Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 261
São Paulo, de 28 de fevereiro a 5 de março de 2008
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Lucas Lima
ENTREVISTA “Os cubanos desejam aprimorar o sistema socialista. Eles não querem que o futuro da ilha seja o presente de Honduras e Guatemala”, diz Frei Betto. Pág. 10
SEM FIDEL
Os rumos de Cuba O historiador Oswaldo Coggiola, a socióloga Vânia Bambirra e o jornalista cubano José Ramon Vidal analisam a eleição de Raúl Castro e os novos desafios da Revolução Cubana. Pág. 9
Ouvidor faz graves denúncias contra a atuação da Anatel Rede Globo é acusada de falsificar documentos O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidirá sobre o futuro da ação que contesta a transferência da TV Globo de São Paulo para a família do falecido empresário Roberto Marinho. Uma perícia realizada pelo Instituto Del Picchia de Documentoscopia comprovou que houve “falsificação grosseira” em cópia dos documentos apresentados por Marinho na compra da TV Paulista, hoje TV Globo de São
Paulo. As procurações, por exemplo, trazem o número do CIC em documentos datados de 1953 e 1964, quando esse tipo de identificação seria criado pelo governo brasileiro somente em 1969. Até o momento, a Rede Globo não apresentou a versão original desses documentos, alegando o extravio dos papéis. A assessoria de imprensa da empresa informou ao Brasil de Fato que aguarda a posição do STJ. Pág. 4
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) defende mais o lucro das empresas do que o cidadão. A constatação é do próprio ouvidor do órgão, Aristóteles dos Santos. Ele avalia que a Anatel não cumpriu vários dos objetivos que tinha quando foi criada, há 10 anos. A saber, universalizar o acesso à telefonia fixa, manter a concorrência no setor e conciliar
interesses entre as prestadoras, o Estado e os consumidores. Com relação à primeira meta, inclusive, desde a privatização da Telebrás, o que se viu foi o contrário: o Brasil passou a ter 2 milhões de telefones a menos. Em contraposição, nesses 10 anos foram constituindo-se monopólios regionais que se notabilizam pelas altas tarifas cobradas. Pág. 5 Agron Istrefi
Seguranças privados sofrem com precarização Para defender a propriedade privada, cresce no Brasil o mercado de segurança particular. O contingente de vigilantes já ultrapassa o número de soldados da Marinha, Exército e Aeronáutica, chegando a 1,2 milhões pessoas. Consideradas as empresas ilegais, esse número pode atingir os 2 milhões de trabalhadores. Por outro lado, os empregados do setor sofrem com a precarização, os baixos salários, a instabilidade e a alta periculosidade. Pág. 7
Brasil transforma dívida externa em interna O Banco Central do Brasil anunciou, no dia 21 de fevereiro, que os ativos financeiros internacionais do país ultrapassaram, pela primeira vez, o valor da dívida externa. Assim, o país passou para a condição de credor internacional. Governo e economistas ortodoxos comemoraram a notícia. No entanto,
especialistas ouvidos pela reportagem apontam que o processo que levou o Brasil a essa condição teve como causa e conseqüência a explosão do passivo interno, sendo que a compra de títulos da dívida interna é ainda mais rentável para os especuladores, se comparados com os papéis da externa. Pág. 3
Obra do PAC deve atingir mil famílias
Divulgação
Apoio estadunidense visa a exploração barata das reservas do mar Cáspio
Kosovo: o novo Iraque dos EUA CULTURA Onde os fracos não têm vez, filme ganhador do Oscar, traz para as telas a violência do mundo real. Pág. 8
Petróleo e Halliburton. As duas palavras que mais aparecem no noticiário sobre a guerra do Iraque também estão por trás da “independência” unilateral de Kosovo. Em busca de uma rota mais segura para obter petróleo, mais uma vez, os EUA incentivam a
divisão étnica para garantir seu abastecimento ao mesmo tempo que beneficiam a empresa ligada a Dick Cheney, vice-presidente dos EUA. Tudo se iniciou em 1995, quando, a pedido do Pentágono, a empresa de Cheney – então secretário de Defesa – fez um “estudo
sobre as alternativas energéticas ao petróleo iraquiano”. Através de um sistema de transporte mar-terramar seria possível a exploração barata das reservas do mar Cáspio. O único inconveniente do projeto: “o oleoduto devia passar por Kosovo”. Pág. 12
A ampliação do porto gaúcho de Rio Grande, no sudeste do Estado, deve atingir cerca de mil famílias de comunidades locais. Estas reclamam da falta de diálogo dos empreendedores da expansão e das alternativas apresentadas, como a falta de espaço para construir barracões aos pescadores e condições de infra-estrutura inferiores às dos bairros onde vivem atualmente. Previsto pelo PAC, o projeto também reverte em críticas ao governo federal. “Ninguém é contra o desenvolvimento econômico. Mas a discussão é como isso pode ser realizado de modo satisfatório à população”, diz pesquisadora Lúcia Maria Moraes. Pág. 6
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editorial “A revista moralista mostra uma lista dos pecados da vedete E tem jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar (...) É somente folhear e usar” (TomZé - “Parque industrial” - 1967) OS 200 ANOS – que ora comemoramos – da chegada ao Brasil da família real portuguesa, posta para correr da Europa por Napoleão I e escoltada até nossos portos seguros pela Marinha inglesa, suscitam reflexões sobre vários dos seus aspectos. O mais óbvio, sem dúvida, é a abertura dos portos a nações amigas (leia-se Inglaterra), anunciada ainda na escala feita em Salvador, antes mesmo da corte chegar ao seu destino, o Rio de Janeiro, cidade elevada repentinamente a capital do Reino Unido a Portugal e Algarve. Isto é, a capital do Império Português. Nos velhos livros escolares brasileiros, essa fuga ganha o título quase mágico de “A Transmigração da Família Real para o Brasil”, do mesmo modo que a debandada, alguns anos depois, das forças de Duque de Caxias – O Pacificador –, nos é apresentada pomposamente, pela historiografia oficial, como “A Heróica Retirada da Laguna”. Ah, o que são capazes de cons-
debate
Os 200 anos da Imprensa Régia Reprodução
Dona Maria I, a Louca; Dom João VI, o Regente; Sr. Roberto Marinho, o Acusado de Estelionato, e Sr. Roberto Civita, o Criador de Antas
truir as palavras! Na verdade subproduto do prolongamento e expansão da revolução burguesa na Europa, e das aspirações imperiais da França napoleônica que pretendia, através da Península Ibérica – e especialmente através de Portugal –, pôr de joelhos (e fazer rezar) a “Loira Albion”, a chegada da caravana marítima de reinóis lusos acabara por imprimir uma nova dinâmica à velha colônia, acelerando inclusive seu processo de independência monitorada por Londres, na medida dos seus interesses. Disso tudo, porém, nos diz respeito particularmente, neste momento, apenas um dos atos do príncipe regente João VI, que governava em substituição da senhora sua mãe, dona Maria I, acometida
de insanidade mental, o que lhe valeu desde então o epíteto de A Louca. Falamos da criação da Imprensa Régia, em 13 de maio de 1808, pouco depois do desembarque no Rio. Ainda que de caráter absolutamente oficial, a Imprensa Régia significou a primeira vez que se imprimiu legalmente no Brasil – o primeiro jornal privado legal e não submetido diretamente aos governantes ou ao Estado, em nosso país, só passará a existir três anos após a independência. Foi o Diário de Pernambuco, fundado em 1825. As elites sempre souberam da importância e do poder dos meios de comunicação. Por isso mesmo, logo depois da chegada dos portugueses, em abril de 1500, Lisboa garantiu para si alguns monopólios estratégicos na sua nova colônia. O
monopólio da terra, da exploração das riquezas, do comércio e da comunicação. No que diz respeito a esse último, todo e qualquer material estava proibido de ser impresso no país – sob pena, inclusive, de punição com morte dos infratores da norma. Ou seja, Portugal paria assim quadrigêmeos siameses, fantasmas que rondam a classe trabalhadora e o povo brasileiro desde sempre: a propriedade monoplizada da comunicação, da terra, da produção/exploração e do comércio, que depois do período da colônia, passarão a ser controladas inicialmente pelos capitais locais, para hoje – e desde há algum tempo – serem oligopolizadas e apropriadas pelo grande capital internacional. Mas, apesar de tudo, os trabalha-
crônica
Graciela Rodriguez e Fátima Mello
Desmatamento na Amazônia revela desastre do modelo agroexportador O RECORDE de aumento do desmatamento da floresta amazônica nos últimos quatro meses nos desafia a buscar respostas e responsabilidades. Depois de quatro anos da festejada queda no desmatamento, amargamos esta notícia dramática. No momento em que isto acontece, o ministro Celso Amorim viaja a Davos, Suíça, ao Foro Econômico Mundial, para encaminhar a proposta de retomada da Rodada de Doha, na Organização Mundial do Comercio (OMC), buscando novamente a ampliação do acesso aos mercados para os produtos agrícolas e pecuários que exportamos. Esta prioridade da política externa brasileira tem sido ainda mais reforçada com a tentativa de consolidar o Brasil como um dos principais fornecedores de agroenergia para o mundo, com promessas contundentes e altamente questionáveis de que isto não traria impactos para a Amazônia. Os meios de comunicação destacaram amplamente as divergências dentro do governo sobre onde deveriam recair as responsabilidades: na agricultura de larga escala, na pecuária, nas madeireiras ou na falta de fiscalização. Sabemos que todos estes motivos estão encadeados. De fato, é sabido que são os madeireiros os primeiros a chegarem, desmatando para deixar o terreno livre aos pecuaristas, produtores de soja e outros monocultivos, como a cana de açúcar para produção de etanol. Ao mesmo tempo, se insinuou na imprensa a inutilidade das políticas públicas diante das imposições do mercado, o que pode ser entendido como a intenção de se deixar na “produtividade a todo custo” e nas mãos do agronegócio as definições sobre o sentido que tomará o desenvolvimento do país. A perda de sete mil quilômetros quadrados de floresta no segundo semestre de 2007 não é mais que a mostra visível das conseqüências de um modelo de crescimento ancorado nos monocultivos, que busca alcançar recordes exportadores de soja, carne e outros produtos com preços conjunturalmente altos no mercado internacional. Se olharmos os dados dos Estados, veremos que Mato Grosso, campeão da produção de soja, foi o que mais desmatou (53,7% do total) seguido de Pará (17,8%) e de Rondônia (16%). Evidentemente isto se relaciona com o crescimento preponderante do agronegócio brasileiro, que tem sido realizado com base nos monocultivos em larga escala concentrados em poucas empresas, muitas delas transnacionais, contribuindo para aumentar a já elevada concentração fundiária, voltada para exportação e o ingresso de dólares que permitam
