Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 260
São Paulo, de 21 a 27 de fevereiro de 2008
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Socialismo cubano segue sem Fidel Reprodução
O comandante Fidel Castro renunciou à reeleição em Cuba, mas, apesar do alarde da mídia corporativa, a transição vai ocorrer nos marcos institucionais do socialismo. “Fidel já não é o dirigente político da revolução, que seguirá em uma nova etapa em seu processo de transformação socialista”, avalia o sociólogo Emir Sader. O Parlamento definirá, no dia 24, quem será o novo presidente. A tendência é pela confirmação de Raúl Castro, que já ocupa interinamente o posto. Um de seus novos Fidel Castro
• Miguel Urbano: mídia vai fazer campanha de desinformação de proporções mundiais
desafios será enfrentar a pressão internacional dos adversários da
• Frei Betto: renúncia de Fidel não é o começo do fim do socialismo em Cuba
revolução, sobretudo dos Estados
• Ignácio Ramonet: não haverá um substituto para Fidel; afastamento é continuidade
Unidos e dos conglomerados
• Moniz Bandeira: a sombra de Fidel se projeta sobre Cuba; ele é o símbolo de uma era
midiáticos. Págs. 2 e 9 Antonio Cruz/ABr
Governo atende reivindicações históricas do sindicalismo No dia 14 de fevereiro, o presidente Lula assinou as convenções 151 e 158 da OIT e as enviou ao Congresso, numa cerimônia que contou com a presença de ministros e represen-
tantes das seis maiores centrais sindicais do Brasil. As medidas regulamentam a negociação coletiva dos serivdores públicos e protegem os trabalhadores de todos os setores contra
demissões arbitrárias. A decisão foi bem recebida, mas o movimentos temem que convenções emperrem no Congresso e prometem mobilizações para acelerar suas tramitações. Pág. 5
Em SP, escolas receberão prêmios por atingir metas
Movimentos pressionam, e Câmara aprova a TV Brasil
A educação em São Paulo continua sofrendo ataques por parte do governo de José Serra (PSDB). Neste ano, passa a valer um novo sistema de bonificações para os funcionários das escolas de ensino fundamental e médio. Se o estabelecimento alcançar certas metas, relativas ao aproveitamento dos estudantes, seus funcionários poderão ganhar até três salários mínimos a mais por ano. A medida foi criticada
por trabalhadores do setor. “Há 13 anos que não recebemos reajustes dignos. Ao invés de prêmios, [o governo] tinha que investir em formação e salários dignos”, critica Carlos Ramiro, presidente do Sindicato de Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Além disso, neste ano, mais de mil docentes serão demitidos por causa da retirada da disciplina Sociologia da grade horária. Pág. 4
Apesar da resistência da oposição, a Câmara aprovou, no dia 19, medida provisória que cria a TV Brasil, emissora pública que está no ar desde dezembro. No dia anterior, diversas associações e movimentos que lutam pela democratização da comunicação fizeram um ato público em defesa da ratificação do projeto do governo federal. Pág. 3 Reprodução
Barack Obama e Hillary Clinton disputam a vaga de candidato à presidência dos EUA pelo Partido Democrata; à medida que as convenções nos Estados se aproximam, jornais anunciam suas preferências em manchetes de primeira página. Pág. 11
Ciro Gomes e frei Luiz Cappio; em audiência pública no Senado, Ciro admite que transposição do rio São Francisco servirá para garantir a perenidade dos reservatórios já existentes no Nordeste. Pág. 7
Maurico Scerni
Surgem novas denúncias de ingerência dos EUA na Bolívia Num intervalo de poucos dias neste mês, duas denúncias de espionagem dos EUA vieram à tona na Bolívia. Primeiro, foi descoberto que grupos de inteligência financiados pelo serviço diplomático estadunidense funcionavam dentro da polícia boliviana. Depois, John Alexander Van Schaick, um bolsista dos EUA que mora em La Paz, acusou um funcionário da embaixada de seu país de lhe pedir informações sobre cubanos e venezuelanos que faziam trabalhos humanitários na Bolívia. Tais fatos permitem ao governo Evo confirmar tentativas de ingerência política dos EUA contra a atual gestão. Pág. 10
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CULTURA Ensaio fotográfico O Olhar para o Outro enfoca as populações ribeirinhas. Pág. 8
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editorial “A MEUS compatriotas, que fizeram a imensa honra de me eleger recentemente como membro do Parlamento, em cujo âmbito devem ser adotados acordos importantes para o destino de nossa Revolução, comunico a vocês que não aspirarei nem aceitarei – repito – não aspirarei nem aceitarei o cargo de Presidente do Conselho de Estado e Comandante-em-Chefe. “Não me despeço de vocês. Desejo apenas lutar como um soldado das idéias. Continuarei a escrever sob o título ‘Reflexões do companheiro Fidel’. Será mais uma arma do arsenal com o qual se poderá contar. Talvez ouçam minha voz. Serei cuidadoso”. Assim se despediu o presidente Fidel Castro do governo de Cuba, surpreendendo a grande mídia, bem como a opinião pública, governos e analistas de todo o mundo. A decisão do presidente cubano, dados seu estado de saúde e idade, pode indicar uma hábil estratégia para a transição de comando na Ilha: construir publicamente a sucessão e consolidar – com seu apoio, prestígio e acompanhamento do início do novo governo – o novo líder cubano, evitando assim traumas ou acidentes de percurso. Outra hipótese seria o fato do país estar prestes a viver uma série de mudanças reorientando sua economia e, discordando desses rumos, o velho presidente prefira ausentar-se do comando. (ler página 9)
debate
As mudanças de comando nas Américas Nos Estados Unidos, republicanos X democratas Também o Império vive sua fase de muda. Lá, ao contrário do nosso país, onde prevalece a “imparcialidade” hipócrita da grande mídia, os meios de comunicação costumam se alinhar claramente em torno das candidaturas, interferindo, muitos deles, desde as primárias, nas escolhas dos candidatos. De acordo com nossa correspondente em Orlando, Memélia Moreira, no que diz respeito aos democratas, há uma nítida flexão da imprensa na direção do candidato negro e mulçumano Barack Obama e, entre os republicanos, John McCain. O próprio senhor McCain dá fortes sinais de preferir disputar com o senhor Obama do que com a senhora Hillary Clinton. Ainda que temerária, sua estratégia é um tanto óbvia: o republicano McCain certamente acredita que é mais fácil derrotar um negro muçulmano do que a WASP (White, Anglo-Saxonic and Protestant – branca, anglosaxã e protestante) senhora Hillary. É significativo, no entanto, que o apoio ao democrata Obama esteja crescendo em diversos setores (e segmentos) da sociedade estaduni-
dense, inclusive entre os “hispânicos” (latino-americanos) da Flórida, tradicionalmente conservadores e refratários aos democratas. De qualquer modo, com a grande crise econômica em que mergulha o país, diferentemente da sua eleição presidencial anterior, que confirmou um segundo mandato para o senhor George W. Bush, desta vez os candidatos, muito mais que discutir as guerras (invasões) dos EUA no Afeganistão e no Iraque, terão de apresentar caminhos concretos para a economia e uma série de políticas sociais. Ao fim e ao cabo, a disputa da Casa Branca será bem mais difícil (e, certamente, cheia de sinistros golpes de bastidores) que a sucessão em Havana (ler pág. 11).
No Paraguai, complô e envenenamento Enquanto isto, de acordo com a Prensa Latina, em Assunção, o líderes da Aliança Patriótica para a Mudança (Alianza Patriótica para el Cambio – APC) denunciam a existência de um complô governamental contra seu candidato à presidência, Fernando Lugo.
Segundo Oscar Cáceres, candidato a deputado pelo Movimento Popular Tekojoja, a cúpula do governo tenta envolver o ex-bispo no seqüestro seguido de assassinato de Cecilia Cubas, filha do ex-presidente Raul Cubas. De acordo com Cáceres, o assunto está sendo usado politicamente para desacreditar Lugo, que lidera as intenções de voto na eleição presidencial do Paraguai, marcadas para 20 de abril. Além de Cáceres, o ex-deputado pelo Partido Liberal Autêntico, Hermes Saguier, denunciou um complô do governo do Partido Colorado contra o candidato aliancista. Já, de acordo com o blog Na Periferia do Império, na quinta-feira, 14 de fevereiro, teria havido uma tentativa de envenenamento do presidente paguaio Nicanor Duarte Frutos. O presidente se encontraria na sede das Forças Armadas em Assunção, quando lhe foi servido, por um garçom daquela instituição militar um copo de água que continha ácido muriático. O presidente chegou a beber um gole do líqüido, que provocou queimaduras leves na mucosa bucal. O senhor Duarte
crônica
Frei Betto
Na Bolívia, não há eleições este ano, mas a CIA está em plena conspiração De acordo com nosso corrrespondente em La Paz, Igor Ojeda, este mês, num curto intervalo, foram feitas duas graves denúncias de ações de espionagem por parte da Embaixada estadunidense em La Paz . Na primeira delas, descobriu-se que grupos ilegais de inteligência, financiados pelo serviço diplomático dos EUA, funcionavam dentro da polícia boliviana. A segunda, feita por um bolsista estadunidense, John Alexander Van Schaick, que acusou um funcionário da embaixada, Vincent Cooper, de pedir, em duas ocasiões diferentes, que ele fornecesse informações a respeito de cubanos e venezuelanos trabalhando em missões humanitárias no país. O Governo do presidente Evo Morales disse que não aceitará qualquer tipo de ingerência e, entre outras medidas, decidiu não enviar mais oficiais das Forças Armadas da Bolívia ao Instituto de Cooperação para a Segurança Hemisférica (WHINSEC, na sigla em inglês), antiga Escola das Américas (ler pág. 10).
Elaine Tavares
Promessa de mudança!
A renúncia de Fidel FIDEL CASTRO, 81, renunciou às suas funções de presidente do Conselho de Estado de Cuba e Comandanteem-Chefe da Revolução. Entregue aos cuidados de sua saúde, prefere manter-se fora das atividades de governo e participar do debate político – que sempre o encantou – através de seus artigos na mídia. Permanece, porém, como membro do Birô Político do Partido Comunista de Cuba. No próximo domingo, 24, Raúl Castro, 77, será eleito pelos novos deputados da Assembléia Nacional, para ocupar as funções de primeiro mandatário de Cuba. Esta é a segunda vez que Fidel renuncia ao poder. A primeira ocorreu em julho de 1959, sete meses após a vitória da Revolução. Eleito primeiro-ministro, entrou em choque com o presidente Manuel Urrutia, que considerou radical as leis revolucionárias, como a reforma agrária, promulgadas pelo conselho de ministros. Para evitar um golpe de Estado, o líder cubano preferiu renunciar. O povo saiu às ruas em seu apoio. Pressionado pelas manifestações, Urrutia não teve alternativa senão deixar o poder. A presidência foi ocupada por Osvaldo Dorticós, e Fidel voltou à função de primeiro-ministro. Estive em Cuba em janeiro deste ano para participar do Encontro Internacional sobre o Equilíbrio do Mundo, à luz do 155º aniversário de nascimento de José Martí, figura paradigmática do país. Retornei em meados de fevereiro para outro evento internacional, o Congresso Universidade 2008, do qual participaram vários reitores de universidades brasileiras. Nas duas ocasiões, encontrei-me com Raúl Castro e outros ministros cubanos. Reuni-me também com a direção da FEU (Federação Estudantil Universitária); estudantes da Universidade de Ciências Informáticas; professores de nível básico e médio; e educadores populares. Ilude-se quem imagina significar a renúncia de Fidel o começo do fim do socialismo em Cuba. Não há nenhum sintoma de que setores significativos da sociedade cubana aspirem à volta ao capitalismo. Nem os bispos da Igreja Católica. Exceção a uns poucos que, em nome dos direitos humanos, não se importariam que o futuro de Cuba fosse equivalente ao presente de Honduras, Guatemala ou Nicarágua. Aliás, nenhum dos que se evadiram do país prosseguiu na defesa dos direitos humanos ao inserir-se no mundo encantado do consumismo... Cuba não é avessa a mudanças. O próprio Raúl Castro desencadeou um processo interno de críticas à Revolução, através das organizações de massa e dos setores profissionais. São mais de 1 milhão de sugestões ora analisadas pelo governo. Os cubanos sabem que as dificuldades
mandou abrir imediatamente uma investigação e, segundo a mesma fonte, os militares e civis presentes no momento da tentativa de envenenamento serão interrogados.
Gama
ELE PARECERIA um rei, tamanha a beleza. A bermuda despojada, uma camisa em tom pastel e um boné surrado que gritava, em vermelho sangue, uma palavra muito pouco ouvida na universidade: favela. Ele era um, em meio a uma centena de jovens negros que lotavam o auditório da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para um dia histórico. O dia em que negros e negras, muitos deles empobrecidos, entraram na universidade, não para uma visita ou para servirem de objetos de estudo, mas para ser aluno, fazer um curso superior. É que, pela primeira vez, a UFSC destinou cotas para negros no seu vestibular de ingresso. Na comissão de professores que atendia, um por um, os calouros, era visível a alegria e o orgulho de ver uma luta de anos finalmente sendo concretizada na prática. Havia sorrisos, apertos firmes de mão e até abraços. Pelo auditório, passeavam outras cores, cabelos cheios de tranças ou dreads, colares étnicos, risos. Eram negros, centenas, e não aquela meia dúzia, em geral africanos, que a comunidade universitária está acostumada a ver pelo campus. Eu penso que não deveria haver cotas para negros, nem para índios, nem para estudantes da escola pública. Mas, enfim, desde que a universidade surgiu existe uma reserva de cotas. É a cota dos que fazem cursinho pago. Dos que podem ter bons colégios particulare s. Então, isso sempre existiu. E, já que existiam cotas para os ricos, é muito justo que exista também para os negros, para os índios e para os que estudam em escola pública. No regime excludente da universidade pública, estas cotas instituídas agora são muito justas sim. E podem gritar os racistas, os neonazistas, e todos os outros “istas” que existem por aí, enrustidos ou não.
