BDF_259

Page 1

Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 259

São Paulo, de 14 a 20 de fevereiro de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Reprodução

Timor Leste enfrenta outro atentado contra a liberdade

Mineradoras deixam buracos nos cofres das prefeituras

Uma semana antes do atentado contra sua vida, ocorrido no dia 11, o presidente do Timor Leste José Ramos-Horta esteve no Brasil e concedeu entrevista ao Brasil de Fato. Nela, o Prêmio Nobel da Paz de 1996 critica a “miserável” ajuda dos países ricos e fala sobre a solidariedade prestada por Cuba ao seu país – que há três anos iniciou um processo de nacionalização da exploração do petróleo e do gás aos moldes do de Chávez, Evo e Correa. Pág. 11

O Departamento Nacional de Proteção Mineral, responsável pela concessão e fiscalização da extração de minérios no Brasil, determinou que a Vale pague uma compensação de R$ 1,8 bilhão a 19 prefeituras de Minas Gerais. A quantia é referente à exploração realizada durante 15 anos. Ainda que considerável, o valor é pequeno se comparado com os últimos balanços da companhia. Atualmente, por exemplo, a Vale tenta adquirir a empresa anglo-suíça Xstrata por até R$ 157,5 bilhões. Enquanto isso, as enormes crateras feitas na extração deixam marcas sócio-ambientais e os recursos não são renováveis. E mais: por onde passam, as mineradoras atraem milhares de trabalhadores, inchando as cidades que não têm condições de manter os serviços públicos essenciais. Agora, as prefeituras querem cobrar a conta. Pág. 7

Crise entre o governo de Evo e a oposição se agudiza Na Bolívia, caso o governo do presidente Evo Morales não cumpra um série de exigências da oposição até o dia 13 de fevereiro, os departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija (chamados de meia-lua), Cochabamba e Chuquisaca prometem fazer uma “paralisação nacional”. De seu lado, os movimentos anunciam que não irão permitir chantagens. Pág. 10 Reprodução

CULTURA

Mina de Ferro de Carajás, localizada no município de Parauapebas (PA)

Uribe provoca conflito com Chávez para esconder suas relações com paramilitares O conflito entre Colômbia e Venezuela, que

senadora colombiana Piedad Córdoba, do

se acirra desde o início do ano, nada mais é

Partido Liberal. Em entrevista exclusiva ao Brasil

que uma forma do presidente Álvaro Uribe

de Fato, ela garante que o pano de fundo da

desviar a atenção dos escândalos que ligam

disputa é a consolidação de dois projetos

seu governo aos grupos paramilitares

antagônicos: “um democrático, integrador e de

O legado do colombianos. Porém, o enfrentamento tem escritor e revolucionário poucas chances de se tornar armado, já que os chileno Volodia venezuelanos são os principais compradores Teitelboim. de produtos da Colômbia. A avaliação é da

Pág. 8

proteção dos recursos naturais (de Chávez) e outro de concentração da riqueza e bélico (de Uribe, representante dos Estados Unidos na América Latina)”. Pág. 9

Marcello Casal Jr/ABr

Milhos transgênicos da Bayer e da Monsanto são liberados Governo ignora apelos da Anvisa e do Ibama e anuncia, no dia 12, liberação de duas variedades de milho transgênico. Segundo a agência de vigilância sani-

tária, não se pode garantir a segurança dos produtos à saúde humana. Já o órgão responsável pelo meio ambiente alerta para os riscos de contaminação das varie-

dades tradicionais. Mesmo assim, o voto de sete ministros foi suficiente para liberar o plantio e o comércio dos milhos da Bayer e da Monsanto. Pág. 4 Antonio Cruz/ABr

Márcio Pochmann, presidente do Ipea

Trabalhador terceirizado ganha menos, diz estudo No Brasil, a cada quatro novas vagas de emprego, uma se dá por terceirização. Entretanto, as condições desse tipo de trabalho têm se mostrado precárias. Em média, o trabalhador terceirizado ganha a metade do salário pago a um funcionário com contrato normal. Esses são dados trazidos por um novo estudo realizado pelo economista Márcio Pochmann,

presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Divulgada no dia 12 pelo sindicato paulista de empregados terceirizados Sindeepres, a pesquisa analisa estatísticas do Estado de São Paulo e relaciona esses dados com informações de 145 países, analisando a terceirização como fruto de novas demandas do modo de produção capitalista. Pág. 3

Agricultores protestam contra a liberação do milho transgênico

Aborto criminaliza mulheres pobres Caso de jovem que, após dar entrada em hospital no Rio de Janeiro com suspeita de aborto, teve prisão decretada em flagrante explicita a gravidade da situação de mulheres pobres com gestação indesejada. Enquanto o ministro da Saúde defende a discussão sobre a legalização do aborto – que considera uma questão de saúde pública –, a Igreja Católica tem se posicionado contra a prática. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, no dia 6, a 45ª Campanha da Fraternidade, com o tema defesa da vida e o lema “Escolhe, pois, a vida!”, que condena o procedimento. Pág. 5

9 771678 513307

00259


2

de 14 a 20 de fevereiro de 2008

editorial OS TUCANOS, seus aliados e porta-vozes repetem, para as eleições municipais deste ano, a mesma estratégia que utilizaram para colher a derrota da última disputa presidencial: denúncias de escândalos, CPIs condenadas desde o início a acabarem em pizza etc. O objetivo central é encurralar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desmoralizar o Partido dos Trabalhadores (PT), e colocar ambos na defensiva. Processos que se mantêm paralisados nos anos ímpares (quando não há eleições) são reativados nos anos pares: o assassinato do prefeito petista de Santo André-SP, Celso Daniel; o “mensalão” envolvendo representantes públicos e dirigentes do PT; o impoluto e probo tenor petebista Roberto Jefferson ataca outra vez etc. Novos escândalos são levantados, entre os quais “a farra dos cartões de créditos”, além das ameaças em surdina. Mas, desta vez, o governo e o PT parecem mais bem municiados para dar o troco (ainda que no mesmo nível) e, além do “mensalão tucano”, em curso desde o ano passado, contratacam com a “farra dos cartões do Serra”, a “farra das despesas de Alckmin”,

debate

As farras, a pornografia e o esgoto a céu-aberto o “caixa dois do rodoanel” e assim por diante, incluindo as denúncias de relações, pelo menos promíscuas, entre o ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) e a famigerada CIA dos Estados Unidos. Parecemos reviver aqueles momentos da história em que, como já disse um homem de espírito no início do século 20, a pornografia substitui a política. Não que seja de pouca importância esclarecer cada uma dessas práticas que corroem e tramam contra as conquistas alcançadas com o fim da ditadura, e dificultam avanços no sentido do fortalecimento dos mecanismos republicanos e aprofundamento da democracia em nosso país. Não que os crimes de uns justifiquem os crimes dos outros. Crimes são crimes e, não importa quem os cometa, devem ser esclarecidos, e os responsáveis, punidos nos termos da lei. O problema é que as partes não parecem nem um pouco dispostas a

prestar contas à opinião pública, ao eleitorado, aos cidadãos e cidadãs, ao povo, ou a que nome queiramos dar àquilo que, ao fim e ao cabo, a direita e os meios de comunicação em nosso país convencionaram tratar como uma “manada”, a qual adulam e açulam em busca do voto fácil. E, mais ainda, ambas as partes não parecem pretender desvendar sequer os crimes de que acusam os adversários: ter um ao outro como refém, com uma espada a lhes pesar sobre as respectivas cabeças, tem se demonstrado mais útil ao pragmatismo dos acordos de bastidores, que evita que tenham de mudar suas práticas, mantendo a suposta “manada” com os olhos embaçados com a pirotecnia midiática. De qualquer modo, embora a estratégia dos tucanos e seus aliados do DEM (antigo PFL e ex-Arena), em 2006, tenha conseguido, com suas denúncias e escândalos, provocar grande estrago (pelo menos do ponto de vista do auto-

denominado “campo majoritário”) nas hostes petistas, derrubando dois ministros-chave do governo do presidente Luiz Inácio, inviabilizando ambos enquanto virtuais candidatos à sucessão presidencial de 2010, o fato é que não foi suficiente para alcançar seu objetivo final imediato: ganhar as eleições e entronizar no Planalto o Opus Dei Geraldo Alckmin (PSDB-SP). Ora, se naquele momento em que estava em disputa a Presidência da República os escândalos e pressões sobre ministros e segundo escalão (a estratégia tucana) não alcançaram o principal resultado pretendido, imaginemos agora, quando estão em disputa os governos municipais. Aqui, os critérios para o voto são geralmente muito mais localizados, como, por exemplo, os esgotos a céu-aberto. A articulação entre o que acontece nos municípios e a política mais geral do país ainda é algo um pouco distante para muitos eleitores.

crônica

Carlos Tautz

Alca e IIRSA para exportar natureza ESSA PASSOU despercebida pela imprensa pátria: “O dano ambiental causado pelos países mais ricos é maior do que toda a dívida de 1,8 trilhão de dólares do terceiro mundo”, estampou, em 21 de janeiro, o diário britânico The Guardian, sobre um estudo de cientistas da Universidade de Berkeley/Califórnia. “As nações ricas se desenvolveram às custas dos pobres e, como conseqüência, têm uma dívida com os pobres”, disse o professor Richard Norgaard, um economista ambiental que organizou o estudo. Ele e sua equipe calcularam os custos de exploração de recursos naturais de países pobres, inclusive do Brasil, entre 1961 a 2000. Detiveram-se em seis áreas: emissões de gases-estufa, esgotamento da camada de ozônio, agricultura, desflorestamento, sobrepesca e conversão de manguezais em fazendas produtoras de camarão. A pesquisa chancela cientificamente um conceito – dívida ecológica – que há anos é defendido por organizações do sul. Sua grande novidade é comprovar com dados irrefutáveis que a brutal drenagem de recursos naturais da América Latina, Ásia e África configura um grande modelo econômico na divisão mundial do trabalho. Somos uma plataforma de intensas exportações de recursos naturais com baixíssimo valor agregado e inúmeros impactos sociais e ambientais.

Aprofundamento Ao longo dos anos, esse papel histórico da região vem sendo intensificado e refinado. Governos e agentes políticos e econômicos privados planejam, financiam e operam grandes infra-estruturas de transporte, geração de energia etc. para garantir esse contínuo fluxo de mercadorias agrícolas e minerais para o centro do sistema econômico mundial – América do Norte, Europa e os centros dinâmicos da Ásia (China e Japão). É para continuar a alimentar essa divisão internacional do trabalho que surgem, no fim do século 20, quase simultaneamente, duas megapropostas: a Alca – Área de Livre Comércio das Américas, proposta em 1994 pelo governo dos EUA; e a IIRSA – Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura da região Sul-Americana, elaborada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata). Foi reapresentada em Brasília, em 2000, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (que já a defendera sem sucesso um ano antes). Livre comércio A rigor, a Alca e a IIRSA são duas faces do mesmo modelo exportador da natureza que sai de nossos territórios em direção ao centro do sistema, exatamente como apontado agora pela pesquisa da Universidade de Berkeley.

E não poderia ser diferente, uma vez que os partidos (pelo menos suas cúpulas) insistem em substituir o debate entre programas pela pornografia a que aludimos. Além disto, é impossível para quem entende minimamente de política não levar em conta o fenômeno do “lulismo”, profundamente arraigado nas camadas mais pobres da população. Gostemos ou condenemos, o “lulismo” (também resultado da ausência de discussão de programas políticos) é um fato. Um fato forte e de peso. Ele, e não a mídia, foi o grande eleitor em 2006 e, com mais razão, repetirá a performance em 2008. Assim, quanto mais baterem no Governo e na pessoa do presidente, mais perderão votos. Mas, fora isto, o que podem fazer os tucanos e seus aliados? Propor novas privatizações? Acabar com todas as CPMFs? Acabar com os impostos municipais progressivos? Por fim às políticas sociais? Ainda que seja muito cedo para qualquer previsão, parece-nos que, mais uma vez, o “brilhantismo”, a “inteligência”, a “sofisticação” e a arrogância tucanas serão as principais pás a cavar seu próprio túmulo.

Luiz Ricardo Leitão

Uma crônica sem cartões ABRIMOS OS jornais e, afora o copioso noticiário policial ou os calorosos eventos esportivos, só logramos ler caudalosas matérias sobre o uso nebuloso – ou seja, o abuso – dos famosos cartões corporativos da União e do governo paulista (isto é, as tchurmas de Alckmin & Serra), ou então a extensa e quase apaixonada cobertura que os repórteres da colônia realizam sobre as convenções primárias de democratas e republicanos para a escolha dos delegados que definirão os candidatos dos maiores partidos ianques à sucessão do malsinado George W. Bush. Sobre o primeiro tema, cronistas mais célebres do que este escriba, como os mestres Veríssimo e Cony, já se pronunciaram com muita verve e humor na grande imprensa tupiniquim. Quanto ao segundo, julgo até compreensível o interesse exagerado da mídia, já que a aguda crise do império do Norte anda a preocupar bolsas & mercados – e sabe-se lá se todos eles ainda terão emprego ao final do presente ciclo, que se caracteriza não só por uma visível retração da economia, como também por um profundo desgaste no cenário internacional, após as malogradas invasões ao Iraque e Afeganistão. Obama e/ou Hillary não resolverão nada, posso assegurar-lhes, mas oxalá a malta de W. Bush & Dick Cheney volte para o banco de reservas ao longo dos próximos anos. Em meio a esse duopólio da pauta, uma notícia, porém, desperta singular interesse. Trata-se de uma pesquisa coordenada por Ian Rowlands, da University College de Londres, acerca do “Comportamento Informativo do Pesquisador do Futuro”. Em outras palavras, um estudo sobre o suposto mito de que a geração nascida após 1993, mais habituada aos mecanismos digitais, teria maior facilidade em lidar com o mundo virtual e obter informações por meio de ferramentas de busca eletrônica como o Google ou Yahoo. Uma das conclusões mais severas da pesquisa, segundo enuncia o professor inglês, é que “a sociedade está emburrecendo”. Ao consultar portais com dados relevantes (como a Biblioteca Britânica e outros), acadêmicos mais jovens e até mesmo doutores mais experientes “passam os olhos por títulos, índices e resumos vorazmente, sem leitura real”.

É para continuar a alimentar essa divisão internacional do trabalho que surgem, no fim do século 20, quase simultaneamente, duas megapropostas: a Alca e a IIRSA A Alca visava à criação de um sistema legal internacional e internamente a cada país das Américas e do Caribe que não apenas possibilitasse o desenvolvimento desse modelo explorador, mas que o obrigasse a existir e o impedisse de ser suspenso. Era uma ampliação da Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e uma versão regional do Acordo Multilateral de Investimentos, o AMI, fracassado em 1997 e 98 na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Está suspensa devido a uma sucessão de obstáculos. Primeiro, houve um racha entre agentes econômicos brasileiros, o que alimentou uma histórica ambivalência da política externa nacional em temas desse tipo (ora opondo-se, ora omitindo-se). Por fim, a eleição, desde 1998, de governos sul-americanos com graus variados de independência em relação aos EUA e uma espécie de versão civil dessa autonomia, representada pela ampla rejeição à Alca entre organizações populares latino-americanas.