Gama
evitar as alardeadas crises financeiras. Aliás, crises criadas pelo capital financeiro especulativo, como a que agora se vive nos EUA e que contaminará em maior ou menor grau toda a economia mundial. Apesar das altas recentes, muito se conhece sobre a tendência de queda dos preços das commodities no longo prazo, e a necessidade de se produzir cada vez mais. O agronegócio segue este caminho, ainda que para isto tenha que expandir a área agricultável, inclusive entrando Amazônia adentro. Será que este é o modelo produtivo que pode levar o país ao desenvolvimento entendido como atendimento das necessidades das maiorias do país, e de estímulo à ampliação do mercado interno? Será que esse caminho é compatível com as metas de mudança de rumos frente ao aquecimento global? Ou será que reconheceremos este equívoco apenas quando a floresta já estiver consumida pelas queimadas? A Rodada de Doha da OMC justamente está paralisada devido às demandas de acesso ao mercado norte-americano e europeu para as exportações agrícolas dos países do Sul. Tanto os negociadores dos EUA como da União Européia alegam que já avançaram bastante na derrubada de barreiras agrícolas, e que agora aguardam em troca um sinal de boa vontade dos países do Sul, especialmente dos chamados emergentes como o Brasil, com uma maior abertura no comércio de serviços e de produtos industriais. A Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) questiona esta lógica que tem orientado as negociações de comércio internacional. Denunciamos o modelo agro-exportador de riquezas naturais e de produtos agro-pecuários produzidos em larga escala como fonte perversa do crescimento brasileiro. Defendemos que uma postura de proteção para os produtos industrializados nas negociações de NAMA, junto a propostas que impulsionem a ciência e a tecno-
logia, possa ampliar a produção de bens com valor agregado, buscando superar a exportação de produtos primários. Ao mesmo tempo, programas de defesa e promoção da agricultura familiar e camponesa que permitam garantir a soberania e segurança alimentar da população, somados a escolha de uma matriz energética diversificada voltada às necessidades da população do país e da região - e não orientada a atender o consumo insustentável dos países industrializados do norte – podem se tornar um caminho sólido para a redução dos índices de desmatamento. Num momento no qual o país tem mostrado que o crescimento nacional pode ser alavancado pelo desenvolvimento do mercado interno com distribuição de renda, se faz premente fortalecer políticas públicas que permitam um caminho ambiental e economicamente justo, capaz de promover a inclusão social e melhorar a qualidade de vida da população. Do mesmo modo, o Brasil tem um papel muito importante a cumprir na América do Sul, onde é chamado a fortalecer uma integração regional que vai tomando o rumo da consolidação das democracias, ao mesmo tempo em que busca superar as históricas desigualdades entre os países da região e no interior dos mesmos. As notícias sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, além de muito preocupantes, podem ser uma oportunidade para a sociedade brasileira debater a fundo os rumos e o sentido do desenvolvimento do nosso país. Graciela Rodriguez e Fátima Mello são da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)
dores e o povo brasileiro poderemos de algum modo comemorar pequenos avanços no dia dos 200 anos de fundação da Imprensa Régia: 1. A grande mídia brasileira é hoje a instituição nacional mais desmoralizada e menos confiável para amplos setores da população. 2. A principal revista de circulação nacional, a Veja (Editora Abril), com sua redação povoada por “nossas antas” e outros energúmenos, além de só ter crédito junto à ultradireita, está sendo alvo de absoluto achincalhamento, através de um dossiê do jornalista Luís Nassif, que invadiu e se expandiu via internet, não apenas Brasil afora, mas por todo mundo. 3. A Rede Globo (Organizações Globo), o poderoso império construído pelo senhor Roberto Marinho em troca de apoio e outros favores aos sucessivos governos da ditadura, além de reconhecida publicamente pela contumaz falsificacação das informações que transmite, é hoje acusada formalmente e conduzida às barras dos tribunais por estelionato. De acordo com seus acusadores, a poderosa Rede Globo falsificou documentação de compra da antiga TV Paulista (ler pág. 4). Aguardemos até o dia 13 de maio. Quem sabe nos estejam reservadas outras boas surpresas. Mas, em sendo tudo “briga de branco”, acabará tudo em pizza?
Marcelo Barros
O rosto jovem das novas transformações sociais Pesquisa com jovens sul-americanos mostra que emprego digno é aspiração não somente por questões econômicas, mas também pela dignidade “JUVENTUDE E integração sul-americana” é o título da pesquisa coordenada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pelo Instituo Polis em seis países do continente – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – entre março e dezembro de 2007. Mesmo para quem não viu todo o resultado desta pesquisa sobre a realidade da juventude no continente, o resumo que Maurício Santoro publicou no Le Monde Diplomatique Brasil (janeiro de 2008) nos traz boas notícias. A reportagem atesta que “nunca houve tantos jovens na América do Sul e que esta realidade deve perdurar até 2015” e “aposta na juventude para fortalecer a democracia nos diversos países”. Neste sentido, procura retratar a realidade dos rapazes e moças encontrados singularmente nas ruas, praças e escolas e também analisa 19 organizações juvenis que exprimem demandas de mudança social. No Brasil, foram entrevistados jovens cortadores de cana do interior de São Paulo e jovens do Fórum da juventude do Rio de Janeiro. Também foi retratado o movimento que se chamou “revolta do Bizu”, movimento realizado por jovens em Salvador, BA, pelo passe livre nos ônibus e ainda o movimento hip-hop de Caruaru, PE. Assim, a pesquisa analisou 19 organizações e movimentos juvenis nos seis países escolhidos, e as questões levantadas foram em relação à educação, trabalho, cultura e etnias. Certamente, as conclusões das pesquisas seriam outras se os entrevistadores e pesquisadores tivessem preferido ambientes onde a juventude é mais anônima. Espaços urbanos como favelas, sinucas, bares de periferia e bailes funk talvez dessem algumas respostas diversas daquelas que esta pesquisa colheu. Entretanto, se compreende a escolha dos locais e movimentos de pesquisa pelas perguntas a que se pretendiam responder: “Que papéis a juventude desempenha nos processos sociais de seus países e quais a expectativas e demandas dos jovens?”. A pesquisa revela que os jovens pleiteiam um emprego digno não somente por questões econômicas, mas também como direito de autonomia pessoal e dignidade. No que diz respeito à escola, a pesquisa constata muitas queixas com relação às leis educacionais e currículos que os governos impõem. Em todos os países pesquisados, os jovens revelaram descontentamento com relação à Escola como instituição desligada da vida de família e do bairro. Entretanto, foi no Chile que os jovens chegaram a formar a chamada “rebelião dos pingüins” contra os pressupostos da lei educacional. Recentemente, 800 mil jovens ocuparam colégios e foram às ruas em protesto contra a lei educacional do país, ainda elaborada na época da ditadura de Pinochet. A maioria manifestou grande interesse pela educação, mas grande decepção com a instituição escolar, muitas vezes, ainda pensada para as elites. Em todos os países, os entrevistados afirmaram que, na sociedade, o jovem é visto como risco e problema, mais propenso à irresponsabilidade e à violência do que o adulto. Também destacaram que este modo preconceituoso da sociedade olhar a juventude influi na consciência que o próprio jovem tem de si mesmo e também nas próprias organizações juvenis. Por isso, grupos e organizações que lidam com juventude tendem a desenvolver uma cultura própria. Em alguns países, se fortalece um elemento próprio do que se poderia chamar de “cultura jovem”, um modo de lidar com a vida a partir da sensibilidade e do estilo comum à juventude. Com muita razão, as religiões e tradições espirituais valorizam a ancestralidade e a contribuição imensa dos mais velhos. Entretanto, isso não exclui o reconhecimento de que, como dizem documentos do cristianismo antigo, inclusive a Regra Beneditina, muitas vezes, o Espírito Divino revela o que é melhor aos mais jovens. É importante apostar na juventude e abrir-se aos jovens com os quais convivemos, tanto por questão de justiça, como porque a juventude, além de ser idade, é estado de espírito e pode contagiar o mundo todo com a força da esperança e uma proposta profunda de renovação que todos nós precisamos. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 32 livros.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Salvador José Soares • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
Brasil vira credor, ortodoxos e especuladores comemoram Gama
ECONOMIA Mesmo tendo a quantia para quitar a dívida, país prefere investir em reservas; anúncio confortaria apenas especuladores
Hora de se endividar O economista José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, ao tomar conhecimento, teve uma postura contrastante em relação ao alarde do governo. “O anúncio representa que o país tem estabilidade econômica, o que é bom. Mas não vejo grandes vantagens nessa situação de credor internacional. Um país subdesenvolvido como o Brasil tem que ser devedor”, defende. Aliás, essa visão de José Carlos pode ser alentada por um pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que comemorou o resultado da economia e afirmou que, com essa nova condição, o país tem o direito de contrair novas dívidas. A afirmação de Lula foi na contramão das análises e “conselhos” dos comentaristas econômicos da imprensa corporativa. Uníssonos, os jornalistas econômicos afirmaram que o processo demonstrou a vitória da conduta ortodoxa na economia, iniciada pelo governo FHC e mantida por Lula, e que para zerar também a dívida interna seria necessário cortar a “gastança pública”, coisa que, segundo eles, o governo não faz.