Há que nascer uma universidade diferente, capaz de pensar a vida real, capaz de caminhar nas estradas secundárias, capaz de construir uma nova sociedade Ilude-se quem imagina significar a renúncia de Fidel o começo do fim do socialismo em Cuba. Não há nenhum sintoma de que setores significativos da sociedade cubana aspirem à volta ao capitalismo são enormes, pois vivem numa quádrupla ilha: geográfica, única nação socialista do Ocidente; órfã de sua parceria com a União Soviética, bloqueada há mais de 40 anos pelo governo dos EUA. Malgrado tudo isso, o país mereceu elogios do papa João Paulo II por ocasião de sua visita, em 1998. No IDH 2007 da ONU, o Brasil comemorou o fato de figurar em 70º lugar. Os primeiros 70 países são considerados os melhores em qualidade de vida. Cuba, onde nada se paga pelo direito universal à saúde e educação de qualidades, figura em 51º lugar. O país apresenta uma taxa de alfabetização de 99,8%; conta com 70.594 médicos para uma população de 11,2 milhões (1 médico para 160 habitantes); índice de mortalidade infantil de 5,3 por cada 1.000 nascidos vivos (nos EUA são 7 e, no Brasil, 27); 800 mil diplomados em 67 universidades, nas quais ingressam, por ano, 606 mil estudantes. Hoje, Cuba mantém médicos e professores atuando em mais de 100 países, incluído o Brasil, e promove, em toda a América Latina, a Operação
Milagros, para curar gratuitamente enfermidades dos olhos, e a campanha de alfabetização Yo si puedo (Sim, eu sou capaz), com resultados que convenceram o presidente Lula a adotar o método no Brasil. Haverá, sim, mudanças em Cuba quando cessar o bloqueio dos EUA; forem libertados os cinco cubanos presos injustamente na Flórida por lutarem contra o terrorismo; e se a base naval de Guantánamo, ora utilizada como cárcere clandestino – símbolo mundial do desrespeito aos direitos humanos e civis – de supostos terroristas for devolvida. Não se espere, contudo, que Cuba arranque das portas de Havana dois cartazes que envergonham a nós, latino-americanos, que vivemos em ilhas de opulência cercadas de miséria por todos os lados: “A cada ano, 80 mil crianças morrem vítimas de doenças evitáveis. Nenhuma delas é cubana.” “Esta noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma é cubana.” Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros
É claro que a luta deve ser por escola para todos. Todo e qualquer ser humano que viva aqui nestas terras devia ter direito a uma universidade pública e de qualidade. Porque gratuita ela não é. Todos nós pagamos para que poucos possam ter uma formação. E até hoje, os empobrecidos, os negros e os índios (estes, na sua maioria, também empobrecidos) não tinham essa chance. Não conseguiam passar a barreira da cota dos cursinhos. Quem pode ter duzentos, trezentos reais, para pagar por mês um curso preparatório? As cotas são um paliativo. Sim, são. Mas elas podem ser fermento de mudança, elas podem escancarar a chaga escondida do racismo . Ontem, na UFSC, eu vi. Aqueles garotos e garotas negros, sempre marcados pelo preconceito, pela exclusão, unicamente por conta da cor, agora dentro da universidade. Não que isso seja muita coisa. Não que seja bom para eles. É bom para a universidade, isto sim! Esta universidade racista, conservadora, por vezes reacionária, precisava se abrir ao outro, ao que sempre esteve fora por conta da sua condição econômica. Esta universidade precisa conviver com a gurizada que vem das escolas públicas, com as gentes das comunidades de periferia, com garotos como aquele do boné que grita: favela! E tudo o que eu queria ver era esses garotos e garotas negros trazerem para dentro dos muros do campus sua música, sua cultura, suas raízes, seu riso, sua crítica, sua raiva, sua doçura, sua esperança, seu jeito de viver. E tudo o que eu quero é que eles não fiquem como a maioria dos universitários: apáticos, egoístas, ambiciosos, pensando só no mercado. Eu quero que eles possam revolver conceitos, inventar o novo. Eu fiquei olhando para eles, mergulhada em emoção e sonhando. Ainda são poucos, muito poucos, mas podem fazer um grande estrago. Sempre digo que a universidade, tal como é, precisa morrer. Há que nascer uma universidade diferente, capaz de pensar a vida real, capaz de caminhar nas estradas secundárias, capaz de construir uma nova sociedade. Não sei por que, mas creio que pode começar agora. Quando as gentes da periferia, os que estão excluídos da vida digna, os índios massacrados, entrarem e seguirem sendo eles mesmos, ajudando a inventar um tempo novo. Assim, ontem, num átimo, me voltou a esperança... Elaine Tavares é jornalista
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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Sociedade civil pressiona, e Câmara aprova MP da TV Brasil COMUNICAÇÃO Oposição promete obstruir a votação da medida provisória sobre a criação da TV pública brasileira Wilson Dias/Abr
Eduardo Sales e Mayrá Lima da Redação e de Brasília (DF)
Recuo O ato demonstra que a sociedade civil, por ora, prefere que a criação da EBC,
Diretor de teatro José Celso Martinez encena durante manifestação de artistas e representantes de entidades à favor da criação da TV pública
mesmo com diversas críticas ao modelo de gestão proposto pelo governo federal e à possibilidade de não ter a empresa pública dentro das estruturas de comunicação brasileira. As principais críticas são relativas ao Conselho Curador, o qual não tem representantes dos trabalhadores e ainda é composto por “personalidades” indicadas, em sua maioria, pelo presidente da República. A atenção está voltada, na verdade, para o relatório da MP que propõe mudanças pontuais ao texto original elaborado pelo governo e publicado em outubro de 2007. O texto alterará o sistema de financiamento da nova estatal, proibirá totalmente a TV Brasil de veicular propagandas comerciais e mexerá com o sistema de nomeação do Conselho Curador da EBC, que passa a contar com um mecanismo de consulta pública. Pinheiro incorporou, em seu relatório, oito emendas apresentadas por parlamentares. Com as mudanças incluídas no parecer, o financiamento da televisão pública será viabilizado por uma contribuição de 10% dos recursos arrecadados com a Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF) devida ao Fundo de
Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). Para evitar o aumento da carga tributária, está sendo proposta a redução da arrecadação do Fistel proporcional ao volume de recursos do novo tributo. Os cálculos de Pinheiro apontam para R$ 150 milhões, que financiariam não apenas a TV pública do governo federal, mas uma rede de radiodifusão pública. Um dos pontos mais polêmicos trata da realização de concursos públicos para a TV Brasil. A proposta inicial do governo previa a absorção plena dos profissionais da Acerp (TVE) por tempo indeterminado. O relator sugere que exista um período de transição de três anos, no qual esses profissionais poderão pertencer aos quadros da TV Brasil sem serem funcionários públicos. Após o prazo, a estatal terá que realizar concursos públicos para efetivar sua equipe. Com o novo texto, foram adicionados no Conselho Curador da EBC um representante da Câmara dos Deputados e outro do Senado Federal. Além disso, o relatório impõe que as decisões da EBC passem pelo crivo do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.
Pesquisador apóia veto a publicidade Venício Lima, da UnB, entende que a medida é a mais adequada a uma televisão pública, ainda que isso favoreça as redes comerciais mercial na TV pública, porque “significava menor verba para a tevê aberta”, por sinal, representada por boa parte dos parlamentares, que compõem não apenas a oposição, mas também o governo. (ES e ML)
da Redação e de Brasília (DF) Sobre a propaganda comercial na TV Brasil, como o texto original não era específico o bastante, o item de maior crítica da oposição (PSDB e DEM) era a possibilidade de veiculação de peças comerciais na programação. Pinheiro pontuou, em seu relatório, uma restrição total à veiculação de publicidade de comércio e serviços, e ainda limitou o tempo de propaganda a 15% do tempo da programação total da TV Brasil. Para Venício Lima, pesquisador da Universidade Nacional de Brasília (UnB), o item publicidade foi tratado com coerência pelo relator, mesmo beneficiando os interesses dos representantes das principais televisões abertas do Brasil. “Apesar de proteger a iniciativa privada, o texto é mais adequado a uma TV pública. De fato, não se iguala o tipo de financiamento de uma televisão pública à privada. Eu concordo com o relator”, afirma o especialista em mídia. João Brant, do Coletivo Intervozes de Comunicação, lembra que a oposição sentia o incômodo de de uma publicidade co-
Roosewelt Pinheiro/ABr
A CÂMARA dos Deputados aprovou, no dia 19, a medida provisória 398/07 que cria a Empresa Brasileira de Comunicação, responsável pela gestão da TV pública. A decisão foi tomada um dia depois do ato público realizado por diversas associações e movimentos em apoio à democratização da comunicação (o evento ocorreu no Salão Verde da Casa – espaço que dá acesso ao plenário). Sob a leitura de manifestos, com direito a encenações teatrais e munidos de adesivos com os dizeres “TV Brasil, eu aprovo”, os manifestantes chamaram a atenção dos jornalistas presentes para a matéria que seria aprovada no dia 19. A presença mais marcante foi a da presidente da televisão pública brasileira, Teresa Cruvinel, que, mesmo se mantendo distante dos holofotes, não pôde evitar que sua presença desse um caráter de participação do governo no ato. De acordo com ela, “as dezenas de entidades da sociedade civil foram reafirmar que a TV pública não é uma proposta unilateral do governo”. “O clima do Congresso é determinante. Espero que a oposição tenha a grandeza de ver o projeto de maneira independente”, disse Cruvinel que, de certa maneira, já responde às intenções da oposição de trocar a TV pública pela CPI dos Cartões Corporativos. Os manifestantes, em sua maioria, declararam que, com a aprovação da TV Brasil, cria-se um instrumento de difusão de cultura, educação e de respeito às regionalidades brasileiras e abertura para produções independentes que, segundo eles, não são vistas nas emissoras comerciais. “A TV pública pode fazer mais pelo povo brasileiro do que está fazendo a pirataria”, afirmou o diretor teatral José Celso Martinez, presente na manifestação. Partes do relatório à medida provisória 398/2007 do deputado federal Walter Pinheiro (PT/BA) também foram aplaudidas até mesmo por outros parlamentares. “O relator foi sensível. A criação de uma ouvidoria e o aumento do Conselho Curador são medidas que estão presentes”, disse a deputada federal Luiza Erundina (PSB/SP).
João Brant, do Coletivo Intervozes
INFORMAÇÃO SIGILOSA
Engenheiro acusa CIA de ligação com furto na Petrobras Estadunidenses vivem cenário crítico de abastecimento de petróleo e teriam interesse em saber mais sobre a bacia de Santos Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) Fernando Siqueira, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), aponta a CIA (agência de inteligência dos Estados Unidos) e a empresa estadunidense Halliburton como os potenciais responsáveis pelo furto de dois notebooks, CDs e um disco rígido com informações estratégicas e ultraconfidenciais da Petrobras sobre as recentes descobertas de campos de petróleo e gás na Bacia de Santos. Siqueira justifica essa hipótese argumentando com a
situação delicada dos Estados Unidos sobre o abastecimento de petróleo. O país é o maior consumidor do planeta, com 15 bilhões de barris por ano. Suas reservas somam apenas 28 bilhões. Segundo o engenheiro, a descoberta de uma província energética estimada em 80 bilhões de barris certamente fez aumentar a cobiça estadunidense. A transnacional Halliburton tem vínculos estreitos com o primeiro escalão da Casa Branca, como o vicepresidente Dick Cheney, e é uma das principais fornecedoras do Pentágono. Para Siqueira, esse furto significa uma espécie de recebimento
de mão beijada de informações privilegiadas que a Petrobras levou 30 anos para levantar. O prejuízo não foi maior porque a empresa petrolífera brasileira tinha cópia das informações. A CIA ou a Halliburton, acredita Siqueira, certamente cometeram um erro, pois ao trocarem os dados não tiveram tempo de repor o que tinham pego. Para os Estados Unidos, que hoje ocupam países com reservas petrolíferas valiosas, como o Iraque, ter acesso às riquezas energéticas da Bacia de Santos (Tupi e Júpiter) é uma questão de sobrevivência, diante da antecipação do pico de consumo de petróleo para este ano, quan-
do a previsão era de que isso ocorreria a partir de 2010, explica Siqueira. A ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) também acredita que tenha havido espionagem industrial. Pesquisas de 30 anos Siqueira explica que a Bacia de Santos foi formada na separação do continente africano da costa brasileira. Uma camada de sal de dois quilômetros de espessura e com profundidade de 5 a 7 quilômetros abaixo do nível do mar cobriu o campo de petróleo e gás, protegendo assim a riqueza energética. O sal protetor, explica o engenheiro, evita que o petróleo e o gás se evaporem. Com
uma tecnologia ao alcance da Petrobras, o Brasil terá acesso a essas riquezas. As pesquisas empreendidas pela estatal brasileira tornaram possível o sonho de o Brasil se transformar, em pouco tempo, numa potência energética. Mas essa realidade, entende Siqueira, naturalmente desperta a cobiça de empresas transnacionais do setor petrolífero e dos serviços de inteligência. Dúvidas na informática Para especialistas do setor de informática, é surpreendente o descaso da Petrobras ou da empresa responsável pela segurança do material que continha as infor-
mações furtadas. Qualquer grupo de bem menor porte do que a estatal tem facilmente como evitar a ocorrência de incidentes como roubo de notebooks e discos rígidos. Um exemplo é a adoção de um sistema que requer a digital de técnicos autorizados para permitir a abertura de determinados arquivos. A Polícia Federal segue investigando o desaparecimento dos materiais com as informações. A principal linha da investigação é a de espionagem industrial, sendo que os agentes não excluem a possibilidade de que algum serviço secreto estrangeiro tenha feito o furto dos materiais da Petrobras.
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Tucanos oficializam meritocracia na rede de ensino de São Paulo EDUCAÇÃO Funcionários de escolas públicas com bom desempenho irão ganhar até três salários mínimos a mais Wilson Dias/ABr
Dafne Melo da Redação
O que “pensa” a secretária de Educação
O ANO de 2008 já começou com más notícias para o ensino público fundamental e médio do Estado de São Paulo. A Secretaria de Educação definiu critérios para premiar funcionários de escolas que apresentarem bom desempenho. A medida valerá para as unidades do ensino fundamental e médio, ou seja, pouco mais de 5 mil estabelecimentos, 250 mil professores e 5 milhões de estudantes. Após um diagnóstico de cada instituição, será elaborado um conjunto de metas. Se elas forem atingidas, funcionários da escola receberão uma gratificação. A verba, portanto, é destinada apenas para a folha de pagamento das instituições.
