidos, ambos países que saíram na dianteira desse processo. Isso começa em 1983 com o Ronald Reagan, nos EUA, e com a Margaret Thatcher, na Inglaterra.
Hoje, os EUA são de longe o país que mais encarcera. Há mais de 2 milhões de presos. Os dados para São Paulo são absolutamente impressionantes. Em 12 anos, desde 1995, foram construídas 97 prisões, e o total de presos passou de 55 mil para 144 mil Quais foram os resultados? Você tem um processo desigual que viveu seu auge nos anos 1990. Isso se deu em torno da idéia de reduzir custos na administração de presídios num contexto em que o encarceramento estava crescendo de maneira muito intensa, principalmente nos Estados Unidos. Há também um cenário de crise fiscal do Estado, daí essas propostas de envolver a iniciativa privada na construção e administração de presídios. A maior expansão dessa participação deu-se nos anos de 1980/90. A partir da virada para o século 21, inicia-se um debate um pouco mais sofisticado e já com bases nas experiências realizadas. Detectou-se que as prisões começaram a apresentar presença de superpopulação, tal como acontece com estabelecimentos públicos. Verifica-se que as empresas, que obviamente têm objetivo de lucro, acabam reduzindo custos de administração que podem implicar em deficiência de gestão. Por exemplo, com pessoal: remuneram mal, contratam pessoas pouco qualificadas. Percebe-se claramente que os estabelecimentos privados apresentam problemas muito similares aos públicos. Uma das questões centrais que aparece – que, a meu ver, é uma questão decisiva – é saber até que ponto o interesse econômico das empresas privadas é compatível com os objetivos da política penitenciária. Especialmente a ressocialização dos presos. Essas empresas, majoritariamente, são remuneradas por uma base per capita dos presos que estão nos seus estabelecimentos prisionais, o que faz com que estejam sempre com sua capacidade máxima ou mesmo operando acima do limite.
Cela parcialmente demolida da delegacia de Abaetetuba (PA), onde uma adolescente ficou presa junto com homens
Analisando os resultados, então, essas prisões privadas nos Estados Unidos e Inglaterra apresentaram os mesmos problemas que as públicas? Exato. De um lado, não houve melhoria significativa nas condições de encarceramento e, de outro lado, estudos apontam que não houve uma redução significativa de custos para os governos e a sociedade. E esse era um dos objetivos iniciais da política, pois se acreditava num barateamento tremendo desses custos per capita. Esse custo recai sob a iniciativa privada? Não, para o Estado. Lembre-se que é sempre o Estado que paga. Quem defende a proposta imagina que o Estado vai desembolsar menos por conta de uma suposta maior eficiência do setor privado. Mas quem banca, em última instância, é sempre o Estado, seja público ou privado. Então, o que tem se constatado internacionalmente é que não há melhorias e os custos são maiores. No caso do Brasil, o resultado seria o mesmo. Você falou anteriormente que a política carcerária brasileira vive pelo menos duas década de crise. Por quê? Nessas duas últimas décadas essa crise se intensifica barbaramente, pois é conseqüências de fatores estruturais. Desde a transição democrática, de 1985 para cá, observamos a falência do projeto desenvolvimentista. A exaustão desse projeto está diretamente relacionada ao agravamento do quadro de violência e criminalidade. Claro que isso se vincula à urbanização acelerada e ao inchaço das grandes cidades, gerando péssimas condições de vida nas periferias das metrópoles. Então, temos uma estagnação econômica que não consegue fazer com que um contingente muito expressivo da força de trabalho seja absorvido pelo mercado. Isso, ao meu ver, está por trás do boom da criminalidade das últimas duas décadas. Com a falência do desenvolvimentismo, também muda a maneira como o Estado responde ao agravamento da violência e da criminalidade. Particularmente em São Paulo, vamos detectar, de modo pioneiro, nos últimos 10 anos, a opção política de lidar com esse problema da violência de maneira repressiva. Podemos dizer que esse Estado lidera o processo de encarceramento em massa no Brasil, que tem algumas similaridades do quadro estadunidense: hoje, os EUA são, de longe, o país que mais encarcera. Havendo mais de 2 milhões de presos e os dados para São Paulo são absolutamente impressionantes. Em 12 anos, desde 1995, foram construídos das 97 prisões, e o total de presos passou de 55 mil para 144 mil. Recentemente o Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam) para fazer um mapeamento do impacto dessa política de encarceramento no interior do Estado o presidente do Cepam, Felipe Soutello, constatou que em nenhuma região do mundo se construíram tantas penitenciárias na última década como em São Paulo. Quando estourou a crise do PCC, em 2006, falou-se muito da necessidade de construção de presídios. Então, de certa forma, isso tem sido feito. O que falta é investimento social, então? Exatamente. Há pelo menos 10 anos
o Estado enveredou nessa política que aposta na construção de presídios como a melhor resposta para o aumento do crime e da violência. Em 2004, o Estado gastou mais com presídios do que com Saúde ou Educação, em termos de investimento nos órgãos de administração direta. Do total do orçamento de R$ 1,6 bilhões, foram destinados R$ 237 milhões para o sistema penitenciário, R$ 206 milhões para Saúde e R$ 194 milhões para Educação. Isso já ocorre em alguns Estados norte-americanos, o que significa que, por conta da política do encarceramento em massa, ocorre essa distorção orçamentária na qual investem mais em justiça criminal do que na área social. A privatização ou parcerias público-privadas dos presídios aparece sempre como uma alternativa quando ocorrem casos como o da adolescente no Pará. No Brasil, já existe alguma experiência de prisão privada? Normalmente, quando se defende a privatização, não se leva em conta a experiência internacional que mostra que não houve melhoria sensível nos estabelecimentos privados, nem em termos das condições de encarceramento, nem para redução de custos para os Estados. O segundo ponto em relação ao Brasil, nos últimos oito anos é que o governo federal resolveu implementar, em caráter experimental, estabelecimentos privados. No Paraná, chegaram a operar sete ou oito estabelecimentos, e um outro no Ceará. Esses contratos foram revistos nos últimos dois anos e tudo indica que não serão renovados porque não se constaram melhorias, sobretudo na medida em que o fluxo de presos aumentou, e porque o custo da administração das prisões privadas era superior ao dos estabelecimentos públicos. Mas, apesar dos exemplos negativos, por que essas propostas continuam sendo defendidas? Em primeiro lugar, porque a experiência internacional é apresentada como bem-sucedida, o que está longe de ser verdade. Segundo, porque o Brasil vem adotando um programa de privatização intenso que abrangeu muitas áreas e, nesse sentido, algumas pessoas desconsideram os traços específicos do sistema prisional, imaginando que, assim como se privatizou telefone e energia, poderiam também privatizar as prisões. O que dá certo? Essa é uma questão bastante delicada. O certo é que enquanto continuarmos a apostar na prisão como melhor mecanismo para combater a criminalidade, vamos fazer uma pauta equivocada. Basta você pensar em dados simples, como na criminalidade nos países da Europa Ocidental, onde se encarcera muito menos e as taxas são igualmente muito menores. É um dado simples para afirmar que a prisão não tem sido, em termos históricos – e há inúmeros estudos que comprovam isso –, um instrumento adequando de combate à criminalidade, mesmo as violentas. O que fica óbvio, embora seja difícil convencer grande parte da população, é que nenhuma política carcerária e de segurança pública pode vir desvinculada de investimentos sociais. Não dá, e a única coisa que pesa de for-
ma estrutural, e não pontualmente, para diminuir a violência, é a melhoria das condições sociais. Especialmente em regiões periféricas. O ponto principal de uma política de segurança pública no Brasil, hoje, seria a tomada de consciência de que o direito penal é absolutamente ineficiente como instrumento de combate à violência. Como entender, a partir disso, o surgimento de grupos organizados criminosos no interior dos presídios? É uma das principais conseqüências nefastas e perversas das políticas de encarceramento em massa. Qualquer especialista em segurança pública sabe que a prisão é, ela mesma, um fator de agravamento da violência. Se você pega os números de reincidência – embora variem muito – eles são significativos, pois o Brasil tem essa taxa muito elevada, exatamente por conta da forma como funcionam nossas prisões. Apostar no encarceramento é apostar num mecanismo que produz mais crime, inclusive aquele dito organizado. Em São Paulo, isso coincide com a política de encarceramento em massa. Porque há a insistência numa política exclusivamente repressora? O principal motivo é a capitação de dividendos políticos. O Estado se apresenta à população como se estivesse fazendo sua parte, endurecendo com o crime. Trata-se de um exemplo do que poderíamos chamar de “populismo penal”. Para uma população acuada pela violência, esse discurso pode soar bastante contundente, embora mesmo que cheio de meias verdades. Outra razão na qual se aposta é que, como o Brasil é fortemente influenciado pelos Estados Unidos, isso também se reflete em termos da política criminal e penitenciária. Tenho impressão que essa hegemonia ideológica também se manifesta aí. Tomamos os EUA como uma espécie de modelo para essa área. É possível, hoje, no Brasil, efetivar uma política de segurança pública que tivesse uma perspectiva mais inclusiva e menos repressiva? Tenho a impressão que as poucas lideranças da área que procuraram fazê-lo esbarraram em toda sorte de obstáculos. O caso mais notório foi o do Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança Pública do governo federal, que entrou em atrito com o próprio governo nos primeiros anos de sua gestão. O horizonte político-cultural brasileiro não é nada favorável à implementação de uma política diferente dessa medida de encarceramento de massa.