Grau de investimento Após o anúncio da situação de país credor, o Brasil tornou-se um candidato mais forte para pleitear o grau de investimento, que é concedido por um grupo de agências de classificação de risco. Analistas de mercado confirmaram o que disse o governo: no patamar de credor, o país se aproxima do grau de investimento. O governo alega que esse selo atrairia mais capital para o Brasil. O ministro Guido Mantega chegou a afirmar que, com a mudança para credor externo, o país já atinge o grau de investimento. Para José Carlos de Assis, mesmo com o grau de investimento e sendo credor internacional, o Brasil continua vulnerável, pois não está imune a uma fuga de dólares. “Pode haver uma situação de crise externa em que os investidores queiram transformar os títulos da dívida interna em dólar. Há o risco de corrida cambial”, alerta. Sobre o grau de investimento, Assis acredita que ele pode beneficiar o empresariado brasileiro. “Isso é interessante sobretudo para as empresas privadas que tomam empréstimos lá fora. Com o grau de investimento, os juros para as empresas brasileiras ficam mais baixos”. Rodrigo Ávila, economista da Campanha pela Auditoria
O neoliberalismo criou dois mitos. Primeiro, que um país não pode ter dívidas. Segundo, que não se pode ter deficit público Cidadã da Dívida, afirma que o grau de investimento seria bom apenas para os credores da dívida, que ficariam mais seguros de que o país pagaria “religiosamente” os seus débitos. “O ideal seria que o país tivesse mais preocupação em atingir ‘graus de investimentos’ sociais, ao invés de se credenciar peran-
Deputado protocola CPI da dívida
te a especulação internacional”, indica. Sobre a busca de grau de investimento financeiro em detrimento do social, Ávila apresenta dados elucidativos. Em 2007, o país gastou R$ 237 bilhões com juros e amortizações da dívida, enquanto destinou R$ 40 bi para a Saúde e R$ 20 bi para a Educação.
Assinaturas necessárias já foram recolhidas, mas instalação irá depender de pressão popular, acredita Ivan Valente da Redação Investigar quem são os beneficiários do pagamento da dívida pública: esse é o principal objetivo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) proposta pelo deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). O parlamentar já conseguiu reunir 185 assinaturas, 14 a mais do que o necessário para protocolar a CPI. O deputado explica que um dos alvos da CPI é a lavagem de dinheiro ocasionada pelas transações internacionais. O deputado cita um artigo do economista Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no jornal Valor Econômico. No texto, ele afirma que os investimentos brasileiros no exterior, em 2007, alcançaram a cifra de 32 bilhões de dólares, ao mesmo tempo em que entraram 22 bilhões de dólares. “Desses 32 bilhões, mais da metade foi para paraísos fiscais. Esse dinheiro entra no anonimato e depois volta para o Brasil para comprar títulos
Henrique Meirelles, presidente do BC, e Guido mantega, ministro da Fazenda
Para mercado, títulos internos são melhores externos da Redação À primeira vista, o status de credor internacional tiraria a questão do pagamento da dívida da pauta de reivindicações da esquerda brasileira, que há décadas tem o tema como central em mobilizações e até em plebiscitos populares, como o de 2000, em que mais de 10 milhões de eleitores votaram pelo não pagamento da dívida enquanto não houvesse uma auditoria, como previsto na Constituição de 1988. Rodrigo Ávila, da Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, faz uma análise que dá subsídios para a esquerda continuar questionando a dívida, agora interna, já que ela traz ainda mais benefícios para a especulação do que os títulos da dívida externa. “Um ‘detalhe’ que o governo não divulga é que, quando compra reservas em dólares [que são as respon-
sáveis pelo status de credor], ele emite títulos da dívida interna. Por que o governo está acumulando reservas? Para beneficiar os especuladores, que vêm aqui para ganhar com os juros da dívida interna”, responde. O argumento do economista de que a dívida interna é um prato cheio para os especuladores é comprovado sob a luz dos números de 2007. A taxa básica de juros, a Selic, esteve em média a 13%, enquanto o Real teve uma valorização na ordem de 20%. Sendo assim, o especulador que investiu em títulos da dívida pública brasileira em 1° de janeiro de 2007, chegou ao fim do ano com um ganho de 33%. Com as quedas recordes do dólar, a situação torna-se ainda mais promissora para a especulação. Perdendo dinheiro Num período de dois anos (2006-2007), a dívida inter-
Quanto
1,4 trilhão
de reais é o valor da dívida interna brasileira na teve um crescimento de 40%, passando de R$ 1 trilhão para R$ 1,4 trilhão. “O que o Brasil acumulou de dívida interna é muito maior do que esse valor que o governo anunciou como excedente”, afirma Ávila. Outra crítica dele é que, com a compra de dólares, o Banco Central está perdendo dinheiro, já que a moeda estadunidense está em queda. O economista defende que seja feita uma auditoria da dívida pública que, segundo ele, já foi paga com “dinheiro, desemprego e recessão”. Ávila cita a alteração da taxa de juros dos títulos da dívida externa dos Estados Unidos, que foram reajustadas unilateralmente pelo país da América do Norte, o que seria ilegal. (RGT)
públicos. A CPI teria poder de polícia para investigar quem é beneficiado por esse modelo”, afirma Valente. Entre os motivos que levaram o parlamentar a propor a CPI está um dado levantado pelo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Márcio Pochmann. “Os beneficiados com esse sistema não passa de 0,004% da população. Os quatro maiores bancos tiveram um lucro líquido de R$ 23 bilhões e 38% do orçamento foi destinado para o pagamento da dívida. O país gira em torno disso”, observa. Pressão Apesar de já estar protocolada, a CPI da dívida não tem uma previsão de início. Por conta da questão dos cartões corporativos, a CPI que trata deste tema está na ordem do dia do Congresso. “Como essa questão (dos cartões corporativos) foi escandalizada e espetacularizada, a CPI da dívida está atrás na ‘fila’. Agora, vamos ter que contar com a pressão dos movimentos sociais para poder instalá-la”. (RGT)
Valter Campanato/ABr
EM CLIMA de comemoração, o Banco Central anunciou que, pela primeira vez, o Brasil deixou a “incômoda” posição de devedor para tornarse credor internacional. Isso porque os ativos financeiros do país no exterior, somados os setores público e privado, ultrapassaram os débitos em 6 bilhões de dólares. Hoje o Brasil tem uma reserva em dólares de US$ 187 bilhões, oriundas, sobretudo, do aumento das exportações e dos sucessivos recordes do superavit primário. O governo ressaltou que não pretende quitar a dívida, pois os juros seriam menores do que os excedentes podem render em aplicações. Com o anúncio, o BC tenta credenciar o Brasil como um país seguro financeiramente, diante de uma provável recessão internacional desencadeada pela crise dos Estados Unidos. Agora, a obsessão da área econômica do governo e daqueles ligados ao mercado financeiro é conquistar o famigerado grau de investimento – uma espécie de selo de qualidade concedido por agências de classificação de risco que aponta o país como um bom pagador e, portanto, um terreno firme para o capital internacional. O presidente do BC, Henrique Meirelles, ex-deputado federal pelo PSDB, em nota, manifestou seu otimismo: “É um marco expressivo de nossa história. Essa melhora significa que estamos superando gradativamente um longo período caracterizado por vulnerabilidades e crises”. O ministro da Fazenda Guido Mantega, foi na mesma linha. “É a primeira vez na história que somos credores. O Brasil sempre deveu para alguém desde 1500. É uma longa história de dívida. Agora temos um sinal de robustez econômica”, comemorou. Entretanto, longe de qualquer entusiasmo, especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato acreditam que a mudança tem mais importância para os investidores internacionais do que para a população. Além disso, apontam uma conseqüência onerosa do processo que levou o Brasil a “zerar” a dívida externa: o aumento vertiginoso da dívida interna (veja matéria abaixo).
O deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), autor de um pedido de CPI sobre a dívida (leia matéria abaixo), discorda. “O neoliberalismo criou dois mitos. Primeiro, que um país não pode ter dívidas. Segundo, que não se pode ter deficit público. Sendo que os Estados Unidos têm dívidas e deficit público enormes”, lembra.
Fabio Pozzebom/ABr
Renato Godoy de Toledo da Redação
O deputado federal Ivan Valente
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STJ vai decidir futuro de ação contra Globo
Reprodução
brasil
COMUNICAÇÃO Família Ortiz Monteiro afirma que Roberto Marinho fraudou documentos da transferência da antiga TV Paulista, atual TV Globo de São Paulo
O FUTURO da ação que contesta a transferência da TV Globo de São Paulo para a família do falecido empresário Roberto Marinho está nas mãos da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em dezembro de 2007, o órgão aceitou analisar o recurso apresentado pelo advogado da família Ortiz Monteiro, Luiz Nogueira. Ele contesta a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou prescrito o processo sobre a legalidade da transferência das ações, reconhecida pelo Ministério das Comunicações no ano de 1977, durante o regime militar. Uma decisão favorável à família Monteiro pode determinar que a Justiça avalie o mérito da ação, algo que não foi feito desde 2002, quando o processo começou. O principal argumento da família Monteiro é uma perícia realizada pelo Instituto Del Picchia, que atesta “falsificação grosseira” em cópia dos documentos apresentados por Marinho. As procurações, por exemplo, trazem o número do CIC – o atual CPF – quando esse tipo de identificação nem havia sido criado pelo governo brasileiro, o que só foi ocorrer em 1969 (veja reportagem ao lado). Até o momento, a Rede Globo não apresentou a versão original destes documentos. A empresa alega, no processo, que os papéis foram extraviados. “A transferência ocorreu com irregularidades, mediante diversos documentos mal redigidos e com imprecisões, sem qualquer registro nos órgãos competentes, sem firmas dos signatários reconhecidas, bem como um dos cedentes já seria falecido à época”, relata o advogado Nogueira no processo. A família Ortiz Monteiro, ex-acionista majoritária da então TV Paulista, vem tentando comprovar na Justiça a inexistência de ato jurídico na
compra da televisão. A questão envolve intrincadas negociações que remetem à época anterior ao regime militar no Brasil, período no qual a Rede Globo se tornou o maior conglomerado de comunicação da América do Sul, com apoio da ditadura.
Ações “mortas” Em 1950, os acionistas controladores da TV Paulista eram Oswaldo Ortiz Monteiro, ex-deputado federal, seu irmão Hernani, o cunhado Vicente da Costa e Vicente Bento Costa. Cinco anos depois, eles venderam 52% do capital total da TV Paulista para Victor Costa Petraglia, que morreu quando a transferência da emissora para seu nome ainda tramitava no extinto Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel). A empresa, no entanto, ficou sob o comando de Victor Costa Júnior, filho de Petraglia, mas as ações continuaram em nome dos ex-acionistas.
Se os ministros derrubarem a decisão do Tribunal, a Justiça terá de examinar a perícia apresentada pelo Instituto Del Picchia. E a Rede Globo será obrigada a comprovar a titularidade da emissora paulista, que responde por mais de 50% de seu faturamento Em 1964, Victor Costa Júnior vendeu a emissora para a família Marinho, que pagou cerca de US$ 2 milhões na época. Ocorre que, na prática, a TV Paulista nunca constou dos bens da família Petra-
glia. E Roberto Marinho teria comprado o controle da TV Paulista de quem, na verdade, não detinha as ações. É aí que entram as suspeitas de falsificações. O negócio foi registrado como se Roberto Marinho tivesse adquirido as ações diretamente da família Ortiz Monteiro. Recibos e procurações supostamente assinados pelos antigos acionistas foram entregues ao governo como comprovantes da operação. Oswaldo morreu em 1984 e nunca contestou a operação. Suas filhas ainda eram crianças à época. Anos após o falecimento de seu pai, a filha mais velha, Regina Ortiz Monteiro, deu início à busca dos documentos para verificar a veracidade dos mesmos e teria percebido que havia ilegalidades. Foi quando, em 2002, a família entrou com uma ação na 41ª Vara Cível do Rio de Janeiro contestando a existência de ato jurídico na transferência das ações. A questão, no entanto, não chegou a ser analisada, pois a Vara Cível e, depois, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro consideraram que o objeto estava prescrito, pois já havia passado mais de 20 anos do reconhecimento da transferência das ações para o nome das Organizações Globo. Mas a ação proposta pela família não era anulatória nem objetivava a invalidação de atos jurídicos, como decidido pela Justiça do Rio, mas alegava a inexistência do próprio ato jurídico. A família Ortiz Monteiro contestou a decisão e levou o caso para o STJ. Se os ministros da 4ª turma derrubarem a decisão do Tribunal, a Justiça terá de examinar a perícia apresentada pelo Instituto Del Picchia. E a Rede Globo será obrigada a comprovar a titularidade da emissora paulista, que responde por mais de 50% de seu faturamento. A assessoria de imprensa da Rede Globo informou ao Brasil de Fato que aguarda a posição do STJ.
Cronologia do imbróglio da TV Paulista, atual TV Globo de São Paulo 1952 – Inaugurada a TV Paulista 1955 – Acionistas majoritários vendem ações para Victor Costa Petraglia 1962 – Morre Hernani Monteiro, um dos acionistas majoritários 1964 – Morre Victor Costa Petraglia. A transferência das ações para seu nome ainda tramita no Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), e o controle da TV Paulista segue em nome dos ex-acionistas 1964 – O filho de Victor Costa Petraglia, Victor Costa Júnior, vende a emissora para a família Marinho sem ter os papéis em seu nome 1974-75 – Segundo laudo do Instituto Del Picchia, documentos falsos são redigidos para a aprovação da transferência das ações majoritárias da família Ortiz Monteiro para Roberto Marinho 1977 – Formalizada a transferência das ações majoritárias. Organizações Globo assumem o controle da TV Paulista 1984 – Morre Oswaldo Ortiz Monteiro 2002 – Família Ortiz Monteiro entra na Justiça com ação declaratória de inexistência de ato jurídico, com relação à transferência de ações dessa família com os Marinho. 2007 – Após a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ter julgado prescrito o processo contra a família Marinho, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou o recurso especial contra o acórdão
Segundo o laudo do Instituto Del Picchia, as datas das procurações são falsas e os documentos foram redigidos entre 1974 e 1975. Uma das comprovações da falsificação está no fato de que todas trazem o número do Cartão de Identificação do Contribuinte (CIC) de Borgerth – atual CPF –, sendo que esse sistema só foi criado pelo governo em 1969.
Os roletes da máquina estavam na mesma posição em todos os papéis (marcas acizentadas). Isso indicaria que os papéis foram elaborados todos de uma só vez, embora com datas diferentes: 1964, 1953 e 1975.
As falsificações são grosseiras, afirma perito Laudo do Instituto Del Picchia afirma que são falsos os recibos utilizados pela Rede Globo
Reprodução
Eduardo Sales de São Paulo
Uma análise do Instituto Del Picchia de Documentoscopia atesta que os documentos relacionados à transferência de ações para o grupo de Roberto Marinho são apócrifos (elaborados após a data da negociação) e montados, segundo laudo. Essa é a principal argumentação da família Ortiz Monteiro que contesta a venda da TV Paulista – atual Rede Globo de São Paulo – para as Organizações Globo. O laudo foi feito com base nos documentos apresentados pelos advogados que fizeram a defesa da Globo e constam da ação judicial. Tratamse de papéis fotocopiados; os originais teriam desaparecido, segundo os advogados da família Marinho. Um comportamento que levanta suspeitas. “Quem é que deveria ter a obrigação de ter os originais? Ela [Rede Globo] invoca a sua própria incúria para impedir perícia”, salienta ao Brasil de Fato Celso Mauro Ribeiro Del Picchia, perito responsável pelo laudo.
Evidências A família Ortiz Monteiro contesta a veracidade de quatro procurações de Oswaldo Ortiz Monteiro outorgadas ao ex-representante jurídico da família Marinho, Luiz Borgerth - uma de outubro de 1953, representando as ações de Hernani Monteiro, e as demais de dezembro de 64. Esses documentos dariam a ele poderes para transferir a terceiros as ações que estavam em nome do ex-Ortiz Monteiro, de Hernani Monteiro, Manoel Vicente da Costa e Manoel Bento da Costa.
Mas, segundo o laudo do Instituto Del Picchia, as datas das quatro procurações são falsas, e os documentos foram redigidos entre 1974 e 1975. Uma das comprovações da falsificação está no fato de que todas trazem o número do Cartão de Identificação do Contribuinte (CIC) de Borgerth – atual CPF –, sendo que esse sistema só foi criado pelo governo em 1969.
De acordo com o documentocopista, isso indica que os papéis foram elaborados todos de uma só vez, embora com datas diferentes: 1964, 1953 e 1975. “A existência do CIC nessas cópias é o que a gente chama de ‘anacronismo intransponível’, que prova a falsidade da data sem qualquer margem à dúvida”, afirma Celso Del Picchia. Ele ironiza: “Como é que poderia ter o CIC? Premonição?” Além disso, o representante de Marinho, Luiz Borgerth, só foi admitido na Globo em 1967, não podendo ter recebido uma procuração em 1953.