Infra-estrutura A IIRSA, cujo mais caro projeto são as hidrelétricas do rio Madeira (em Rondônia), é a base física que possibilita essa sangria de bens naturais. Ela é a infra-estrutura de transporte (hidrovias, ferrovias e rodovias nacionais), de energia (hidrelétricas e gasodutos) e telecomunicações, além de marcos legais que tornam possíveis as exportações da América do Sul em direção aos grandes mercados importadores – atendendo apenas na margem as necessidades dos mercados internos da região. A mais recente versão brasileira da IIRSA é o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, lançado em janeiro de 2006 pelo presidente Lula. Ele ressuscita os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento e o Avança Brasil (de FHC) e o Plano Plurianual do primeiro governo Lula. O objetivo que orienta todos esses megaprojetos é uma compreensão histórica do papel do Brasil – e do resto de toda América do Sul – como região periférica no sistema mundial. Essa opinião é fortemente incentivada pelo Itamaraty e por capitais privados e estatais, principalmente brasileiros, que enxergam nela uma possibilidade de aprofundarem o modelo no Brasil e ganharem escala internacional, exportando-o, com financiamento público, aos países vizinhos. Carlos Tautz é jornalista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Uma das conclusões mais severas da pesquisa, segundo enuncia o professor inglês, é que “a sociedade está emburrecendo”. Obviamente, há quem discorde dessas avaliações. Um professor da UFMG reconhece que o Google privilegia certas páginas em detrimento de outras, e que os alunos não sabem discernir um portal de artigos acadêmicos do “blog do Joãozinho” – e, pior, são capazes de citar o blog sem o menor pudor, já que lhes falta “juízo de valor”. Contudo, não seria a Internet a responsável por tal tendência: agia-se da mesma forma “quando pesquisávamos nas enciclopédias”, ele adverte; “o que mudou foi a oferta de informação”. A ferramenta eletrônica, como qualquer outra, aliás, apresenta riscos e vantagens. Basta evocar o caso da televisão, cuja difusão entre nós, a partir de 1950, sob os auspícios de Tio Sam, revelou talentos notáveis, mas também se prestou aos mais perniciosos desígnios, que o digam os Robertos Marinhos e Bispos Macedos das nossas “cadeias nacionais”. O perigo maior, pois, é torná-la um mero fetiche, esquecendo-se do essencial em qualquer processo civilizatório ou regime social: quem controla essa ferramenta? Ou, parafraseando o velho e sábio Marx, quem é o proprietário desse “instrumento” de produção? Não há dúvida de que o meio eletrônico é um suporte básico para o atual estágio ‘biocibernético’ de acumulação do capital, assim como a máquina a vapor ou o motor a combustão são ícones vitais do capitalismo industrial. Mas ele não deve ser naturalizado como uma prerrogativa inata e exclusiva do capital. A luta em favor da inclusão digital e pela mais ampla democratização do acesso ao universo eletrônico está na pauta dos movimentos sociais em todo o planeta. Conquistemos e socializemos essa arma criada pelo inimigo. Lembremos, uma vez mais, as lições de Macunaíma e dos antropófagos de Bruzundangas: “devorar” o outro e digeri-lo, para assimilar sua força e engenhosidade. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


de 14 a 20 de fevereiro de 2008

3

brasil

Estudo analisa terceirização no país TRABALHO No Brasil, 1/4 dos novos postos de emprego oferecem contrato terceirizado; modalidade oferece metade do salário Operários (1933), de Anita Malfatti

Dafne Melo da Redação O ESTUDO “A Superterceirização dos Contratos de Trabalho”, assinado pelo economista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, não deixa dúvidas quanto aos impactos gerados pelo uso da terceirização da mão-de-obra no país: tal como se verifica hoje, seu funcionamento está acentuando o quadro de precarização das condições de trabalho. O estudo, encomendado pelo sindicato dos Empregados em Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros, Colocação e Administração de Mãode-Obra, Trabalho Temporário, Leitura de Medidores e Entrega de Avisos do Estado de São Paulo (Sindeepres), foi lançado oficialmente no dia 12, no “I Seminário Internacional Sindeepres – Terceirização Global”, na cidade de São Paulo, e contou com a presença de executivos, políticos, autoridades públicas e lideranças sindicais laborais e patronais. No trabalho, Pochmann expõe estatísticas e dados da situação no Estado de São Paulo – fruto de uma pesquisa anterior do economista – e a relaciona com novas informações sobre o processo de terceirização da mão-de-obra em outros 145 países. Dessa forma, o texto procura analisar a terceirização como um fenômeno da globalização e fruto das novas demandas do modo de produção capitalista nessa etapa.

Histórico O primeiro país a colocar em prática a terceirização foi o Japão, que, diante da crise no modelo fordista de produção, na década de 1970, desenvolveu o chamado toyotismo. No sistema japonês de manufatura, foi verificada uma produtividade muito maior. Em 1980, por exemplo, a Toyota produzia 69 carros por trabalhador, enquanto a General Motors (GM) produzia 9 carros, aponta o estudo. Como a empresa automobilística obteve esse resultado? Por meio da terceirização. “A Toyota dispunha de uma rede de 150 empreendimentos associados de trabalhadores indiretamente contratados”, explica. Assim, continua Pochmann, “a terceirização resultou em maiores investimentos, cada vez mais orientados à maximização do lucro do que a minimização dos custos, uma vez que a terceirização permitia a socialização dos riscos da produção entre ‘parceiros’”. Nos países desenvolvidos, ao longo das últimas décadas, trabalhadores conseguiram pressionar o poder público no sentido de criar uma legislação que protegesse o trabalhador terceirizado. O objetivo foi evitar o avanço da precarização do uso e remuneração desse tipo de mão-deobra. Em países como Itália e Alemanha, afirma Pochmann em entrevista ao Brasil de Fato, “a legislação define de forma simples que o trabalhador terceirizado não pode ter remuneração inferior a de um tra-

Em 1980, por exemplo, a Toyota produzia 69 carros por trabalhador, enquanto a General Motors (GM) produzia 9 carros, aponta o estudo. Como a empresa automobilística obteve esse resultado? Por meio da terceirização balhador comum num posto equivalente”.

Caso nacional Já no Brasil, embora largamente difundido a partir da década de 1990, a terceirização não possui nenhuma regulação. Sendo uma economia periférica num mundo globalizado, aqui, a terceirização não opera tanto no sentido de aumento da produtividade, mas num “processo de reestruturação produtiva defensiva, mais caracterizada pela minimização de custos e adoção de estratégias empresariais de resistência [sobrevivência]”. Dessa forma, a tônica da terceirização nos países subdesenvolvidos tem sido a precarização das condições de trabalho. O modelo utilizado é o padrão flexível do trabalho asiático: extensa jornada, baixo salário e elevada rotatividade, medidas que vão na contra-mão dos avanços conquistados no século 20, e também contra as expectativas de melhorias para o século 21: jornada reduzida, alta remuneração e estabilidade ocupacional. No Brasil, aponta Pochmann, o trabalhador terceirizado recebe a metade de um trabalhador não terceirizado. Para reverter essa situação, o foco deve ser o estabelecimento de uma regulação pública do trabalho terceirizado. “Acredito que a terceirização é um imperativo econômico, ela veio para ficar. O que nos desafia é justamente uma regulação que não perMarcello Casal Jr./ABr

Márcio Pochmann, presidente do Ipea

mita que o custo-trabalho seja um elemento de competição entre as empresas, mas um elemento de ganho de produtividade”, comenta o economista. O avanço da terceirização precária, sim, seria possível de se combater.

Terceirização O estudo se debruça também sobre um tipo de terceirização ainda pouco estudada, embora largamente difundida. “Estamos numa nova fase da terceirização, que ocorre acima dos países”, aponta. Essa nova modalidade cria quatro grandes grupos de trabalhadores: “Há os que montam produtos, os montadores; os empacotadores, que fazem serviço de distribuição e empacotam produtos; um terceiro bloco de trabalhadores associados a atividades de apoio, desde limpeza, conservação até também de atendimento ao público; e o outro são atividades de assessoria jurídica, contábil, consultorias. Esses quatro grupos fazem parte da terceirização transnacional, pelo fato desses trabalhadores operarem para qualquer empresa, em qualquer país”, reflete Pochmann. Nesse contexto, a China se torna “a oficina do mundo”, enquanto a Índia se caracteriza como produtor de serviços, o “escritório” do mundo. “E o Brasil acaba se estabilizando em atividades mais primárias, produção agrícola ou maquiladoras”, exemplifica. E assim, as transnacionais preferem terceirizar a mãode-obra de países pobres. “Na comparação entre o salário de um inglês e um equivalente indiano, um operador de call center, por exemplo, o indiano recebe 14% do que recebe o inglês; um engenheiro de software, 16%. Essa terceirização inegavelmente vem acompanhada de uma diminuição dos salários pagos.” Para Pochmann, o questionamento da terceirização transnacional exige uma governança mundial, devido ao enorme desequilíbrio entre o poder das grandes transnacionais e os Estados nacionais. O estudo está disponível em: http://www.sindeepres. com.br/pt/estudos

Começa campanha das centrais sindicais por redução de jornada Centrais organizaram atos em diversas cidades para marcar o início da coleta de assinaturas; objetivo é chegar a 1 milhão CUT

da Redação As centrais sindicais iniciaram, no dia 11, com atos em diversas capitais, a coleta de assinaturas pela redução da jornada de trabalho. Em São Paulo, cerca de mil pessoas acompanharam a mobilização que reúne a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) e União Geral dos Trabalhadores (UGT). Um dos principais objetivos da campanha é alcançar ao menos 1 milhão de assinaturas a favor da redução de horas trabalhadas até o Dia do Trabalhador, 1º de Maio. O abaixo-assinado apóia a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 393/01, que tramita no Congresso Nacional e inclui metas graduais de redução até atingir as 36 horas semanais. Atualmente, a jornada legal do trabalhador brasileiro é de 44 horas. “Com a redução da jornada para 40 horas, poderemos gerar mais de 2,2 milhões de empregos, repartindo com o conjunto da sociedade os imensos ganhos obtidos com o aumento da produtividade”, declarou o presidente nacional da CUT, Artur Henrique. Para o sindicalista, a campanha servirá como elemento de pressão sobre o Congresso Nacional. A campanha pela redução da jornada foi lançada no dia 23 e tem unificado parte das centrais brasileiras. Segundo Henrique, a medida é urgente para melhorar a condição de vida dos trabalhadores brasileiros. “A produtividade de nossa indústria cresceu 150% nos últimos 15 anos. Os salários médios no Brasil ainda estão abaixo da maioria dos países que mantêm relações comerciais conosco. Esses dois fatores compro-

Militantes coletam assinaturas em São Paulo

vam que há não apenas espaço, mas necessidade da medida”, acrescentou Artur. Para o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Wagner Gomes, a redução da jornada é essencial para uma política de redução das desigualdades no país. “A redução da jornada de trabalho, sem reduzir o salário, é uma das formas para combater a concentração da renda nas mãos de poucos, o retrato da injustiça social em nosso país’’, afirmou. Gomes enfatizou a necessidade de os sindicatos se empenharem na campanha. ‘’Está na hora das centrais fazerem um 1º de Maio unificado, e também um congresso para unificar as lutas pelas principais bandeiras dos trabalhadores’’, finalizou. O integrante da direção nacional da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Antonio Carlos dos Reis, o Salim, disse que a unificação das centrais é a garantia de mais dignidade para os trabalhadores.

Benefícios para o país A proposta da redução de jornada se sustenta em um estudo técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), publi-

Quanto

44

horas é a atual jornada legal do trabalhador brasileiro. Objetivo da Proposta de Emenda Constitucional é de atingir 36 horas semanais, com metas graduais de redução. cado no final de novembro, que elenca as conseqüências da mudança para o povo brasileiro. Pelos cálculos do departamento, com a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, o fim das horas-extras, ou sua limitação, haveria um potencial de geração de pelo menos 3,4 milhões de novos empregos. O estudo incita o governo federal e os empresários a tomarem partido. “O fato de que são necessárias menos horas de trabalho para produzir uma mercadoria obriga uma opção, que é política”, diz nota do Dieese. O estudo aponta dois caminhos para o governo federal: “Ou aplica essa redução do tempo necessário para a produção na forma de lei ou deixa que o aumento da produtividade gere mais lucro aos empresários e mantenha o desemprego estrutural”. (Com informações das centrais sindicais, Vermelho e Agência Brasil).


4

de 14 a 20 de fevereiro de 2008

brasil

Governo libera milho transgênico Fábio Pozzebom/ABr

SOBERANIA Segundo a Anvisa, faz mal à saúde. De acordo com o Ibama, ameaça a biodiversidade. Para o governo, pode comercializar à vontade da Redação NO DIA 12, o governo federal liberou o plantio e a comercialização de duas variedades de milho transgênicos, o Liberty Link, da transnacional alemã Bayer, e o MON 810, da estadunidense Monsanto. A decisão foi tomada em reunião do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), órgão composto por 11 ministros e presidido pela Casa-Civil. Após o encontro, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, comemorou o resultado em conversa com jornalistas. Ele afirmou que, do ponto de vista da sua pasta, as sementes liberadas são seguras para o consumo humano e animal e para o meio ambiente. Entretanto, os órgãos governamentais responsáveis por esse tipo de análise não concordam. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) enviaram ao Conselho pareceres contrários à liberação. No requerimento, a agência sanitária alegou que os estudos quanto à toxicidade e alergenicidade apresentados pelas empresas – para obter as licenças – foram inadequados e insuficientes para garantir a segurança dos produtos para a saúde humana. Já o Ibama destacou que não estão garantidas as condições para impedir a contaminação das variedades tradicionais ou crioulas de milho, e que não foram realizados estudos de impacto ambiental no Brasil. A França,

Protesto em Brasília contra a liberação do plantio de milho transgênico

inclusive, vetou, no dia 9, a comercialização da variedade MON 810 (ver matéria na página 12).

Votação Com a reunião da CNBS, que liberou as duas variedades transgênicas, os dois órgãos não mudaram de opinião. Tanto que os ministérios aos quais são vinculados, Saúde e Meio Ambiente, posicionaram-se contra a comercialização, voto que foi seguido pelo Desenvolvimento Agrário e pela Aqüicultura e Pesca. A favor dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) ficaram os ministros da Agricultura (Reinold Ste-

phanes), Ciência e Tecnologia (Sérgio Rezende), Relações Exteriores (Celso Amorim), Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Miguel Jorge), Defesa (Nelson Jobim), Justiça (Tarso Genro) e Casa Civil (Dilma Rousseff). Como as decisões do CNBS são tomadas por maioria simples, a liberação foi confirmada por sete votos a quatro, ainda que a Saúde e o Meio Ambiente tenham sido derrotados. Isso só foi possível pelo aspecto que movimentos sociais e a procuradoria-geral da República julgam inconstitucional na Lei de Biossegurança: ao contrário de qualquer outro produto, as liberações de transgênicos não

dependem de um posicionamento favorável da Anvisa ou do Ibama.

Indignação Em nota assinada por representantes de diversos movimentos sociais e entidades ambientalistas e de defesa do consumidor, são manifestadas a contrariedade desses atores com a medida do governo, que eles classificam como irresponsável. Para Isidoro Revers, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a decisão do CNBS é “absurda”. “As duas autoridades competentes para avaliar os impactos à saúde humana e ao meio ambiente se posicionaram contra as liberações

comerciais. É muito contraditório que os outros ministros, que não têm competência sobre essas áreas, tenham passado por cima dessa decisão. Isso atenta contra o direito dos agricultores, que perderão suas variedades tradicionais e crioulas, e dos consumidores, que não terão opção de uma alimentação saudável e não transgênica, já que não haverá controle da contaminação”, protesta. Rosângela Cordeiro, membro do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), avalia que a liberação da variedade transgênica coloca em risco as sementes crioulas de milho, “patrimônio dos agricultores brasileiros”. De acor-

do com a militante, que assim como Isidoro faz parte da Via Campesina, os movimentos irão manter a luta, em campo, contra as liberações de milho transgênico. “Absurdo” também foi a palavra encontrada por Andrea Salazar, coordenadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), para o comportamento das transnacionais que continuam se negando a realizar os estudos exigidos pelas autoridades da área de saúde. “Vamos continuar alertando os consumidores brasileiros sobre os riscos do milho transgênico. A Anvisa deixou bem claro que essas variedades não são seguras à saúde humana”, disse.

João da Silveira/Agência Contestado

Movimentos sociais pautam soberania alimentar e organização do campesinato Em Santa Catarina, 1ª Feira Camponesa da Uva critica devastação provocada pela expansão do agronegócio Maciel Cover e Cássio Giovani de Tangará (SC) A mobilização e a organização dos camponeses da região do Contestado, no Meio Oeste de Santa Catarina, tiveram mais um capítulo escrito no local que foi palco de um dos confrontos mais sangrentos entre trabalhadores e colonizadores da história do Brasil. Entre os dias 8 e 10, a 1ª Feira Camponesa da Uva, em Tangará (SC), reuniu trabalhadores de toda região para debater a soberania alimentar e a organização do campesinato como forma de melhorar a qualidade de vida das famílias de agricultores. “E vamos, além disso, colocando na pauta a discussão de um modelo agrícola que valoriza a cultura camponesa e a preservação ambiental e que promove a saúde para as famílias de agricultores e para a população”, explica Roberto Bohnenberger, coordenador da Feira e diretor da Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol) de Tangará. O evento foi promovido pela Cresol e pela Associação Estadual da Juventude Rural, com

o apoio da Via Campesina, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), da Associação de Educação e Cultura Popular Paulo Freire (APAFEC) e do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). Além de autoridades locais, de lideranças de organizações sociais e de partidos de esquerda, a abertura da Feira teve a presença do ministro da Secretaria Especial de Pesca e Aqüicultura, Altemir Gregolin. Ele parabenizou a iniciativa e destacou a importância da agricultura camponesa na economia brasileira, se comprometendo em continuar seu trabalho em favor do campesinato.