Quem é Laurindo Dias Minhoto é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), fez mestrado em Londres e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou nas Faculdades de Direito e Saúde Pública. Atualmente, é professor do Departamento de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo.
Arquivo Pessoal
O RECENTE caso da prisão de uma menor de 15 anos em uma cela com outros homens, durante 26 dias, na delegacia de Abaetetuba (PA), reacendeu o debate sobre as falhas na Justiça e no sistema carcerário brasileiro. Não raro, aparecem em meio às soluções milagrosas para o fim de problemas como esse – ou do Primeiro Comando da Capital (PCC) – a privatização de estabelecimentos prisionais. Laurindo Dias Minhoto, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, opõe-se frontalmente a essa saída. Estudioso do assunto, afirma que as experiências internacionais e nacionais falharam tanto em oferecer melhores condições, quanto em reduzir gastos para o Estado, dois dos principais argumentos de quem acredita na privatização e parcerias público-privadas para o setor. Leia, a seguir, os principais trechos de entrevista cedida pelo pesquisador ao Brasil de Fato.
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nacional
Perspectivas para a redução da jornada de trabalho brasileira Reprodução
LUTA SINDICAL Centrais prometem pressionar Congresso neste ano para reduzir jornada; medida poderia ampliar número de empregos Dafne Melo da Redação HÁ SETE anos, tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional (PEC) que propõe a redução do limite permitido para a jornada de trabalho do brasileiro, sem redução de salário. Entretanto, não surpreendentemente, a PEC 393/01 não recebeu muita atenção de deputados e senadores. Para este ano, as centrais sindicais prometem jogar peso na Campanha pela Redução da Jornada e cobrar o andamento da tramitação da proposta. Hoje, a Constituição brasileira define uma jornada negociável, mas com um limite de 44 horas semanais. A PEC propõe um limite de 40 horas, que passa a valer no ano seguinte de sua aprovação, e uma posterior redução de mais 5 horas dois anos depois. O projeto também prevê a redução da quantidade permitida de horas-extras. No dia 5 de dezembro de 2007, representantes de diversas centrais sindicais se reuniram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para discutir o projeto. “Ele nos disse para pressionarmos o Congresso”, conta Rosane Silva, secretária da Política Sindical da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Outra proposta O economista e presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea), Márcio Pochmann, tem uma proposta que vai mais além. Atualmente escrevendo um livro sobre o tema, ele acredita que existem condições econômicas para que
Jornada de trabalho: para Pochmann, ganhos de produtividade atuais alcançaram patamares que permitem a sua redução
se adote uma jornada semanal de trabalho de três dias, com expediente de quatro horas. Também afirma que o cidadãos brasileiros deveriam começar a trabalhar depois dos 25 anos de idade. A justificativa de Pochmann é a de que, hoje, os ganhos de produtividade alcançaram patamares muitíssimos elevados, o que permite a redução das jornadas. “Esse ambiente de construção de uma sociedade com mais produtividade permitiria justamente estabelecermos uma agenda civilizatória com uma jornada menor de trabalho, com ingresso mais tardio no mercado”, argumenta. O economista ressalta que a redução da jornada de trabalho seria estratégica para a distribuição de renda no país, uma vez que possibilitaria “repartir melhor os ganhos que estão sendo obtidos por essa nova economia em expansão”.
Financeirização Essa expansão, hoje, dáse também pelo aumento da produtividade imaterial, motivada, em grande parte, pelo mercado financeiro. “A meu
ver, o ganho de produtividade se expressa justamente na liquidez de recursos que circulam nos mercados financeiros. Esse recurso, identificado como valorização fictícia do capital, é a expressão direta da produtividade imaterial”, justifica. Quanto à produção mate-
rial, dados comprovam a tese de Pochmann. De acordo com a pesquisa industrial do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), em 1990, um trabalhador produzia 100 unidades de produto; hoje, com o mesmo tempo trabalhado, produz 213. A participação
Histórico Já no início do século 20, diversas categorias de trabalhadores se mobilizaram para reduzir as jornadas de trabalho. As conquistas eram setoriais, portanto. Em 1903, os trabalhadores da indústria têxtil, após uma greve, conquistam a redução para nove horas e meia. Nas duas décadas seguintes, diversas conquistas como essa se repetem, sempre após mobilizações. Muitos projetos de lei são concebidos, alguns já limitando a jornada para oito horas diárias, mas somente com a entrada de Getúlio Vargas na Presidência da República, a partir de 1930, a classe operária consegue consolidar suas conquistas. Em 1934, na Constituição Federal, é fixada a jornada legal em 48 horas semanais e oito horas diárias. A segunda mudança nessa área se deu em 1988, com a promulgação da atual Constituição, que passou a jornada para 44 horas. Novamente, a redução da jornada para 44 horas só foi possível por meio da luta dos movimentos sindicais que, num momento de reascenso dos movimentos de massa no pós-ditadura militar, tiveram uma participação atuante nos debates em torno da Constituição. (DM)
da massa salarial no PIB em 1990 era de 45% para empregados, 7% para autônomos e 15% para impostos. Em 2003, essas proporções passaram, respectivamente, para 36%, 5% e 17%, enquanto os lucros foram de 33% para 43% no mesmo período.
Desigualdade Entretanto, exemplo de conquistas anteriores na história do Brasil, e também em outros países, essa redução não virá sem luta social, defende Pochmann. Rosane, da CUT, comenta a dificuldade dessa disputa política. “Não temos a maioria do Congresso ao nosso lado; a imprensa comercial também não. Ambos fazem o jogo do empresariado”, comenta. A sindicalista também acredita que a redução da jornada é um mecanismo de distribuição de renda, bem como de geração de emprego. “Sempre há aquele discurso, como o do (economista) Delfim Netto, de que temos que deixar o bolo crescer para depois dividir, mas o bolo só tem crescido e nunca é dividido; só houve mais e mais acumulação de renda”, avalia. Pochmann observa que o
Quanto
3 dias por semana com quatro horas. Essa é a proposta de redução da jornada de trabalho do presidente do Ipea
capitalismo apenas proporciona a expansão das riquezas, mas não sua distribuição, o que é resultado da luta social. “Hoje, há uma brutal concentração de poder econômico. Estamos caminhando para uma sociedade na qual 500 corporações transnacionais dominam quase toda produtividade econômica. Num mundo com 1,5 bilhão de famílias, somente 1 milhão controla praticamente 2/3 da riqueza do mundo”, exemplifica. A esmagadora maioria dessas corporações, naturalmente, tem sua sede nos países ricos, embora suas fábricas concentrem-se nos países pobres, onde podem explorar uma mão-de-obra mais desprotegida legalmente. O presidente do Ipea observa que, à despeito da redução da jornada nesses países ricos, suas produtividades só aumentaram.