Há 13 anos que não recebemos reajustes dignos. O governo adota a política de gratificações e abonos apenas. Ao invés de prêmios, tinha que investir em formação e salários dignos De acordo com o cumprimento das metas, o estabelecimento de ensino receberá, ao longo do ano, uma pontuação. Além das taxas de repetência e evasão, haverá exames específicos que avaliarão se os estudantes subiram de patamar. O prêmio, afirmou a secretária de Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, à revista Veja (ver box) será de, no máximo, três salários mínimos para cada funcionário da escola. Carlos Ramiro, presidente do Sindicato de Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp),
“Qual seria o melhor caminho para elevar o nível dos professores? Maria Helena - Num mundo ideal, eu fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, até mesmo as mais conceituadas, como a da USP e a da Unicamp, e recomeçaria tudo do zero”. “Em pleno século XXI, há pessoas que persistem em uma visão sindicalista ultrapassada e corporativista, segundo a qual todos os professores merecem ganhar o mesmo salário no fim do mês. Essa velha política da isonomia salarial passa ao largo dos diferentes resultados obtidos em sala de aula, e aí está o erro”. “O que não se pode fazer é defender aumento de salário indiscriminado para professor ruim, desinteressado ou que mal aparece na escola. Quem merece mais dinheiro no fim do mês são os bons professores e aquelas escolas públicas capazes de oferecer um raro ensino de qualidade, apesar das evidentes dificuldades”. Para secretária, salário de professores não influi na qualidade do ensino
critica duramente o projeto. “Há 13 anos que não recebemos reajustes dignos. O governo adota a política de gratificações e abonos apenas. Ao invés de prêmios, tinha que investir em formação e salários dignos. Propomos planos de carreira, por exemplo, mas não aceitam”, afirma. Para ele, dar prêmios não estimula o professor. “A promessa de uma possível gratificação vinculada a uma série de exigências não vai motivar o docente”, prevê. Caminho errado Na entrevista à Veja, a secretária também diz que o argumento de baixos salários é uma “ladainha”, além de afirmar que a remuneração dos docentes é satisfatória. Não é o que indicam as
Quanto
8ª
. Essa é a posição de São Paulo no ranking de salários de docentes da rede estadual. pesquisas: estudo da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) aponta que o Estado mais rico da nação ocupa o 8º lugar no ranking de salários de docentes da rede estadual. Um professor de São Paulo ganha, por exemplo, 39% menos que um do Acre – unidade com melhor remuneração. Se for levado em conta o custo de vida, a diferença entre os dois Estados vai para 60%. Um docente recém formado recebe R$ 8,05 a hora/aula em São Paulo; no Acre, R$ 13,16.
Na época da divulgação da pesquisa, em outubro de 2007, Maria Helena Guimarães de Castro já tinha negado haver uma relação entre salários e qualidade de ensino. Argumentou que em Estados como Minas Gerais e Distrito Federal, estudantes da 4ª série tinham bons desempenhos, embora os salários fossem menores do que em São Paulo. Entretanto, o desempenho dos estudantes paulistas também está longe de satisfatório. Em pesquisa feita pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – órgão do Ministério da Educação –, nas categorias Leitura e Matemática, os alunos paulistas estão em 11º lugar; em Ciências, 12º.
Sociologia é retirada do currículo paulista Na contramão de decisão federal, tucanos eliminam disciplina no ensino médio; sindicatos tentam reverter situação em 2009 Divulgação
da Redação Para a atual gestão do governador José Serra (PSDBSP), a disciplina de Sociologia, no ensino médio, não tem importância na educação dos jovens. Contrariando uma norma federal elaborada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2006 – que tornou a disciplina, assim como Filosofia, obrigatória –, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo retirou por completo a Sociologia das salas de aula. A decisão foi oficializada pela resolução 92, do dia 19 de dezembro de 2007, que reestrutura a grade curricular dos ensinos fundamental e médio paulistas. Já as aulas de Filosofia ainda são obrigatórias no Estado. No Brasil, todos os demais 25 estados e o Distrito Federal, sem exceção, normatizaram a regra. Anteriormente, ainda no governo de Geraldo Alckmin (1999-2006), os tucanos tinham tirado a obrigatoriedade da disciplina. Lejeune de Carvalho, presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo (Sinsesp), conta que cerca de mil, das 3.750 escolas estaduais, mantinham a disciplina. Com a nova medida, que passa a valer a partir deste ano, cerca de mil profissionais serão demitidos. “Para nós, a decisão é um erro grave, mais um retroces-
Maria Helena Guimarães, secretária de Educação
É um absurdo privar a juventude do acesso ao instrumental que a nossa ciência proporciona so na qualidade da educação em São Paulo”, protesta.
Reação Diante da nova resolução, o Sinsesp e o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) buscaram apoio junto a parlamentares e ao Ministério Público Estadual (MPE). Duas reuniões com a secretária de Educação, Maria Helena Guimarães, já foram fei-
tas. “Ela, que é socióloga, inclusive, se justifica afirmando que essa determinação já estava em andamento quando assumiu, em julho de 2007, e que está disposta a corrigir o erro”, afirma Carvalho. Para isso, foi estabelecida uma comissão tripartite constituída pelo Sinsesp, Apeoesp e pela Secretaria, com acompanhamento de um assessor jurídico. O Grupo de Trabalho formado elaborará um
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que, se assinado por todas as partes e também pelo procurador geral do MPE, tem força de lei. No texto, Carvalho conta que a obrigatoriedade da disciplina retornará. Entretanto, os estragos da resolução 92 para 2008 já estão feitos. “Não é possível mais reverter a situação deste ano. O TAC só passará a valer em 2009”, aponta. A medida do governo tucano causou indignação até mesmo em sociólogos considerados alinhados ao PSDB. José de Souza Martins, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo do dia 10, escreveu que “o movimento pela sociologia no ensino médio se arrasta sem rumo até hoje, perturbado pela compreensão pobre que dele têm os governos, as escolas e o professorado. Uns porque têm como referência uma economia de resultados, em que o bom e apropriado ensino é confundido com o número de alunos que uma escola catapulta no vestibular das boas universidades públicas”. Para Lejeune de Carvalho, a decisão do governo tucano vai ao encontro do aprofundamento das medidas neoliberais. “Serra é o porta-vez desse modelo, e dentro dele não cabe Sociologia. É um absurdo privar a juventude do acesso ao instrumental que a nossa ciência proporciona”, finaliza. (DM)
“O bônus pode chegar ao equivalente a mais três salários num ano. Isso para cada funcionário da escola, da faxineira ao diretor. Foi com um sistema bem semelhante a esse que a cidade de Nova York (Estados Unidos) alcançou avanços notáveis. Fizemos aqui uma adaptação necessária à realidade brasileira: os professores mais faltosos serão automaticamente excluídos da lista dos premiados. É apenas o justo”. “Fiz uma pesquisa sobre o assunto, na qual professores entrevistados em diferentes estados brasileiros repetiam a mesmíssima ladainha: ‘As notas dos alunos são ruins porque a escola pública é carente de recursos e os professores ganham mal’. Não acho que seja razoável atribuir tudo a fatores externos”. Trechos da entrevista de Maria Helena Guimarães de Castro à revista Veja
Estudantes reivindicam melhorias em curso da Unicid Na rede privada paulista, mobilizações buscam questionar sucateamento do curso de História da Redação Estudantes do curso de História da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid) estão se organizando para barrar medidas tomadas pela direção da instituição que, segundo carta do centro acadêmico de História enviada à pró-reitoria acadêmica, “estão declinando a qualidade do nosso curso”. O estudante Thiago Cristiá conta que, apesar de falta de professores, o docente Edvaldo Batista foi demitido, sem maiores explicações, durante as últimas férias. “Apenas afirmaram que não foi por questões éticas, mas administrativas”, conta. Por conta da falta de professores, algumas disciplinas estão sendo lecionadas por docentes não especializados. “Temos uma professora especialista em África dando aula de revoluções burguesas”, exemplifica Cristiá. Outra conseqüência do quadro insuficiente de docentes é a sobrecarga dos professores. Atualmente, Eliane Pascoal é professora, coordenadora do curso de História e coordenadora do curso de formação de professores (Licenciatura). “O acúmulo de cargos (...) é visto por nós como prejudicial para o exercício da democracia em
nosso curso (...) acreditamos que tal hegemonia prejudica a discussão e inclusão de novas idéias, e, ainda, não contribui em nada para um debate democrático”, diz a carta assinada pelo centro acadêmico de História. Os estudantes também pedem a volta da Semana de História e outras atividades extracurriculares, suspensas pela direção.
Mobilização Como protesto, na semana dos dias 11 a 15, os estudantes decidiram paralisar as aulas para fazer debates e panfletagens com alunos de outros cursos. Agora, aguardam nova reunião, agendada para o dia 21, com a direção da universidade. Na pauta de reivindicações imediatas, a readmissão do professor Edvaldo Batista; afastamento da professora Eliane Pascoal da coordenação do curso de História; criação de uma comissão de no mínimo cinco alunos (um de cada semestre) para participar das reuniões do colegiado; e a contratação de professores e capacitação do corpo docente atual, caso seja necessário utilizar um professor que já esteja na instituição em matérias que não são sua especialidade. (DM)
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brasil
Governo assina convenções da OIT e atende demanda histórica TRABALHO Medidas garantem negociação coletiva para os servidores públicos e protege trabalhadores contra demissões Roosewelt Pinheiro/ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação
Rotatividade A CUT avalia a medida do presidente da República como histórica, já que a central, desde sua origem, em 1984, exige a ratificação dessas convenções. “No final de 2007, colocamos como prioridade a aprovação dessas duas convenções e da redução da jornada de trabalho sem diminuição salarial”, afirma Artur Henrique, presidente da CUT, que esteve presente na cerimônia. Ele acredita que o principal efeito positivo da 158 será o fim da alta rotatividade no mercado de trabalho brasileiro. “Apesar de a convenção não significar a estabilidade no emprego, ela será um obstáculo para os empresários que demitem os funcionários e contratam outros por um salário menor. Os empregos com carteira assinada estão aumentando, o que é positivo, mas isso é fruto dessa transição de demissões e contratações com salários menores”, analisa. A avaliação da recém-fundada CTB é semelhante à da CUT. “As duas convenções são muito importantes. Hoje os funcionários não têm nenhuma defesa contra a demissão imotivada”, explica Wagner Gomes, presidente do sindicato dos Metroviários de São Paulo e da CTB. Pressão Logo após o envio ao Congresso, as convenções, sobretudo a 158, foram criticadas por entidades patronais e por parlamentares conservadores. Teme-se que a aprovação da 158 tenha condicionantes que ataquem direitos dos trabalhadores, como o fim da indenização de 40% do FGTS no ato da demissão. O Brasil chegou a ser signatário da 158 entre abril e novembro de 1996. Mas o
Lula cumprimenta o presidente da CUT, Arthur Henrique, durante cerimônia de encaminhamento das Convenções da OIT
“A aprovação das convenções vai exigir mobilização, já que os parlamentares vão receber pressão de empresários e banqueiros”, prevê presidente do sindicato dos Metroviários de São Paulo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) denunciou (revogou) a medida, atendendo às pressões da Confederação Nacional da Indústria (CNI). A assinatura da convenção tinha sido realizada na gestão anterior, de Itamar Franco (PMDB). “Agora, nossa intenção é realizar um processo de pressão e mostrar aos senadores e deputados que as centrais estão unidas, e que a aprovação das convenções é importante politicamente, principalmente num ano eleitoral”, revela Artur Henrique.
Obstáculo O sindicalista afirma que a CUT já empreende algumas articulações, sobretudo com a base aliada do governo, para garantir a rápida tramitação
Intersindical e Conlutas temem futuros ataques
das convenções no parlamento. “Nós sabemos das dificuldades e do perfil conservador do Congresso, mas queremos que elas [as convenções] sejam aprovadas ainda no primeiro semestre”, projeta. Wagner Gomes conta que, após a cerimônia em que Lula assinou as convenções, os sindicalistas lá presentes reuniram-se com o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), e do Senado Federal, Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN). Segundo o presidente da CTB, ambos se comprometeram a colocar as convenções na agenda das casas que presidem. “A aprovação das convenções vai exigir mobilização, já que os parlamentares vão receber pressão de empresários e banqueiros”, prevê Gomes.
Sindicalistas acreditam que governo pode restringir direito de greve, após medidas que favoreceram trabalhadores da Redação Se as seis maiores centrais do país comemoraram a ratificação da OIT, outras organizações de esquerda, ainda não consolidadas enquanto centrais sindicais, têm uma série de ressalvas à maneira como o processo foi conduzido. A Conlutas e a Intersindical, ambas egressas da CUT, são favoráveis às convenções da OIT, mas acreditam que, provavelmente, elas serão arquivadas no Congresso, assim como todas as medidas que interessam aos trabalhadores. Outro temor dessas entidades é que o envio das convenções ao Congresso dê respaldo para o governo encaminhar outras regulamentações do serviço público que retirem direitos. Para Édson Carneiro, o Índio, diretor da Intersindical, as medidas são importantes para os trabalhadores. Entretanto, o sindicalista tem uma visão crítica do processo que levou Lula a enviar a medida ao Congresso. “Os direitos de negociação coletiva e de data-base (previstos na convenção 151) são essenciais em qualquer regime democrático e republicano. Mas o problema é que, ao mesmo tempo em que assina as convenções, o governo diz que não tem dinheiro para cumprir os acordos com os servidores, por conta do fim da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Se isso é verdade ou não, quem perde são os servidores”, analisa Índio, para quem a principal luta dos trabalhadores deve ser pela estabilidade no emprego, direito que a convenção 158 não assegura.