“Máquina do tempo” Outra evidência de falsificação apontada pelo laudo é que a máquina de datilografia utilizada nos documentos datados de 1953 e de
1964 era exatamente a mesma de que se valeu para produzir um outro, datado de 1975. Essa constatação levou o documentoscopista Celso Del Picchia a concluir que todos esses documentos falsos datariam de 1974 ou 1975. Ou seja, há fortes indícios de que todo o processo de transferência de ações se valeu com a elaboração de uma série de procurações e recibos que se estendiam de 1975 a 1953, dando plenos poderes ao funcionário de Marinho, Luis Eduardo Borgerth, de negociar com elas. De posse desses documentos, Borgerth pôde passar os 52% da TV Paulista para Marinho. “Mais uma prova da falsidade é que a máquina não existia na época”, argumenta Del Picchia. O equipamento, identificado na perícia como “Tecni 4”, só foi colocado em uso em 1965. O documentocopista aponta, ainda, que os roletes da máquina estavam na mesma posição em todos os papéis. Isso indicaria que os papéis foram elaborados todos de uma só vez, embora com datas diferentes: 1964, 1953 e 1975. Chama a atenção que, durante os vinte anos seguintes à compra da TV Paulista pela família Marinho até a morte de Oswaldo Junqueira Ortiz Monteiro, em 1984, o mesmo nunca contestou a operação de venda da Rádio TV Paulista. Quanto a esse fato, é dito que o negócio teria sido combinado entre Oswaldo, Marinho e Victor Júnior. “Se a venda se justifica ou não, isso não me interessa, mas os documentos são falsos”, afirma Celso Del Picchia. (ES)
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Anatel dificulta o acesso dos mais pobres à telefonia fixa DENÚNCIA Relatório de ouvidor diz que Agência não cumpriu nenhum dos objetivos que tinha na época em que foi criada José Cruz/ABr
Carlos Augusto Setti de Brasília (DF) A AGÊNCIA Nacional de Telecomunicações (Anatel), por lei, deveria agir para garantir o acesso de todos à telefonia fixa, manter a competitividade e a concorrência no setor, a preços razoáveis e com serviços de qualidade, e conciliar os interesses entre as prestadoras, o Estado e o consumidor/cidadão. Mas, com 10 anos de existência, ela não cumpriu esses objetivos. A conclusão consta do último relatório do próprio ouvidor da Anatel, Aristóteles dos Santos, que pode ser acessado no endereço www.anatel.gov.br (procurar a página da Ouvidoria dentro do item “Conheça a Anatel”). Santos acompanha o setor desde antes dos processo de descarte da Telebrás, na qualidade de integrante e ex-presidente da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel). Como ouvidor, a ele compete, por lei, elaborar apreciações críticas da atuação da Agência, encaminhando-as ao conselho diretor, ao conselho consultivo, ao Ministério das Comunicações, a outros órgãos do Poder Executivo e ao Congresso Nacional, fazendo-as publicar no Diário Oficial da União. De acordo com ele, a Agência possui “deficiências profundas”. A maior fragilidade é deixar de atender ou atender mal as queixas dos usuários de telefonia. “O imenso número de reclamações e dados que diuturnamente chegam à Assessoria de Relações com os Usuários (ARU), através da Central de Atendimentos da Anatel, se perdem num amontoado de arquivos eletrônicos”, avalia o relatório. Essa e outras distorções são apenas reflexo de como foi montado um sistema que abriu mão da necessária democratização do acesso às comunicações. O texto do ouvidor afirma, ainda, que o usuário dos serviços de telecomunicações continua sendo, no âmbito da Anatel, o elo que tem a menor influência sobre os destinos do setor. Isso porque toda a estrutura e toda a mentalidade da instituição foram formadas e estão voltadas para a garantia do lucro das operadoras de telefonia. À reportagem, Santos disse que, na época das privatizações, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o retorno do capital para as empresas – ou seja, o lucro – como forma de assegurar os investimentos no setor “foi trabalhado com tal intensidade, com tal volúpia, tanto pelo governo, quanto pela mídia”, que se tornou parte da cultura dos funcionários e da Anatel como um todo. “Isso criou uma deformação de origem”, conclui.
Assinatura básica O objetivo da universalização não foi alcançado justamente em função dessa mentalidade anti-cidadã. O Brasil possuía, antes das privatizações, cerca de 40 milhões de telefones. Atualmente, esse número foi reduzido para 38 milhões, fato que Santos chama de “desuniversalização” da telefonia fixa. Essa é uma das mais perversas formas que assumiu o virtual controle das operadoras sobre o funcionamento da Agência e um dos maiores atentados à democratização da telefonia fixa. O fator determinante para que a Anatel deixasse de cumprir o objetivo legal de ampliar a telefonia no país foi a manutenção do altíssimo valor da taxa de assinatura básica que, em alguns Estados, chega a R$ 40 por mês, sem o questionamento ou a intervenção da Agência.
Ronaldo Mota Sardenberg, presidente da Anatel: relatório aponta que instituição prioriza interesses das operadoras
Santos garante que cerca de 50% ou mais do faturamento das concessionárias venha da cobrança dessa taxa, o que, para ele, é uma outra grande distorção do modelo de privatização adotado pela administração FHC. A assinatura básica da telefonia fixa em 1998 era cerca de R$ 13, o que representa um reajuste de aproximadamente 200%, enquanto a inflação do período foi, segundo o IPCA, em torno de 83%. E esse valor de R$ 13 já havia sido realinhado pelo governo FHC às vésperas da privatização. “Apenas para efeito de raciocínio, de forma simplista, podemos imaginar que a assinatura básica de 40 milhões de acessos da telefonia fixa, ao custo mensal de R$ 40 (com impostos), retira da sociedade brasileira algo em torno de R$ 1,6 bilhão todo mês e algo em torno de R$ 20 bilhões ao ano”, diz o relatório. Ou seja, são recursos garantidos às empresas mesmo que elas deixem de prestar quaisquer serviços aos usuários. O ouvidor não é contrário à cobrança da assinatura básica, que deveria ser fixada em torno dos R$ 9, o equivalente “ao custo de um equipamento em desuso disponível para o cidadão”. E ela poderia ainda ser bem menor. Santos disse ter ouvido do deputado federal Jorge Bittar (PT-RJ), vindo recentemente da Inglaterra, que naquele país a assinatura básica tem o valor aproximado de R$ 3. Na opinião do ouvidor, a legislação brasileira assegura o direito ao lucro por parte dos investidores e preserva o legítimo papel da sociedade para o seu controle. “Por outro lado, não é sensato nem razoável admitir que a exploração de uma concessão do Estado possa ser objeto de enriquecimento tão acelerado e instrumento de concentração de riquezas por parte de quem quer que seja, em detrimento da sociedade”, critica. “É isso que faz com que o consumidor de baixa renda não tenha acesso à telefonia fixa e recorra ao celular, que tem um custo de utilização muito mais alto”, analisa Santos. Ele revelou que já esteve tratando dessa questão do alto valor da assinatura básica com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e com o próprio presidente Lula, que foram muito sensíveis à sua posição.
A formação de monopólios regionais Resultados desse processo foi a desindustrialização no que se refere à telefonia de Brasília (DF) Quanto à tão prometida competição entre as empresas quando a Telebrás foi privatizada, o que se verifica hoje, na visão do ouvidor da Anatel, é a existência de fato de monopólios regionais de telefonia fixa. O modelo previa a criação das chamadas “empresas-espelho”, que concorreriam com as operadoras nascidas do processo de pulverização da Telebrás. Tais empresas, no entanto, não foram constituídas, e hoje o cidadão está sob o tacão da empresa que opera na sua região, companhias que, inclusive, voltam a se juntar em grandes conglomerados.
Segundo Santos, ainda, houve uma suspeita benevolência do governo de então com os monopólios regionais que estavam sendo criados – e em grande parte, às custas do dinheiro público. Os investimentos internacionais no setor, ao longo do tempo, ficaram praticamente restritos à aquisição do controle acionário das concessionárias de telefonia fixa, que foram complementados por aportes de capital nacional. “Quanto aos investimentos subseqüentes, diz ele, utilizados, principalmente, na modernização e expansão da rede telefônica, os mesmos foram realizados, em sua grande maioria, a partir da geração de caixa
pela exploração dos serviços pelas concessionárias, e de empréstimos e financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”.