DESERTO VERDE
Monocultura do eucalipto causa danos ao extremo sul da Bahia Reprodução
da Redação Terras agricultáveis e de boa qualidade, mão-de-obra barata, apoio e financiamento do governo. Este foi o cenário que atraiu empresas de papel e celulose para o extremo sul da Bahia e dar início ao plantio de eucalipto na região durante os anos 90. Segundo dados do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes), hoje, a região possui cerca de 600 mil hectares de eucalipto, num modelo de exploração que traz sérios problemas ambientais e sociais. “Todas as empresas de celulose receberam financiamento do governo através do BNDES. Mais precisamente, dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que deveria ser usado para gerar emprego e renda para o povo brasileiro”, explica Ivonete Gonçalves, da equipe executiva do Cepedes. A entidade denuncia que diversas propriedades com plantio de eucalipto não possuem reserva legal averbada, como exige a legislação – a reserva faz parte das condicionantes no licenciamento
Modelo de exploração traz problemas ambientais e sociais
A imprensa regional divulgava que a Veracel iria gerar cerca de 12 mil empregos com a chegada da empresa a Eunápolis. Na verdade, foram gerados 11,5 mil empregos no ano de 2004, 80% destes na área de construção das instalações físicas. Atualmente, apenas 739 empregos diretos e 3.150 indiretos são gerados, número bem longe dos 12 mil prometidos de implantação do projeto. O plantio do eucalipto, que é uma espécie exótica, provoca a destruição da fauna e da flora nativas. Deman-
da-se uma grande quantidade de água tanto para plantar o eucalipto quanto para a produção de celulose nas fábricas, o que provoca o esgo-
tamento das fontes, sem falar no uso extensivo de agrotóxicos que envenenam rios, córregos, lençóis freáticos etc. As empresas negam to-
dos os efeitos negativos e dizem que plantar eucalipto é muito melhor do que pastagem.
Êxodo rural Com relação aos problemas sociais, a silvicultura do eucalipto está provocando o êxodo rural na região. Num levantamento feito recentemente pelo Cepedes, a cidade de Eunápolis possui o maior índice de êxodo rural dos últimos anos. Segundo as pesquisas, o patamar, que era de 9,92%, pulou para 5,89%, equivalente a 59,37% (o maior índice nacional é de 28%) de pessoas a menos na zona rural, a partir do início dos anos 90, com a chegada da monocultura do eucalipto. Um exemplo dessa situação ocorreu em 1994, durante a instalação da Veracel Celulose no município. A imprensa regional divulgava na época que a Veracel iria gerar cerca de 12 mil empregos, o que provocou uma correria de pessoas de outros municípios e até de outros Estados, como Minas Gerais e Espírito Santo, em busca de emprego. Na verdade, foram gerados 11,5 mil empregos no ano de 2004, 80% destes na área de construção das instalações físicas. Atualmente, apenas 739 empregos diretos e 3.150 indiretos são
gerados, número bem longe dos 12 mil prometidos. As empresas de eucalipto pagam um alto valor para comprar ou arrendar as terras, acarretando no refúgio de peões de roça, vaqueiros, tropeiros, pequenos agricultores, bandeiradores de cacau e outras categorias. Segundo Ivonete, todas as terras agricultáveis estão nas mãos das empresas de celulose, o que inviabiliza a reforma agrária na região. “Cerca de 12 mil famílias estão acampadas nas estradas do extremo sul esperando a realização de seu sonho, um pedaço de terra para alimentar os seus filhos”, destaca. O Cepedes vem, desde 1991, documentando todas as ilegalidades das empresas de celulose, denunciandoas aos órgãos competentes e fazendo a divulgação entre os continentes. “A Veracel, por exemplo, tem contra ela 863 processos na Justiça do Trabalho. Neste ano, pedimos ao governo do Estado a moratória do plantio, visto que o próprio governo admite que não possui estrutura para fiscalizar. As empresas têm conhecimento disso, e aproveitam a situação para continuar plantando, comprando e arrendando terras”, finaliza Ivonete. (Adital – www.adital.com.br)
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américa latina Edgar Guzmán CC
“Governo Ortega é esquizofrênico” NICARÁGUA Mônica Baltodano, ex-comandante guerrilheira, analisa o primeiro ano da gestão de Daniel Ortega e o desafio da esquerda paliativo à exclusão social. No primeiro de maio, diante dos trabalhadores reunidos, Ortega disse que era preciso atuar contra as transnacionais que controlavam a energia. E na mesma hora que fez esse discurso, estava chamando o rei da Espanha e sua esposa para ajudar em uma negociação com a Unión Fenosa [empresa espanhola que controla a geração de energia na Nicarágua]. Por isso, eu digo que assistimos a um governo que tem um comportamento esquizofrênico, de dupla personalidade.
Jorge Pereira Filho de Fortaleza (CE) UM ANO após a eleição do sandinista Daniel Ortega, a Nicarágua vive um momento distinto. É o único país do continente que possui um acordo de livre comércio com os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, integra a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Se é verdade que Ortega chegou ao poder já com o TLC em vigor, a própria Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) aprovou o acordo no Congresso, como relata Mônica Baltodano, ministra do governo revolucionário na década de 1980. Ao mesmo tempo, foi o próprio Ortega que negociou o ingresso do país na Alba, ao lado da Venezuela, Bolívia e Cuba. Para Baltodano, o governo do ex-companheiro da Frente é esquizofrênico. “Tem um discurso muito de esquerda, antiimperialista quando está com Hugo Chávez. Mas, logo após, toma políticas econômicas em seu país que são totalmente contrárias”, explica. Baltodano foi expulsa da Frente na década de 1990 por suas críticas a uma transformação em um partido alinhado aos interesses corporativos. Crítica do “danielismo”, integra a Aliança Movimento Renovador Sandinista (MRS). Em entrevista ao Brasil de Fato, a sandinista Baltodano fala do desafio de se resgatar o sonho revolucionário em meio a um cenário de fragmentação e abandono da FSLN da causa transformadora.
Qual é a tarefa que a FSLN tem a cumprir? Sempre afirmei que o que faz a FSLN é responsabilidade de quem a dirige. E houve um processo, de cerca de 10 anos, pelo qual o poder dentro da Frente se concentrou totalmente na figura de Daniel Ortega e, agora, em sua família. As bases sandinistas seguem sendo revolucionárias, crêem no valor e nos princípios. Mas estão sendo enganadas, pois se negou o protagonismo das bases, rejeitou-se a formação política, acabou a democracia interna. Prosperou uma visão quase religiosa. Muitos, da base mais humilde, que não tiveram contato com a teoria crítica, olham Daniel como se fosse um Deus. Fechou-se o debate interno, quem pensa distinto foi expulso. Nossa esperança é que essa mesma força das bases, que continuam acreditando, possam insurgir contra as contradições geradas pelo próprio governo de Daniel Ortega. Isso poderia provocar mudanças internas e fazer com que a Frente recuperasse seu rumo. Agora, o sandinismo na Nicarágua é mais amplo do que a Frente Sandinista. É um conjunto de idéias, de pensamentos, que têm sua base na ação e no exemplo de Sandino, mas também de Carlos José, Ricardo Morales Aguillera, muitos homens e mulheres que caíram na luta contra a ditadura. Nós pertencemos a um movimento que se chama Movimento pelo Resgate do Sandinismo, em que estão outros comandantes da revolução, em aliança com o Movimento Renovador Sandinista, que tem também muita força. Alcançamos 10% de votos nas últimas eleições, e é um voto fundamentalmente sandinista. Estamos formando um movimento de esquerda alternativo à frente sandinista que está sendo levada a uma ação prática, que não tem nada a ver com os princípios e valores que nossos fundadores forjaram.