Alternativas O primeiro dia da Feira foi aberto com um seminário sobre soberania alimentar e cadeia produtiva da uva. O primeiro palestrante foi Álvaro Santin, engenheiro agrônomo e dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). De acordo com ele, existem dois modelos agrícolas claros propostos no país: o dos pequenos agricultores e camponeses e o dos grandes produtores ligados ao agronegócio.

“O latifúndio controla a política agrícola e acaba, nessa lógica, sempre buscando impor sua visão. Do outro lado, temos os camponeses, com uma visão da agricultura que se preocupa com o todo, desde a questão ambiental até a saúde, com uma produção de melhor qualidade”, afirma Santin. O melhor exemplo dessa realidade, para ele, é a diversidade da fauna e da flora na região de Tangará – cujas propriedades são praticamente todas de pequenos agricultores e camponeses. “É um contraste claro. Enquanto aqui temos centenas de espécies de plantas e animais, nas regiões onde a monocultura do pinus se consolidou só vemos devastação e, acima de tudo, pobreza”, destaca. Segundo Santin, as ações de controle por parte do capital levaram diversos municípios a uma situação de miséria. “É um misto de produção de riqueza que gera miséria. Campo Erê, por exemplo, é o terceiro produtor de soja de Santa Catarina e o primeiro de novilhos precoces. No entanto, está entre os 10 piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Estado. Ou seja, não basta produzir riqueza, é preciso pro-

Participantes discutiram a valorização da cultura camponesa

duzir riqueza com diversidade”, defende.

Produção de alimentos A cadeia produtiva da uva foi debatida por Edgar Peruzzo, agrônomo da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri/SC). Peruzzo apontou que a produção da vitivinicultura é uma alternativa para a agricultura camponesa, pois absorve o trabalho da família, possibilitando sua manutenção no campo. No final do seminário, as organizações construíram uma pauta para reivindicar do governo estadual e da União mais investimentos na cadeia produtiva da uva e na produção de alimentos. Uma das conclusões aponta que “o Estado deve investir em quem

produz alimentos, e não somente no agronegócio da celulose, que destrói o meio ambiente, concentra a terra e a renda e expulsa os camponeses de suas comunidades”. A região do Contestado é a mais afetada pela plantação de pinus em Santa Catarina. O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que em todos os municípios onde avançaram os desertos verdes a população rural diminuiu.

Atividades culturais Durante os três dias de Feira foram realizadas apresentações artísticas com o objetivo de fortalecer as manifestações culturais da população da região, numa demonstração de resistência às influências de culturas distantes dos valores

do campesinato. O Grupo Teatral Tampa de Panela apresentou a peça “Herdeiros do Contestado”, que resgata a Guerra do Contestado do ponto de vista dos oprimidos. A Feira foi finalizada com a apresentação do cantor Dante Ramon Ledesma que, em seu repertório, traz a música raiz e de contestação da realidade social. Para Gilmar Rebelato, da coordenação do evento, “as atividades devem fortalecer nossa convicção para resistir de maneira mais eficiente e não perder de vista o horizonte de construir uma sociedade sem dominação. Um projeto popular para o campo deve levar a sério a questão da arte e da cultura. Por isso que pautamos essa questão nesta feira”. (Agencia Contestado)


de 14 a 20 de fevereiro de 2008

5

brasil

Profissionais da saúde discriminam mulher em supostos casos de aborto João Zinclar

DIREITOS DA MULHER Direção de hospital convoca policial que, disfarçado de assistente social, consegue confissão Tatiana Merlino da Redação MARIA* TEM 22 anos, é negra, órfã, desempregada e mora num cortiço na cidade do Rio de Janeiro. Grávida de seis meses, no dia 23 de janeiro, ela deu entrada no Hospital Municipal Souza Aguiar com sangramento. Apesar de terem feito um parto prematuro, o feto não resistiu. Diante da suspeita de que a jovem teria tomado um remédio para abortar, o corpo médico do hospital acionou o policial de plantão que, de acordo com advogadas de Maria, se fez passar por assistente social para que ela confessasse o crime. Sua prisão foi decretada em flagrante e o delegado de polícia estipulou uma fiança de R$ 3 mil para que a jovem fosse colocada em liberdade.

Questão de classe Fernanda Maria Vieira, advogada do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, lembra que esse é um crime que prevê fiança, e para o qual o delegado determinou o teto máximo. “Isso é uma loucura. As mulheres que têm condições econômicas pagam a fiança e vão embora. Já as pobres ficam presas. Ou seja: o aborto tem uma questão de classe”, explica. Além disso, lembra Fernanda, mulheres que têm dinheiro não vão a hospitais públicos quando têm complicações com aborto, mas sim recorrem a clínicas particulares. A socióloga Dulce Xavier, da Organização Não Governamental Católicas pelo Direito de Decidir, garante que, no Brasil, quemmorre em aborto clandestino – ou é presa por esse crime – são mulheres pobres. Práticas arriscadas A socióloga explica que a população pobre é a principal vítima porque não tem acesso a clínicas particulares nem a remédios abortivos de menor risco. Assim, não lhes resta outra alternativa além de práticas arriscadas como a introdução de agulhas de tricô que perfuram o útero, atingindo muitas vezes a bexiga ou o intestino. As advogadas do Centro entraram com um pedido de liberdade provisória, que foi aceito pelo 4º Tribunal do Júri. “Se nosso pedido não tivesse sido aceito, ela estaria presa, esperando a data do interrogatório”, explica Fernanda. Ainda de acordo com as advogadas que acompanharam o caso da jovem Maria, ela teria sido pressionada no hospital pela polícia para dizer que induziu o aborto. A médica que atendeu a jovem também se ofereceu para ser testemunha de acusação no caso. Jovem, negra e pobre De acordo com a socióloga do Católicas Pelo Direito de Decidir, Maria se enquadra no perfil das mulheres que recorrem aos hospitais públicos para o tratamento de complicações pós-aborto. “São jovens, negras, pobres, desempregadas e sozinhas”, explica. De acordo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de morte no país. A curetagem (procedimento de raspagem uterina feita após abortos) é o segundo procedimento obstétrico mais praticado no Sistema Único de Saúde (SUS), superado apenas pelos partos. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), metade das gestações são indesejadas e uma em cada nove mulheres recorre ao abortamento.

No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, 31% das gestações terminam dessa maneira, o que daria aproximadamente 1,4 milhão de casos, entre espontâneos e provocados. “muitas vezes, mortes por hemorragia e infecção decorrentes do aborto clandestino são classificadas pela pessoa que faz o laudo de maneira incorreta, então o número pode ser ainda maior”, explica Dulce.

Vítimas de maus tratos Em muitos casos, as mulheres que procuram o SUS após um aborto mal sucedido são vítimas de maus tratos, negligência e preconceito. “Há enfermeiros e médicos que deixam a mulher sangrando, fazem curetagem sem anestesia, xingam e destratam as pacientes”, conta a socióloga. “Desde o porteiro até o médico: todos se sentem no direito de condenálas”, conclui. O que esses profissionais parecem ignorar, lembra a socióloga, é que em 2005 o Ministério da Saúde instituiu a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, medida que tem como objetivo qualificar o atendimento de mulheres que chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento espontâneo ou inseguro, e assim reduzir a mortalidade materna. “Em tese, essa norma pbriga os profissionais a acolher e atender sem fazer um julgamento moral da opção dessas mulheres. Não cabe à área de saúde fazer isso. Pre-

cisamos fazer valer essa norma”, alerta.

Criminalização do aborto Pela legislação atual, o aborto só é permitido em dois casos, ambos mediante autorização judicial: quando a gravidez é resultado de estupro ou quando a gravidez traz risco de vida para a mãe. A criminalização do aborto é garantida por cinco artigos do Código Penal, de 1940. As penas vão de um a dez anos de prisão. Hoje, tramitam no Senado Federal três projetos de lei sobre o aborto: o 183/04, que inclui, entre os permitidos, os casos em que o feto se desenvolve sem cérebro (anencéfalo); o 227/04, que retira a punição dos casos de aborto de fetos anencéfalos; e o 312/04, que retira do Código Penal a interrupção de gravidez como crime. Já na Câmara dos Deputados, 19 propostas tratam diretamente do assunto, sendo que sete são contra o aborto e pedem a revogação dos direitos já garantidos (como nos casos de estupro ou risco de morte para a mãe) ou a tipificação do aborto como crime hediondo. Nove projetos são favoráveis ao aborto em casos específicos e um deles pede a descriminalização total. O projeto de lei 1135/91, que espera votação na Câmara há 16 anos, retira do Código Penal o artigo que pune a mulher com detenção nos casos de aborto. *O nome da jovem foi modificado a pedido de seus advogados.

Manifestação pró-aborto defende direitos da mulher

Campanha da Fraternidade defende criminalização Secretário-geral da CNBB propõe mudar lei que garante aborto em caso de estupro da Redação Enquanto o ministro da Saúde, José Gomes Temporão vem defendendo a discussão sobre a legalização do aborto, que ele considera uma questão de saúde pública (chegou a propôr a discussão pública sobre a realização de plebiscito no país acerca do assunto), a Igreja Católica tem se posicionado contra as declarações do ministro. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, no dia 6, a 45ª Campanha da Fraternidade, com o tema defesa da vida e o lema “Escolhe, pois, a vida!”. Antes da missa de lançamento da campanha, o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, afirmou que a Igreja Católica vai agir politicamente para impedir a aprovação, pelo Congresso Nacional, de projetos de lei que legalizam o aborto, a eutanásia e o uso de embriões em pesquisas científicas.

Permissão por lei De acordo com o secretário-geral da CNBB, dom Dimas Lara Barbosa, a proposta que mais incomoda a Igreja é o projeto de lei 1135/91, parado na Câmara dos Deputados há 16 anos, que retira do Código Penal o artigo que pune a mulher que fizer um aborto com detenção de até três anos. Além disso, dom Dimas disse que também está no horizonte da Igreja a possibilidade de tentar retirar da legislação os dois casos em que o aborto é permitido por lei (risco de vida para a mãe e estupro). Segundo o secretário-geral da CNBB, o aborto é uma questão ética, e não de saúde pública. Dom Dimas afirmou que a Igreja pretende reforçar as ações que apóiam mulheres que decidem levar adiante uma gravidez indesejada, mesmo em caso de estupro, fetos anencéfalos e risco de vida para a mãe. Nos próximos dias, serão distribuídos folders em todas as paróquias dos quase 6 mil municípios brasileiros,

com amplo material a respeito da campanha da fraternidade. Ofensa à democracia A socióloga Dulce Xavier questiona o discurso da Igreja de defesa da vida. “Quem defende a vida, apóia o uso da camisinha, pesquisa com célulastronco”, critica. Para ela, a Igreja não pode querer submeter o Estado e a população às suas regras. “Isso é uma

ofensa à democracia e um desrespeito até com outras religiões”, diz. De acordo com Dulce, a Igreja está se posicionando “contra tudo que garante direitos reprodutivos e a autonomia para se exercer uma sexualidade livre e prazerosa”, avalia. “Eles querem acabar até com os serviços legais de atendimento para mulheres que foram vítimas de estupro”, indigna-se. Marcello Casal Jr./Abr

Dom Dimas Barbosa, secretário-geral da CNBB

Em resposta à Campanha da Fraternidade, a ong Católicas Pelo Direito de Decidir lançou, no dia 9, um manifesto no qual apontam 11 contradições do discurso de defesa da vida, entre eles o seguinte, em relação ao aborto: “Pode-se afirmar a defesa da vida e desrespeitar o princípio fundamental à realização de uma vida digna e feliz, que é o direito de decisão autônoma sobre o próprio corpo? Condenar as mulheres a levar adiante uma gravidez resultante de estupro, a não interromper uma gravidez que coloca a vida delas em risco ou cujo feto não terá nenhuma condição de sobreviver?” Distribuição de pílula Recentemente, a Igreja também tentou impedir as prefeituras de Recife, Paulista e Olinda, em Pernambuco, de distribuirem a pílula do dia seguinte durante o Carnaval. A arquidiocese entrou com uma representação no Ministério Público Estadual, solicitando que o órgão encaminhe à Justiça, “em caráter emergencial”, ação para que a entrega do medicamento pelo sistema público de saúde do Estado seja suspensa em todas as épocas do ano, e não apenas no Carnaval.”O que o governo está gastando, começando lá na Presidência, poderia ser usado para alimentar os pobres das favelas”, afirmou o arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho. “Na nossa leitura, estão violando um direito fundamental dos neonascidos e induzindo o povo a praticar o mal”, completou. De acordo com o ministro da Saúde, essa “é uma questão de saúde pública, não uma questão religiosa. Lamentavelmente, a Igreja, cada vez mais, se afasta dos jovens com esse tipo de postura”, comentou. Segundo o projeto da Prefeitura de Recife, as pílulas serão entregues a mulheres que declararem, a médicos de plantão, que tiveram relações sexuais e que suspeitam de falhas nos métodos contraceptivos normais. Arquidiocese do Recife classificou a proposta como “aberração”. (TM)


6

de 14 a 20 de fevereiro de 2008

brasil www.brasildefato.com.br

Fernando Arias/UBV Images

Anna Fonzar/CC

saiu na agência

Espionagem na Bolívia

Vítima da violência, o agricultor José Luis não confia na polícia local

A violência do latifúndio CAMPO Na luta pela terra, família de posseiros é torturada e violentada por nove homens no agreste paraibano Thalles Gomes e Maria Luisa Mendonça de Juarez Távora (PB) NO DIA 9 de dezembro de 2007, por volta da meia-noite, nove homens armados arrombaram a pontapés a porta da casa de Severina: “Senti a zoada do carro quando chegou aqui na frente de casa. Foi tudo muito rápido. Quando a gente acordou as crianças, ouvimos a explosão na porta. Eles bateram e já foram pegando a gente e marretando no pau”. Seu esposo, o agricultor José Luis, foi amarrado e espancado no chão da sala. “Aí começaram a bandalheira. Foi uma noite de terror mesmo”, relata Severina. Ela e José nada puderam fazer para defender seu filho de 15 anos que, torturado, teve seu rosto esfregado na parede até sangrar. Suas duas filhas – uma de dez e outra de três anos – foram espancadas enquanto Severina era amarrada à cama. Ela reconheceu a voz de seu algoz. Era a mesma que, dois dias antes, por telefone, havia lhe recomendado: “vá tratando de comprar um vestido preto pra você vestir para o resto da sua vida!”. “Abra bem os ouvidos e fique sabendo que a gente vai voltar!”, foi a última coisa que Severina ouviu dos agressores antes de sumirem na escuridão da madrugada. “Isso ficou na minha mente. A gente sabe que eles vão voltar, mas, quando, ninguém sabe”, afirma.

Histórico de violência A família de Severina faz parte de um grupo de posseiros que se organizou para lutar pela terra na Fazenda Quirino, localizada no município paraibano de Juarez Távora. O histórico de violência na região é tão antigo quanto extenso. Até meados da década de 1990, os posseiros estavam submetidos ao arcaico sistema de cambão, através do qual, para garantir suas moradias, eram obrigados a pagar um dia de trabalho não remunerado por semana nas terras do proprietário Alcides Vieira. Além disso, arcavam com um foro anual no valor de R$ 50 por hectare de roçado trabalhado. “Durante esse tempo, passamos por momentos muito difíceis por causa desse negócio de pagar foro. Quando meu marido chegava do trabalho na fazenda, vinha com a barriga colada no espinhaço, nem água davam pra ele”, relem-

bra Severina. Em 1997, os posseiros reivindicaram ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a vistoria dos 901 hectares da Fazenda Quirino. Em represália, o proprietário contratou capangas para ameaçar os posseiros, intimando-os a desistirem da desapropriação.