Sucatas Um dos resultados desse processo foi a desindustrialização do país no que se refere ao setor. “Quando o sistema estatal brasileiro de telecomunicações tinha apenas 12 milhões de terminais, o nosso parque industrial era constituído de mais de 200 empresas fornecendo produtos competitivos e atuando com tecnologia de ponta. O parque industrial do Brasil de hoje, mesmo com um mercado de mais de 150 milhões
de acessos em operação, sequer dispõe de 30 indústrias operando”, afirma o ouvidor. E há mais: o Brasil era o quarto país do mundo em produção de fibra ótica, com a vantagem de que era o único dos quatro que possuía jazidas de silício, matéria-prima para a fabricação dos cabos. O país contava, ainda, com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações, o CPqS, vinculado à Telebrás, que produziu importantes soluções tecnológicas brasileiras adaptadas ao país. Hoje, ele é uma fundação privada destituída de importância, já que as empresas importam tecnologia dos seus respectivos países de origem. (CAS)
Direito à comunicação e questão estratégica As telecomunicações devem estar no centro do projeto nacional brasileiro Sinclair Maia/Anatel
de Brasília (DF) “Qualquer país que pensa em se estruturar e se projetar no futuro para ser um país de ponta, de primeira linha, concorrendo com os grandes países do mundo em qualidade de vida, em emprego, em indústria, tem que estar de alguma forma dialogando, entendendo e gerando telecomunicações”, aponta o ouvidor da Anatel Aristóteles dos Santos. Para ele, “ou nos incluímos entre os países que estão determinados a reduzir as suas diferenças sociais, por meio de um programa de inclusão digital, ou desistimos de um projeto integrado de nação”. Segundo o ouvidor, dentro de alguns anos, com o avanço da democracia e com a participação cidadã, deverá ser inserido na nossa legislação o direito à comunicação como um direito inalienável, “daqueles que o Estado deve criar condições para existir”,
Aristóteles dos Santos, ouvidor da Anatel
e no mesmo nível do direito de ir e vir. Empresa pública Uma das formas de se assegurar esse direito será, na visão dele, a criação de uma
sólida empresa brasileira de telecomunicações, de alcance nacional, que preserve os interesses do país, produza pesquisa e tecnologia e promova o desenvolvimento da industria nacional. “Imagi-
nem uma empresa como a Petrobras, a diferença que ela faz para o nosso povo, para a nossa perspectiva, para os nossos filhos. Para o setor de telecomunicações, uma empresa assim é tão ou mais importante. O petróleo é finito. As telecomunicações, não”, reforça. Nesse aspecto, Santos questiona de forma contundente o modelo de desestatização da era FHC. “Acreditamos que, hoje, das pessoas que atuam no setor, ninguém mais tem dúvidas do equívoco cometido pelo governo da época ao retalhar o Sistema Telebrás, um sistema íntegro e compatível, para vendê-lo em fatias. Era um dos maiores sistemas de telecomunicações do mundo. Alertas não faltaram. Praticamente, ninguém no mundo fatiou as suas empresas, estatais ou não. E quem o fez – leia-se Estados Unidos –, já está desfazendo, arcando o Tesouro com os custos decorrentes. O Brasil, portanto, caminhou na contramão”, analisa. (CAS)
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Expansão de porto irá deslocar mil famílias João Paulo Ceglisk
PAC Relatório da Plataforma DhESC Brasil aponta uma série de problemas nas novas habitações Raquel Casiraghi Porto Alegre (RS) O PROJETO de reassentamento das mil famílias que serão removidas para a expansão do Porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, encontra resistência junto a organizações de direitos humanos. Um relatório da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DhESC Brasil) aponta uma série de problemas nas novas habitações, que vão desde a falta de diálogo com a população atingida até questões estruturais, como pouco espaço para construir barracões a pescadores. Esse é o caso dos 200 moradores de Barra Nova, no município de Rio Grande. A comunidade pesqueira será removida para a construção do terminal portuário de produtos da celulose, a fim de escoar a produção das empresas do setor que possuem plantio de eucalipto e acácia na região Sul. No projeto de reassentamento, as famílias serão realocadas na Barra Velha, uma comunidade pesqueira vizinha. No entanto, o relatório aponta que o local não tem espaço para comportar mais barcos e nem para construir novos barracões e trapiches. Além disso, o terreno é do próprio porto, fazendo com que a vila continue a ser refém de uma nova transferência, e sem uma garantia efetiva do seu direito à moradia. Orlanda Salgado, presidente da Associação de Pescadores da Barra Nova, revela que as famílias estão chateadas em deixar o local em que se estabeleceram há décadas, criaram laços e tiram seu sustento. A moradora ainda critica o projeto de reassentamento do porto. “Vai ser ruim para nós, pela questão da água. Tem outras coisas, como os trapiches, que eles querem que seja comunitário. No entanto, aqui cada um trabalha no seu, o que facilita o trabalho”, argumenta. A comunidade de Barra Nova existe há mais de 50 anos e dispõe de infra-estrutura de água encanada e esgoto, energia elétrica, telefone e transporte urbano. Ao todo, há na comunidade 18 galpões que trabalham com seis a dez barcos cada. Para o terreno do porto em Barra Velha, também serão removidas as 260 famílias de pescadores da Vila da Mangueira, que existe há 100 anos na região. A vila possui infra-estrutura básica, não dispondo somente de saneamento ambiental.
Comunidades urbanas Diferentemente das comunidades de pescadores a serem removidas, os bairros urbanos não possuem infra-estrutura de esgoto e água encanada. Do bairro Getúlio Vargas, que fica ao lado do muro do porto, devem ser realocadas 377 famílias para apartamentos que serão construídos no próprio bairro e na localidade de Santa Tereza. O motivo é que o porto pretende expandir a via portuária e o pátio dos contêineres. Também serão reassentadas famílias do bairro Santa Tereza para um outro terreno no próprio local, a fim de desenvolver o pólo naval. Em ambas as comunidades, a população trabalha e vive das movimentações no porto. Quando a Plataforma DhESC visitou as comunidades em Rio Grande, em 2007, foram constatados proble-
saiu na agência Tortura Mais de 60 cicatrizes recentes, feitas de ferro quente, marcam o trabalhador que denunciou trabalho escravo em uma fazenda de Paragominas, no Leste do Pará. De acordo com seu relato, ele foi torturado pelo patrão e por mais dois capangas quando reclamou das más condições de alimentação e do salário atrasado. Fugiu da fazenda no início de janeiro e, depois de dezenas de quilômetros a pé e de muitas caronas, conseguiu contar sua história à Superintendência do Trabalho e Emprego (SRTE) do Pará. Cerco ao Congresso, na Bolívia
mas de comunicação com o porto. Não estava claro o motivo do deslocamento, pois a população pensava que seria construído um dique seco ou um novo cais. Além disso, as famílias resistiam à idéia de morar em apartamentos, já que nos bairros em que habitam estão alojadas em casas. Também reclamavam do tamanho dos apartamentos, que eram pequenos e não comportavam toda a família dos trabalhadores. A superintendência do porto, através de sua assessoria de imprensa, argumenta que os moradores, principalmente os dos bairros Getúlio Vargas e Santa Tereza, serão os principais beneficiados com a mudança, já que ganharão habitações com toda a infraestrutura necessária. No entanto, a relatora nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana, Lúcia Maria Moraes, avalia que é necessário priorizar o direito de moradia às populações, que, sem condições, ocuparam um espaço que não era utilizado pelo porto. “Informa-se que as áreas repassadas ao porto são da união. No entanto, foram passadas há muitos anos e, quando essas famílias as ocuparam, o porto não falou nada. Nesse ponto, colocamos em debate a função social da propriedade”, argumenta.
Negociação A relatoria da Plataforma DhESC causou polêmica ao ser divulgada em Rio Grande. Em novembro, uma audiência pública na cidade envolvendo população local, superintendência do porto e governos municipal e federal, debateu o projeto de reassentamento e a pesquisa da Plataforma DhESC Brasil. Na ocasião, a relatoria de direitos humanos sugeriu que o porto explicitasse melhor o projeto à população afetada, a fim de resolver os problemas apontados nos reassentamentos. Desde então a superintendência portuária vem realizando reuniões nas quatro comunidades afetadas. No caso do bairro Getúlio Vargas, fi-
As principais organizações populares da Bolívia deram início, no dia 26 de fevereiro, a uma vigília em frente ao Congresso Nacional do país, localizado na Praça Murillo, em La Paz. Eles exigem que o Parlamento aprove a lei de convocação de dois referendos: o aprobatório da nova Constituição e o dirimidor, que decidirá a respeito de um dos artigos da nova Carta Magna – o que trata do limite ao tamanho dos latifúndios, que poderão ter até 5 mil ou 10 mil hectares.
Faixa de fronteira
Organizações apontam falhas em projeto de reassentamento
A ampliação
Apoio ao crime organizado
A expansão do Porto de Rio Grande deve remover cerca de mil famílias das comunidades pesqueiras Barra Nova e Vila Mangueira e dos bairros urbanos Getúlio Vargas e Santa Tereza. A estimativa é de que as obras de realocação iniciem ainda neste ano, com a construção dos apartamentos de dois quartos aos trabalhadores urbanos, financiado com recursos do PAC. Bairro Getúlio Vargas: cerca de 377 famílias serão deslocadas para dois terrenos, um que foi comprado no próprio bairro e outro, do próprio porto, que fica no bairro Santa Tereza. No local, o porto pretende determinar uma faixa de 50 metros após o muro para construir a via portuária (que hoje está na área interna do porto, o que dificulta a locomoção) e ampliar o pátio de contêineres. Bairro Santa Tereza: cerca de 154 famílias serão removidas para apartamentos a serem construídos no próprio bairro. O porto pretende desenvolver o pólo naval. Barra Nova: 200 famílias de pescadores serão removidas para um terreno do próprio porto na comunidade pesqueira de Barra Velha. No local, será implantado o terminal portuário dos produtos da celulose. Vila Mangueira: 260 famílias de pescadores serão removidas para um terreno do próprio porto na comunidade pesqueira de Barra Velha. No local, será implantado o terminal portuário dos produtos da celulose. cou acordado que os apartamentos terão dois quartos, de modo a acomodar toda a família dos trabalhadores, atendendo às reclamações dos moradores. A estimativa é de que essa obra se inicie ainda neste ano. Já a remoção dos pescadores de Barra Nova e da Vila Mangueira segue para um terreno do próprio porto em Barra Velha e não tem data para iniciar.