Brasil de Fato – Se é verdade que Daniel Ortega tem uma imagem de progressista fora da Nicarágua, internamente há muitas críticas ao seu governo. Como você vê essa contradição? Mônica Baltodano – Por um lado, a Nicarágua está na Alternativa Bolivariana das Amérias (Alba); por outro, integra o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos. É preciso entender o que se passou nos últimos 16 anos. As ações de Daniel são continuidade desse processo. O TLC da América Central com os Estados Unidos foi colocado na agenda quando a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) controlava a agenda do Parlamento. As leis complementares foram aprovadas também no Legislativo com 36 votos sandinistas. Votos fundamentais. A relação de Daniel com a alta hierarquia católica se expressa em uma posição reacionária desde o ponto de vista cultural, das idéias, da formação política e dos direitos da mulher. Todos os atos oficiais do governo começam com uma evocação religiosa com a alta hierarquia católica ligada ao Vaticano. Nós dizíamos, em janeiro [quando Daniel assumiu], “vamos esperar o que vai acontecer”. Porque ele tem um discurso muito de esquerda, antiimperialista quando está com Hugo Chávez, pró-Alba. Mas logo após, toma políticas econômicas que são totalmente contrárias ao seu discurso.
Sobre a revolução, haviam três tendências na FSLN, e um dos desafios foi construir essa unidade na esquerda. Quais as lições que o processo de 1979 deixam para a esquerda em geral? As divergências que geraram as três tendências na Frente Sandinista foram de tática. Compartilhávamos um projeto estratégico. Uma dava ênfase às montanhas, outra priorizava a organização operária, e uma terceira ressaltava a insurreição nas cidades. Ao final, as condições da luta na montanha foram as que possibilitaram a insurreição nas cidades e a acumulação. Prevaleceu a idéia de juntar esforços para enfrentar o inimigo comum. E isso foi favorecido por uma conjuntura na qual o inimigo [a ditadura de Anastasio “Tachito” Somoza 1967/1979] foi ficando isolado, inclusive de seus aliados internacionais e até nacionais, porque até setores da burguesia distanciaram-se da ditadura. Nós cremos que a unidade fundamental na América Latina é em torno de um projeto comum. E por isso é muito importante ter o desenho desse projeto. O que queremos fazer? Quais são os traços do que queremos construir? Normalmente, agora assistimos a processos
Pode dar um exemplo dessas políticas? O orçamento da República é o instrumento que indica qual é a lógica de um governo com os recursos que arrecada do povo. Nesse caso foi exatamente o mesmo que o presidente Enrique Bolaños (2002-2007) deixou, um dos mais neoliberais dos últimos anos. Uma parcela maior dos recursos é destinada aos capitais financeiros da Nicarágua. Qual é a relação dele com o Fundo Monetário Internacional (FMI)? A política fiscal é exatamente a mesma. A comercial, idem. Que fez Ortega? Ele conseguiu que o Fundo aceitasse uma nova política social. Mas os mesmos capitalistas da Nicarágua necessitam, urgentemente, de uma política social. Por quê? É altamente explosiva a situação da Nicarágua. Essa política é também de interesse da burguesia. E o pior: com que recursos Ortega está fazendo essa política social? Com recursos da Venezuela e de Cuba. Para mim, isso não é correto. Em vez de implementar uma política fiscal que castigue os enormes lucros do capital financeiro nacional, usa a solidariedade como
Cláudia Marques
Ao invés de implementar uma política fiscal que castigue os enormes lucros do capital financeiro nacional, usa a solidariedade de Cuba e Venezuela como paliativos à exclusão social
Monumento e cartaz em homenagem a Augusto César Sandino
Sempre estivemos com o fator da guerra dos EUA. Em 1989, mais de 60% do orçamento da Nicarágua era para guerra, era para a defesa. Pode imaginar o nível absurdo de nossa situação? eleitorais, vem a necessidade dos votos, e acabam se sacrificando princípios e valores para conseguir um voto único que, depois, não está submetido à construção desse projeto comum. Primeiro, é o projeto; depois, o tema eleitoral. A unidade é importante, mas não é um objetivo em si próprio. A unidade deve estar em função de um projeto que contemple a todos. Às vezes, é necessário aprofundar a diferença para ter a possibilidade de uma verdadeira unidade revolucionária. Durante a revolução, houve uma idéia de economia mista em áreas estatais. A revolução subestimou as forças da burguesia? As bases pelas quais construímos o programa da revolução, depois do triunfo, tiveram três eixos: economia mista, não-alinhamento e pluralismo político. Se olhar, não falávamos de socialismo. Começamos a falar de orientação socialista dois anos depois. Era uma novidade construir uma revolução montada nesses três eixos. E talvez essa novidade a tornou mais perigosa para o imperialismo. Porque não negava o pluralismo, permitíamos a existência de partidos políticos. Não negava a existência de propriedade privada sobre os meios de produção, mas enfatizava que iríamos obrigar os cumprimentos de proteção social. E tampouco se alinhava com o socialismo da União Soviética. Apesar disso, o nível de agressividade dos Estados Unidos não permitiu avançarmos pacificamente esse modelo. Eu não posso dizer que a economia mista realmente fracassou. Não pos-
Quem é Aos 18 anos, Mônica Baltodano ingressou na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), na luta contra a ditadura de Anastasio “Tachito” Somoza . Dois anos após, em 1974, passou para a clandestinidade, e é presa em 1977. Consegue a liberdade e integra o Estado Maior, que dirige a insurreição da capital Manágua, o recuo tático para Masaya e as conquistas de Jinotepe e Granada. Em 1979, é graduada como Comandante Guerrileira e, em 1986, recebe a ordem Carlos Fonseca. Em 1982, assume o Ministério de Assuntos Regionais. Coordena processos de descentralização e fortalecimento dos municípios nicaragüenses, também como vice-ministra da Presidência. Foi expulsa da FSLN por se opor ao pacto entre Daniel Ortega e Arnoldo Alemán Lacayo, prefeito de Manágua condenado a 20 anos de prisão por corrupção. Hoje, é uma das principais figuras de uma corrente que busca renovar o sandinismo, o Movimento pelo Resgate do Sandinismo.
so analisar isso. Não pudemos aplicá-la em plenitude, devido à agressividade da estratégia estadunidense. Mas houve estatização de propriedades, não? No começo, nós confiscamos apenas as propriedades que haviam sido acumuladas a partir da ditadura. Respeitamos certo capital privado. Mas, depois, por causa da agressão, e quando os proprietários começaram a respaldar a contra-revolução, começamos a confiscar terras e empresas, não como parte de uma política pré-determinada da revolução, mas como castigo por seu apoio à contra-revolução. Eram atos de justiça contra até mesmo pequenos e médios empresários, ou donos de pequenas propriedades rurais, que se somavam aos contra-revolucionários por medo de perder suas terras. Então, o fator da guerra dos Estados Unidos, da intervenção, dos recursos que davam aos contra, do empenho que Ronald Reagan (19801988) teve em destruir nossa revolução, não permitiu que pudéssemos avaliar os atos políticos e econômicos em um ambiente muito mais claro. Sempre estivemos com o fator da guerra dos EUA. Em 1989, mais de 60% do orçamento da Nicarágua era para a guerra, era para a defesa. Pode imaginar o nível absurdo de nossa situação? O povo vivia em condições muito ruins. Era muito difícil avaliar a revolução sem tomar em consideração o impacto da guerra. Não é uma reforma agrária, apenas. É uma economia mista no meio de uma guerra. Era uma política exterior que terminou sendo alinhada, porque precisávamos do apoio em armas da União Soviética. O projeto original da revolução sandinista foi abortado. Você acredita que, devido ao nível de presença do capital estadunidense nos países latino-americanos, sobretudo na América Central, é possível desenvolver um processo revolucionário preservando a propriedade privada? Não posso te dar uma resposta categórica. Mas eu creio que, no processo de transição até um mundo distinto, como temos falado, as coisas vão ocorrer como processo. Mas, evidentemente, o nível de vínculo dos capitais nacionais com as transnacionais faz com que se fique em uma situação muito difícil de não se chocar com o imperialismo. Porque eles são os defensores fundamentais dos interesses das transnacionais. Acredito que um processo de transição tem que carregar escolhas e tem que haver uma decisão de priorizar os setores-chave. Por exemplo, a energia é fundamental para o Estado ter o seu controle. Por isso, a nacionalização. Outro exemplo: impedir a privatização da costa, das navegações. É preciso ter um setor financeiro nas mãos dos Estados nacionais. Não digo que no socialismo não deve haver bancos, mas é preciso construir um sistema financeiro com uma lógica distinta dos bancos privados. É muito difícil estabelecer um modelo acabado.