Conquista da terra? Mesmo diante do medo e da insegurança, os posseiros resistiram e, em janeiro de 1999, receberam a imissão de posse na terra, sendo criado, logo em seguida, o projeto de assentamento rural Novo Horizonte. Mas, como ressalva o posseiro João Luiz, naquela região, “o poder do latifúndio pode mais do que o poder do governo”. Não tardou para que o proprietário Alcides Vieira conseguisse na Justiça a suspensão temporária do decreto de desapropriação. Enquanto o processo tramitava, ele determinou que seus capangas vigiassem todos os movimentos dos posseiros. Para sair ou entrar na fazenda, eles eram vistoriados, assim como suas visitas. Se saíssem sozinhos eram espancados. “Tocaiados pelos jagunços” durante mais de um ano, os posseiros não conseguiam trabalhar em suas terras. Terror Em 2001 os agricultores decidiram voltar a trabalhar no roçado em regime de mutirão. Em março da-

quele ano, seis anos antes de ser espancado e ter sua casa destruída, o mesmo agricultor José Luis foi abordado por dois vaqueiros da fazenda enquanto caminhava para sua roça e, com uma arma apontada à cabeça, foi persuadido a retornar para casa. Naquele mesmo mês, após participar de uma missa na Fazenda Quirino em solidariedade aos posseiros, um grupo de 13 pessoas, que incluía o professor de sociologia e economia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Fernando Garcia, foi torturado por capangas no curral da Fazenda e depois detido na delegacia. Diante desses abusos e da repercussão negativa frente à opinião pública, em maio de 2001, a Justiça Federal convocou uma audiência em Campina Grande (PB), na qual o fazendeiro e os posseiros firmaram um acordo de convivência. Porém, em outubro de 2007, o proprietário rompeu com o acordo e voltou a ameaçar as famílias posseiras.

“Omissão” da polícia Em novembro, quando os agricultores estavam construindo a casa de um posseiro em regime de mutirão, sete homens chegaram e ordenaram que todos ficassem em fila para serem revistados. O administrador da fazenda, José Clementino de Sá, aproveitou a ocasião para apresentar ao proprietário os trabalhadores um a um. “Esse aí é o presidente da assoFernando Arias/UBV Images

Severina: “Eles vão voltar”

ciação, o João Luiz, e esse é o safado do Zé Luís”, disse. “Depois fizeram o que foi necessário para acabar com tudo, destruíram toda a construção”, relembra José Luis. Depois de 15 dias, ele teria sua casa invadida e seria espancado e torturado junto com sua família. Tantas atrocidades só são possíveis por causa da conivência da polícia local. “A gente não confia mais na polícia da região, porque, vai não vai, a gente vê o latifundiário daqui dando tapinha nas costas do delegado. De uma hora para outra ela pode vir para dar um apoio, na outra ela pode chegar aqui e bater em todo mundo a mando do fazendeiro”, revela José Luis.

Relações de poder Os posseiros acreditam que a emboscada do dia 9 de dezembro foi planejada pelo neto do fazendeiro, Carlos Alberto Bezerra, que contou com o apoio do agente de investigação da Polícia Civil, Sérgio de Sousa Azevedo, suspeito também de chefiar uma milícia privada dos latifundiários na região. Azevedo, José Clementino e outros empregados da fazenda foram reconhecidos dentre os agressores daquela noite. A violência do latifúndio, em conluio com o poder policial, não é um fato novo na sociedade brasileira. Mais fácil crer que a própria constituição e manutenção do latifúndio no campo brasileiro só foram possíveis através da união entre a violência privada dos proprietários de terra e a violência oficial, sob controle do Estado. As milícias privadas se confundem com a força policial na imensidão dos latifúndios. Tensão e insegurança “É um sofrimento calado. Uma situação difícil para nós, que somos trabalhadores, na luta por um pedaço de chão” afirma José Luis. O clima de insegurança e tensão persiste entre os posseiros da Fazenda Quirino. Os agricultores continuam recebendo ameaças anônimas e, no primeiro dia deste ano, um dos posseiros foi espancado à noite por dois capangas da fazenda, quando voltava de uma visita aos familiares de José Luiz e Severina. “Acho que a gente apanhou por todos os posseiros”, lembra Severina. “O que aconteceu comigo... Tive muito medo. Fiquei com medo de ter contraído AIDS. Mas, graças a Deus, recebi o resultado e não estou com essa doença. Estou com minha vida, minha família e vou lutar. E já pedi aos meus companheiros da luta que, se eu morrer, eles continuem a lutar. É o meu sonho”, conclui. *Em apoio às famílias posseiras, foi criada a Frente de Solidariedade aos Posseiros da Fazenda Quirino, que está recolhendo assinaturas para cobrar das autoridades o fim da violência e impunidade na região. Mais informações no site www.cptpe.org.br

Alex van Shaick, um jovem estadunidense que participa do programa de intercâmbio Fullbright na Bolívia, revelou que um funcionário de segurança da Embaixada dos EUA em La Paz lhe pediu que espionasse venezuelanos e cubanos que realizam trabalhos humanitários no país. O ministro de governo, Alfredo Rada, declarou que o embaixador estadunidense, Philip Goldberg, tem que dar explicações sobre a denúncia. Rada já havia denunciado a existência de grupos irregulares de inteligência, no interior da Polícia Nacional, que seriam financiados pelos EUA. Transporte

No dia 30 de janeiro, às vésperas do carnaval, o governo de São Paulo, comandado por José Serra (PSDB), anunciou que irá aumentar as tarifas de trem, metrô e ônibus metropolitano. As tarifas de trem e metrô terão aumento de 4,35%, passando de R$2,30 para R$2,40. A integração entre ônibus, trem e metrô terá aumento de 4,29%, de R$3,50 para R$3,65. O Movimento Passe Livre e o Sindicato dos Metroviários consideraram o aumento injustificável, já que estão acima da inflação. Segundo o governo do Estado, o aumento vai “contribuir para a estabilidade fiscal e para a auto-suficiência do financiamento da operação”.

Ditadura

No Uruguai, a Coordenação Nacional pela Anulação da Lei de Caducidade anunciou, no dia 11 de fevereiro, ter superado a marca de 70 mil assinaturas para solicitar a revogação dessa lei, que impede julgar crimes cometidos durante a ditadura militar (1973- 1985). A campanha espera atingir a marca de 100 mil adesões até o meio do ano.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Gafe internacional A União Européia deixou claro que não faz mais importação da carne brasileira enquanto não tiver garantias de que existe controle efetivo de qualidade dos produtores. É claro que existe pressão de concorrentes e outros interesses em jogo, mas a bobeada maior nesse caso foi mesmo do Ministério da Agricultura, que quis empurrar produtores sem a menor condição sanitária. Por falar nisso, como está a fiscalização federal da carne vendida ao mercado brasileiro? Ação decisiva Setores da esquerda petista atribuem a demissão da ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, à nova investida da mídia conservadora contra o governo federal. Setores do movimento negro acham que se trata de uma campanha racista. Na verdade, ela saiu porque admitiu o erro no uso do cartão corporativo e não foi defendida pelo governo. Ao contrário, o Palácio do Planalto alimentou a imprensa com o boato de que ela entregaria o cargo. Apoio português Já se sabe agora que vários vôos secretos realizados pela CIA, entre 2002 e 2006, para o transporte de pessoas seqüestradas pelo serviço de espionagem dos Estados Unidos à base militar de Guantánamo, contaram com a conivência do governo português, que autorizou escala dos aviões nos aeroportos de Lajes e Santa Maria, em Açores. A ONU e a imprensa continuam contidas sobre tais crimes. Império acuado Derrotados seguidamente em suas aventuras imperialistas, os Estados Unidos caminham para novo desastre histórico no Iraque: desde a invasão, em 2003, perderam 3.950 soldados, o desânimo toma conta das tropas e a resistência iraquiana aumenta. No front interno, os candidatos à presidência debatem como fazer a retirada sem grandes perdas e sem aprofundar ainda mais a crise econômica. Sinuca de bico! Virada paraguaia Depois de sofrer ameaças de impugnação, o ex-bispo Fernando Lugo teve, finalmente, no início deste mês, sua candidatura à presidência homologada pelo Tribunal Eleitoral do Paraguai.

Líder nas pesquisas, ele é apoiado por uma coligação de organizações de esquerda, Partido Liberal Radical Autêntico, Democracia Cristã e Partido Comunista. As eleições serão no dia 20 de abril.

Resgate histórico Será lançado, no dia 20, em Sorocaba (SP), o documentário “Porque lutamos! Resistência à ditadura militar”, dirigido pela jornalista Fernanda Ikedo, que resgata a história do estudante e militante político Alexandre Vanucchi Leme, que foi preso, torturado e assassinado aos 22 anos de idade, no DOICodi de São Paulo, em março de 1973. Uma homenagem justa aos que lutam por um Brasil melhor. Morte anunciada De 1997 a 2005, as siderúrgicas de Corumbá consumiram 4 dos 5 milhões de hectares de florestas nativas transformadas em carvão vegetal. Agora, a MMX – aquela que foi expulsa da Bolívia por desrespeito à legislação – e a anglo-australiana Rio Tinto estão colocando novas unidades em funcionamento para triplicar a produção de ferro até 2013. O governo do Mato Grosso do Sul garante que o Pantanal será preservado. Será? Dúvida cruel A euforia de empresários, economistas e governistas em geral com o PAC e as previsões de crescimento sustentado neste ano não combinam nem um pouco com a decisão, anunciada no dia 8, da Coteminas – a indústria do vice-presidente da República José Alencar – de demitir 800 dos 4.000 trabalhadores da fábrica de Montes Claros (MG). Como explicar para os desempregados que a economia vai muito bem, obrigado?


de 14 a 20 de fevereiro de 2008

7

brasil

Riqueza de mineradoras contrasta com pobreza dos locais onde operam David Alves-AGPA

EXPLORAÇÃO Órgãos do governo e prefeituras denunciam a dívida das empresas e a contradição da miséria em regiões ricas de recursos Pedro Carrano de Curitiba (PR)

Divergências O assunto não aponta apenas para a Vale. Outras mineradoras, como Rio Tinto, Companhia Siderúrgica Nacional, Samarco Mineração, Minerações Brasileiras Reunidas e MMX, estão em contradição com o território onde se instalam. Como explica o DNMP para a reportagem do Brasil de Fato, os minérios pertencem ao Estado e os royalties da extração são pagos mensalmente pelas empresas. No entanto, as companhias e o órgão do governo discordam da base de cálculo da cobrança, daí o passivo existente. As mineradoras apóiam-se, entre outros pontos, no argumento de que já gastam com transporte e impostos. “Na verdade não há, por parte da Vale e das outras mineradoras, nenhum movimento no sentido de se estabelecer uma negociação para o pagamento da dívida pela via administrativa”, comenta Wellington Alves Valente, da consultoria Polis, que levanta os tributos e as compensações devidas pelas empresas de mineração no Pará. Em Parauapebas (PA), foi levantado o número de R$ 254 milhões em dívidas da Vale com a Prefeitura. A razão da peleja, nesse caso, é o minério de ferro. Por lei, a alíquota deve ser de 2% do valor líquido da produ-

Estrada de Ferro Carajás EFC: crescimento da produção gera conflitos

ção. O minério de ferro brasileiro atualmente está entre os recursos necessários à estruturação produtiva da China, que compra 30% da produção nacional. Nessa conjuntura, entre 2006 e 2007, o seu preço cresceu 30%.

Expansão e contradição A disputa entre transnacionais e localidades detentoras de recursos minerais ou energéticos alcançou as massas e virou pauta política na Bolívia, por exemplo, onde os movimentos populares responderam à questão com a Agenda de Outubro, exigindo das transnacionais o aumento no pagamento de royalties pela extração de gás e petróleo. Porém, no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem no comandante da Vale, Roger Agnelli, um de seus principais conselheiros. Os dois recentemente jantaram juntos, devido à possibilidade de aquisição da mineradora anglo-suíça Xstrata. Lula chegou a sondar sobre os investimentos no país, porém, prometeu não se intrometer na transação bilionária. A Vale está em franca expansão, e a compra da mineradora Xstrata pode movimentar até 90 bilhões de dólares. Nos municípios, no entanto, o crescimento da produção gera conflitos. O drama

de Parauapebas é conhecido. De um planejamento inicial de 25 milhões de toneladas na exploração de minério de ferro, na jazida de Carajás, a produção alcançou 100 milhões de toneladas, em 2007. Ao mesmo tempo, a cidade recebe uma grande quantidade de migrantes. Cerca de 60 pessoas surgem diariamente na estação de trem, em busca de trabalho. De acordo com a Prefeitura, o município inchou e não dá conta de problemas como saneamento e moradia. São hoje 130 mil pessoas na cidade que, nos anos 1980, era um acampamento de 5 mil. Uma operação de fiscalização de Parauapebas realizada pelo DNPM, iniciada em 2001, levantou o passivo da mineradora Vale, calculado em torno de R$ 254 milhões na jazida de Carajás.

Mudanças Esse valor de arrecadação não poderia ser usado para pagar dívidas do município ou para outros fins. A finalidade é o investimento local, como explica Wellington Alves Valente, da consultoria Polis. De fato, a distribuição das alíquotas privilegia os municípios, que recebem 65% da quantia, ao passo que o governo estadual tem direito a 23% e o federal, a apenas 12%.

Contradição entre lucros e trabalho O Pará é o Estado das desigualdades, o extremo entre a miséria do povo e a extração modernizada de matéria-prima para o capitalismo global. O Pará possui 7% de homens a mais do que mulheres. São 500 mil homens a mais no estado, que é o terceiro em receber volume migratório no Brasil, nas palavras do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto. A produção de uma empresa como a Vale recebe um grande número de pessoas na fase de implantação da atividade, o que em pouco tempo dá lugar a problemas sociais de excesso populacional e subemprego. Aos que se mantêm no trabalho, resta seguir tomando o transporte público precário que os conduz por 30 quilômetros, de Parauapebas até a jazida de Carajás. Flávio Pinto revela que existem mais de 8 mil ações trabalhistas no Pará. “A companhia prefere pagar na Justiça do que reconhecer o direito dos trabalhadores”, afirma, citando o número de 25 mil empregados, porém 90% deles terceirizados. A reportagem do Brasil de Fato procurou as duas Varas de Trabalho de Parauapebas (PA), uma delas criada justamente pela demanda em excesso, mas não obteve resposta. (PC)

Em meio à sangria de matéria-prima, de acordo com números da Prefeitura de Parauapebas, a quantia de royalties paga hoje é de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões mensais, mas o objetivo da Prefeitura seria o aumento de 1% na alíquota paga pela exploração mineral. Em fase embrionária, existem projetos de lei para alterar a arrecadação dos municípios. O projeto do deputado federal José Fernando (PVMG) implicaria que Estados, como Minas e Pará, recebessem, anualmente, R$ 960 milhões e R$ 532 milhões, contra os R$ 240 milhões e R$ 133 milhões que receberam em 2007 – embora o projeto tenha um traço marcadamente neoliberal, pois implica a concessão do direito de exploração a empresas internacionais, além de contar com o entusiasmo de Aécio Neves (PSDB), governador de Minas. Na visão de Wellington Valente, a medida a ser tomada seria a mudança na cobrança sobre as mineradoras, uma vez que as companhias se aproveitam das brechas na lei. Dessa maneira, seria preciso alterar a cobrança sobre o valor líquido da extração de minérios, passando para a cobrança sobre o valor bruto. “Bastava passar o cálculo de faturamento líquido para bruto, não precisaria mexer na alíquota. Isso já traria um ganho de 22% na arrecadação”, prescreve.