CUT entrega pedido de redução de jornada nas mãos de Lula Central defende 36 horas semanais, ao invés da atuais 44 horas da Redação As mesmas centrais que estiveram presentes na cerimônia no Palácio do Planalto promovem uma campanha pela redução da jornada de trabalho sem decréscimo salarial. As centrais têm um projeto de redução gradual da jornada para atingir as 36 horas semanais – atualmente, a jornada legal é de 44 horas. Dirigentes da CUT reuniram-se com o governo, no final de 2007, para apresentar a pauta de reivindicações da Marcha da Classe Trabalhadora. Além da ratificação das convenções, a central incluiu no documento a redução da jornada de trabalho. Segundo Artur Henrique, presidente da CUT, o próprio Lula deu a idéia de a central realizar atos públicos e colher assinaturas para dar visibilidade ao tema. A central acatou a proposta e, no dia 14, quando esteve com o presidente da República, Artur Henrique lhe entregou o abaixo-assinado que pede a redução da jornada. “Nós cobramos do presidente Lula e falamos: ‘já que você sugeriu, queremos que apóie a redução’. É evidente que, como cidadão, o presidente não assinou, mas ele já disse reiteradas vezes que esse é um debate importante”, relata Artur. A campanha pela redução da jornada teve início no dia 11 e se encerrará nos atos do dia 1º de maio, quando as centrais pretendem recolher 1 milhão de assinaturas. O presidente da CUT se diz confiante em relação à disposição do governo frente ao projeto. “Lula tem afirmado que os empresários estão ganhando muito e que agora têm que dividir com a classe trabalhadora”, relata. (RGT)
O dirigente da Intersindical teme que, com a regulamentação da negociação coletiva no setor público, o governo acelere o processo de restrição do direito de greve nos serviços públicos essenciais. O projeto está sendo redigido no Ministério do Planejamento e conta com o apoio de Lula. A CUT, que tem boa parte de sua base no serviço público, já demonstrou preocupação em relação a esse projeto. “Como que alguém vai se mobilizar sem o direito de greve?”, questiona Índio. Para o coordenador da Conlutas, Zé Maria de Almeida, o ato do governo representou apenas um “protelamento” da ratificação das convenções, pois o governo goza de prerrogativas constitucionais para ratificar a convenção sem ter que passar pelo Congresso. “Nós defendemos a ratificação das convenções e da redução da jornada, mas não podemos utilizar a bandeira da jornada para nos omitirmos frente a outros temas, como os ataques à Previdência”, defende Zé Maria. O sindicalista tem uma análise pessimista sobre a tramitação das convenções no Congresso. “Isso [o envio das convenções ao Congresso], infelizmente, mais uma vez é uma cortina de fumaça. Quando os assuntos que são do interesse dos trabalhadores vão para o Congresso, eles não andam”. Índio também partilha dessa visão. “Nós queremos que a 158 saia do Congresso com todas as garantias aos trabalhadores, mas, conhecendo o parlamento e as patronais, sabemos que eles vão se movimentar de diversas formas, incluindo a base aliada, para retirar direitos. Isso, na nossa opinião, é inaceitável”, afirma. (RGT)
Wilson Dias/ABr
O GOVERNO Luiz Inácio Lula da Silva assinou e enviou ao Congresso as convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), atendendo a uma reivindicação histórica do movimento sindical. A 151 garante o direito de negociação coletiva aos trabalhadores do setor público, enquanto a 158 protege os funcionários de todos os setores contra as demissões arbitrárias, motivadas por atuação política e preconceitos de raça, gênero, religiosidade ou orientação sexual. Atualmente, as negociações coletivas no serviço público não são regulamentadas, ou seja, diferentemente do que ocorre no setor privado, os governos não têm a obrigação de abrir negociação com os sindicatos em torno dos reajustes salariais. As negociações só ocorrem por conta da pressão e das greves dos servidores, mas não há nada que impeça o poder público de ignorar as reivindicações dos trabalhadores. A assinatura das convenções aconteceu no dia 14, no Palácio do Planalto, com a presença de cinco ministros de Estado, da diretora do escritório da OIT no Brasil, Laís Abramo, e de representantes de seis centrais sindicais – Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Geral dos Trabalhadores (CGT), Nova Central e União Geral dos Trabalhadores (UGT). Na ocasião, o presidente Lula afirmou que o governo fará “todo o esforço” para que as convenções sejam aprovadas no Congresso. Na avaliação das centrais, a tramitação no Congresso não será tarefa fácil, em função da composição conservadora do parlamento.
O ministro Celso Amorim, e a diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo
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saiu na agência CMI
Brasil continua atrasado na punição a ditadores Reprodução
REGIME MILITAR Na Argentina, leis de anistia aos responsáveis pela repressão foram anuladas
Protesto Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) ocuparam, no dia 15, a sede da Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic) de Porto Alegre (RS). Os manifestantes denunciavam as más condições dos trabalhadores pobres e reivindicavam a geração de postos populares de trabalho e passe livre para desempregados. Os trabalhadores também organizaram um protesto na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), onde ocorre a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento das Cidades.
Tatiana Merlino da Redação EM AGOSTO de 1972, 16 presos políticos foram fuzilados sob as ordens do capitão da Marinha argentina, Luis Emilio Sosa. Após tentativa de fuga frustrada de uma prisão na Patagônia, 19 guerrilheiros renderam-se aos militares sob a condição de terem integridade física garantida. Sosa descumpriu o trato e deu ordens para colocar os guerrilheiros em um paredão e fuzilá-los. Três dos 19 sobreviveram ao episódio, que ficou conhecido como “Massacre de Trelew”. Após 35 anos, o paradeiro do capitão – que era um dos segredos da Marinha – foi descoberto. No dia 13, a polícia o localizou e efetuou sua prisão. Na época do assassinato, o governo do general Augustín Lanusse deu versão falsa para o episódio. De acordo com ele, os militantes teriam sido mortos durante uma tentativa de fuga. O “Massacre de Trelew” é considerado uma “prévia” da modalidade de repressão que foi utilizada anos depois, a partir do golpe de 1976, que implantou a última ditadura militar argentina (1976-83), responsável pela tortura e assassinato de 30 mil civis.
Terrorismo de Estado Estela Carlotto, presidente das Associação Avós da Praça de Maio, comemorou a prisão do militar. “A nossa expectativa é de que todos os responsáveis pela morte, sequestro e assassinato de militantes sejam punidos”, disse. De acordo com ela, o que aconteceu na Argentina não foi uma guerra, “mas um terrorismo de Estado, com 600 campos de concentração”. Estela perdeu a filha Laura na ditadura, mas ainda procura o neto, Guido, “roubado” pelos militares e entregue a alguma outra família. Até agora, a entidade já
Rússia versus EUA
Dos 19 prisioneiros que se renderam, 16 morreram fuzilados em paredão
O que aconteceu na Argentina não foi uma guerra, “mas um terrorismo de Estado, com 600 campos de concentração” localizou 88 netos – filhos dos desaparecidos políticos que acabaram criados, muitas vezes, pelos algozes de seus pais.
Repressão Entre os países do Cone Sul, a Argentina está à frente na punição dos violadores dos direitos humanos. Em 2005, a Suprema Corte julgou a inconstitucionalidade das leis de Ponto Final e Obediência Devida, que impediam processos contra militares por envolvimento na repressão durante a ditadura. No entanto, Estela acredita que a Justiça deveria agir com mais empenho para julgar os responsáveis. “Apesar de muitos julgamentos terem sido iniciados, há poucas condenações”, pondera. Desde a anulação das leis de anistia na Argentina, três pessoas já foram condenadas por crimes cometidos durante a ditadura: os ex-policiais Julio Simón e Miguel Etchecolatz e o ex-capelão da polícia argentina, Christian Von Wernich, condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade, cometidos durante a ditadura (1976-1983). Considerado culpado por sete homicídios, 31 casos de tortura e 42 seqüestros, Von Wernich, de 69 anos, recebeu a sentença no tribunal da cidade de La Plata, 60 quilômetros ao sul de Buenos Aires. Trata-se do
primeiro julgamento de um padre ligado a uma ditadura da América Latina.
Passos lentos Enquanto na Argentina pouco a pouco, os crimes cometidos por militares durante a ditadura vão sendo julgados, o Brasil caminha a passos lentos nesse sentido. De acordo com Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de todos os países que passaram por recente ditadura na América Latina, o Brasil “é o mais atrasado com relação ao resgate da memória histórica e à punição dos responsáveis por aqueles crimes”, avalia. De acordo com ela, o país precisa conhecer os responsáveis pela repressão militar. “Que essas pessoas assumam os crimes que cometeram para a sociedade brasileira como um todo. Precisamos saber o que aconteceu, como aconteceu, quem são os responsáveis, mesmo que eles possam vir a ser anistiados posteriormente”, afirma. Exemplo de atraso Cecília lembra que quando o ex-chefe de polícia da Província de Buenos Aires na ditadura, Miguel Etchecolatz, foi condenado por crime de tortura, em 2006, o ex-presidente argentino Raúl Alfonsín, ouvido no inquérito, declarou: “No Brasil houve uma anistia e não houve
perseguição”. Segundo Cecília, “somos citados pelo o que tem de mais atrasado, e isso é lamentável”. Outro exemplo de atraso dado por Cecília é a existência de uma rua com o nome do delegado de polícia Sérgio Fernando Paranhos Fleury, na cidade de São Carlos (SP). Conhecido torturador, Fleury foi integrante do Esquadrão da Morte, em São Paulo, durente os anos de 1960, e tornou-se um dos principais agentes do terrorismo de Estado que se instaurou no país oficialmente após o ato institucional número 5 (AI-5), em 1968, quando a ditadura brasileira passou a utilizar a tortura como instrumento oficial do Estado.
Lesa-humanidade O Grupo Tortura Nunca Mais emitiu nota de repúdio à “homenagem” ao torturador: “Entendemos que tal ‘homenagem’ produz uma memória que enaltece os crimes de lesa-humanidade cometidos por estes agentes que, até hoje, ainda não foram sequer devidamente investigados, esclarecidos e responsabilizados”, diz o texto. No documento, a entidade solicita que o alerta seja divulgado e que mensagens sejam encaminhadas ao prefeito de São Carlos, Newton Lima Neto, e ao secretário municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano, Ricardo Martucci, “no sentido de solicitar que esta ‘homenagem’ seja anulada e substituída por nomes de militantes que generosamente lutaram contra o terror do Estado”.
Ex-goleiro Andrada é suspeito de atuar na repressão Agente do serviço de inteligência argentino durante a ditadura militar (19761983) afirma que o arqueiro do Vasco da Gama seqüestrava militantes políticos Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) O uso político do futebol pelas ditaduras militares na América Latina, que mascaravam as torturas enquanto insinuavam uma suposta unidade nacional em torno das pátrias de chuteiras pelo continente, é conhecido. Surpreende, porém, quando surgem indícios envolvendo a participação de ídolos do esporte na repressão. É o caso agora do ex-goleiro Edgardo Andrada, citado durante um depoimento do repressor Eduardo Constanzo como agente do serviço de inteligência da ditadura militar argentina (1976-1983). Cumprindo prisão domiciliar, Constanzo depôs diante do juiz Carlos Villafuerte Ruzo, em San Nicolás, e declarou que Andrada integra-
va um grupo que seqüestrava militantes políticos e teria participado diretamente do desaparecimento e da morte de dois militantes peronistas, Osvaldo Cambiaso e Eduardo Pereira Rossi, em maio de 1983. De acordo com Constanzo, o ex-goleiro teria se aposentado do Departamento de Inteligência como agente do serviço. Andrada deve ser chamado a depor perante o mesmo juiz. Em declarações ao jornal Clarín, o ex-goleiro refutou as acusações. “Este senhor Constanzo fala sem saber e não sei por que me envolveu nisso. Participei do Exército, mas não é pecado fazer parte dessa força. Não significa que seja delinqüente. Eu estava no Exército e jogava futebol, nada mais”, disse o ex-atleta, que hoje trabalha nas categorias de base do Rosário Central, time da cidade de Rosário que o projetou no futebol.
“El Gato” Andrada, como era conhecido, jogou quase toda a década de 1960 no Rosário Central. Também fez fama no Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, onde até hoje é considerado um de seus maiores arqueiros. Notabilizou-se por ter sido quem sofreu o milésimo gol de Pelé, em 1969.
Agente em Rosário A informação veio a público no dia 13. Dois dias depois, o Clarín informou que Andrada também foi citado em uma denúncia anônima feita em 1997 ao juiz federal Alberto Suárez Araujo. Um documento em posse da Associação das Mães da Praça de Maio indica que o ex-goleiro argentino seria agente secreto do Destacamento de Inteligência de Rosário. “A denúncia é importante, porque representa outra evidência de que Andrada esteve envolvido na ditadura.
Andrada seria chamado ainda essa semana a depor, o que é um passo fundamental para o avanço da investigação sobre o caso”, afirma ao Brasil de Fato o repórter do Clarín, Gustavo Yarroch, que vem acompanhando o caso. Não é a primeira vez que um futebolista argentino é acusado de envolvimento com a ditadura militar. O exjogador e atual técnico Juan de la Cruz Kairuz, que atuou, entre outros clubes, pelo Newell’s Old Boys, também já foi acusado por familiares de um desaparecido político de participação em torturas. “Na Argentina, são poucos os repressores que estão cumprindo penas de prisão efetiva pelas atrocidades que cometeram durante a ditadura”, relata Yarroch. Daniel Cassol é jornalista e escreve sobre futebol no blog http: //impedimento.wordpress.com
A Rússia não quer que ninguém se sinta ameaçado por seu arsenal nuclear, mas deixou claro que responderá a medidas unilaterais dos Estados Unidos. No dia 14, o presidente Vladimir Putin afirmou que não duvidará em apontar seus mísseis contra qualquer país da Europa que permita a instalação, em seu território, de componentes do polêmico escudo anti-mísseis estadunidense. “Se for instalado esse sistema [próximo às fronteiras deste país] e o Estado Maior [do exército russo] considerar que há perigo para nossa segurança nacional, seremos obrigados a tomar as medidas adequadas de resposta e, em primeiro lugar, a apontar parte de nossos mísseis em direção às instalações que nos ameaçam”, advertiu.