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américa latina
A construção do poder popular ARGENTINA Após a estabilização política, piqueteros buscam se reposicionar frente à ascensão do kirchnerismo iMC Argentina
Jorge Pereira Filho da Redação DEZEMBRO DE 2001. Um levante popular na Argentina inicia um movimento de final imprevisível. O país, solapado pelas políticas privatizantes e neoliberais, considerado o mais desenvolvido da América Latina, vive uma crise sem precedentes. A população sai às ruas. Surge o combativo movimento piqueteros, composto por trabalhadores desempregados. Sua principal forma de lutas são bloqueios de estradas, ocupações de áreas na periferia. Em dez dias, quatro presidentes renunciam. Para alguns, abre-se uma janela revolucionária. Dezembro de 2007. Néstor Kirchner, eleito em 2003 em meio à crise social e política, consegue fazer sua sucessora, Cristina, também sua mulher, nas eleições. Embalado pelo crescimento econômico, o segundo maior da América Latina, Kirchner esbanja popularidade. Já os movimentos populares vivem o descenso. Desmobilizados, sem alternativa política na agenda pública, pouco influem na disputa eleitoral. O que passou nesse intervalo de seis anos? Para Pablo Solanas, do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) de Lanús, a direita argentina encontrou em Kirchner a saída para o impasse que havia se colocado em 2001. “Era necessário escutar algumas reivindicações sociais, ter uma agenda de direitos humanos, de integração latino-americana”, explica o piqueteira que também integra a Frente Dario Santillan, articulação de organizações sociais. Para Solanas, o desafio colocado agora para os movimentos populares é retomar o trabalho de base e se preparar para um novo período em que as organizações sociais tenham uma alternativa à altura para se contrapor a uma crise capitalista. Os movimentos piqueteros passam por um momento de refluxo. Por que as organizações perderam o ímpeto que tinham há alguns anos? Em 2000, o modelo neoliberal chegou a uma crise muito profunda, afetando os trabalhadores desempregados, o setor que dá origem aos setores piqueteros. Mas não só, afetou também outros setores sociais, como as classes médias, que geraram movimentos nos bairros contra o confisco dos depósitos, faziam assembléias em diversos pontos de Buenos Aires. Esse conjunto de trabalhadores protagonizou um movimento muito potente que terminou com a queda do governo de Fernando de La Rua (1999-2001), um aluno do Fundo Monetário Internacional (FMI). E, depois, o governo decidiu desvalorizar a moeda. A partir desta situação, no plano econômico, ocorreu uma certa recuperação. No plano político, o governo de Néstor Kirchner (2003-2007) avaliou que havia condições para maior independência em relação às diretrizes do FMI. E após a melhora social, o setor das classes médias deixou o cenário de lutas. Os mais excluídos na sociedade seguiram com motivos para a mobilização porque as mudanças foram superficiais, e não de fundo. Hoje, permanece um alto nível de injustiça social na Argentina. Ficamos bastante ilhados, com menos legitimidade, muita agressão dos meios de comunicação privados. O movimento piqueteiro continua com presença nos bairros, nas comunidades, mas tem menos visibilidade pública. Uma marca dos piqueteros foi a fragmentação e a dificuldade de construir a unidade. Isso contribuiu para esse refluxo? A origem mesmo do movimento piqueteiro se deu por distintas correntes políticas. Surgiu como um movimento heterogêneo que, em seus momentos de maiores lutas, teve instâncias de coordenação geral. A diferença dos piqueteros com os sem-terra ou os zapatistas é que a identidade sem-terra, por exemplo, está referenciada por uma organização. A identidade zapatista é expressão do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Na Argentina, os piqueteros são uma expressão de uma diversidade de grupos. Isso não foi uma dificuldade nos momentos de auge da mobilização, porque havia uma coordenação de lutas, mas no momento de refluxo essas diferenças se tornaram mais fortes do que aquilo que nos unia, do que a luta comum. As distintas opções que os movimentos piqueteros também assumiram é outra particularidade desse período. A Frente Dario Santillan surge nesse contexto de recuo? Sim, como resposta ao refluxo e à fragmentação do setor dos desocupados. Uma oportunidade para reagruparmos forças e darmos um salto de qualidade com outras organizações irmãs, com as quais estávamos lutando. Somos uma ferramenta criada para superarmos a
Piqueteros são contidos pela polícia durante protesto em Buenos Aires
primeira etapa de movimentos apenas reivindicativos, no sentido de conformarmos uma ferramenta político social integradora. E, no desenvolvimento da luta de classes, veremos que outras instâncias vamos criar. O discurso da Frente é marcado também pela defesa do poder popular. O que vocês entendem por isso? Elaboramos esse conceito no calor de nossas lutas para definir algo que outras correntes teóricas não expressavam para nós. Por exemplo, não cremos que o resultado para as lutas populares seja a velha constituição de uma vanguarda que se prepara para o assalto do aparato do Estado. Acreditamos que é necessário pensar na destruição do Estado burguês e na construção do novo, mas como conduzir um processo de luta popular até isso? O que fazer nesse caminho? Por outro lado, no calor do movimento de assembléias, surgiu uma corrente autonomista que se inspirava nas experiências zapatistas, priorizando a horizontalidade, mas se contrapunha às necessidades de organização. Então, em oposição aos partidos tradicionais e às burocracias sindicais, fizemos uma crítica de que é necessário mudar as experiências organizadas. Porque, bom, eleger um delegado é expropriar a capacidade autônoma das bases. Como definir então a nossa experiência de construção? Nossa resposta tem sido a construção do poder popular, a partir da democracia de base como forma de funcionamento, que não é a horizontalidade autonomista nem o centralismo que deixou de ser democrático em muitos partidos tradicionais da esquerda na Argentina. O que é esse poder popular na prática? Construções de órgãos de poder territorial, regional e setorial. Participamos do movimento de fábricas recuperadas, nas quais os trabalhadores comandam as empresas sem a necessidade de patrões. É um exemplo de exercício de poder popular em que as relações que colocamos em prática precisam ir configurando essa nova sociedade, esse socialismo. Se, em nossas práticas de construção hoje, não somos capazes de colocar formas igualitárias, democráticas, de participação – tanto no plano político da construção da organização como também no plano social, da relação com a comunidade –, dificilmente apresentaremos ao povo uma alternativa para o socialismo já que nossa prática não demonstra essa outra realidade possível.