Produção de petróleo garante royalties maiores O lucro da atividade minerária alcança o lucro petroleiro, porém compensações fiananceiras são menores de Curitiba (PR) A “Guerra do Gás” de 2003, na Bolívia, foi um importante momento na luta de classes, quando transnacionais imperialistas, como Petrobras, Repsol, British Gas e Panamericana Gas, tiveram que pagar melhores royalties ao Estado sobre a extração dos hidrocarbonetos, passando de 18% para os atuais 50%. Esse valor já chegou a atingir 82%, mas houve recuo do governo Evo Morales. Em outros países, a disputa se dá no marco institucional, entre governos locais e companhias. A comparação entre a atividade mineradora e a petroleira é um dos pontos de partida. A alíquota de royalties pagos pelo setor minerário é menor, em comparação com a taxa sobre as companhias petroleiras – ain-

Para entender CFEM – Forma de compensação pelo uso econômico de recursos minerais que deve ser pago ao município onde se dá a extração, independente de ser feita a transformação. A alíquota para minério de alumínio, manganês, salgema e potássio é de 3%. Para pedras preciosas e metais nobres, a taxa é de 0,2%. Já para ferro, carvão, fertilizante e demais substâncias, a alíquota fica em 2%. DNPM – Órgão gestor competente pela concessão, fiscalização e julgamento de todos os assuntos vinculados à mineração no Brasil.

Cratera da mina de Carajás, provocada pela extração mineral

da que os lucros das duas atividades estejam em patamares parecidos. Informações da Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais (Amig) indicam que, no Brasil, o setor mineral arrecada cerca de 35 vezes menos que a exploração de petróleo. Os royalties do setor petrolífero giram de 5% a 10% da receita líquida das empresas, enquanto os do setor mineral ficam entre 0,2% e 3%. A Vale é responsável por 40% da mineração brasileira, que reverteu, em 2007, cerca de R$ 466 milhões em compensações financeiras. A partir disso, a Vale teria pago cerca de R$ 186 milhões a título de compensação financeira, valor cerca de 88 vezes menor que a compensação financeira paga pela Petrobras, de acordo com a Amig. (PC)

Cade toma medida para tentar reduzir o monopólio

Reprodução

NO DIA 31 de janeiro, a direção da Vale se viu pressionada a pagar uma compensação de R$ 1,8 bilhão para 19 prefeituras de Minas Gerais, Estado onde realiza exploração mineral. No Pará, outros 40 prefeitos também batem à porta das mineradoras com a fatura em mãos. A imagem de enormes crateras deixadas pela extração mineral não rende publicidade, mas é certo que a extração deixa marcas sócio-ambientais, e os recursos não são renováveis. Juridicamente, é obrigatório o pagamento da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), como forma de indenização ao município minerador, o que causa disputas entre prefeituras e empresas. O Departamento Nacional de Proteção Mineral (DNPM) é o responsável pela concessão e fiscalização da extração de qualquer minério no país. O órgão realizou levantamento em Minas Gerais e constatou que a Vale contraiu um passivo, ao longo de 15 anos (de 1991 a 2006), com os municípios. A fiscalização foi realizada em convênio com a Associação de Municípios Mineradores, organização nacional presente nos dois principais Estados do ramo: Minas e Pará. Por ora, trata-se de um contencioso e ainda cabe recurso à Vale, que corre para não ser inscrita na dívida ativa da União.

No dia 7 de janeiro, direção e acionistas da Vale tiveram um novo imprevisto. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) colocou a empresa em um dilema: ela deveria escolher entre abrir mão da Ferteco, uma das cinco maiores mineradoras do Brasil, ou do direito de preferência na compra do excedente da jazida Casa de Pedra, da Companhia Siderúrgica Nacional. De acordo com o Cade, a empresa incorria em monopólio na extração de minério de ferro. Sobre a compra da anglo-saxônica Xstrata, empresa que possui patamar de lucro semelhante ao da Vale, o negócio será submetido ao Cade depois de 15 dias após concluído. Na avaliação do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, a compra da Xstrata segue o caminho de internacionalização da empresa, já demonstrado na compra da canadense Inco, em outubro de 2006, na qual se acentua o controle por parte dos detentores de ações preferenciais (65% deles estrangeiros). “Trata-se de um caso mais grave que o da Inco – no qual o comando da empresa foi transferido para o Canadá – pois a empresa anglo-suíça tem o valor quatro vezes mais alto. Ao Brasil vai restar ser o local de onde a empresa retira o recurso” comenta Lúcio Flávio. (PC)


8

de 14 a 20 de fevereiro de 2008

cultura Luciano Riquelme

Volodia, gigante da literatura, revolucionário exemplar MEMÓRIA Volodia Teitelboim, escritor e dirigente do Partido Comunista chileno, morreu no dia 31 de janeiro, aos 91 anos

EM DEZENAS de países, a mídia dedicou atenção especial à morte de Volodia Teitelboim. O grande chileno desaparecido tinha 91 anos, mas durante quase toda a sua larga existência foi ignorado pelos meios de comunicação que saúdam agora nele um gigante da literatura contemporânea. Mas as homenagens chegaram atrasadas. No seu próprio país, Volodia foi, até o final da ditadura, quase ignorado como escritor pela grande imprensa. Tinha mais de 80 anos quando lhe atribuíram o Prêmio Nacional de Literatura. O motivo do silêncio da burguesia sobre a sua obra é conhecido: o autor de Hijo del Salitre dizia haver tido, ao longo da vida, dois amores pouco compatíveis: uma mulher legítima, a política, e uma amante, a literatura. Nunca rompeu com a segunda, não obstante ter sido secretário-geral e, depois, presidente do Partido Comunista do Chile. Uma estranha bigamia, quase sem precedentes na história. O prolongado silêncio sobre a sua obra não pode apagar a evidência. Volodia Teitelboim foi um dos mais importantes escritores latinoamericanos do século 20. Nenhum outro exerceu sobre mim, como profissional do ofício de escrever, influência comparável. Conheci-o no Porto, há mais de um quarto de século, durante um Congresso do Partido Comunista Português. O seu discurso produziu-me algo parecido com um deslumbramento. Foi o único delegado que falou ali na sua própria língua, sem tradução. Grande orador, fundiu na sua intervenção, de grande beleza formal, a idéia de Revolução, a profundidade da história, e a cultura. Foi, recordo, aclamado de pé pelo plenário de delegados do congresso.

Nasce uma amizade Antes do seu regresso a Moscou, onde então vivia exilado, jantamos em Lisboa. Nesse encontro, brotaram as raízes de uma amizade que se fortaleceu com o rodar dos anos e iria adquirir, para mim, um significado enorme. À medida que a nossa amizade se aprofundava, apercebi-me de que vivia naquele dirigente comunista chileno , poeta e romancista, um Erasmo moderno. Tinha o dom raríssimo de transformar rapidamente o conhecimento adquirido em cultura. Nesses anos, eu visitava com muita frequência a União Soviética. E quando chegava a Moscou entrava logo em contato com ele. O impulso vinha do afeto e da admiração, mas havia nele também um pouco de egoísmo. Reencontrar Volodia era um privilégio. Ele transmitia aquele tipo de saber e de experiência que, eu sabia, nos abre estradas no pensamento, rasga horizontes. Quase sempre vinha ao meu hotel, mas para sair logo e, dando voltas ao quarteirão, passar a vida e o mundo em revista. Ele gostava muito de falar caminhando, com vagares. Mesmo no inverno, sob um frio intenso, usava o seu boné, recusando as chapkas soviéticas. Não tive melhor mestre so-

bre a União Soviética do que ele. Quando chegou a perestroika e milhões de comunistas, pelo mundo afora, identificaram nela um conteúdo revolucionário, Volodia não escondeu o ceticismo com que encarava as promessas gorbatchovianas de regresso às origens do leninismo. Não esqueço uma conversa que mantivemos quando regressei de uma viagem ao Afeganistão devastado pela guerra civil. Dançava-se no salão do hotel, e nesse dia ele falou-me sobretudo da mulher russa, da sua força de caráter, naquilo que a diferenciava e lhe aparecia como garantia de que, para além de grandes tempestades que se anunciavam num horizonte sombrio, o povo de Puchkin e Lênin retomaria na história o seu papel insubstituível. Ele escrevia então com freqüência para o jornal O diário. Era um colaborador atípico. Escolhia os temas,com prioridade para a luta do povo chileno. Abordava os grandes problemas internacionais quase sempre numa perspectiva original. Se o assunto era um livro, uma personalidade, uma efeméride, o estilo marcava também o autor.

Dolorosamente chileno pelo sentir e pela cultura, este homem, nascido em 1916 na nebulosa e gelada Chillán, descendia de judeus vindos do antigo Império Russo no final do século 19. Um avô veio parar no Chile, por engano, em busca do Paraíso. A família soube que algures, em remota região austral da América, num país quase desconhecido, existia uma cidade chamada Puerto Éden. O representante do clã cruzou meio mundo para, afinal, descobrir que o Éden imaginado não passava de uma aldeia paupérrima. Mas, tenaz, ficou para semear os Teitelboim latino-americanos. A religião de Moisés, essa não resistiu à mudança de continente. Volodia, antes de se tornar comunista, já era ateu, um judeu não-judeu como os pioneiros da Revolução de Outubro.

Não tive melhor mestre sobre a União Soviética do que ele. Quando chegou a perestroika e milhões de comunistas, pelo mundo afora, identificaram nela um conteúdo revolucionário, Volodia não escondeu o ceticismo com que encarava as promessas gorbatchovianas de regresso às origens do leninismo.

Clandestino no Chile No exílio, desenvolveu-se no combate ao fascismo pinochetiano, uma atividade prodigiosa, num vaivém permanente que, a partir de Moscou, o fez correr pelo mundo, do Vietnã às capitais européias, da África à Índia. Escreveu centenas de artigos em jornais de dezenas de países. Em Madrid, fundou e dirigiu (de longe) a Auracaria, uma revista de cultura mobilizada para o debate de idéias, aberta a intelectuais revolucionários de muitas nacionalidades, sobretudo latinoamericanos. E ainda encontrou tempo e energia para, durante 15 anos, de 1973 a 1988, se dirigir ao seu povo, primeiro diariamente, depois duas vezes por semana, através da Rádio Moscou. Essas crônicas, transmitidas no programa Volodia Comenta-Escucha Chile, desesperavam Pinochet pela repercussão que alcançaram entre a população. O ditador todo-poderoso não podia impedir que a voz do ex-senador comunista levasse a esperança a milhares de casas chilenas. Foram mais tarde publicadas em vários tomos pela editora Lom, de Santiago.

Quando o reencontrava e ele tinha disponibilidade de tempo, escutava-o durante horas, fascinado. Nada me encantava mais do que ouvilo evocar episódios da sua vida. Nessas conversas moscovitas caíram barreiras e pouco a pouco pude entrar pelo seu passado. Volodia tinha uma memória prodigiosa. Foi por meio desses “bate-papos” – gracejava com os meus brasileirismos – que conheci as origens e as aventuras dos seus antepassados muito antes de ele as relatar no primeiro tomo de Antes que Llegue el Olvido, a monumental tetralogia que começou a escrever após o regresso ao Chile, já perto dos 80 anos.

O biógrafo Volodia cultivou, como informei antes, quase todos os gêneros literários. Perguntei-lhe um dia qual preferia e evitou responder, para lembrar que, tendo começado como poeta, abandonou cedo a poesia. Tarde, já nos anos do exílio, sentiu a tentação de escrever sobre os grandes poetas do Chile. Deixou-nos três livros sobre Pablo Neruda, Gabriela Mistral e Vicente Huidobro. E um quarto sobre o argentino Jorge Luís Borges. Ao regressar a Santiago, Volodia não abandonou a vida política. Foi secretário-geral do Partido Comunista do Chile e posteriormente presi-

Quem é Nascido em 1916, o escritor e dirigente político Volodia Teitelboim entrou para a militância política ainda muito jovem, ingressando na juventude comunista chilena aos 16 anos. Além de poesia, escreveu romances e ensaios, tendo como seus trabalhos mais conhecidos as obras Hijo de Salitre, La Semilla en la Arena, La Guerra Interna e Noches de Radio. Nos anos 60, elegeu-se deputado e senador e, após o golpe contra Salvador Allende, em 1973, exilou-se na Rússia por 15 anos. De volta ao Chile, foi eleito secretário-geral do Partido Comunista em 1989, cargo que exerceu até 1994.

Reprodução

Miguel Urbano Rodrigues

Jovem empunha bandeira comunista durante o funeral de Teitelboim

dente. Mas, recuperada a sua biblioteca e definitivamente instalado na capital, dedicou-se com paixão à literatura. Nos últimos 20 anos, publicou mais livros do que no meio século anterior. O biógrafo passou o testemunho ao memorialista. Decidiu que tinha chegado à altura de escrever uma obra diferente de tudo o que fizera até então. Iria escrever sobre o seu tempo, contemplado pelos homens que sucessivamente tinham vivido nele. Sabia que o tempo de vida útil não seria longo. De início, era nevoento o projeto. Faltava enquadrá-lo e dar-lhe uma dimensão. Foi tomando forma à medida que escrevia, recordando. Admitiu primeiro que seriam dois tomos. Depois, alargou a estrutura para nela caberem três. Finalmente, saiu uma tetralogia: Antes que Llegue el Olvido. Não exagero qualificando essa obra – interrompida por outras – de monumento literário. Mas a expressão não pode transmitir ao leitor aquilo que ele vai sentir, nem lhe ilumina os caminhos para onde o escritor o empurra. Por quê? Porque os atos e o viver do jovem Volodia, do combatente na idade madura, do intelectual revolucionário já carregado de anos surgem no livro permanentemente fundidos com a reflexão sobre acontecimentos e pessoas que o vão moldando e transformam o planeta Terra. O mesmo Volodia aparece-nos em viagem através de muitos Volodias na aventura de uma existência humana. Daí a complementaridade não antagônica entre o subjetivo e a história exterior que envolve o narrador e o acompanha da adolescência à velhice. Volodia foi, para mim, o escritor latino-americano que escreveu os perfis de mulheres que mais me tocaram. Retratou como mais ninguém as mulheres que passaram pela vida de Neruda. Mas sobre mulheres que ele, Volodia, amou, escreveu também páginas que, na tentativa de

o acompanhar, nos projetam numa atmosfera mágica. Como o capítulo do primeiro tomo da sua tetralogia, quando descreve a caminhada, na última noite do ano, pelas ruas desertas de Santiago na busca impaciente de uma pensão onde o aceitem com uma jovem que será a sua primeira companheira. A evocação dessas horas é um maravilhoso poema em prosa ao amor.