Medicina sem compromisso
O governo federal concluiu uma breve visita a Cuba no dia 15 de janeiro, quando uma das questões tratadas era a validação dos diplomas dos estudantes brasileiros que se formam na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam). Formados no país caribenho, médicos vindos de famílias pobres, movimentos sociais e comunidades originárias brasileiras se tornam a alternativa contra a lógica mercadológica da medicina no Brasil. A idéia é que esses estudantes retornem às suas comunidades de origem ou exerçam suas funções onde os médicos formados nas universidades brasileiras não têm interesse, seja pela falta de estrutura do interior e das periferias das grandes capitais, seja pela vontade de receber altos salários.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Êxodo brasileiro Por mais que a propaganda ufanista do governo tente demonstrar que a situação econômica está muito boa, que a geração de empregos é excelente e que o futuro pertence a todos, a debandada brasileira para o exterior continua altíssima, especialmente dos jovens, que vão tentar uma nova vida nos Estados Unidos e na Europa. A Meca agora é Dublin, na Irlanda, que está cheia de brasileiros. O encanto platônico pelo Brasil já era! Programa neoliberal Apesar de todos os disfarces, o governo federal segue cumprindo o que manda o Banco Mundial e a OMC: no dia 14, o presidente da República assinou o decreto que autoriza a privatização dos 68 aeroportos controlados pela União. Compete à Anac fazer a execução e ao BNDES fornecer suporte técnico. Ou seja, mais um presentão para o capital privado com ajuda do dinheiro público. Promessa duvidosa O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, promete incluir nos contratos de empréstimos uma cláusula contra a violação dos direitos humanos, de forma a vetar as empresas que usam trabalho escravo, discriminam ou praticam segregação racial e de gênero. A proposta é boa, já que não faz o menor sentido financiar tais crimes com o dinheiro público. Difícil é acreditar que venha a ser cumprida! Crime permanente Livro lançado nos Estados Unidos conta a história da freira Dorothy Stang, assassinada em Anapu, Pará, em 10 de fevereiro de 2005. Três anos depois, a situação naquela região continua igual, e os mandantes do crime ainda manobram para escapar da condenação. O livro lembra que a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e o Incra haviam garantido a segurança da irmã Dorothy. Dá para confiar? Tortura consentida Na sexta-feira, dia 15 de fevereiro de 2008, a Justiça fechou uma clínica clandestina para usuários de drogas em Mococa, interior paulista, depois de comprovar a prática de tortura nos internos.
Parece uma boa ação, mas não é, já que as primeiras denúncias de tortura foram feitas em 2006, mas só agora a Justiça tomou alguma providência. Uma grande injustiça para todos os que foram torturados nesse período.
Lamento tardio O ministro Tarso Genro, da Justiça, declarou em entrevista coletiva que o desaparecimento dos arquivos secretos da Petrobras pode ser ação de potência estrangeira interessada nas informações das bacias petrolíferas da costa brasileira. Se sabia mesmo da importância desses estudos, por que a Petrobras foi tão displicente no transporte dos computadores dentro de um contêiner sem nenhuma segurança especial? Confissão republicana Em entrevista para a revista alemã Der Spiegel, o candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, John McCain, declarou que, se eleito for, “nunca mais torturaremos ninguém que esteja sob a custódia dos Estados Unidos”. E prometeu fechar o campo de concentração existente na base militar de Guantánamo. Maior confissão de que o governo Bush viola os direitos humanos não pode existir! Adeus, Nani Rendo homenagem à companheira Ana Maria Stuart, militante de esquerda na Argentina, perseguida pela ditadura militar de lá, exilada no Brasil desde 1978. Participou do Comitê Brasileiro de Solidariedade aos Povos da América Latina (CBS), ajudou a organizar o dossiê dos desaparecidos e assassinados no Cone Sul. Faleceu no dia 11, em São Paulo. Deixou marido, filhos e netos.
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brasil
Transposição vai concentrar a água Antonio Cruz/ABr
SÃO FRANCISCO Em audiência no Senado Federal,Ciro Gomes reconhece que a transposição abastecerá apenas os açudes já existentes Mayrá Lima de Brasília (DF) DIVERGÊNCIAS E tensão marcaram a audiência pública sobre a transposição do rio São Francisco, realizada no dia 14 no Senado Federal. Muitos desses momentos foram protagonizados pelo deputado federal Ciro Gomes (PSB/CE), árduo defensor do projeto, que chegou a interpelar de forma ríspida o bispo de Barra, na Bahia, frei Luiz Flavio Cappio, e a atriz Letícia Sabatella, presentes na reunião. Para o parlamentar e ex-ministro da Integração Nacional, “o monopólio da boa-fé não pertence aos críticos do projeto”. Exaltado, Ciro chegou a se desculpar com o bispo de Barra após destratá-lo. No entanto, durante a audiência, o deputado cearense confirmou o que boa parte dos críticos afirma: o projeto de transposição não atenderá à maioria da população difusa do semi-árido, que enfrenta dificuldades com a falta de água para sobreviver. Em vez disso, servirá para garantir a perenidade dos reservatórios já existentes no Nordeste. Em virtude disso, frei Luiz frisou que o governo faz “propaganda enganosa” quando afirma que as obras beneficiarão 12 milhões de pessoas. “Mais de 90% do território e suas populações continuarão no abandono e na indigência”, assinalou. Nesse sentido, Luciano Silveira, da Articulação do Semi Árido (ASA Brasil), contou que são 2 milhões de famílias que sofrem com a seca. “O que temos é uma concentração de terras e água. O problema que assola é de
Defensor da transposição do rio São Francisco, Ciro Gomes admite que projeto não atende a maioria
natureza política. As ofertas concentradas [de água] nunca vão atender as demandas difusas. Há uma crise de percepção de realidade: a seca não se combate, convivese”, disse. A concepção admitida por Ciro também foi enfatizada por outros ambientalistas. Segundo Henrique Cortez, ambientalista e coordenador do portal EcoDebate, é preciso desmistificar o imaginá-
Equivalerá a ‘chover no molhado’, pois os grandes beneficiários não serão as populações das regiões onde a seca realmente existe, mas os megaprojetos de fruticultura e da cultura do camarão rio dos dois eixos de transposição. “No eixo Norte, o projeto nada muda. Não altera o desespero da população. É preciso distribuição e capitalização das águas, mudar o modelo de gestão. No eixo Leste, em regiões co-
mo Campina Grande (PB), que realmente precisam de água, existem mecanismos mais simples, como os citados no Atlas do Nordeste da Agência Nacional de Águas (ANA), para resolver o problema”, afirmou.
Também participaram da audiência o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima e outros integrantes da ONG Humanos Direitos, além de Sabatella, e outros atores como Osmar Prado e Carlos Vereza. A atriz chegou
Resistência volta a Sobradinho no final do mês Na audiência pública realizada pelo Senado no dia 14, Luciana Khoury, promotora de justiça da Bahia, reforçou o entendimento de que o projeto de transposição do rio São Francisco fere a legalidade e o Estado democrático de direito, já que o povo da bacia nunca foi ouvido pelo governo e suas necessidades não foram levadas em consideração na elaboração do projeto. Esse é um dos argumentos que sustentam as ações judiciais que pedem no Supremo Tribunal Federal a interrupção das obras da transposição. O mérito ainda não foi julgado por nenhum dos 11 ministros que compõem a corte. Pa-
ra dar prosseguimento a essa frente de luta e às demais, os movimentos sociais que acompanharam os 24 dias da greve de fome de frei Luiz Flavio Cappio voltam a Sobradinho (BA) entre os dias 25 e 27. É esperada a participação de aproximadamente 130 pessoas em atividades como debates e grupos de trabalho, com o objetivo de, segundo a convocatória, “fazer o balanço das lutas recentes do São Francisco e do Semi-Árido; definir, para fortalecer, a continuidade destas lutas; e consolidar a unidade e o avanço delas, em nível nacional e internacional”.
a se emocionar ao afirmar que “esperava que a audiência não fosse um teatro”.
Embate De acordo com Apolo Heringer, coordenador do projeto Manuelzão e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas da Universidade Federal de Minas Gerais, somente os técnicos do Ministério da Integração se colocam a favor do projeto. “Ninguém aprova a transposição dentro das universidades”, afirmou. Ele citou o equívoco de se considerar a seca como um fenômeno de falta de água. “A seca é concentração de água. Por que não se distribui a água que já está nos açudes? Não discutimos o mérito da transposição. O Brasil precisa derrotar a indústria da seca”, reclamou. O professor e doutor em Hidrologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Abner, também criticou com veemência o projeto encampado por Lula. “O projeto do governo é imaginário. A transposição faz transferência de água para grandes estoques, em áreas de grande porte. Não existe recurso e nem infra-estrutura para a distribuição dessas águas”, disse. “A água que sairá do São Francisco irá irrigar rios perenes e os grandes reservatórios do Nordeste, como Castanhão, Mãe D’Água e Engenheiro Armando Gonçalves. Equivalerá a ‘chover no molhado’, pois os grandes beneficiários não serão as populações das regiões onde a seca realmente existe, mas os megaprojetos de fruticultura e da cultura do camarão”, complementou. Por outro lado, personalidades que são favoráveis à transposição também fizeram suas argumentações. Para o arcebispo da Paraíba, dom Aldo Pagotto, as águas do São Francisco não são para o agronegócio, e que o controle social cabe à população. “Vamos fazer uma mobilização popular favorável ao projeto em Monteiro na Paraíba no próximo dia 12 de março”, prometeu. Já o deputado federal Marcondes Gadelha (PSB/PB) considera o projeto “o mais seguro, do ponto de vista ambiental” já que “é o único que vem casado com uma revitalização”.
AGRICULTURA Divulgação
As irregularidades na liberação do cultivo do milho transgênico De acordo com os órgãos responsáveis, Ibama e Anvisa, liberação da comercialização coloca em risco a saúde da população e o meio ambiente Eneida Fagundes de Brasília (DF) Continua a polêmica sobre a liberação da comercialização do milho transgênico. Os impactos ambientais e os efeitos na saúde são as grandes preocupações. Os movimentos sociais e organizações não-governamentais prometem nova ação judicial contra a autorização. As variedades aprovadas são a Liberty Link, da transnacional alemã Bayer, e a MON810, da estadunidense Monsanto. Uma é resistente a insetos e a outra a herbicidas. As duas variedades foram proibidas em países europeus como a França, Áustria e Hungria. A MON810 também foi vetada na Grécia, Polônia, Suíça e Alemanha. A liberação ocorreu no dia 12, por sete votos a quatro, no Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), formado por 11 ministros. “Esperamos reverter a decisão na Justiça”, conta Gabriel Fernandes, engenheiro agrônomo
da AS-PTA. Para ele, a liberação é uma grande irresponsabilidade do governo e coloca em risco toda a agrobiodiversidade do país. Embora o valor exato seja de difícil avaliação e variável ano a ano, estima-se que pelo menos 30% da área de milho cultivado no país seja ocupada por sementes crioulas, locais ou mesmo variedades melhoradas de polinização aberta. Além disso, o governo federal vem promovendo ações de resgate, conservação e uso sustentável de variedades crioulas. Em 2007, o milho já havia sido aprovado pelos membros da Comissão Técnica de Biossegurança (CNTBio). Na época, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) se opuseram à liberação comercial. De acordo com os recursos apresentados à Casa Civil, a Anvisa alegou inexistência de estudos toxicológicos para comprovar a segurança para o consumo humano, insuficiência de dados que ga-
rantam a segurança alimentar e de pesquisa sobre alergenicidade.
Meio ambiente Já o parecer do Ibama afirma ser prematuro que a CTNBio tenha decidido sobre os pedidos de liberações comerciais sem antes estabelecer normas e diretrizes. Também consta no documento o alerta à contaminação. O texto diz que “liberado, o milho transgênico LL (Libert Link) contaminará as variedades crioulas, caso não haja o cuidado necessário, uma vez que essa espécie é tipicamente de fecundação cruzada. O perigo decorre, assim, da contaminação de um dos mais importantes patrimônios genéticos mundiais, já que o milho é, no Brasil, uma cultura pré-colombiana atualmente mantida por milhares de agricultores familiares e povos indígenas”. Para Maria Rita Reis, da Terra de Direitos, a comercialização pode ser trágica para a agricultura brasileira. “Os pequenos grãos levados pelo
Liberação coloca em risco a agrobiodiversidade do país
vento podem percorrer quilômetros e contaminar outras variedades”, explica.
De fora Outro ponto levantado pelo Ibama e que deve ser levado em consideração é o fato de grande parte do documento apresentado à CTNBio estar em inglês. Assim, a documentação impediu que muitos brasileiros tivessem acesso às informações do processo e ainda dificultou a participação popular na audiência pública realizada no dia 20 de março de 2007, já que as traduções para o português foram enviadas à Comissão somente no dia 17 de abril de 2007.
De acordo com os documentos apresentados à Casa Civil, depreende-se que, pela inexistência de estudos ambientais, “a CTNBio não pode concluir se a atividade é ou não potencial ou efetivamente causadora de degradação do meio ambiente, ou que possa causar riscos à saúde humana, conforme previne a lei”.
Cabo de força Os ministérios que lidam com o mérito da questão foram contrários à decisão. De um lado, o Meio Ambiente, Saúde, Desenvolvimento Agrário e Pesca. De outro, juntamente com a Casa Civil, votaram a favor os mi-
nistérios das Relações Exteriores, Defesa, Justiça, Indústria e Comércio, Agricultura e Ciência e Tecnologia. Como as decisões do CNBS são tomadas por maioria simples, a liberação foi confirmada por sete votos a quatro, ainda que a Saúde e o Meio Ambiente tenham sido derrotados. Isso só foi possível pelo aspecto que movimentos sociais e a Procuradoria-Geral da República julgam inconstitucional na Lei de Biossegurança: ao contrário de qualquer outro produto, as liberações de transgênicos não dependem de um posicionamento favorável da Anvisa ou do Ibama.
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cultura
Fotos: Mauricio Scerni
O outro em foto...
...populações ribeirinhas O Brasil de Fato publica nesta edição a segunda e última parte do ensaio fotográfico O Olhar para o Outro, do carioca Mauricio Scerni. Na primeira parte, publicada na edição 257, as fotos eram do encontro histórico que reuniu, por quatro dias, mais de 3 mil índios de várias regiões do país, por ocasião do aniversário de 500 anos do Brasil, na aldeia de Coroa Vermelha, Bahia. Agora, o ensaio traz imagens da população ribeirinha de regiões do Nordeste, Sudeste, Amazônia, Brasil Central e Cuba. Em seu trabalho, Mauricio Scerni fala de um “eu” plural. Seu olhar se aproxima do outro em cada foto, que é uma participação pessoal, além de solidária, com viés fortemente social. Mas também é o resultado de exaustiva pesquisa do fotógrafo, iniciada ainda nos anos 70, no laboratório montado na casa em que nasceu. O Olhar para o Outro é dedicado ao teólogo Leonardo Boff e ao professor Antonio Candido.