Vocês consideram que há uma centralidade do trabalho? Olha, lendo profundamente, a sociedade argentina nos últimos tempos, chegamos a uma compressão que não se limita aos manuais do materialismo dialético que temos como referência. A composição do sujeito da transformação se tornou mais complexa. Não deslocamos a importância central da classe trabalhadora e a necessidade de revitalizar o protagonismo dos trabalhadores. Mas também não optamos por distinguir setores com maior ou menor protagonismo, como os excluídos. Uma leitura clássica da esquerda, ao se agarrar aos manuais, depreciou a origem do movimento piqueteiro. Diziam: “isso é lumpemproletariado, apenas exército de reserva da classe trabalhadora”. Mas, enquanto isso, a classe trabalhadora estava perdendo conquistas, muito debilitada. Por isso, reivindicamos parte dessa classe trabalhadora, tivemos um grande dinamismo que foi importante. Às vezes, uma leitura dogmática nos impede de aproveitar essas dinâmicas que a complexidade da composição social hoje, pelo menos na Argentina, está nos impondo, ou seja, o protagonismo das distintas expressões populares. E os sindicatos? As principais estruturas sindicais na Argentina foram vendidas ao neoliberalismo e seus dirigentes são parte da conciliação com as patronais. Surgiram comissões internas e regionais que fazem a luta não só contra os patrões, mas também contra as burocracias sindicais. Essa reorganização do movimento trabalhador combativo é fundamental. Recuperar as fábricas e colocá-las em funcionamento com o controle trabalhador é outra parte importante. Gerar pequenas empresas sociais que vão tendo resultados com os quais os trabalhadores ficam orgulhosos de não precisar de patrões. Isso não entra dentro do esquema clássico da classe operária, mas são expressões que também damos valor. Qual foi a posição da Frente em relação ao governo de Néstor Kirchner, que elegeu sua mulher, Cristina, como sucessora. A economia cresceu, houve estatizações de empresas, avanços com relação a acabar com a impunidade dos crimes cometidos na ditadura... Bem, a situação econômica melhorou, sim, é verdade, mas com respeito ao fundo da crise que vivemos. Mas os indicadores de hoje estão piores do que no auge das políticas neoliberais, em 1998. Do ponto de vista do sentido comum, é lógi-
Piqueteros: protagonismo na luta popular O movimento social piquetero teve seu auge no final da década de 1990, com os protestos de trabalhadores desempregados pela renuncia de Fernando de la Rúa. Agrupados em diversas organizações, ligados ou não a partidos tradicionais, os piqueteros tiveram um protagonismo na luta popular argentina até a ascensão do governo de Néstor Kirch-
ner. Um dos marcos do movimento é o protesto realizado pelos trabalhadores demitidos da empresa petroleira YPF, estatal privatizada e comprada pela transnacional Repsol. Os trabalhadores bloquearam rodovias na província de Neuquén, próximo a Buenos Aires, e iniciaram uma forma de protesto que se espalhou pelo país.
Cláudia Marques/ASSECOM-SME
Quem é Pablo Solanas é integrante do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD-Lanús) e porta-voz da Frente Dario Santillan, uma articulação argentina de organizações sociais. É autor do livro Darío y Max, dignidad piquetero, sobre dois jovens mortos em protestos pela repressão em 2002.
co que a sociedade olhe o cenário mais recente, com relação ao ápice de nossa crise. Essa foi a principal carta do kirchnerismo para ganhar as eleições. Foi o protagonista de certa recuperação que, ressalte-se, não diminuiu a brecha entre os ricos e pobres. Os ganhos dos grupos econômicos e dos setores da burguesia cresceram muito mais do que os dos trabalhadores. Por isso tampouco houve uma ameaça da direita competindo com Cristina. O que Kirchner retomou foi a regulação dos lucros dos grandes atores econômicos, o capitalismo sério, como ele próprio define. Mas longe está de qualquer interpretação de um processo favorável a uma perspectiva de mudanças. A direita ganhou mais com Kirchner? Dez dias depois de dezembro de 2001, quatro presidentes foram derrubados ou não quiseram assumir o governo. A primeira reação após comporem o governo, depois da saída de De La Rúa, foi preparar um cenário repressivo para disciplinar o conflito. Foi o que ficou conhecido como o Massacre de Avellaneda, em julho de 2002. Mas não foi uma solução, pois o movimento popular reagiu à saída repressiva. E aí aparece a opção de kirchnerismo, já que não havia a possibilidade de um governo abertamente repressivo, que expressasse apenas a direita do país. Ou seja, era necessário escutar algumas reivindicações sociais, ter uma agenda de direitos humanos, de integração latino-americana, que gerasse simpatia no movimento popular. Kirchner fez isso, o mesmo que nos anos 90 governou sua província petroleira com políticas privatizadoras e neoliberais. E o que esperar do governo de Cristina? Seguramente, vai haver uma continuidade do que Kirchner conseguiu nesses últimos anos. Normalização da vida política, uma grande apatia dos setores populares, mas um cenário econômico melhor do que o da crise. É preciso ter em mente que o medo de cair em uma situação de precariedade, falta de alimentos, os despejos massivos, está muito presente nos setores populares. O fim dos anos 1990 foi uma situação muito brutal, que se tem como fantasma. Se é verdade que Kirchner não resolveu as contradições, há certo consenso de que está melhor que antes. Diante desse panorama, vamos seguir construindo organização popular. Uma nova crise vai ocorrer, pelo próprio modelo econômico de Kirchner calcado na renda petroleira e na retenção das importações, e aí queremos ter a alternativa construída. Essa é a nossa tarefa: fazer esse trabalho silencioso, longe dos holofotes, nas bases, para quando precisarmos de uma resposta popular, tenhamos melhores condições.
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Processo revolucionário em xeque BOLÍVIA Para sociólogo, Evo Morales e o MAS pecam por não possuírem um projeto político-econômico para o país Marcelo Curia
Igor Ojeda de La Paz (Bolívia) APÓS UM começo animador, o governo de Evo Morales, eleito em dezembro de 2005, estancou. Em alguns pontos, até retrocedeu. A avaliação é do sociólogo boliviano Eduardo Paz Rada, que atribui tal situação à falta de um projeto político-econômico transformador. Segundo ele, os impulsos iniciais, como a nacionalização dos hidrocarbonetos e o pontapé na reforma agrária, foram seguidos por constantes erros estratégicos, como o não fortalecimento da capacidade produtiva boliviana e concessões às oligarquias. Brasil de Fato – Dois anos de Evo Morales. Quais foram seus principais acertos e erros? Eduardo Paz Rada – No processo anterior a 2005, e no momento em que Evo Morales ganhou as eleições com 54% dos votos, vivia-se no país uma efervescência popular, praticamente um estado de revolução muito profundo. Isso se refletiu na primeira parte do primeiro ano do seu governo. Mas, paulatinamente, foi-se observando que, em termos de respaldo social, de 2005 a 2007, houve uma queda, o que pode ser resultado de um desgaste normal do poder. Mas acredito que não seja apenas isso. Tem a ver também com as limitações para se implementar um projeto completo e integral de mudanças. A falta desse projeto tem feito com que muitos setores percam confiança e deixem de apoiar Evo Morales. O que não quer dizer que os setores sociais mais fortes não sigam apoiando-o. Mas sua gestão começa a gerar muitas dúvidas porque, embora nos campos social, político e cultural se tenha dado grandes passos, hoje estão estancados. No campo econômico, houve um grande impulso nos primeiros meses, mas os marcos neoliberais seguem vigentes. Isso é preocupante.