Fome de totalidade A vida proporcionou-me a felicidade de rever Volodia algumas vezes após o seu regresso ao Chile. Mas nem sempre ali, porque ele foi, mesmo quando já tinha enorme dificuldade em caminhar, um viajante com ânsia de fazer caminho ao andar, como dizia António Machado. Não parava de correr pelo mundo. Encontramo-nos em Havana em 1999. Eu tinha então escolhido Cuba para escrever, suficientemente longe da pequena política portuguesa para que os seus ecos não perturbassem a minha tranquilidade. Ele apareceu inesperadamente, como hóspede de honra, para apresentar um dos seus livros. Fidel, que o admirava muito, chamavao sempre, nessas visitas, para conversas que entravam pela madrugada. Eu iniciava então a escrita de um livro, O Tempo e o Espaço em que Vivi, e o reencontro permitiu-me abordar temas de Antes que Llegue el Olvido. Volodia sabia que tinha sido a leitura do tomo I que me havia levado à decisão de subir pela memória no tempo, para escrever . Sempre que recebia um livro seu dedicava-lhe uma crônica, quase sempre no Avante! Em Portugal, revi-o em 2001. Eu estava de passagem, ele vinha lançar a edição portuguesa de Los Dos Borges. Amava tanto a nossa língua que, para expressar o seu apreço pela tradução de Serafim Ferreira, não hesitou em afirmar que havia gostado mais de se ler em português do que no seu original, em castelhano. Nessa breve visita, Volodia pronunciou uma conferência na Casa de Fernando Pessoa. Horas antes, os Estados Unidos haviam iniciado a agressão ao povo do Afeganistão, bombardeando com selvageria Cabul. Não recordo qual o tema da sua palestra, mas guardo lembrança das suas palavras de abertura. Dirigindo-se a escritores de múltiplos azimutes ideológicos, declarou que seria impensável falar ali de literatura sem previamente denunciar o ato de barbárie do imperialismo estadunidense que

atingia, naquele dia, um povo da Ásia Central. Dois anos transcorridos, visitei Volodia em sua casa quando participei, em Santiago, do seminário Allende Vive 20 Años Despues. Saía cada vez menos e dedicava à escrita cada vez mais tempo. Falamos sobretudo, por iniciativa minha, da sua obra. Ele estava terminando Un Soñador del Siglo 21, último tomo da tetralogia. Na conversa, prolongada, abordei pela primeira vez um tema delicado. Eu via nele há muito o último dos grandes escritores humanistas do século que findara. Ao envelhecer, o seu estilo transformarase, acompanhando o acumular dos anos, e a mudança aparecia com clareza na tetralogia. Volodia cultivava a ironia de uma maneira muito sua. Raramente o vi sorrir, mas sabia fazer sorrir os seus interlocutores a propósito de tudo e nada. Dessa vez, foi direto ao assunto. Lembrou que, assim como o discurso político pronunciado de improviso aos 30 anos não é pelo conteúdo, forma e som, o dos 70 , o mesmo ocorre com a escrita. “A memória – comentou – não responde na velhice como na juventude. O escritor não pode desconhecer a lei da vida.” O que se manteve nele inalterável foi aquela fome de totalidade que ia ganhando espaço na sua obra para culminar na tetralogia. Dei-lhe o último abraço em novembro de 2004, em Caracas, onde compareceu para participar no I Encontro de Intelectuais em Defesa da Humanidade. Volodia quis, com a sua presença, expressar uma solidariedade sem restrições à Revolução Bolivariana. Dele, recebi recentemente via internet uma carta muito generosa de comentário a um livro meu que lhe enviara. Conseguiu, mais uma vez, comover-me. O seu funeral foi comovedor, segundo a própria imprensa de direita chilena. Na morte, até os adversários políticos lhe reconheceram a grandeza que lhe ignoraram enquanto viveu. Quando a urna de Volodia desceu à terra, até a presidente social-democrata, Michelle Bachelet, cantou a Internacional, chorando. Portugal, Serpa, 8 de Fevereiro de 2008 (leia íntegra do texto na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato. com.br). Miguel Urbano Rodrigues é jornalista, membro do Comitê Central do Partido Comunista Português.


de 14 a 20 de fevereiro de 2008

9

américa latina Bernardo Londoy/CC

Diante do Palácio de Miraflores, Clara Rojas, Chávez, Consuelo González e Piedad Córdoba

COLÔMBIA-VENEZUELA Para a senadora colombiana Piedad Córdoba, presidente Uribe tenta desviar a atenção dos escândalos das ligações de seu governo com os paramilitares Claudia Jardim de Caracas (Venezuela) O QUE parecia ser apenas uma briga entre vizinhos ganhou novas dimensões, e a iminência de um conflito armado entre Venezuela e Colômbia passou a preocupar a diplomacia sul-americana. A ruptura das relações políticas entre o presidente Hugo Chávez e o colombiano Álvaro Uribe, após o fim da mediação no acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), evidenciou a incompatibilidade crescente dos dois projetos antagônicos da região. Para a a senadora colombiana Piedad Córdoba (Partido Liberal), que intermediou as negociações entre Farc, Uribe e Chávez, o conflito atual está sendo usado pelos conservadores de seu país para desviar a atenção da mídia sobre as denúncias de ligações dos paramilitares com o governo Uribe. “Qual melhor saída que a de inventar uma guerra com a Venezuela?”, diz Piedad.

O governo dos Estados Unidos tem a Colômbia como o principal trunfo para impedir que os ares de renovação democráticos se consolidem na América Latina Brasil de Fato – Quais são as reais dimensões da crise diplomática entre Venezuela e Colômbia? Piedad Córdoba – Mas o que está acontecendo agora? Porque Chávez diz que Uribe é um lacaio do imperialismo se começa uma guerra? Não vejo nenhum desdobramento para este conflito que não seja distrair a opinião pública colombiana para que não saibam que o paramilitarismo está absorvendo o governo. Para que não saibam que o presidente tem um primo-irmão em juízo por paramilitarismo, que 71 parlamentares uribistas podem ir à prisão pelo mesmo motivo, que o diretor do Departamento Administrativo de Segurança (DAS), nomeado por Uribe, está preso por envolvimento com o paramilitarismo. Em qualquer país do mundo, esses fatores seriam suficientes para tombar um governo. Que melhor saída do que a de inventar uma guerra com a Venezuela? Até onde isso pode chegar? Isso não chegará a nenhuma parte. A Venezuela é o principal mercado das exportações colombianas. Como pano de fundo, podemos afirmar que está em disputa a consolidação de dois projetos antagônicos na América Latina? Sim. Neste cenário de guerra, há dois projetos políticos distintos sobre a mesa. Um democrático, integrador e de proteção dos recursos naturais, que temos visto em alguns países, e outro de concentração da riqueza e bélico, como o que representa o presidente Uribe. Estão no centro da discussão estes dois modelos. O que é certo é que Uribe é o Ariel Sharon da América Latina. O governo dos Estados Unidos tem a Colômbia como o principal trunfo para impedir que os ares de renovação democrática se consolidem na América Latina. O que havia sido acordado com as Farc antes da decisão de Uribe de

dar um ponto final na mediação de Chávez? Estava previsto que, em 15 de dezembro (2007), seria libertada pelo menos metade dos reféns (das 46 pessoas passíveis de troca), no final de janeiro se entregaria a outra parte do grupo e imediatamente seria levado adiante toda a proposta para o processo de paz. A Colômbia e toda a região perderam muito com a decisão de Uribe. Uma das coisas que seriam discutidas posteriormente com Manuel Marulanda (comandante das Farc) era o fim do seqüestros dentro do conflito, ele tinha se comprometido a isso. Alguns analistas afirmam que o governo da Colômbia armou uma armadilha e conseguiu, por meio das Farc, transferir o conflito colombiano à Venezuela. A senhora concorda? Uribe não quer o acordo humanitário, nem quer uma negociação política, e isso é algo extremadamente preocupante para o futuro do processo de paz na Colômbia. Nós caímos em uma armadilha, sim. E eu assumo grande parte da responsabilidade. Talvez atuamos por ingenuidade. Nunca pensei em prejudicar o presidente Chávez nem a Venezuela. Entramos neste processo pensando que poderia ser concretizado o acordo humanitário. Se Uribe não está interessado em um acordo de paz, por que ele entregou nas suas mãos e nas de Chávez a tarefa de mediar com as Farc? Acredito que fez isso porque não pensou jamais que íamos avançar tão rápido. Porque já levava muito tempo pedindo provas de vida da Ingrid Betancourt,

dos três americanos, e nada. Realizamos reuniões entre as Farc e Chávez, apareceram as provas de vida, que, antes de serem entregues a Chávez, foram interceptadas pelo governo colombiano. Nos reunimos com Nicolas Sarkozy (presidente França), com o Departamento de Estado estadunidense. Íamos bem. Tanto o governo como as guerrilhas são acusados de serem mantidos pelo narcotráfico. De que maneira a guerra na Colômbia se sustenta? O narcotráfico é um elemento de total ingovernabilidade no país há bastante tempo. Do narcotráfico se nutre muita gente. O paramilitarismo é mantido absolutamente pelo narcotráfico, porque é uma extensão das forças do Estado. O governo Uribe é mantido pelo narcotráfico? O que se pode afirmar é que foi eleito pelo paramilitarismo, e o paramilitarismo se beneficia do narcotráfico. Esse é um problema estrutural. Com o paramilitarismo, houve uma reforma de 4,5 milhões de hectares de terras que estão nas mãos do narcotráfico. O paramilitarismo está se apropriando do Estado, das empresas, do judiciário, do Congresso da República e das Forças Armadas. Os paramilitares são um exército do Estado que fazem o que não podem fazer com o exército regular, ou seja, é usado para manter o status quo, com o assassinato de camponeses e dirigentes políticos, despejos de terras etc. E as Farc, de que maneira se beneficiam? Não posso dizer que as Farc são um grupo de narcotraficantes. Uma coisa é que o narcotráfico tenha servido a eles

Cronologia do conflito colombiano 1948 Assassinado o líder do Partido Liberal Jorge Eliécer Gaitán. Começa o conflito armado e se instaura acordo que consistia na alternância do poder entre os partidos Liberal e Conservador, excluindo a oposição do sistema político. 1960 As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) são criadas. 1980 Grupos paramilitares conformam as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Um grupo de guerrilheiros das Farc abandonam as armas e formam o partido União Patriótica, que concorreu às eleições em 1986. A partir deste período, 5 mil militantes do partido foram assassinados. 1999 Entra em vigor, no governo de Andrés Pastrana o Plano Colômbia, financiado pelos Estados Unidos, que utiliza o argumento de combate ao narcotráfico para militarizar o país. 2007 Envolvimento de membros do governo de Álvaro Uribe (eleito em 2002) com paramilitares debilitam o governo. Agosto - Uribe convida o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para mediar o acordo humanitário com as Farc que previa a libertação de 46 reféns das Farc em troca de 500 guerrilheiros presos. A senadora de oposição Piedad Córdoba atua como facilitadora do acordo. Dezembro – Uribe decide terminar a mediação de Chávez e Piedad. O presidente venezuelano “congela” as relações com Uribe. As Farc anunciam a libertação unilateral de Consuelo González de Perdomo e Clara Rojas como um ato de desagravo a Chávez. A primeira tentativa de libertação das reféns fracassa. 2008 Janeiro – Consuelo González de Perdomo e Clara Rojas são libertadas após seis anos em cativeiro. Troca de acusações entre Chávez e Uribe geram pior crise diplomática da história. Fevereiro – Farc anunciam a libertação de dos ex-congressistas colombianos Gloria Polanco de Lozada, Luis Eladio Pérez e Orlando Beltrán, seqüestrados em 2001.

Reprodução

Uma crise fabricada

Quem é Piedad Córdoba é senadora pelo Partido Liberal. Vítima do conflito armado, sofreu três tentativas de assassinato. Em 1999, foi seqüestrada por paramilitares. De agosto a dezembro de 2007, atuou oficialmente como facilitadora do acordo humanitário entre as Farc e o governo colombiano, mediado pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. É o principal enlace com a guerrilha nas negociações de libertação de reféns.

para cobrar impostos e, com isso, financiar suas atividades. Isso sim é certo. Mas se fosse certo que as Farc são narcotraficantes, pois então seriam os narcotraficantes mais estúpidos do mundo, porque, no lugar de ir viver em boas casas e hotéis, optam por agüentar a guerra e o diabo na selva. Apesar da decisão do presidente Álvaro Uribe em terminar com a mediação do acordo humanitário, as Farc decidem libertar unilateralmente um grupo de reféns. O que pretendem com isso? Fazer política. De que maneira, constituindo um partido? Sim. As Farc pretendem criar um partido político. Estariam dispostos a deixar as armas e entrariam no jogo institucional? O presidente Uribe me disse que poderia fazer um acordo com a guerrilha com as armas sobre a mesa, enquanto avançasse um processo de paz. Temos um antecedente muito próximo que não podemos esquecer, e isso conta quando se discute um acordo de paz na Colômbia: o extermínio da Unidade Patriótica a partir do ano de 1985. Cinco mil dirigentes foram assassinados após o acordo de paz. Não se pode ignorar isso. Hoje a situação poderia ser diferente, a conjuntura favorece. Se as Farc iniciam um processo de paz, há uma coisa muito importante, que é a presença de uma comunidade latino-americana, que estaria vigilante de que não vão assassinar aos que estamos trabalhando por um processo de paz e por uma saída negociada do conflito. Quais são as dificuldades para a realização de um acordo de paz na Colômbia? Há muitos interesses em jogo. Muitos empresários preferem apostar na guerra a distribuir a riqueza para que outros colombianos sejam incluídos. Não querem a paz porque sabem que isso significará a modificação de muitas estruturas na Colômbia. O narcotráfico e outros interesses econômicos que facilitaram todas as privatizações no país, a entrega de nossas terras a transnacionais, não querem estas mudanças. Negociar as propostas das Farc seria algo importante, mas nada assustador. O que propõem as Farc poderia ser aprovado até por um governo social-cristão. Reforma agrária, reforma política, popularização do crédito. Não é nada de outro mundo. Qual a saída para o fim do conflito armado colombiano? A janela de saída para a paz é o acordo humanitário. A comunidade internacional, que até agora tem sido espectadora desta guerra, deve exigir do governo colombiano a realização de um acordo de paz pelo respeito à vida, e deve contar com a incorporação de grandes setores do país, dos quais também são parte as Farc e o ELN.


10

de 14 a 20 de fevereiro de 2008

américa latina

Bolívia enfrenta momento decisivo ULTIMATO Oposição ameaça com ampla paralisação a partir do dia 14, caso governo não atenda suas exigências Igor Ojeda correspondente em La Paz (Bolívia) SE A OPOSIÇÃO cumprir sua ameaça, a Bolívia terá um mês de fevereiro crucial para seu futuro. No dia 7, os departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija (chamados de meia-lua), Cochabamba e Chuquisaca; seus respectivos comitês cívicos e deputados constituintes contrários ao governo lançaram um ultimato ao presidente Evo Morales. Caso suas reivindicações não sejam atendidas até o dia 13, haverá uma “paralisação nacional” a partir do dia seguinte. As exigências centrais são quatro: que se suspenda o corte de parte do Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos (IDH) que era destinado aos departamentos (ler texto nesta página); que se “restaure a legalidade” da aprovação da nova Constituição do país; que sejam realizados referendos nos departamentos da meia-lua sobre seus estatutos autonômicos, redigidos em dezembro do ano passado; e que se convoque uma consulta nacional sobre a sede dos poderes do Estado.

A ruptura das negociações poderá ter como conseqüência o maior aprofundamento da polarização do país, o que tornará mais provável a realização de um referendo revogatório do mandato do presidente e dos nove governadores departamentais. Para Fidel Surco, secretário-executivo da Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia (CSCB), entidade que representa parte dos camponeses do país, a ameaça da oposição é preocupante. “Por meio desse ultimato, chantageiam o país. Com isso, estamos correndo o risco de que se rompa o diálogo. Como movimentos sociais, nós não vamos permitir essa situação, não vamos permitir chantagens e vamos adiante com o tema da socialização da nova Constituição. Se querem romper o diálogo, que o rompam”, afirma.

Referendo revogatório Desde o fim de 2007, governo e departamentos tentavam chegar a

um acordo sobre esses temas. Para o dia seguinte do anúncio da oposição, o Executivo convocava outra reunião com os representantes departamentais. A ruptura das negociações poderá ter como conseqüência o maior aprofundamento da polarização do país, o que tornará mais provável a realização de um referendo revogatório do mandato do presidente e dos nove governadores departamentais. A decisão de quem fica e quem sai nas mãos da população é tratada tanto pelo governo quanto pela oposição como a melhor solução para a crise política. “Os movimentos sociais defendem que, diante dessa ameaça, o Congresso Nacional convoque imediatamente o referendo revocatório. Não resta outra alternativa. E o povo que defina, não só os governadores. Assim, o povo irá decidir se apóia os estatutos autonômicos, a redistribuição do IDH, a nova Constituição... O povo vai decidir se está do lado do neoliberalismo ou das mudanças”, sentencia Surco. Para o dirigente camponês, a consulta popular pode resultar favorável ao governo. Não só Evo permaneceria na presidência, como a oposição poderia perder governadores. “O de Pando [Leopoldo Fernández] vai embora, o Manfred Villa Reyes, de Cochabamba, também. E trabalharemos para que o resto se vá”, promete. Proposto por Evo Morales no final do ano passado, o referendo revogatório já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, e deve ser analisado pelo Senado.

Autonomias Enquanto isso, Santa Cruz, Chuquisaca, Beni, Pando e Tarija decidiram pôr em marcha os processos internos de autonomias, considerados ilegais pelo governo. Em dezembro, os departamentos da meia-lua recolheram assinaturas de respaldo à realização de referendos regionais para a aprovação dos estatutos autonômicos lançados no mesmo mês. No dia 31 de janeiro, o governador de Santa Cruz, Rúben Costas, chegou a convocar uma consulta para 4 de maio. No dia 11 de fevereiro, a Corte Eleitoral de Santa Cruz garantiu sua realização. Já em Chuquisaca, as instituições locais deram posse a um comitê encarregado de redigir o seu estatuto. Para o Executivo, os referendos departamentais não podem ser realizados sem o aval do Congresso. No entanto, Alberto Melgar, do Comitê Cívico de Beni, defende que, segundo a lei, os governadores eleitos através do voto possuem esse poder.