O porto afirma ainda ter feito uma parceria com a Unesco, em que irá investir R$ 4 milhões apoio social, como desenvolvimento local, educação e meio ambiente. Também afirma que já vem desenvolvendo projetos com as escolas nos bairros em que as famílias serão encaminhadas, e pretende investir em cooperativas, tanto de pescadores como de trabalho urbano.
Obras do PAC deveriam respeitar comunidades “Ninguém é contra o desenvolvimento econômico. Mas a discussão é como isso pode ser realizado de modo satisfatório à população”, diz pesquisadora de Porto Alegre (RS) A expansão do Porto de Rio Grande (RS) é uma das diversas obras de infra-estrutura que serão financiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal. O que as obras têm em comum é o grande impacto que gerarão nas comunidades locais e no meio ambiente. Na ampliação gaúcha, o PAC irá investir R$ 22 milhões. A obra também conta com contrapartidas da Prefeitura de Rio Grande e do próprio porto. Para a relatora nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana, Lúcia Maria Moraes, o caso das comunidades de Rio Grande mostram a necessidade de que
os poderes públicos escutem mais as reivindicações da população, principalmente em obras de grandes impactos. “Em Rio Grande, temos registros de famílias que moram até mais de 80 anos nessa região. Ou seja, há toda uma criação cultural e econômica naquela área. Infelizmente, se não forem ouvidos, vão ser removidos para uma área distante de onde moravam e perdem toda a característica. Ninguém é contra o desenvolvimento econômico. Mas é a discussão de como isso pode ser realizado de modo satisfatório à população”, diz. Outras obras de maior impacto estão previstas pelo PAC e são acusadas de não respeitarem as reivindicações da população local. A
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou no dia 21 de fevereiro a proposta de emenda constitucional (PEC) que reduz a faixa de fronteira de 150 km para 50km. O projeto foi criado em 2006 pelo senador gaúcho Sérgio Zambiasi (PTB/RS) e prevê a diminuição da largura da faixa do Mato Grosso do Sul até o Rio Grande do Sul. Na proposta, o senador também defendia a alteração da faixa na região Amazônica, o que foi descartado pelos demais parlamentares. Agora, a PEC segue para votação no plenário e, depois, para a Câmara dos Deputados.
mais polêmica é a das hidrelétricas do Rio Madeira, em Rondônia, que prevêem o deslocamento de mais de três mil pessoas e o alagamento da fauna, flora e até mesmo de cidades. A expansão do Porto de Rio Grande inclui, além do terminal portuário para produtos da celulose, a construção de uma via portuária e investimento no desenvolvimento do pólo naval. Atualmente, o porto possui uma área de 200 hectares e é o principal ponto de escoamento e de exportação do Rio Grande do Sul. Em 2007, ocupou o primeiro lugar no ranking dos portos exportadores de soja no país, embarcando 5.366.608 toneladas – seguido pelos portos de Santos (SP) e de Paranaguá (PR). (RC)
Em artigo, Michel Chossudovsky aponta que os Estados Unidos, a União Européia e as Nações Unidas (ONU) estão apoiando um governo, no Kosovo, encabeçado por um reconhecido criminoso, o primeiro-ministro Hashim Thaci. “Esse cargo foi criado pelo governo provisório aprovado pela Missão Interina de Administração das Nações Unidas em Kosovo (UNMIK, na sigla em inglês)”, pontua. O pesquisador também sublinha que a ONU não só violou o direito internacional ao construir o cenário para um governo do Kosovo “independente”, como também colocou no governo membros de um sindicato do crime.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Tráfico acadêmico A Finatec, fundação ligada à Universidade de Brasília que gastou R$ 470 mil para decorar o apartamento do reitor, é conhecida há vários anos como excelente prestadora de serviços para universidades privadas, especialmente na orientação de projetos para a captação de recursos e a facilitação na tramitação desses projetos nos órgãos públicos. Usa o nome da UnB para transferir dinheiro público para os bolsos privados. Unidade empresarial A Associação Nacional dos Jornais articulou ampla reação de protesto contra as ações movidas pela Igreja Universal do Reino de Deus contra o jornal Folha de S.Paulo e, posteriormente, contra os jornais Extra, do Rio de Janeiro, e A Tarde, da Bahia. O bloco da imprensa empresarial age sempre fechado com a máxima dos mosqueteiros do rei: “Um por todos e todos por um”. Não aceitam nunca nem crítica contra eles. Malandragem tucana A Receita Federal identificou várias empresas que forneceram notas fiscais frias para a campanha eleitoral do governador José Serra (PSDB/SP). Agora a tucanagem alega que a prestação de contas foi feita e que os candidatos do partido não têm culpa se alguém forneceu notas frias. Acontece que tais empresas fraudulentas e sonegadoras são de pessoas próximas ao PSDB. Como fica? Puro nepotismo Termina no dia 9 de abril o prazo que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo estabeleceu para que os próprios conselheiros demitam seus filhos e irmãos que trabalham – sem concurso – para o órgão, com salários de R$12 mil mensais líquidos cada um. Um único conselheiro tem cinco filhos nomeados. Isso é que é exemplo de fiscalização do dinheiro público – função do TCE. Bolo dividido O jornal da Associação Nacional de Jornais, entidade que reúne a fina flor da imprensa burguesa, registrou na edição de fevereiro o seguinte: “Os diretores comerciais dos jornais filiados à ANJ, presentes à
reunião com representantes da Secom, consideraram a iniciativa extremamente útil e proveitosa”. Na verdade, ficou acertado que o governo federal vai gastar mais de R$26 milhões de publicidade só nos jornais. Oba!
Triste lembrança Responsável pela farsa no inquérito do Rio-Centro, em 1981, quando um sargento e um capitão se preparavam para praticar um atentado num show musical e explodiram dentro de um carro Puma, o general Job Lorena morreu recentemente no ostracismo. Na época do crime, ainda na ditadura, ele apresentou a mentirosa versão de que os dois paramilitares tinham sido vítimas de radicais de esquerda. Triste fim! Lavagem cerebral Levantamento da Agência Nacional do Cinema nos principais canais da TV aberta privada (Globo, Record, SBT, Bandeirantes) concluiu que, dos 1.922 filmes de longa metragem exibidos no período de um ano, apenas 5,6% eram de produção nacional. Na TV paga (cabo e satélite), a situação é bem pior: somente 0,6% dos filmes foram produzidos no Brasil. É um verdadeiro massacre da indústria cultural estrangeira. Dívida manipulada O economista Rodrigo Vieira de Ávila, da Campanha Auditoria Cidadã da Dívida, contesta a suposta superação da dívida externa. Para ele, tudo não passa de manipulação, já que o Banco Central teve prejuízo de R$ 58,5 bilhões na compra de dólares e as filiais das transnacionais mais que dobraram sua dívida (US$ 42 bilhões) com suas matrizes no exterior. A dívida interna cresceu 40% em dois anos.
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Vigilantes: condição a ser superada PRIVATIZAÇÃO Às custas de trabalho precarizado, segurança particular cresce no Brasil confundindo noção de público e privado credito
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Pedro Carrano de Curitiba (PR) NO COMEÇO de fevereiro, durante três dias, ninguém entrava ou saía pelos portões de três das cinco empresas de segurança particular de Curitiba (PR), especializadas no transporte de valores entre bancos, supermercados etc. Houve piquete dos transportistas de valores, paralisados na capital e noutras cidades do Paraná. Os trabalhadores buscavam reajuste salarial de 6%, fim do banco de horas e pagamento de horas-extras. Afinal, a jornada de trabalho ultrapassava as 8 horas legais, sem compensação salarial. Em meio às demandas do sindicato da categoria, um sinal importante: o de que esses trabalhadores podem paralisar uma circulação de capital estimada em R$ 50 milhões diários, só em Curitiba. “As empresas de transporte privado transporta toda a riqueza do nosso país. Paramos por três dias os serviços e já causamos ‘problema’. Isso porque, legalmente, só os vigilantes de transporte de valores podem transportar o dinheiro”, analisa João Soares, presidente do Sindicato dos Vigilantes de Curitiba e Região Metropolitana (SindVigilantes), filiado à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Durante uma paralisação, analisa Soares, a tendência é que supermercados e grandes redes tenham de fechar os serviços. Os caixas de bancos passam a ter filas enormes. Uma janela para a indignação ameaça a calmaria. “Os patrões tiveram que ceder frente à ameaça de caos na sociedade”, comenta Soares. Durante a greve, os transportistas de valores, normalmente associados apenas à defesa do patrimônio dos bancos, puderam denunciar suas condições de trabalho desgastantes. “Temos horário para entrar e não sabemos a que horas saímos (...) vivemos em tensão de risco, sempre atentos a tentativas de assalto, querendo ou não, te dá um certo cansaço“, conta o motorista Cláudio*, presente no piquete da greve.