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américa latina
Transição nos marcos socialistas Ana Aguilar
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REVOLUÇÃO CUBANA Afastado da presidência por motivo de saúde, Fidel Castro diz que não aceitará reeleição; Raúl deve ser confirmado no posto Jorge Pereira Filho da Redação
Cuba continuará seguindo seu próprio caminho Ignacio Ramonet – jornalista francês A longa e extraordinária carreira política de Fidel Castro chegou ao fim – pelo menos no que se refere à presidência. Mas sua enorme influência irá continuar viva. Não pode haver um substituto para Fidel. Não apenas por suas qualidades como líder, mas porque as circunstâncias históricas nunca serão as mesmas. Fidel presenciou tudo, desde a revolução cubana até a queda da União Soviética, e décadas de confronto com os Estados Unidos. O fato de ele se afastar em vida irá ajudar a assegurar uma transição em paz. O povo cubano agora aceita que o país ainda pode ser conduzido no mesmo caminho, mas por um time diferente. Há um ano e meio, eles estão se acostumando com a idéia, enquanto Fidel permaneceu teoricamente como presidente. Como sempre, Fidel era o mentor.
Relações com os EUA
A principal tarefa de seus herdeiros políticos será a forma de enfrentar o desafio perpétuo de Cuba: as relações com os Estados Unidos. Devemos esperar para ver se vão ocorrer mudanças. Por duas vezes, Raúl Castro anunciou que está preparado para dialogar com Washington sobre os problemas entre os dois países. E os próprios Estados Unidos podem ter uma mudança. O democraca Barack Obama já sinalizou, por exemplo, desejo de interagir com países tidos como inimigos da América, como o Irã, a Venezuela ou Cuba. No entanto, uma reorientação imediata e radical é improvável.
Em Cuba, as mudanças mais visíveis que podem ocorrer são o fortalecimento dos laços com a América Latina. Internamente, o socialismo será sem dúvida alterado, mas não nos moldes do que ocorreu na China ou no Vietnã. Cuba continuará seguindo o seu próprio caminho. O novo regime começará as mudanças no nível econômico, mas a perestroika cubana não a abrirá politicamente, não haverá eleições multiparditárias. Suas autoridades estão convencidas de que o socialismo é a correta escolha, mas o sistema deve ser sempre melhorado. E sua preocupação agora, mais do que o afastamento de Fidel, é ser unitário. (Leia a íntegra na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
“A sombra de Fidel se projeta sobre Cuba” Moniz Bandeira – historiador e cientista político Brasil de Fato – O que mudará em Cuba com a saída de Fidel? Moniz Bandeira – De imediato, não há praticamente mudança substancial. A mudança já vem ocorrendo, gradualmente, no sentido de maior liberalização econômica e política. A saída de Fidel Castro pode fortalecer movimentos contra-revolucionários? Não vejo porque a saída de Fidel pode fortalecer a oposição. Além do mais, ele está vivo, e sua sombra se projeta sobre Cuba. Hoje há um debate sobre mudanças no regime. O que pode estar por vir? Cuba parece que caminha para um tipo de sistema econômico como o existente na China e no Vietnã, que é um capitalismo de Estado, isto é, o capitalismo provado sob o controle do Estado. O senhor acredita que os EUA podem desencadear uma ação intervencionista em Cuba? Se o presidente George W. Bush não teve antes condições de investir contra Cuba, como pretendeu e anunciou, não creio que agora possa fazê-lo, quando é um pato manco [lame duck] que está nos estertores do seu governo, chafurdado no Afeganistão e no Iraque. Qual o legado que o governo de Fidel Castro deixa para a América Latina e para os povos em geral? Fidel Castro é o símbolo de uma era, de um fenômeno político que marcou toda a América Latina, que casou um forte impacto, não só regional, mas internacional. A Revolução Cubana foi o maior e mais importante acontecimento na América Latina no século XX. Nenhum outro, nem outra revolução, influiu tanto como a revolução cubana.
SE NA sede do governo cubano, o cotidiano pouco muda, a terra de José Martí não é a mesma. Afastado da presidência há pouco mais de um ano e meio, Fidel Castro anunciou que não aceitará retomar o posto máximo do poder na ilha caribenha mesmo se indicado pelo Parlamento. “Não me despeço de vocês. Desejo somente combater como um soldado das idéias. Seguirei escrevendo sob o título ‘Reflexões do companheiro Fidel’. Será uma arma a mais do arsenal com a qual se poderá contar. Talvez ouçam minha voz. Serei cuidadoso”, sublinhou o líder da Revolução Cubana em mensagem assinada de próprio punho e com data de 18 de fevereiro. Aguardada com ansiedade pelos cubanos, dada a visível fragilidade do principal expoente da revolução, a decisão encerra um ciclo de 49 anos. Mas não o regime socialista. Foi sob a liderança de Fidel Castro que um pequeno país da América Latina, cuja população soma 11 milhões – uma cidade de São Paulo –, concretizou o sonho da autonomia, a menos de 200 quilômetros da maior potência global. Livre do analfabetismo, com acesso gratuito e universal à saúde, índice de mortalidade infantil melhor que o dos Estados Unidos e desemprego zero. Essa é a mesma nação que, antes de 1959, seguia como um parque de diversões do vizinho capitalista, assolada pela fome, pobreza e o regime ditatorial de Fulgêncio Batista. O salto histórico em menos de 50 anos não levou Cuba ao paraíso – longe disso –, mas semeou uma proposta política transformadora na América Latina e em outros rincões do mundo, como afirma o sociólogo Emir Sader: “A América Latina e a esquerda do continente são uma antes e outra depois de Fidel. A experiência dele mostrou que um país pode ser justo, sem necessariamente ser rico. Justiça social não é riqueza, mas sim opção política”.
Sucessão
Na prática, Cuba já vive sem a participação de Fidel Castro nas esferas de poder. O comando do país está nas mãos de seu irmão, Raúl Castro, e de outras lideranças revolucionárias, como Carlos Lage (primeiro-ministro), Ricardo Alarcón (presidente do Parlamento) e Felipe Pérez Roque (chanceler). No imaginário popular, no entanto, o sonho de ver o retorno de Fidel à presidência permanecia. Agora não mais. E os cubanos vão se acostumar a acompanhá-lo apenas por suas intervenções periódicas em artigos publicados nos jornais oficiais do país. A transição ocorrerá no
marco institucional socialista. Em 19 de janeiro, os cubanos foram às urnas e mantiveram a tradição de renovar a maior parte da Assembléia Nacional do Poder Popular (ANPP). Apenas um terço dos deputados foi mantido. No dia 24, após o fechamento desta edição, seria a vez de os representantes parlamentares indicarem o novo presidente cubano. E é praticamente certo que Raúl Castro será escolhido como o substituto de seu irmão. Tão logo o anúncio da decisão de Fidel espalhou-se pelo planeta, a reação conservadora foi imediata. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, pediu uma ação da comunidade internacional para “criar instituições democráticas” em Cuba. A União Européia seguiu na mesma direção. Emir Sader, no entanto, não crê que as ameaças de intervenção externa em Cuba possam se concretizar. “Eles podem fazer o que quiserem, mas Fidel Castro já não é o dirigente político da revolução. Com ele ou sem ele, Cuba vai seguir. E a Revolução segue uma nova etapa em seu processo de transformação socialista”, avalia. Inegável dizer que o país já convive com um novo período. O marco, mais uma vez, foi 26 de julho, quando se celebra o assalto ao Quartel Moncada. Neste dia, em 2007, Raúl Castro abriu um intenso debate na sociedade sobre os problemas dos cubanos. É desse processo que se esperam as transformações no regime. “O socialismo será sem dúvida alterado, mas não nos moldes do que ocorreu na China ou no Vietnã. O novo regime começará as mudanças no nível econômico, mas não haverá eleições multiparditárias. Suas autoridades estão convencidas de que o socialismo é a correta escolha, mas que o sistema deve ser sempre melhorado. E sua preocupação agora, mais do que o afastamento de Fidel, é com a unidade”, avalia Ignario Ramonet, em artigo enviado ao Brasil de Fato (leia ao lado). Já o cientista político Moniz Bandeira prevê mudanças de modelo na economia: “Cuba parece que caminha para um tipo de sistema econômico como o existente na China e no Vietnã, que é um capitalismo de Estado”. Indiscutível, porém, é que Fidel Castro desta vez não conduzirá as transformações. “É o final de sua carreira como um dirigente político muito digno. De um homem que mudou a história da América Latina e do mundo. Ele fecha o seu ciclo como um grande dirigente, de forma lúcida e combativa. E a Revolução Cubana continua e segue o seu curso”, afirma Emir. (Colaborou Eduardo Sales). – Leia a cobertura completa na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br
“Cuba mostra que o poder imperialista tem limites” Miguel Urbano Rodrigues – jornalista português Brasil de Fato – Qual o significado prático, para o povo cubano, da renúncia do presidente Fidel Castro? Miguel Urbano Rodrigues – São os povos o sujeito da Historia, mas o fator subjetivo em determinadas situações pode pesar muito. Fidel Castro marcou decisivamente o rumo da história do seu país e da América Latina na segunda metade do século 20. Que pode mudar agora? Nada daquilo que o sistema de poder estadunidense desejaria. Fidel já havia transferido o poder executivo para Raúl. A mídia, sobretudo nos EUA e na Europa, tem difundido a idéia de que em Cuba existe uma oposição organizada com base popular. É uma mentira. Residi oito anos em Cuba, até 2004, e adquiri a certeza de que as personalidades e grupos contra-revolucionários carecem de expressão social. São quase folclóricos. Atualmente, na sociedade cubana ocorre um debate interno crítico sobre o regime. Existe uma vontade popular de retorno ao capitalismo? O discurso de Raúl Castro, no 26 de Julho de 2007, desencadeou um debate intenso na sociedade cubana. Mas deforma o seu significado defini-lo como crítico do regime. Em milhares de reuniões, nas fábricas, nas escolas, nas cooperativas, nos serviços, no Partido, em todas as Províncias, os cubanos, respondendo a um apelo de Raul, debateram grandes problemas nacionais, expressando sem temor idéias, apresentando sugestões, criticando o que se lhes afigura passível de críticas, mas sempre numa perspectiva de aperfeiçoamento do socialismo, e nunca de um regresso ao capitalismo. Não poucas vezes, o presidente George W. Bush cogitou ações intervencionistas em Cuba... No contexto da grave crise estrutural do capitalismo estadunidense, considero praticamente improvável uma intervenção militar em Cuba. Mas estou certo de que, no caso de uma agressão desse tipo, o povo cubano lhe daria a resposta de abril de 1961, quando derrotou em Playa Giron o desembarque mercenário idealizado e financiado pelos EUA. Qual o legado que o governo de Fidel Castro deixa para a América Latina e para os povos? A Revolução Cubana resiste vitoriosamente há quase meio século a uma guerra não declarada. Dez presidentes dos EUA comprometram-se a destruir o socialismo em Cuba. Foram sucessivamente desmentidos pela história. Essa resistência de Cuba não configura apenas a epopéia coletiva do seu povo. Funcionou como estímulo para os povos da América Latina e do Terceiro Mundo. Confirmou que o poder do imperialismo tem limites. Sem a resistência de Cuba, a Revolução Bolivariana na Venezuela não teria sido possível, e processos como aqueles que estão em curso no Equador e na Bolívia seriam inviáveis. Quando Fidel adoeceu, escrevi que via nele um Aquiles cubano. Identifico no grande revolucionário um herói da Humanidade. (JPF)
O que pensam dirigentes da esquerda sobre a renúncia João Pedro Stedile (MST / Via Campesina)
Fidel Castro é o líder popular inconteste de todo o povo cubano. Ele se transformou em líder na luta permamente contra os inimigos do povo, com coerência e fidelidade, e não precisa disputar cargos. A decisão é mais do que acertada, pois, assim, poderá usar melhor seu tempo para escrever e expor reflexões que podem contribuir não só com o povo cubano, mas com toda a esquerda latino-americana e mundial, que se encontra em uma grave crise. Valter Pomar (PT) Foi bom que o processo tenha ocorrido nessas condições. Mas as mudanças não vêm de agora. Os quadros do partido comunista de Cuba já são formados por pessoas mais jovens. Isso mostra que Cuba não depende da pessoa do Fidel; não é um processo que depende de um indivíduo apenas. Fidel é um símbolo da dignidade latino-americana. Lúcia Stumpf (presidente da UNE) Trata-se de um processo de responsabilização popular dos estudantes e dos trabalhadores, de amadurecimento da população cubana. Ele [Fidel] deixa um grande legado, e esse processo vai revelar a consciência do povo sobre a revolução.
Plínio Arruda Sampaio (Psol)
Acho que é um desenvolvimento normal. Mostra o desapego do Fidel e a preocupação que ele tem sobre a continuidade do processo revolucionário após a sua vida.
Augusto Buonicore (PC do B)
Fidel sai da direção do Estado cubano, mas continuará como uma liderança moral do seu povo, porque conquistou isso através de anos de luta antiimperialista na América Latina. Eu acho que a saída foi positiva, o povo cubano reconhecerá isso, que, mesmo sem Fidel, a revolução continua. Muitas pessoas apostaram, já na década de 1990, que Cuba não resistiria à queda do leste europeu. E hoje apostam que o socialismo de Cuba não sobrevive sem Fidel Castro, acham que sua substituição decretará o retorno ao capitalismo ou à subserviência de Cuba aos Estados Unidos. João Felício (CUT) A CUT sempre defendeu a autodeterminação dos povos. Cabe a cada país definir melhor o regime, e a forma de organização política do povo. Temos a certeza absoluta de que o povo cubano encontrará caminhos que levem em consideração os conflitos sociais do país, combinados com o crescimento econômico.
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Suspeitas de ingerência dos EUA contra Evo Morales ganham força BOLÍVIA Sucessão de revelações de espionagem por parte da embaixada dão indícios de intenção política contra governo
“POR QUE, nos EUA, nunca houve um golpe de Estado? Porque lá não tem embaixada dos EUA”, brinca Mario Quintanilla, do Conselho de Educação de Adultos da Bolívia (CEAAL), não sem acreditar na veracidade da piada. Em fevereiro, em um intervalo de poucos dias, duas graves denúncias de espionagem postas em prática pela embaixada estadunidense em La Paz vieram à tona. Na primeira delas, descobriu-se que grupos ilegais de inteligência, financiados pelo serviço diplomático dos EUA, funcionavam dentro da polícia boliviana. A segunda revelação foi feita pelo bolsista estadunidense John Alexander Van Schaick, que participa do programa de intercâmbio Fullbright na Bolívia. Ele acusou um funcionário da embaixada, Vincent Cooper, de pedir, em duas ocasiões diferentes, que ele fornecesse informações a respeito de cubanos e venezuelanos trabalhando em missões humanitárias no país. “Vivemos a era do conhecimento, da informação. Quem tem a informação, tem o poder. E nisso radica o exercício de poder do Império frente aos demais países. Se os EUA não fazem isso, como atuarão com antecipação a todos os sistemas sociais, econômicos e políticos?”, questiona Quintanilla, que lembra que os muitos golpes ocorridos na Bolívia foram gestados na embaixada estadunidense.