Desde o começo, nos primeiros seis meses de gestão, Evo fez muitas concessões aos governadores departamentais (...) não os freou de cara. Deu muito poderes a eles. Converteu-os em interlocutores quando deveriam ser subalternos do governo central. Além disso, eles têm o apoio da embaixada dos EUA, da embaixada do Brasil, dos senadores, que são, em sua maioria, da oligarquia, das petroleiras e dos latifundiários. O governo ainda tem força, mas não a mesma que tinha há um ano e meio Você disse que o modelo neoliberal segue vigente. Por que não foram feitas mudanças mais profundas nesse sentido? O primeiro impulso foi muito bom, porque a idéia central era a de que a economia nacional passasse a ser controlada pelo Estado boliviano. Daí que a nacionalização dos hidrocarbonetos foi uma decisão histórica, fundamental, e que implicou em reações muito poderosas das transnacionais e dos governos que as apóiam, como Espanha, Estados Unidos, França e Brasil. Mas, paulatinamente, esse processo foi se debilitando. Novos contratos com as mesmas transnacionais foram assinados, claro que em melhores condições para a Bolívia, mas que ainda são muito vantajosas para as empresas. Antes da nacionalização, a distribuição da renda petroleira era de 18% para o Estado boliviano, e 82% para as transnacionais. Com a nacionalização de maio de 2006, isso se inverteu: 18% para as petroleiras, como pagamento a seus serviços, e 82% ao Estado. Com os contratos de outubro de 2006, essa relação mudou. Cerca de 50% vai para as petroleiras, e 50% para o Estado boliviano. Geralmente, menos para o Estado e mais para as petroleiras, porque elas têm uma série de vantagens para evitar o pagamento de impostos. E agora, o que se está observando é que a Petrobras terá novamente o controle fundamental do negócio petroleiro na Bolívia. Vai receber novos contratos, novos campos. E a PDVSA (estatal venezuelana de petróleo), que tinha a possibilidade de se aliar com a estatal boliviana, praticamente está perdendo terreno. Além disso, confiava-se que, com a nacionalização, a YPFB (estatal boliviana) passasse a ter uma grande força. Mas isso não aconteceu, e ela continua tão fraca como antes. Além disso, as empresas que haviam sido, entre aspas, capitalizadas, continuam iguais. As maiorias das ações não foram recuperadas pelo Estado boliviano. Todo o sistema de gasodutos segue
Concessões às oligarquias e erros estratégicos desgastaram o governo de Evo morales
nas mãos de uma empresa holandesaestadunidense. No campo bancário, as grandes corporações seguem com as mesmas condições, tendo os mesmos negócios de sempre, e grandes vantagens. Então, esse primeiro impulso foi freado, inclusive retrocede nesse momento. Mas, o que falta para que se dê um outro impulso nesse sentido? A falta de um projeto político-econômico do governo. Um exemplo: os excedentes que entram por causa do gás estão se convertendo em bônus de beneficência, para as crianças que estudam, para os aposentados. E é muito dinheiro. Pelo menos grande parte desse recurso deveria ser utilizada em projetos produtivos, em potencializar a YPFB, as empresas públicas, em financiamentos para empresas agrícolas, cooperativas, em uma série de campos que permitissem o desenvolvimento nacional. Isso não foi e não está sendo feito. Outro exemplo: quem faz empréstimos para construir rodovias, ou para projetos do Estado? A Corporação Andina de Fomento (CAF). Empresta com juros de 7%, enquanto que o Banco Central faz empréstimos a empresas estrangeiras a 3%. Então, é uma loucura. Quando esse dinheiro deveria ser investido aqui. A explicação é que a equipe econômica que rodeia Evo é, em termos de concepção, formada pelos mesmos que estiveram nos 15 anos anteriores. Como você avalia, nesses dois anos, a relação de Evo Morales com a oligarquia? Tem sido uma relação muito conflituosa, de crise permanente. Era o que deveria ocorrer, devido à pressão social e ao ponto de vista de Evo e do MAS de ir adiante com a reforma agrária. Pelo menos 50% das terras produtivas (100 milhões de hectares) estão nas mãos de não mais que 500 famílias. E, com outras medidas, iria provocar a reação de outros setores oligárquicos, como as petroleiras, os bancos etc. Mas, nessa disputa, quem ganhou terreno foi a oligarquia e seus interesses, em retrocesso do projeto de Evo Morales. E por que isso ocorreu? Desde o começo, nos primeiros seis meses de gestão, Evo fez muitas concessões aos governadores departamentais. Porque nenhuma lei respalda a autonomia dos governadores. A lei boliviana diz que
eles são nomeados pelo presidente e dependem do ministro da Presidência. Mas, como foram eleitos por voto direto, avalizados por Evo Morales, pouco a pouco foram alçando seus próprios vôos. E Evo não os freou de cara. Converteu-os em interlocutores quando deveriam ser subalternos do governo central. Além disso, eles têm o apoio da embaixada dos EUA, da embaixada do Brasil, dos senadores, que são, em sua maioria, da oligarquia, das petroleiras e dos latifundiários. O governo ainda tem força, mas não a mesma que tinha há um ano e meio. Uma das grandes promessas do Evo foi a chamada revolução agrária. Como está ela, já que também é um instrumento para debilitar a força dessas oligarquias? Provavelmente, esse tem sido, em termos da correlação de forças políticas internas, o tema-chave. Porque as petroleiras, as mineradoras, os bancos estão mais ligados ao exterior. O que não quer dizer que os latifundiários não estejam ligados a capitais brasileiros, paraguaios, estadunidenses. Mas a propriedade das terras está, majoritariamente, em mãos nacionais. E o projeto de Evo Morales era fazer uma nova reforma agrária. E começou a levá-lo adiante com muita força, enfrentando os proprietários de terra. No entanto, o ministro de Desenvolvimento Rural, Hugo Salvatierra, entrou em um problema de ter feito tráfico de alguns tratores e foi substituído. O vice-ministro de terras, Alejandro Almaraz, que estava levando adiante esse processo, entrou em um choque muito duro com os latifundiários. Começaram a atacá-lo com muita força. A princípio recebeu muito apoio do governo, mas, pouco a pouco, isso foi mundando, por isso situação está quase paralisada. A idéia era, primeiro, fazer um inventário das terras estatais e começar a distribui-las; isso está bastante atrasado. O segundo passo era recuperar as terras improdutivas e redistribui-las. Esta foi a luta mais forte, e hoje está numa situação de quase estancamento, porque os setores latifundiários estão armados, têm pequenos exércitos que amedrontam os camponeses que estavam ocupando terras. E o governo, que tentava avançar, o faz com muita lentidão. O projeto segue, está presente. Mas está muito ligado ao
Manifestações mostram que o governo ainda tem força
Quem é Docente da Universidad Mayor de San Andres (UMSA), de La Paz, o sociólogo Eduardo Paz Rada foi deputado federal, entre 1997 e 2002, pelo partido Conciencia de Patria (Condepa). Escreve para as revistas América XXI (ArgentinaVenezuela) e Patria Grande (Bolívia).
contexto. Os temas da Constituinte, de Sucre, da autonomia, estão sendo argumentos para evitar que o poder dos latifundiários seja afetado. Um dos instrumentos mais fortes das oligarquias são os meios de comunicação. O que o governo de Evo tem feito para enfrentar esse poder? Grandes passos foram dados. Em nenhum momento, Evo Morales tem conciliado com esses setores proprietários que foram e continuam sendo seus inimigos. Ele começou a implementar as rádios comunitárias, com um importante apoio econômico e técnico da Venezuela. Sem dúvida, aqui há um avanço, mas não o suficiente, sobretudo nas cidades, para se contrapor ao peso dos meios privados. Nesse momento, apesar dessa disputa, os meios privados estão muito fortes, porque se fortalecem por meio do apoio dos setores econômicos. E, se assistimos os canais de televisão, vemos que todos têm publicidade estatal, vivem. Então, há essa grande contradição: 0 governo dá dinheiro para que o ataquem. Como é a relação entre Evo e o MAS no governo? Até que ponto o Evo toma decisões mais autônomas, ou o MAS tem um papel mais forte? O MAS nunca foi uma organização política no sentido clássico. Não tem estrutura partidária. É mais uma espécie de federação de movimentos sociais muito heterogêneos. E, entre seus dirigentes, alguns tem cargos como parlamentares, constituintes, ministros, mas não obedecem a uma estrutura, e sim a formas sindicais. Como existe uma organização muito fraca, o papel de Evo Morales é sempre muito poderoso. Eu poderia dizer que Evo Morales concentra o MAS e o governo. Mas o que existe institucionalmente é o fato de que muitos dos integrantes da sua equipe de governo, do meu ponto de vista, estão comprometidos com o projeto neoliberal, e muitos tem feito do governo simplesmente um espaço de administração de poder, e não uma instância para transformar o país. Quais são os desafios de Evo para o próximo ano? Ele tem que ir por dois caminhos. O primeiro, político, está relacionado com o referendo revocatório. Mas a aposta nele não tem que ser somente “que o Evo se vá”, mas também quais projetos há por trás de uns e outros, quais bandeiras, qual país querem construir. E não cometer os erros desses dois anos. Ou seja, que as pessoas participem, que votem com a convicção de que é para mudar profundamente, como era em 2005. Por outro lado, não esperar o referendo revocatório para deixar de fazer política. O governo tem que impulsionar novamente o projeto original da nacionalização dos hidrocarbonetos. E de fortalecimento da capacidade produtiva do país.