Mari Pires

Bandeira hasteada em Santa Cruz anuncia o embate

Imposto sobre hidrocarboneto é disputado por Evo e governadores de La Paz (Bolívia) O Imposto Direto sobre os Hidrocarbonetos (IDH), que incide sobre a produção de gás e petróleo, foi instituído através da Lei dos Hidrocarbonetos, de maio de 2005. De acordo com as normas, uma parte da arrecadação passou a ser destinada aos governos departamentais. No entanto, no fim do ano passado, o governo de Evo Morales criou a Renda Dignidade, uma bolsa vitalícia aos maiores de 60 anos. Para financiá-la, anunciou a “redistribuição do IDH”, ou seja, um corte em parte do que era recebido pelos departamentos. No dia 1º de fevereiro deste ano, o pagamento da Renda Dignidade teve início, o que foi considerado como uma sinalização de que o governo não iria ceder no tema. Já os estatutos autonômicos fo-

ram apresentados, com grandes atos e festas, pelos departamentos da meia-lua no dia 15 de dezembro. Os documentos garantem o controle departamental sobre impostos, terra, recursos naturais, segurança e cidadania, inclusive a regulação da migração interna. Quanto aos recursos, por exemplo, o estatuto de Santa Cruz determina que o governo local “controle, de maneira direta, a exploração e comercialização de hidrocarbonetos”. Santa Cruz é, depois de Tarija, a região da Bolívia que abriga os maiores poços de gás e petróleo, principal fonte econômica do país.

“Ilegalidade” Em relação à nova Constituição, a oposição considera ilegal a forma como foi aprovada. Em 15 de agosto de 2007, a proposta de translado dos poderes Executivo e Legislativo de La Paz para Sucre (capital de Chuquisaca) foi excluída dos

debates da Assembléia Constituinte pela maioria afinada ao governo. Até o fim do século XIX, a capital era esta última, condição perdida em uma guerra civil. A decisão da Assembléia enfureceu a população da cidade, sede da Constituinte. Os massivos protestos paralisaram os trabalhos por mais de três meses. Como não se chegava a um acordo sobre o tema, a diretiva da casa resolveu, em 23 de novembro, reinstalar as sessões no Colégio Militar de Sucre, por medida de segurança. Enquanto a plenária era realizada, sem a presença dos constituintes da oposição, enfrentamentos entre a polícia e manifestantes aconteciam do lado de fora e no centro da cidade. Três pessoas foram mortas. No dia 24, o texto geral da Constituição foi aprovado; no dia 9 de dezembro, na cidade de Oruro, foi aprovado em detalhe. (IO)

ANÁLISE

Chávez ameaça cortar o envio de petróleo aos EUA Suspensão seria resposta à decisão da justiça de Londres, que congelou ativos da estatal petroleira Bernardo Londoy/CC

da Redação O presidente Hugo Chávez afirmou, no dia 10, que cortará o envio de petróleo aos Estados Unidos se este país continuar sua “guerra econômica” contra a Venezuela. A declaração, feita em seu programa de TV transmitido semanalmente, foi uma resposta à liminar judicial que a empresa estadunidense ExxonMobil conseguiu, congelando 12 bilhões de dólares em ativos da estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA). “Sigam, e vocês verão que não lhes enviaremos uma gota de petróleo”, disse Chávez. Esta é a segunda reação de Chávez ao anúncio feito no dia 7 pela ExxonMobil com relação à sentença emitida por um tribunal de Londres, que ordenou o congelamento temporário de ativos da PDVSA, na Holanda e nas Antilhas Holandesas. A companhia estadunidense empreendeu uma batalha legal contra a PDVSA diante do decreto do governo venezuelano, que nacionalizou, no início de 2007, a extração e o processamento de petróleo pesado na bacia do Rio Orinoco. A decisão afetou a estadunidense Conoco Phillips, que interpôs uma demanda de arbitragem para fixar o preço de mercado de seus investimentos, ainda que, segundo o ministro de Energia e Petróleo, Rafael Ra-

Para Chávez, desbastecimento é arma para desestabilizar o governo

mirez, com essa companhia haveria negociações em curso. A ExxonMobil, maior companhia energética do mundo, também ganhou uma ordem de um tribunal em Nova York que congela temporariamente os fundos da PDVSA acima de 300 milhões de dólares, já que a empresa estadunidense argumentou que tinha poucas possibilidades de recuperar seus investimentos na Venezuela. Para Chávez, a ação da ExxonMobil forma parte de um plano que avança com o desabastecimento de alimentos e a violência nas ruas, e cujo objetivo é gerar descontentamento na população, tendo em vista as

eleições regionais que se realizarão na Venezuela em finais de 2008.

“Mister Danger” “Estão nos ameaçando. Um tribunal por lá (Grã-Bretanha), que não tem nada a ver com isto..., como eles se creêm donos do mundo..., então um tribunal ordena que congelem a Venezuela não se sabe onde. Está bem, se vocês chegarem de fato a nos trazerem prejuízo, nós lhes vamos dar prejuízo. Sabe como? Não vamos mandar petróleo aos Estados Unidos. Anote, Mister (George W.) Bush. Anote, Mister Danger.” “Se a guerra econômica continu-

Nestlé e Parmalat podem ser expropriadas da Redação

ar contra a Venezuela, o preço do petróleo vai chegar a 200 dólares, e a Venezuela se meterá na guerra econômica, e mais de um país está disposto a nos acompanhar. Não nos vão meter medo. Não vão nos dissuadir”, pontuou Chávez. Pouco antes, o venezuelano disse que empresas como ExxonMobil “ganham bilhões de dólares no mundo por dia, exploram na África, roubam a América Latina, roubam o mundo, como aqui nos roubaram”. “Mas aqui nunca mais nos roubarão, teriam que passar por nossos cadáveres. Bandidos da ExxonMobil são uns bandidos imperialistas, ladrões de colarinho branco, corruptores de governos, destruidores, apoiaram a invasão ao Iraque e o bombardeio do país, seguem apoiando o genocídio. Essas são as empresas como a ExxonMobil, bandidos, bandidos do mundo, máfias mundiais.” No dia 9, Chávez assinalou que uma empresa “imperialista” petroleira e alguns venzuelanos tratam de afundar a principal indústria do país. “Existem venezuelanos que querem que PDVSA se afunde; mas não vai se afundar, nem a Venezuela, nem esta revolução”, disse o mandatário, que apontou que a oligarquia desse país deseja converter a Venezuela em um sultanato ao estilo dos países do golfo Pérsico. (La Jornada, www.jornada.unam.mx)

Hugo Chávez reagiu às reportagens sobre a escassez de leite divulgadas pela mídia privada do país. Em seu programa de TV, Chávez afirmou que se trata de um fenômeno artificialmente provocado pelo contrabando na direção da Colômbia e pelo monopólio. Segundo ele, o objetivo desse episódio, assim como o da ação da ExxonMobil seria gerar descontentamento na população. Sobre o desabastecimento de leite, Chávez advertiu que “se ficar provado que a Nestlé (da Suíça) ou a Parmalat (da Itália) usaram diversos mecanismos econômicos de pressão ou de chantagem, isso se chama sabotagem. Nesse caso, deve-se aplicar a Constituição, intervir e expropriar as plantas (das empresas)”, discursou. Enquanto o conflito com a Colômbia e os supostos planos de que os Estados Unidos impulsionam desde esse país vizinho contra a Venezuela, Chávez disse que o projeto imperialista é “inundar de paramilitares” o território venezuelano. “Já estamos sentindo o impacto nos Estados de Barinas, Apure, Táchira e Zulia, ao longo da fronteira, e chegam até Caracas”, de onde, segundo Chávez, “não andam com fuzis nem uniformizados (como é costume na Colômbia). Estão fazendo trabalho nos bairros, vendendo cocaína a preços baixos para ganhar as áreas e os delinqüentes, e ir armando-os com armas de guerra”. (La Jornada, www. jornada.unam.mx)


de 14 a 20 de fevereiro de 2008

11

internacional

Ramos-Horta: enquanto houver miséria extrema, não haverá paz Reprodução

TIMOR LESTE Uma semana antes do atentado contra sua vida, o presidente José RamosHorta esteve no Brasil e concedeu entrevista ao Brasil de Fato Beto Almeida de Brasília (DF) EM SUA recente visita ao Brasil, o presidente do Timor Leste, José Ramos-Horta, talvez não imaginasse que pudesse ser tão profético quando declarou a este repórter que “enquanto houver miséria extrema, não haverá paz de verdade”. Referia-se ao mundo como um todo, à crescente desigualdade entre um punhado de países ricos e poderosos e uma escandalosa miséria que se avoluma de modo explosivo na chamada periferia do mundo, inclusive no mundo desenvolvido. Mas também se aplica ao seu próprio país. Poucos dias após voltar ao Timor Lorosae (Terra do Sol Nascente), José Ramos-Horta, bem como o primeiroministro, o líder guerrilheiro Xanana Gusmão, são alvos de atentados simultâneos organizados pelo major dissidente Alfredo Reinado, expulso juntamente com centenas de militares das filas das Forças Armadas do Timor, há cerca de 2 anos, quando deuse a última crise naquele país ilhéu, próximo à Austrália, antiga colônia portuguesa, ocupada pela Indonésia em 1975, após sanguinária autorização de Henry Kissinger. “Sejam rápidos”, recomendou o sinistro ex-secretário de Estado dos EUA à ditadura indonésia, diante da derrota iminente das tropas imperialistas no Vietnã, no Laos e no Cambodja. A ocupação do Timor levou 25 anos e ceifou a vida de 25% dos timorenses, o que ficou conhecido como o maior genocídio contemporâneo, e também como “O Vietnã silencioso”, dada a bravura com que o povo maubere resistiu de armas nas mãos a invasão que contou com a cobertura de um manto de silêncio das redes (des)informativas internacionais. Petróleo, gás e uma posição estratégica dentro da meta imperial de controlar as rotas marítimas da região, eis o que possui o Timor Leste para pagar com tantas vidas a sua luta pela liberdade e pela independência, finalmente conquistada após intervenção de tropas da ONU, a realização de plebiscito, a instalação de uma administração da ONU, chefiada pelo diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, e, finalmente, com eleições diretas. Mas, não tendo superado a miséria extrema, esta ilha continua longe da paz e convive com a instabilidade, características que costumam cercar países que têm significativas riquezas energéticas, e, como o Timor, também um pouco de café, algo de potencial pesqueiro e escassas condições de defesa.

Insensibilidade No momento em que se escreve este artigo, Ramos-Horta encontra-se entre a vida e a morte, e suas palavras proféticas ecoam na memória deste repórter. Há um lado dramático em tudo isto: o Prêmio Nobel da Paz é vítima de um atentado! Mas ele vai ao âmago da questão. “A ajuda dos países ricos é miserável, é imoral o que fazem os ricos do mundo”, diz ele, contabilizando que toda a ajuda exter-

Alfredo Reinado, José Ramos-Horta e Xanana Gusmão, em encontro realizado em 2006

O então primeiro-ministro Alkatiri aumentou de 20% para 50% o direito do Timor Leste sobre o valor auferido pelas empresas transnacionais que exploram os minerais, seguindo uma linha nacionalista similar à de Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa. Foi o bastante para que surgissem movimentos internos de desestabilização, que resultaram na sua queda na aos países pobres não alcança 100 bilhões de dólares. E dispara: “Enquanto isto, os subsídios à agricultura na Europa, Japão e EUA, altamente insustentável do ponto de vista econômico, chegam a 300 bilhões de dólares”, afirmando que, com apenas um 1% desta fortuna, já seria possível reduzir a pobreza gradativamente, o que, segundo disse, vem sendo impedido por uma “extrema insensibilidade” dos ricos.

Solidariedade de Cuba Ao lado desta incapacidade para cooperar por parte dos ricos, Ramos-Horta descreve com ênfase a substantiva ajuda que o Timor Leste vem recebendo de um país também pobre. São 650 estudantes timorenses que encontram-se hoje na ilha caribenha estudando medicina gratuitamente e com os gastos todos cobertos por Cuba. “Nós temos 300 médicos cubanos em território timorense, trabalhando nas aldeias mais remotas, hospedados em alojamentos precários, e nós reconhecemos que nossa ajuda a eles é negligente”, disse Ramos-Horta. O absurdo que cerca esta paradoxal incapacidade dos países ricos para ajudar e a generosa capacidade de uma Cuba pobre para mandar médicos para o ou-

tro lado do mundo pode ser medida pelo depoimento colhido entre membros de sua delegação, revelando que os EUA chegaram até a pressionar o Timor para não aceitar a ajuda de médicos cubanos. Na ocasião em que se deu a pressão, os diálogos foram carregados de significados. “Quantos médicos vocês têm aqui no Timor?”, indagava uma autoridade timorense ao representante estadunidense que o pressionava. “Tem cem médicos? Tem 30 médicos? Será que tem 3 médicos? Pois Cuba nos enviou 300 médicos!”. E Ramos-Horta ainda informou que a única ajuda que o governo do Timor dá aos médicos cubanos é um cartão telefônico para que se comuniquem com seus familiares eventualmente, reconhecendo que, pela distância, o telefonema mal permite uma conversação. “Temos obrigação de ajudar um país tão pobre como Cuba que, além de ajudar a tantos outros povos, ainda sofre sanções absurdas dos EUA”, disse o presidente da República Democrática do Timor, numa referência ao bloqueio estadunidense contra a ilha socialista.

Crítica às sanções “Não concordo com sanções econômicas a países pobres, seja Cuba, Zimbábue ou

Birmânia”, declarou RamosHorta, acrescentando que tem defendido este ponto de vista tanto na ONU como na União Européia, reivindicando a formatação de uma linha política e outra econômica para determinadas situações. “Não se pode falar em paz e democracia na Birmânia, por exemplo, sem ajudar na recuperação econômica destes países que estão completamente arruinados”, diz ele, criticando ainda o que chamou de “discursos retóricos” que se ouvem de Washington e de Bruxelas. O presidente maubere lembrou a oportunidade em que atuou como mediador entre o governo colombiano a as forças guerrilheiras daquele país, que ele chamou de forças insurgentes, em 1998, e talvez o exemplo sirva concretamente para o atual impasse entre o governo colombiano e as Farc. “Negociei com dirigentes do Exército de Libertação Nacional da Colômbia que estavam nas prisões em

Medellín e depois fui de helicóptero para as selvas amazônicas e fizemos o resgate dos reféns, sem pagar nada” relata. Ele destacou ter sido muito duro com os guerrilheiros quando afirmou:“Não acredito em causas que justifiquem o seqüestro de pessoas inocentes”. Apesar do sucesso da operação por meio do diálogo, que contou com a autorização do então presidente da Colômbia, Andrés Pastrana, Ramos-Horta conta que os guerrilheiros, com uma pitada de ironia, disseram que não poderiam continuar eternamente a liberar reféns sem o pagamento de resgate. “Como vamos levar a nossa luta sem dinheiro para sustentála?”, teriam questionado. Ramos-Horta recomenda o diálogo para a solução destes impasses lembrando que as Farc são uma enorme força militar e econômica, o território colombiano é vasto, sentenciando mesmo que não há solução militar à vista ali, mas apenas com muito diálogo e muita diplomacia. O mesmo para Birmânia, lembrando que neste país asiático, ao contrário da Colômbia, com apenas dois grupos que insiste em chamar de insurgentes, há 18 forças insurgentes, é uma espécie de Bálcãs da Ásia. E, para Ramos-Horta, toda e qualquer sanção econômica

Encontram-se hoje em Cuba 650 estudantes timorenses estudando medicina gratuitamente e com os gastos todos cobertos. No Timor, são 300 médicos cubanos trabalhando nas aldeias mais remotas, hospedados em alojamentos precários

prejudica a população e fortalece os militares que, ao seu ver, devem ser incluídos num plano de normalização e transição naquele país espremido entre gigantes interesses dos EUA, da China e da Índia, que disputam o controle da rota marítima na região, um dos panos de fundo nesta crise, de certa forma ampliada em razão da aproximação da Birmânia com a China.