Grupos irregulares De acordo com a denúncia do governo boliviano, pelo menos três grupos de inteligência atuavam irregularmente: Organização de Estudos Policiais (Odep), antigo Comando de Operações Especiais (Copes); o Grupo de Tarefa de Investigação de Delitos Especiais (GTIDE); e o Grupo de Segurança Anti-terrorista, encarregado da segurança do serviço diplomático estadunidense. Segundo o ministro de Governo da Bolívia, Alfredo Rada, esses grupos surgiram em gestões anteriores, “ao calor dos interesses da embaixada dos EUA”. No governo Evo Morales, as investigações se intensificaram. “O Copes realizava trabalhos de inteligência política, acompanhamento de pessoas do governo, campanhas de desprestígio a importantes entidades de Estado, infiltração na Direção Nacional de Inteligência (DNI) etc.”, explica Rada, em entrevista ao Brasil de Fato.
Reconhecimento O financiamento desses grupos era feito por meio de cursos de capacitação, apoio econômico e bônus individuais. Os policiais chegavam a receber mais de 300 dólares de gratificações. A própria embaixada estadunidense reconheceu o vínculo econômico. O serviço diplomático dos EUA reconheceu igualmente o vínculo político. Em reunião com o ministro de Governo, admitiu-se que o Agregado de Segurança recebia os relatórios da atual Odep. Em uma das ocasiões, até antes que o governo o recebesse. “Aí está configurada a espionagem”, denuncia Rada. Outra admissão, por parte da embaixada estadunidense, se deu no caso Vincent Cooper, que sugeriu que Van Schaick espionasse cubanos e venezuelanos. O funcionário teria feito uma “sugestão inapropriada” ao bolsista e a outros durante uma reunião com voluntários, mas foi “imediatamente corrigido” por um superior no mesmo encontro. No entanto, segundo Rada, Cooper, que saiu do país e foi convidado a não voltar pelo
Ações de grupos de inteligência buscam desestabilizar o governo de Evo Morales
governo, não é um funcionário comum. “Ele era o assistente do coronel James Campbell, chefe de segurança da embaixada e da missão militar dos EUA”. Para o ministro, a série de denúncias indica que as ações estadunidenses têm como objetivo a desestabilização do governo Evo. E, para tal, busca-se uma aliança com grupos da oposição. “É uma relação fluida, que mostra que a embaixada estadunidense está indo mais além dos limites diplomáticos de sua gestão. Está já ingressando no campo político”. Um dos exemplos é o financiamento, por parte da Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), de viagens dos governadores de oposição aos EUA, para que estes denunciassem, diante de organismos internacionais, a suposta falta de democracia por parte do governo.
Embaixador esteve na ex-Iugoslávia na época do desmembramento do país de La Paz (Bolívia) No centro do furacão das denúncias de espionagem está a figura do embaixador estadunidense Philip Goldberg. O diplomata esteve na ex-Iugoslávia na época do desmembramento do país. Para Mario Quintanilla, do CEAAL, seu perfil, ao contrário de outros, é do tipo conciliador, sem agressividade. “Mas isso não quer dizer que eu veja como positiva a sua atitude. Detrás
Reprodução
Igor Ojeda correspondente em La Paz (Bolívia)
J. Bernardo Serrano
De acordo com o ministro, as investigações indicam, por exemplo, que o grupo acumulou informação sobre a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, a estatal de petróleo e gás. A partir daí, campanhas de desprestígio contra a empresa, nos meios de comunicação, teriam sido desatadas. Outro exemplo dado por Rada é a espionagem feita, em setembro de 2007, junto à missão iraniana que visitou o país, que contava com a presença do presidente do país, Mahmoud Ahmadinejad. “Isso demonstra que os objetivos do Copes não eram precisamente de interesse do Estado boliviano. A espionagem de uma missão diplomática de um país com o qual a Bolívia está interessada em estabelecer relações comerciais, diplomáticas e energéticas responde a outros tipos de interesse, seguramente externos”, adverte.
Van Schaick: convidado a espionar para os EUA
de um perfil baixo, pode haver todo um projeto, um processo. Mas não podemos adivinhar o pensamento de uma pessoa.” No entanto, para Alfredo Rada, tal projeto é verossímil. Segundo ele, Goldberg vem acumulando um conjunto de equívocos. “Um erro pode acontecer, qualquer um o comete. Mas, quando é uma cadeia de erros, somada a algumas aproximações políticas com governadores de oposição, isso configura outra coisa. Pode-
mos falar de ingerência, de espionagem.” Segundo ele, a desconfiança cresce quando se lembra do passado do embaixador. “É inevitável a associação que se faz com respeito a um conhecedor a fundo do que são as disputas regionais e étnicas em um determinado país. A Iugoslávia, como sabemos, terminou despedaçada, devido a alguns fenômenos que se estão dando na Bolívia, como regionalismo, racismo, separatismo etc.”, alerta. (IO)
Governo toma medidas contra espionagem de La Paz (Bolívia) Frente às denúncias de espionagem por parte dos EUA, o governo boliviano decidiu tomar uma série de medidas. Em relação aos grupos de inteligência ilegais, o Executivo dissolveu a Odep e incorporou o GTIDE à Direção Nacional de Inteligência (DNI), que será fortalecida. O Grupo de Segurança Anti-terrorista segue sen-
do investigado. “Ao fazermos isso, estamos recuperando a soberania sobre os serviços de inteligência. Vamos seguir trabalhando nos âmbitos comerciais e econômicos, no nível de relações Estado-Estado, mas deixando claramente estabelecido que, diferentemente de antes, nós não vamos tolerar que a presença dos EUA na Bolívia tenha um caráter de ingerência, de espionagem, de ação
política desestabilizadora”, garantiu o ministro de Governo Alfredo Rada. Além disso, o governo boliviano congelou as operações médico-militares do convênio humanitário entre os dos países vigente desde 1996 e determinou não enviar mais oficiais das Forças Armadas ao Instituto de Cooperação para a Segurança Hemisférica (WHINSEC, na sigla em inglês), antiga Escola das Américas. (IO)
Agenda de Outubro não está sendo cumprida por Evo, diz organização Coordenadora Nacional pela Autodeterminação Social exige, entre outras coisas “verdadeira” nacionalização dos hidrocarbonetos de Huatajata (Bolívia) Exigir do governo do presidente Evo Morales o cumprimento da Agenda de Outubro. Tal objetivo, comum a alguns líderes e movimentos sociais bolivianos, deu origem, em novembro de 2007, à Coordenadora Nacional pela Autodeterminação Social. A chamada Agenda de Outubro surgiu com a Guerra do Gás, em 2003. Especialmente na cidade de El Alto, vizinha à La Paz, a população se rebelou contra a intenção do então presidente, Gonzalo Sánchez de Lozada, de exportar gás boliviano aos EUA via um por-
to no Chile, responsável pelo país não ter saída ao mar. A repressão governamental deixou 68 mortos e mais de 400 feridos, e terminou com a renúncia de Lozada. Entre os pontos da Agenda, estava a nacionalização dos hidrocarbonetos e a industrialização do gás e do país. De acordo com os membros da coordenadora, Evo Morales e seu partido, o Movimiento Al Socialismo (MAS), não a cumpriram. A nova entidade é formada por membros de organizações que apoiaram a candidatura do ex-cocalero, como, entre outros, a Central Operária Boliviana (COB); a Central Operária Departamental de
Oruro (COD); o Movimento do Chaco, a Coordenadora da Água de Cochabamba; o Plano 3000 de Santa Cruz, associações de juntas de vizinhos de El Alto, a Associação de Familiares Caídos pela Defesa do Gás (Asofac-DG); e o prefeito da cidade de Achacachi, famosa por abrigar os Ponchos Rojos, indígenas conhecidos por seu radicalismo e por dar amplo apoio a Evo.
Nacionalização De acordo com Miguel Subieta, dirigente da COD de Oruro, a formação da coordenadora é uma resposta ao abandono dos objetivos que o povo havia traçado nas revol-
tas contra os governos neoliberais de Lozada e Carlos Mesa. “Nesse momento, acordouse uma agenda de transformações estruturais no país, e que o governo que assumisse deveria levar adiante. Foi precisamente graças à luta dos trabalhadores e do povo que se levou Evo Morales à presidência”, afirma Subieta. No dia 16, em Huatajata, cidade às margens do lago Titicaca, a entidade realizou seu III Encontro Nacional. Na ocasião, os cerca de 120 presentes ratificaram suas demandas: “verdadeira” nacionalização dos hidrocarbonetos, reforma agrária, criação de empregos, modificação de
alguns pontos da nova Constituição, mudança no modelo econômico, entre outras. Para eles, o decreto de Evo Morales de 1º de maio de 2006 em relação aos hidrocarbonetos não foi uma nacionalização de fato, e sim uma repetição da lei nº 3.058, feita no governo Carlos Mesa e, portanto, de caráter neoliberal. Segundo a Coordenadora, as transnacionais continuam operando no país; apenas houve um aumento nos impostos.
Discussão No entanto, segundo o prefeito de Achacachi, Eugenio Rojas, ainda não há ruptura
total com o governo. “Temos que discutir com ele, colocar os argumentos, dizer saudavelmente. Não como a direita. Não queremos enfrentar o governo, este não é o momento. Não iremos começar muito rapidamente com bloqueios e algumas mobilizações”, diz. Carlos Rojas, ex-dirigente da Federação de Juntas Vicinais (Fejuve) de El Alto, concorda, mas afirma que o rompimento não está longe. “Ainda existe a possibilidade de o governo escutar a população. Ele tem que pensar, tomar ações e atender diretamente a essas demandas. Senão, a ruptura pode se dar a qualquer momento”, alerta. (IO)
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Os eleitos da imprensa dos EUA Christian Svanes Kolding/CC
PRIMÁRIAS Curioso país, os Estados Unidos. A começar pelas cores dos partidos e pelo posicionamento aberto dos jornais em prol de seus candidatos Memélia Moreira de Orlando (EUA) EM TODO o planeta, tanto no Ocidente quanto no Oriente, vermelho é a cor usada para comunistas, socialistas, progressistas, enfim, toda as tribos que se acomodam sob o rótulo de “esquerda”, da insurgência, do inconformismo; enquanto o azul é a cor dos que estão dentro da lei, da ordem estabelecida. O maniqueísmo cromático se estende do folklore, a exemplo da “Festa do Divino”, em Pirenópolis, quando os “mouros”, ou seja, os pagãos, se vestem de vermelho, e os cristãos, de azul; ao narcotráfico, em que o “Comando Vermelho” representa os fora-dalei, os narcotraficantes, e o “Comando Azul”, os policiais que pretendem fazer justiça com as próprias mãos. Aqui, não. Aqui, os conservadores, representados pelo Partido Republicano, carinhosamente chamado de GOP (Great Old Party, ou Velho Grande Partido) empunha bandeiras vermelhas, e o Partido Democrata – que deveria ser o partido das mudanças – orgulhosamente se veste de azul. Essa é uma das curiosidades. A outra, que até deveria ser copiada pela grande imprensa brasileira, diz respeito aos jornais. À medida que se aproxima a data das convenções partidárias, os grandes jornais anunciam suas preferências em manchetes de primeira página. E essas preferências são também um indicativo do favorito entre os eleitores. Outros jornais preferem se manifestar apenas depois da convenção de julho e tentam manter a velha e hipócrita “neutralidade jornalísitica”.
Jornalismo engajado Dentro desse espírito, dois grandes jornais já anunciaram seu candidato. O Chronicle Houston, da cidade de Houston, no Texas – um dos Estados mais racista dos EUA – publicou ontem na primeira página sua opção pelo candidato Barack Obama, pelo lado democrata, e John McCain, dos re-
Mesmo sem aderir explicitamente a Obama, os jornais de maior tiragem vêm fazendo campanha contra Hillary
publicanos. Antes desse diário de Houston, outro grande jornal, o Los Angeles Times, da Califórnia, abriu sua primeira página para informar seus leitores que a partir daí, o jornal estava empenhado na campanha de Obama. E até na Flórida, o circunspecto Orlando Sentinel já vem dando mostras de simpatia a Barack Obama que, contrariando as previsões dos próprios jornalistas, tem conquistado o voto dos chamados “hispânicos” (população latino-americana) que, na Flórida, são tradicionalmente refratários aos democratas.
Campanha por Obama Mas enquanto não decidem qual dos candidatos apoiar ainda durante as primárias, quase sem exceção, os jornais de maior tiragem vêm praticando uma pouco discreta campanha contra a senadora Hillary Clinton. Essa campanha se tornou tão evidente que, no fim de semana, alguns dos canais de televisão chegaram a promover mesas-redondas para discutir a questão, e a pergunta feita aos debatedores era: “A imprensa está levando Hillary à derrota?” A resposta foi dada pelo exmarqueteiro de Bill Clinton, jornalista Dick Morris, autor do livro Jogos do Poder.
Morris, que é hoje um conceituado comentarista de televisão, nega tal tendência. Diz ele que Obama é “um fenômeno de comunicação”, fato facilmente comprovável, afirmando ainda que o crescimento desse candidato deve-se não a seu carisma, mas “aos erros de Hillary Clinton. É ela quem vem abrindo espaço para sua própria derrota”. De fato, em sucessivas derrotas, embora tenha vencido na Califórnia, Estado que detém o maior número de delegados que, de fato, são os responsáveis pela eleição do presidente dos Estados Unidos, Hillary, que nunca foi de muitos sorrisos, vem aparecendo com cara de poucos amigos e, até agora, jamais se dignou a cumprimentar Barack Obama por suas vitórias – gesto considerado de extrema arrogância. Ao contrário da adversária, Obama não perde a oportunidade de parabenizála a cada conquista de mais delegados.