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áfrica
Os EUA advertem: é a vez da África RECURSOS NATURAIS O petróleo da região do Golfo da Guiné é o novo “interesse estratégico nacional” dos estadunidenses Kotsopoulos CC
Tatiana Merlino da Redação ABUNDANTE EM petróleo, a região do Golfo da Guiné, na África Ocidental, é o novo alvo da investida geopolítica dos Estados Unidos. A área, localizada na África Ocidental, representa a peça central da alternativa do governo de George W. Bush aos países ricos em reservas petrolíferas no Golfo Pérsico. Além disso, o interesse estadunidense também se estende aos recursos de Angola, vizinho dos países do Golfo da Guiné. Hoje, só Nigéria e Angolaproduzem juntas 4 milhões de barris por dia. A África Ocidental possui 60 milhões de barris de reservas provadas de petróleo. Seu petróleo tem baixo conteúdo de enxofre, uma característica apreciada pela economia estadunidense. Atualmente, a região representa 15% das importações de petróleo dos Estados Unidos, sendo que 7% são provenientes de Angola. De acordo com o próprio governo estadunidense, no prazo de uma década, o petróleo africano poderá constituir entre 25% e 35% das importações dos EUA.
Interesse vital Desse modo, não é à toa que o governo dos EUA venha criando condições para assegurar a exploração da riqueza nos países africanos. Recentemente, o Congresso estadunidense considerou o Golfo da Guiné como uma região de “interesse vital” para o país. “O grande potencial da África torna sua estabilidade um imperativo estratégico global a curto prazo”, disse o general James Jones, do Comando Europeu das Forças Armadas estadunidenses. Com o argumento de que a região precisa de segurança e combate ao terrorismo, o Exército dos EUA tem intensificado a cooperação militar com os seus principais fornecedores de petróleo, Nigéria, Angola e Guiné Equatorial. Entre as propostas dos Estados Unidos para a região está uma estratégia de segurança marítima, “local onde o contrabando, a pirataria e o roubo de petróleo são um modo de vida”, nas palavras do general Jones. A iniciativa, que tem o nome de “Guarda do Golfo da Guiné”, vai “ajudar as nações da região a protegerem seus recursos naturais e a usarem sua riqueza para seu desenvolvimento social e econômico”, defendeu o general estadunidense. Segurança energética De acordo com Michael Watts, diretor do programa de Estudos Africanos da Universidade da Califórnia, a investida dos EUA na região africana é “um jogo em defesa da segurança energética do país. Em seu último relatório, por exemplo, o Conselho de Relações Internacionais destacou a crescente importância estratégica da África na política dos Estados Unidos”, disse.
Riquezas geradas pela exploração das reservas petrolíferas não são revertidas para a população
na região, o governo estadunidense incentiva a penetração das transnacionais Exxon Mobil, Chevron, Maraton Oil, Amerada Hess e Ocean Energy no Golfo da Guiné. “Não por razões humanitárias, mas sim pelas reservas de hidrocarbonetos e de gás”.
Produção de petróleo na África Atualmente existem 12 grandes produtores de petróleo na África – membros da Associação Africana de Produtores de Petróleo – dominada, por ordem de produção, pela Nigéria, Argélia, Líbia e Angola que, coletivamente, contabilizam 85% da produção africana. O Gabão e a Guiné Equatorial são os únicos Estados africanos com elevada capitação de petróleo (as chamadas dotações de petróleo), comparáveis a Estados escassamente povoados e ricos em petróleo, como o Kuwait e o Catar. Apenas a Nigéria figura na lista dos 15 maiores produtores mundiais. A Nigéria, a Argélia e a Líbia são respectivamente o 8º, 10º e 12º maiores exportadores de petróleo. Estes três países e o Gabão são membros da OPEP. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele disse que como a preparação militar americana na África é muitas vezes justificada como necessária para combater o terrorismo e para conter a instabilidade crescente na região pe-
trolífera da África Subsaariana, “assim, há apelos e justificativas aparentes para que haja ‘intervenções’ dos EUA na África”, completa. Watts lembra que o investimento petrolífero estadunidense representa mais de
50% de todo o investimento direto estrangeiro (IDE) no continente. Além disso, os interesses estratégicos dos Estados Unidos na região, explica, vão além do acesso a importações petrolíferas de baixo teor de enxofre, baratas e Wobedang
de segurança. Tem como objetivo também manter à margem os chineses e sul-coreanos, novos atores no negócio do petróleo africano.
Sistema de radar O interesse de George W. Bush na África também inclui a construção de uma nova base dos EUA em São Tomé e Príncipe, a 200 quilômetros do Golfo da Guiné, de onde poderá controlar as jazidas petrolíferas de Angola, ao sul do Congo, Gabão, Guiné Equatorial, Camarões e Nigéria. Também está em discussão a construção de um sistema de radar e controle para monitorar as atividades nas águas de São Tomé e região. Nos últimos 10 anos, as companhias estadunidenses de petróleo investiram mais de 40 milhões de dólares na região (com outros 30 milhões esperados entre 2005 e 2010). De acordo com Michael Watts, ao mesmo tempo que investe militarmente
Navios de guerra De acordo com a organização britânica Black Britain, o Golfo da Guiné não precisa da proteção do Estados Unidos e de ninguém, “mas eles continuam insistindo na necessidade de colocar submarinos e navios de guerra na região, onde não existe qualquer inimigo”. De acordo com a organização, está claro que está em curso um processo de “agressão” na região. Segundo a organização, o governo da Nigéria está organizando, juntamente com outros países, uma maneira de impedir os Estados Unidos de instalarem a base naval no arquipélago de São Tomé e Príncipe. “Os países da região têm todas as razões para estarem alarmados. Os estadunidenses querem primeiro controlar o Golfo, e depois subjulgá-lo”. Para a organização britânica, “a região do norte do Saherl está saturada da presença militar estadunidense”. Para entender O Golfo da Guiné é uma grande reentrância na costa ocidental da África e compreende os seguintes países: Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão (parte norte) e a ilha de São Tomé e Príncipe
Plataforma no Golfo da Guiné: “interesse vital” estadunidense
Nigéria rechaça construção de base militar A Nigéria está liderando a resistência africana à construção de uma base naval na ilha de São Tomé e Príncipe, idealizada pelos Estados Unidos. O governo do país, juntamente com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental está discutindo maneiras de barrar a construção da base. Lideranças do governo afirmam que não vão permitir que os EUA construam bases militares em nenhum dos países da comunidade. De acordo com o governo nigeriano, os Estados Unidos vêm lançando alertas de terrorismo na região para alegar a necessidade de construção das bases. “Nós queremos deixar claro para os EUA e outros países que somos capazes de proteger os recursos do nosso continente. A Nigéria é um país que vai continuar a se mobilizar contra qualquer plano de instalação de base militar nos nossos territórios”, afirma em nota o ministério da defesa nigeriano. “O governo desse país não está pronto para chantagem nenhuma. Não vamos sucumbir a esse jogo”, completa. De acordo com a organização britânica Black Britain ,apesar de ter vários problemas internos, a Nigéria, “o mais populoso e mais militarizado país da região sofre a ameaça de um ladrão maior: os Estados Unidos, um trapaceiro que rouba todos os países”.