Paz e petróleo Não se sabe ao certo as condições de sobrevivência do presidente Ramos-Horta, mas sabe-se que não há uma plena normalidade da situação política no Timor Leste, que ainda tem a presença de 1.300 soldados australianos, país diretamente interessado na exploração do petróleo e do gás timorenses. Para entender melhor as razões da instabilidade, é preciso voltar no tempo, há 3 anos, quando o então primeiro-ministro Mari Alkatiri negociou de forma soberana um acordo para a exploração das duas únicas riquezas minerais que o paupérrimo Timor dispõe. Foi uma negociação difícil, tendo como resultado a obrigação de pagamento de 20% do valor explorado para o governo timorense. Mais tarde, o ex-guerilheiro Alkatiri, numa negociação ainda mais severa, aumentou de 20% para 50% o direito do Timor Leste sobre o valor auferido pelas empresas transnacionais que exploram os minerais, seguindo uma linha nacionalista similar à de Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa. Foi o bastante para que surgissem movimentos internos de desestabilização, que resultaram na queda de Alkatiri, cuja candidatura à presidência foi praticamente vetada, surgindo daí uma improvisação de uma nova força político-eleitoral, o Conselho Nacional da Reconstrução Timorense, para onde se trasladaram Ramos-Horta e Xanana Gusmão, atual primeiroministro, vencedores da última eleição num embate contra a Frente Timorense de Libertação Nacional, a Fretlin, responsável pela resistência armada durante décadas, da qual Xanana era o principal dirigente. O fato concreto é que o acordo petroleiro negociado com soberania por Alkatiri é o que permite hoje ao Timor, um dos países mais pobres do mundo, já possuir uma receita anual de cerca de 1 bilhão e 200 milhões de dólares, para uma população de aproximadamente 1 milhão de habitantes. Portanto, o Timor Leste tem hoje uma relativamente elevada renda per capta. Mas, apesar disto, ainda está imerso em uma miséria extrema, miséria que aguça todas as contradições internas, também marcadas por movimentos desestabilizadores externos, desde que Alkatiri, hoje Secretário-Geral da Fretlin, iniciou um processo de aproximação com a China e negociou um acordo com a empresa estatal chinesa para a exploração do petróleo e do gás. Eis aí a razão do seu veto, não exatamente pelo fato de ter origem muçulmana, como o nome denota. O que existe na região é uma luta surda, intensa, com potencial explosivo, tanto pelo controle das rotas marítimas envolvendo os EUA e seu fiel parceiro, a Austrália, a China, a Índia, o Japão, a Indonésia. Enquanto isto, o pobre Timor Leste, sem quadros, sem infra-estrutura, ainda marcado pelo ensurdecedor ruído das lágrimas derramadas pelos 25 anos de carnificina na ocupação indonésia, não conseguiu definir o seu modelo de desenvolvimento. E, enquanto houver pobreza extrema, não haverá paz, ecoam as palavras de Ramos-Horta. Dolorosa prova disto é que encontra-se no hospital lutando entre a vida e a morte.


12 de 14 a 20 de fevereiro de 2008

internacional

As drogas e as guerras do Império ARTIGO Exército não divulga estatísticas dos que vão a julgamento pelo uso de drogas, mas soldados dizem ser “milhares” U.S. Army photo by Spc. Luke Thornberry/CC

Memélia Moreira de Orlando (EUA) FRANK LUCAS era um garoto que não teve tempo de gostar dos Beatles ou dos Rolling Stones nos idos de 70, do século 20. De família miserável, ele só conhecia as regras do Harlem, bairro negro de Nova York. E aprendeu todas, até se tornar o maior narcotraficante de heroína do seu tempo e ser abatido pelo policial Richie Roberts. Lucas construiu seu império com o tráfico de heroína do Sudeste Asiático, inundando a rica Manhhatan. Sua história é contada no filme “O Gângster” (“American Ganster”, no original), com Denzel Washington no papel do traficante, e Russel Crowe, o mocinho do filme. O filme não causou nenhum choque nos Estados Unidos, cuja sociedade, em guerra há mais de três séculos, sabe muito bem que as drogas ajudam os soldados tanto na brutalidade com a qual tratam o inimigo, quanto na anestesia à qual são submetidos, podendo assim enfrentar melhor os horrores das carnificinas. Francis Ford Coppola, na década de 1980, já mostra as drogas correndo soltas no Vietnã e Campuchea (então Cambodja), no seu magnifíco “Apocalipse Now”. Benzedrine, LSD, heroína e ecstasy. Um passeio por essas drogas mais destrutivas que uma boa carga de dinamite é, também, uma excursão às guerras imperiais estadunidenses ao longo do século 20 e início do século 21. No caso da Benzedrine (anfetamina), quando ainda não eram conhecidos os seus efeitos no organismo, ela era distribuída junto com a ração e as barras de chocolate aos Aliados, na Segunda Guerra Mundial. Essa anfetamina também foi largamente usada durante a Guerra da Coréia, e cerca de 70% dos vete-

O consumo de bebidas alcóolicas e drogas ilícitas estão causando problemas ao Departamento de Defesa estadunidense

ranos dessa guerra apresentaram problemas cardíacos nos seus prontuários médicos, segundo dados da Archives of Internal Medicine. Os primeiros resultados nocivos do uso indiscriminado das anfetaminas só foram conhecidos depois da Guerra da Coréia e, a partir daí, os comandantes militares do Exército estadunidense passaram a ser mais cautelosos. No caso, ser mais cauteloso não siginificou a proibição total do uso de drogas. Para respeitar os pudores de uma sociedade marcada pelo puritanismo medieval, o Exército apenas deixou de fornecer gratuitamente as drogas da moda. Mas não tomou nenhuma medida para evitar seu uso. E foi assim que, no Vietnã, os carregamentos de heroína tinham trânsito fácil na mata e nas unidades militares. Já o LSD, droga que teve seu auge durante essa guerra, chegava junto com a correspondência (que, teoricamente, era revistada pelos chefes) e os pre-

sentes mandados pelas famílias dos soldados. Ao mesmo tempo em que a entrada da heroína e do LSD era facilitada, os generais exerciam vigilância mais severa contra o haxixe ou a marijuana (maconha) que deixava os combatentes num estado de letargia ou, como diriam os iniciados, “ficavam numa boa”. Os soldados rebeldes, então, passaram a traficar essas drogas, e muitos deles terminaram na corte marcial.

Ecstasy Os tempos mudaram e o Exército se adaptou à nova demanda. Qualquer soldado que esteja hoje nos campos de guerra do Iraque ou Afeganistão e que seja encontrado com cocaína ou maconha vai diretamente a julgamento. O Exército não divulga as estatísticas dos que vão a julgamento pelo uso de drogas, mas soldados que já combateram no Iraque e Afeganistão garantem que há “milhares” de condenados. Eles

criticam os métodos do Departamento de Veteranos da Guerra (órgão governamental para atender a todos os ex-combatentes com problemas físicos e mentais), que concede mais atenção aos viciados em álcool e marijuana do que àqueles que são afetados pelo uso das drogas sintéticas, como o ecstasy. O jornal The New York Times, com base no Ato de Liberdade de Informação, conseguiu alguns números que mostram a desigualdade de tratamento para os usuários de diferentes drogas. Segundo esse jornal, em 2007, foram 665 casos de indiciamento e 246 condenações por uso de bebidas alcóolicas. Não há, entretanto, nenhum caso de indiciamento pelo uso de ecstasy ou heroína, a droga mais fácil de ser encontrada no Afeganistão. E o próprio Exército se encarrega de divulgar informações afirmando que a bebida “é o maior problema das guerras do Iraque e Afega-

nistão”, segundo o psiquiatra Tomas Kosten, do Centro Médico de Veteranos sediado em Houston, Texas. Embora seja de conhecimento público o uso de ecstasy pelos soldados que estão nas duas grandes guerras dos EUA do momento, nenhum dos médicos encarregados do tratamento dos soldados se refere a essa droga. Toda a culpa é jogada nas caixas de whisky que chegam pelo correio, tanto em Bagdá como em Cabul, e no “hajji juice”, um destilado iraquiano que, de acordo com o tenente-general Franklin Hagenbeck (porta-voz dos comandantes militares) “é o principal responsável por uma série de crimes hediondos cometidos pelos soldados” . Mesmo sem se referir especificamente à droga do momento, a secretária-assistente de Saúde do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Lynn Pahland, admitiu recentemente que “as médias de uso de bebida e drogas ilícitas entre os militares estão

causando problemas ao Departamento de Defesa. O problema é muito sério e tem causado enorme preocupação”.

Traumas e suicídios E para aqueles que acreditam em justiça divina, o que vem acontecendo no momento com os soldados que lutam no Iraque e no Afeganistão é um banquete. Os traumas de guerra estão obrigando o governo de Washington a resgatar centenas de soldados a cada mês. A doença é conhecida como “estresse de combate” e, na maioria dos casos, os soldados que voltam pra casa terminam se suicidando. O suicídio dos excombatentes deixou de ser um fenômeno isolado e passou a ser tratado como epidemia. “Acho que o verdadeiro problema aqui é o suicídio e o estresse”, diz Charles O’Brien, psiquiatra da Escola de Medicina da Universidade da Pensilvânia, que foi médico da Marinha durante a Guerra do Vietnã, afirmando ainda que “existe uma alta incidência de estresse pós-traumático entre os veteranos do Iraque, por isso asssitimos tanto suicídios entre os militares da ativa”. Por causa dos suicídios e dos traumas, além dos combatentes que voltam mutilados, o governo dos Estados Unidos sente cada dia mais dificuldades em financiar estas duas guerras que mais e mais têm provocado manifestações populares. Por enquanto elas ainda são tímidas, mas, para quem se lembra da Guerra do Vietnã, na primeira manifestação, os pacifistas – que não chegavanm a 500 – foram vaiados e agredidos. Agora, contra as duas guerras, eles já chegaram a reunir 100 mil pessoas numa passeata em Washington. Não vai demorar muito para que se alcance o índice de rejeição que obrigou os Estados Unidos a se humilharem e sairem derrotados de mais esta aventura imperialista.

AGRICULTURA

Governo francês barra produção de milho transgênico da Monsanto Greenpeace

Um dia depois do Senado ter aprovado a produção e a comercialização de OGMs, ministro da Agricultura adia decisão Douglas Estevam de Paris (França) Confédération Paysanne, Greenpeace e dezenas de outras organizações sociais realizaram manifestações no Senado francês na primeira semana de fevereiro. O motivo era a liberação da semente de milho transgênico MON 810, da transnacional estadunidense Monsanto. No dia 8, o Senado havia aprovado, por 186 votos a favor contra 128, o projeto de lei que permitiria a produção e a comercialização em território francês de organismos geneticamente modificados (OGMs), com uma série de alterações no projeto inicial. Um dia depois, uma interdição, expedida pelo ministro da Agricultura Michel Barnier, foi publicada no diário oficial. O projeto de lei será agora examinado pelos deputados entre os dias 3 e 4 de abril. “Esta decisão permitirá discutir de maneira serena os projetos futuros”, afirmou representante da Aliança pelo Planeta, associação de 80 ONGs. Os ecologistas pretendem manter a pressão. “É preciso que os deputados compreendam que os cidadãos não querem os OGMs, e que o futuro de nossa agricultura deve passar por uma produção de qualidade”, disse Arnaud Apoteker, do Greenpeace, ONG que realizou pesquisa que mostra que 72% dos franceses são contrários a produtos trangênicos. “Aceitar os OGMs com poucas res-

trições e precauções, como feito agora, vai realmente matar o futuro da agricultura francesa”, concluiu.

42 milhões de euros O tema, que está em discussão na União Européia desde 2001, ganhou novos contornos em 2003, quando EUA, Canadá e Argentina apresentaram queixas na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra a proibição da comercialização de produtos OGMs e seus derivados em alguns Estados membros da União Européia, como, por exemplo, a França. A OMC não diferencia produtos geneticamente modificados de outros produtos agrícolas, o que não justificaria a interdição nos mercados europeus destes produtos. Em função desta interdição, a França está sujeita ao pagamento de uma sanção de 42 milhões de euros, um dos motivos alegados pelos senadores para a liberação da produção. Em 2005, havia 500 hectares de cultivo de milho transgênico na França, cifra que subiu para 5 mil em 2006 e 22 mil em 2007. As previsões eram que, se liberado o cultivo, a França ampliaria sua produção, em 2008, para 100 mil hectares de milho transgênico, chegando a 200 mil hectares em 2009. Atualmente, a maior produtora de transgênicos da União Européia é a Espanha, com 70 mil hectares cultivados. Esta possibilidade de ampliação de mercados é um ponto vital para os grandes

Protesto francês: “OGM [Organismos Geneticamente Modificados], eu não quero mais isso”

Atualmente, a maior produtora de transgênicos da União Européia é a Espanha, com 70 mil hectares cultivados. As previsões eram que, se liberado o cultivo, a França ampliaria sua produção em 2008 para 100 mil hectares de milho transgênico, chegando a 200 mil hectares em 2009. produtores franceses e exportadores da Argentina e EUA. O Partido Socialista acusou o governo de “ceder às pressões das grandes trasnacionais de biotecnologia”.

Meio ambiente A moratória sobre os OGMs por alguns Estados leva em conta as manifestações da opinião pública, de organizações sociais e cientistas que exigem um quadro mais preciso sobre os impactos ambientais e ecológicos da produção com transgênicos, além de ampla divulgação de informações e etiquetagem dos produtos. Entre agosto e dezembro de 2007, a sociedade france-

sa esteve envolvida no Grenelle Environnement (um debate multipartidário que reuniu representantes do governo e de ONGs para discutir temas relacionados ao meio ambiente, com o objetivo de se chegar a um consenso). O Grenelle foi realizado em seis grupos de trabalho, abordando temas como mudanças climáticas, biodiversidade e recursos naturais, meio ambiente e desenvolvimento ecologicamente sustentável, além de dois ateliês intergrupos, um sobre OGMs e outro sobre resíduos. Participaram do intergrupo sobre OGMs representantes da Confédération Paysanne (ligada à Via Campesina), da

Coordenação Rural Nacional, das ONGs Greenpeace e Amis de la Terre, da Federação Nacional de Agricultura Biológica, além de cientistas e representantes do Estado. Uma das deliberações deste inter-grupo foi a criação de uma Alta Autoridade sobre OGMs, composta por representantes da sociedade civil e cientistas. Sob à presidência do senador Jean François Legrand, a Alta Autoridade foi a responsável pela elaboração do projeto de lei sobre organismos geneticamentes modificados, que serviu de base para o projeto apresentado ao Senado pelo Ministro da Ecologia, Jean-Louis Borloo.

Liberdade ao mercado “O espírito de Grenelle foi enterrado”, foram as palavras de Cécile Duflot, secretária nacional do Partido Verde, sobre as mudanças no projeto. O senador Jean Bizet, da União por um Movimento Popular, partido do presidente Nicolas Sarkozy, relator do projeto no Senado, apresentou as propostas de emendas acatadas pelos senadores. A primeira delas concerne à composição e função da Alta Altoridade, substituída por um Alto Conselho de Biotecnólogos. Este, conforme as alterações de Bizet, seria presidido por um “cientista escolhido em função de suas competências”, restando ao comitê da sociedade civil apenas “recomendações” que “não teriam a mesma legitimidade”, segundo Bizet. O artigo 1º passa a garantir o direito de consumir e produzir com ou sem OGM. A produção, estocagem e transporte também são permitidos, dentro de condições técnicas pré-estabelecidas. José Bové, da Confédération Paysanne, afirma que esta “lei de coexistência pode ser chamada de uma lei de contaminação generalizada”. O artigo 6º, que aborda os procedimentos de informação sobre natureza e localização de produtos transgênicos, será mantido, mas com a inclusão de um “delito de destruição de campos”, com pena de dois anos de prisão e multa de 75 mil euros. Ações realizadas contra áreas de pesquisa terão punição ampliada para três anos de prisão e multa de 150 mil euros, medida que visa combater ações deste gênero realizadas por militantes franceses. “Um presente aos lobbistas”, segundo a secretária nacional dos verdes.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.