Negro e muçulmano Mas a escolha de um canditado não foi feita só pelos jornais. John McCain, o provável vencedor da convenção do Partido Republicano, também fez sua opção. Ele resolveu ignorar Hillary Clinton e só se dirige a Barack Oba-
À medida que se aproxima a data das convenções partidárias, os grandes jornais anunciam suas preferências em manchetes de primeira página. ma, inclusive quando participa dos debates. Esse comportamento leva analistas da política estadunidense a dizer que McCain prefere Obama porque seria mais fácil derrotá-lo. McCain parte do princípio de que os Estados Unidos jamais elegeriam um negro para a Casa Branca. Não um negro qualquer, como o reverendo Jessie Jackson, que disputou as primárias com Bill Clinton. Mas, além de negro, muçulmano. É uma aposta de risco. Pode funcionar, mas o fenômeno Obama está contaminando os votos até entre empedernidos eleitores republicanos. Alguns desses começam a gostar de Obama e até esquecem as duas características que são estigma num país que ainda não acordou para o fato de ser multiétnico.
Os “super-delegados” Mas enquanto a imprensa manifesta seus favoritismos, apostando em McCain e Obama, os “super-delegados” (aqueles que detêm o
direito de votar mais de uma vez porque têm mandato legislativo, são da executiva do partido etc.) estão cada vez mais silenciosos e, principalmente, indecisos. Um desses delegados é o ex-vice presidente Walter Mondale (foi vice de Jimmy Carter). Aos 80 anos, ele é um desses super-delegados muito respeitados no partido. Todos esperavam que ele manifestasse apoio imediato a Hillary Clinton, mas Mondale disse que espera a convenção e respeitará o resultado. Para os analistas, essa declaração significa apoio a Barack Obama. Outro super-delegado, Al Gore, que foi vice-presidente de Bill Clinton, também não quer se manifestar. Seu argumento para o silêncio é “evitar fraturas no partido”. Embora seu voto seja contado em favor de Hillary, já há dúvidas sobre a posição de Gore. Em declarações feitas recentemente, Gore, que em 2000 ganhou as eleições no voto popular, mas perdeu no voto de delegados, disse
que “o voto popular deve ser respeitado”. E o voto popular vem sendo canalizado para Obama. Mas, apesar disso, Al Gore se mantém mais silencioso do que de costume, escudando-se no fato de ser um dos grandes mediadores dentro do Partido Democrata e, por isso mesmo, prefere se mostrar neutro. Mas, pior do que a indecisão dos super-delegados, é a mudança de posição de alguns deles. Um desses é John Lewis, do Estado da Geórgia. Nas primárias, votou em Hillary Clinton, mas agora diz que sua tendência na convenção é apoiar Obama. Na mesma direção vai o deputado negro James E. Clyburn, da Carolina do Sul. Votou em Hillary, mas, ao ver seu eleitorado (ele é eleito com o voto dos negros) apoiar Obama, já disse que pode mudar de voto. Enfim, jornal não ganha eleição, como ficou evidente em 2006 no Brasil, mas ter apoio dos grandes veículos de circulação nacional (caso do Los Angeles Times) pode ser decisivo na Convenção. E, por saber disso, Hillary começa a dar pequenos sinais de nervosismo. Afinal de contas, há menos de três meses ela era a grande favorita, inclusive da chamada grande imprensa.
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Todo mês, 45 mil mortos no Congo GUERRA SURDA Relatório aponta a situação na República Democrática do Congo como a “pior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial”, com 5,4 milhões de vítimas desde 1998. Conflito é provocado pela espoliação dos recursos naturais por parte de corporações transnacionais e instituições multilaterais. Enquanto exploração de minérios rende lucros privados estratosféricos, 80% da população sobrevive com 30 centavos de dólares, ou menos, por dia. Jeca Taudte
Gustavo Barreto do Rio de Janeiro (RJ) RELATÓRIO DO International Rescue Committee (IRC), grupo que reúne pesquisadores e ativistas de diversos países, afirma que já passam de 45 mil o número mensal de mortes na República Democrá-tica do Congo (RDC), totalizando 5,4 milhões de vítimas desde 1998. Seria “a maior tragédia humanitária desde a Segunda Guerra Mundial”, com 1.500 mortos por dia. O número de vítimas é superior à população da Dinamarca e semelhante ao total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, centenas de corporações internacionais obtiveram lucros extraordinários por meio da extração e processamento de minerais congoleses. O IRC documenta, desde 2000, o impacto humanitário da guerra no Congo por meio de análises e pesquisas acerca da mortalidade no país. Este é o quinto estudo realizado pelo grupo sobre a RDC. O relatório afirma que menos de 10% do total de vítimas morreram devido à violência direta, em conflito. A maior parte é atribuída a males facilmente evitáveis e tratáveis, tais como malária, diarréia, pneumonia e má nutrição. O relatório aponta que recentes avanços políticos nas áreas de segurança e o aumento dos fundos humanitários para o país poderiam trazer esperança para a RDC finalmente deixar a crise pela qual atravessa. O relatório cobre o período de janeiro de 2006 a abril de 2007. A província de Kivu Norte experimentou uma particular escalada de violência ao final de 2006, resultando em um aumento na mortalidade local e 400 mil refugiados. O IRC aponta que a melhoria em apenas uma região, em relação à taxa de mortalidade, não conseguiu fazer frente ao aumento das mortes em Kivu Norte.
Soldados compram pedras de estanho de crianças e as revendem no mercado mundial. O preço do estanho praticamente dobrou de 2002 a 2006, atingindo 7 mil dólares a tonelada Violência em cadeia A cadeia de produção capitalista é, muitas vezes, esquecida pelos principais analistas internacionais. Uma exceção é a reportagem da edição de abril de 2006 da revista americana Fortune, do grupo CNN. Em matéria assinada pelo colaborador da revista Anjan Sundaram, destaca-se que a demanda pelo estanho vem principalmente da indústria global de eletrônicos. Na reportagem, Sundaram conta a história de Pascal Kasereka, um garoto de 16 anos que havia caminhado durante dois dias, desde uma mina em Walikale, a oeste do Congo, para vender a mercadoria – ou commodity, como gostam de chamar os operadores do mercado internacional e analistas da imprensa internacional. “Ouvi dizer que os americanos gostam dela”, avisa o menino. Soldados compram todas as pedras que Kasereka carrega por volta de 15 dólares. O preço, dentro do cenário de “livre mercado” idealizado pelos estadunidenses e ingleses, é determinado pelas armas apontadas para o garoto. Assim como Kasereka, outros garotos
Homem trabalha na extração de coltan, minério utilizado na fabricação de celulares; o Congo possui 80% das reservas mundiais
caem no chão exaustos, enquanto, a poucos passos dali, aqueles mesmos sacos serão vendidos por cinco vezes mais que o preço inicial. Os 15 dólares viram 350 no mercado mundial. Deixarão o país em aviões enferrujados, produzidos por grandes potências, como Estados Unidos, Rússia e China, e partirão para rotas conhecidas, como Ruanda e Uganda, até chegaram ao consumidor final – cidadãos de países desenvolvidos. A cassiterita, um mineral de estanho, é uma commodity disputada agora que as regulações ambientais forçaram a indústria global eletrônica a usar estanho em vez do tradicional chumbo nas placas de circuito e em outros componentes de informática. De 2002 a 2006, o preço do estanho praticamente dobrou – foi para aproximadamente 7 mil dólares a tonelada.
Estratégia Grandes empresas não admitem o uso de recursos naturais da República Democrática do Congo e de outros países em guerra porque não compram diretamente dos governos locais. No entanto, acabam por consumir indiretamente a maior parte destes minerais, extraídos em condições ilegais, imorais. Além disso, é conhecida a estratégia de muitas transnacionais de abrir fábricas em países onde as condições financeiras oferecem vantagens – incluindo países para onde os recursos do Congo são exportados, a exemplo de algumas nações e territórios asiáticos. “Quando se olha para a República Democrática do Congo (RDC), é preciso notar a importância das corporações internacionais atuando no país”, alerta Maurice Carney, da organização Amigos do Congo (Friends of Congo), ao comen-
Com este arranjo político de 2003, assinala Braeckman, alguns dos líderes mais desprezíveis chegaram ao poder na RDC, pois Kabila (filho) teve de aceitar ceder poder para manter sua autoridade. Foi criado então um “governo transitório”. Participou dele, por exemplo, Jean-Pierre Bemba, um ex-homem de negócios corrupto que passou a ocupar a Comissão de Economia e Finanças. É milionário, possuindo negócios em aviação civil e comunicações, entre outros. Seu pai, de quem herdou uma fortuna incalculável, ficou rico durante o governo corrupto do ditador Mobuto, que se sustentou no poder, de forma surpreendente, por 32 anos (19651997). Uma das irmãs de Bemba é casada com um dos filhos de Mobuto, que também foi candidato nas eleições presidenciais de 2006, a exemplo de Bemba. Outro integrante deste governo foi Azarias Ruberwa, um ex-rebelde aliado do Exército ruandês e responsável por distintos massacres. Ruberwa ocupou o cargo de chefe de Defesa e da Segurança. Em 2006, concorreu às eleições e perdeu.
O Congo possui 80% das reservas de coltan [combinado contendo columbita e tantalita], composto amplamente utilizado na fabricação de telefones celulares
tar o relatório para o programa de TV Democracy Now!, integrante da imprensa alternativa nos Estados Unidos.
“Estupro” de uma nação “Normalmente, quando falam deste país, as pessoas costumam falar dos estupros que ocorrem em escala assustadora. Basicamente, há dois tipos de estupros ocorrendo no país. Um é o estupro de mulheres e crianças. O outro é o estupro da terra, dos recursos naturais”, denuncia Carney. “O Congo tem uma grande quantidade de recursos naturais. Estamos falando aqui de 30% das reservas de cobalto do planeta, 10% das reservas de cobre, 15% das reservas de estanho e 80% das reservas de coltan [composto combinado contendo columbita e tantalita]. As transnacionais no Congo estão aumentando cada vez mais seus lucros, enquanto o povo está sofrendo enormemente”, completa. O composto coltan, por exemplo, é amplamente utilizado na fabricação de telefones celulares. O integrante da Amigos do Congo informou que a Orga-
nização das Nações Unidas (ONU) fez um relatório com dados, de 2001 a 2003, sobre as exportações ilegais de recursos naturais do Congo e apontou os nomes das empresas e detalhes das transações. “Há um número grande de corporações estadunidenses, todas nomeadas no relatório. Uma das empresas está ligada a um secretário da área de energia da administração Bush. Há também uma grande atuação de corporações canadenses. Nos últimos anos, quase todo primeiro-ministro canadense esteve envolvido na exploração das minas no Congo”, exemplificou, citando nominalmente chefes-deEstado canadenses, como os primeiro-ministros Joe Clark (1979-1980), Brian Mulroney (1984-1993) e Jean Chrétien (1993-2003). “Todos lucrando a partir dos recursos naturais do Congo, enquanto 80% da população sobrevive com 30 centavos de dólares, ou menos, por dia”, aponta Carney.
Kabila Ele completa afirmando que o atual presidente da RDC, Joseph Kabila, e seu Mvemba Phezo Dizolele
Meninos trabalham, até a exaustão, sob a mira de soldados
pai, Laurent Kabila, foram colocados no poder em 1997 pelas forças do Ocidente, com o objetivo de facilitar o acesso aos recursos naturais. “Essa é a principal razão para Kabila estar no poder”, ressalta. O International Crisis Group, organização independente que faz relatórios sobre crises humanitárias, realizou um estudo em 2007 no qual documenta o apoio de diversos embaixadores à vitória de Kabila. Carney credita este apoio ao fato de que eles sabiam que teriam, por meio de Kabila, acesso facilitado aos recursos naturais.
Desrespeito Em um relatório datado de 5 de julho de 2007, o International Crisis Group recomenda que os doadores do processo democrático de 2007 – França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Bélgica, África do Sul, União Européia e China, entre outros – apóiem os esforços do governo para administrar os recursos naturais, “incluindo solicitar às empresas destes países que cumpram as leis nacionais e as leis do Congo”, bem como “convenções internacionais de boas práticas econômicas”. Conforme pontua a jornalista Colette Braeckman, do periódico francês Le Monde Diplomatique, os acordos assinados, em 2003, na cidade sul-africana de Sun City para o fim oficial das hostilidades não tinham como objetivo principal democratizar a gestão de recursos – “mas sim acabar com a guerra, incitar as tropas estrangeiras a deixarem o território e permitir a substituição dos circuitos mafiosos, que operavam no curto prazo, por operadores econômicos mais estáveis, mas não necessariamente menos ávidos”. Neste contexto, se encaixa como uma luva a administração do Fundo Monetário Internacional, há décadas atuando no país.
Uma Assembléia Nacional não-eleita foi formada, e seus membros redigiram um Código Mineiro e um Código Florestal, com termos ditados pelo Banco Mundial, que havia injetado uma grande quantidade de recursos no país. “Os textos oferecem muitas vantagens aos operadores privados, ao mesmo tempo em que reduzem ao máximo suas obrigações. Foi assim, por exemplo, que o Banco Mundial comandou a reestruturação da Gécamines”, apontou Braeckman. A jornalista do Le Monde Diplomatique cita um exemplo que lembra os casos da era das privatizações, durante os governos do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso e de outros líderes neoliberais, na América Latina: “Antes que a empresa fosse ‘vendida por compartimentos’, os 10,5 mil trabalhadores foram demitidos e receberam indenizações que variaram entre 1,9 mil e 30 mil dólares. Mas essas quantias foram destinadas ao reembolso das dívidas, ou absorvidas pelas despesas de curto prazo [pagas pelo Estado]. Esses trabalhadores, agora privados de qualquer proteção da seguridade social, trabalham no setor informal. As firmas procuram substituí-los por máquinas, contratando apenas um mínimo de trabalhadores qualificados”. É o modelo econômico seguido por empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, para citar um exemplo mais próximo. Outras armas do capitalismo foram utilizadas: grandes isenções fiscais a sociedades mistas, por exemplo, por períodos de 15 a 30 anos. Estima-se que a soma dos impostos ficou, em média, no ano de 2004, em míseros 400 mil dólares. A MIBA, empresa então estatal de diamantes sediada em Kasai, foi saqueada em 45% de seus ativos, em benefício de uma empresa mista de Congo e Zimbábue (Sengamines). (www.fazendamedia.com)