Insegurança O perfil do profissional mudou desde a origem des-
Vigilante caminha com cão; ao lado, carro com escolta armada de empresa de segurança privada
Quanto
18 mil vigilantes
regularizados no Paraná, contra 60 mil que não estão
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seguranças foram mortos, no Paraná, em 2007
2,5%
dos vigilantes são mulheres se tipo de trabalho. “O jovem que não passa na Universidade Federal tem de trabalhar onde ganha mais, para pagar os estudos, por conta disso o perfil está mudando”, reflete Soares. A profissão foi regularizada em 1983 – uma atividade surgida na repressão aos grupos político-militares contrários à ditadura militar. Em Curitiba, os 600 transportistas são profissionais preparados. Destoam da precarização dos outros setores
da categoria (veja quadro), que é uma situação comum na figura do vigilante patrimonial. Fábio*, por exemplo, é segurança há três anos, trabalha para uma empresa legalmente constituída e reconhece a desunião dos vigilantes. “Existe muito medo do desemprego. Eles te demitem por qualquer coisa”. Fábio se encaixa no perfil fornecido pelo sindicato. Afinal, está na profissão devido ao salário de R$ 890 e cursa uma faculdade particular para se ver livre da atual atividade. Ele conta que o perigo existe e está mal calculado. O de risco de vida é R$ 67, ou 8% do salário.
Violência Situação mais dura vive a imensa maioria dos vigilantes patrimoniais a serviço de empresas clandestinas, ou mesmo empresas com firma reconhecida atuando de
forma ilegal. Trabalham sem regulamentação e, na falta de preparo, se envolvem em tragédias. Situação visível na cidade e no campo, mas que chamou a atenção da opinião pública no segundo semestre de 2007, quando o militante Keno, da Via Campesina, e o segurança
Fábio Ferreira foram mortos em um ataque de 40 homens armados da empresa NF Segurança, em Santa Tereza do Oeste (PR) – apenas sete deles eram registrados. Em Curitiba, o jovem de 19 anos Bruno Strobel foi torturado e assassinado por agentes da empresa Centronic,
que fornece monitoramento e vigilância para incontáveis estabelecimentos da cidade. A repressão é cotidiana, mas tomou as páginas da mídia: dessa vez, por engano, o jovem morto era filho de jornalista. *os entrevistados preferem não identificar o nome.
Setores da categoria dos vigilantes: Transportista de Valores: Entre a categoria, é o setor com o maior índice de regularização, as melhores taxas salariais (R$ 1.490 e 30% de adicional de risco), além de maior influência no tecido social. Maior risco de vida. Segurança Patrimonial: Setor que apresenta o maior número de trabalhadores atuando sob o mando de empresas clandestinas. No Brasil, a cada segurança com carteira assinada, existem três sem contrato, segundo o SindVigilantes. Escolta pessoal armada e segurança pessoal: No caso do primeiro, o setor está envolvido em situações de risco, escoltando empresas de transporte. Ambos os setores possuem adicional de risco de 30%.
Precarização do trabalho, ilegalidade, insegurança e falta de preparo
A construção do Estado de direito privado
Para defender a propriedade privada, vida de seguranças particulares oscila entre a clandestinidade, o risco de vida e grande contingente à serviço do mercado
Contingente de seguranças ultrapassa o número de soldados da Marinha, Exército e Aeronáutica
de Curitiba (PR) Osvaldo é atendente numa das lojas de comércio Casa China, no centro de Curitiba. Ele é, ao mesmo tempo, o encarregado de vigiar as tentativas de furto. Iranir, por sua vez, vende sua força de trabalho por R$ 540 e mais o vale-alimentação, em um shopping popular de venda de roupas. Embora registrado como “fiscal”, por empresa terceirizada, Iranir sabe que “na hora do aperto” a responsabilidade está com ele. Noutra loja de tecidos, de 2 mil metros quadrados, visitada pelo Brasil de Fato, os seguranças estão disfarçados entre os atendentes – apesar de terceirizados por uma empresa de segurança. Estão prontos a usar a arma até fora do estabelecimento, garante a gerente da casa. Na verdade, o segurança deveria atuar apenas internamente e, uma vez fora do local de proteção, estar desarmado, mesmo em caso de deslocamento, explica João
Soares, do SindVigilantes. Algo que destoa da prática dos agentes móveis vistos, hoje em dia, em bairros da elite ou nas ruas centrais, madrugada adentro. Trata-se de uma realidade incorporada, consentida. É habitual, nos comércios e residências, o selo de empresas de monitoramento como Centronic, Metronic etc., companhias que vendem os equipamentos, mas não poderiam dar o pronto atendimento, ultrapassando o papel da segurança pública. Em 2003 e 2005, a Centronic foi alvo de críticas do sindicato. Ela possuía mais de 100 trabalhadores atuando sem registro. Seus agentes táticos móveis andam armados, conforme denúncia do sindicato. Empresas clandestinas colaboram na criação de verdadeiras milícias privadas no campo e nas periferias urbanas. Os números das empresas do setor assombram aquelas que têm CNPJ: são, em Curitiba, 68 legalizadas, enquanto 150 estão na ilegalidade. No esquecido bairro do Tatuquara, divisa da cidade, a
empresa clandestina Impacto mobilizava carros para a ronda na vizinhança. Sem qualquer justificativa, a empresa foi responsável pelo assassinato de um pintor, morador local.
Público e privado O professor de filosofia Martin Mongin, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique (Brasil) de janeiro, explica que o vigilante “tende a transformar o menor sobressalto, o menor evento em um ato de delinqüência”, referindo-se ao controle exercido pelos vigilantes nos espaços onde atuam, em nome da proteção das mercadorias. O sociólogo Pedro Bodê, coordenador do grupo de estudos de violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que o crescimento do mercado da segurança privada “revela a gênese do Estado brasileiro desde a sua formação”, e não está dissociado disso. O objetivo, tanto de uma empresa de segurança, como do Estado, nessa área, é a proteção de direitos privados.
A idéia de público no Brasil é vaga – afirma Bodê – associada ao Estado que, no fundo, é o defensor dos interesses privados, da propriedade privada, e não de interesses públicos. “Estado e governo não coincidem com o público, não existe aqui o lugar do público. Segurança particular e privada são duas frentes de uma mesma qualidade”, comenta, citando o exemplo de membros da corporação policial trabalhando em empresas de seguranças. O sociólogo acompanhou um grupo de jovens ligados ao movimento hip-hop, parte deles afrodescendentes, impedidos de entrar no Shopping Curitiba. Eram mais de 30 jovens, e a empresa de segurança, em pouco tempo, acionou cinco viaturas policiais. A atuação foi conjunta, em favor da discriminação. “Não há divisão entre segurança pública e privada. São estruturadas por uma mesma lógica, que é a da proteção do patrimônio em vez da proteção da vida”, comenta. (PC)
de Curitiba (PR) O número de seguranças privados ultrapassa o contingente da Marinha e das polícias Civil e Militar juntos. O Exército, por exemplo, conta com 190 mil pessoas, enquanto o “batalhão” de seguranças particulares é de 1,2 milhão. Se for levada em conta a “tropa” pobre e precarizada de trabalhadores de empresas ilegais, o número chega a 2 milhões de pessoas “sem nenhum controle”, como afirma João Soares, do SindVigilantes. As fronteiras entre o público e o privado foram violadas nesse debate. Quase todas as empresas especializadas em segurança privada são dirigidas por quadros militares, para facilitar o trâmite na obtenção de armamento e munição, informa o SindVigilantes. Além disso, policiais militares fazem “bicos” nos horários de folga para empresas de segurança, ou mesmo abandonam a corporação e entram na empresa. Assim, o dono do capital se exime de recolher impostos e não tem encargos com o curso de capacitação. Soares conta que um projeto de lei (PL 168, de Tasso Jereissati - PSDB/CE) encabeçado pelo delegado de polícia federal Adelar Anderle, coordenador-geral da comissão consultiva de assuntos de segurança privada no Brasil, é um dos tópicos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a segurança. O projeto quer aproveitar o vigilante particular para ser informante nos seus locais de trabalho ou em áreas onde a Polícia Federal não tem acesso, como as favelas. “Vai se tornar o chamado X9 (informante da polícia)”, comenta Soares. (PC)
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Algumas gotas de otimismo
dos irmãos Coen CINEMA Vencedor do Oscar deste ano (melhor filme, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante) trata o tema da violência Romero Venâncio OS IRMÃOS Joel e Ethan Coen são conhecidos no cinema estadunidense e mundial por trabalhar temas limites e que têm uma aproximação e uma releitura do estilo noir dos filmes dos EUA dos anos 1940: assassinatos em série, atmosfera tenebrosa, figuras psicóticas, sangue à vontade e suspense. “Gosto de sangue” (1984), “Arizona nunca mais” (1986), “Na roda da fortuna” (1994) e “Fargo” (1995) são exemplos de uma perspectiva muito própria de levar para as telas alguns questionamentos que destoam do arrumado e previsível “cinema comercial”. Dessa vez, acredito que se superaram. Em “No country for old men” (que tem como título sugestivo no Brasil “Onde os fracos não têm vez”), os Coen fizeram um “filme policial” de intensa dramaticidade e com personagens sui generis, como os de Javier Bardem (Oscar de ator coadjuvante) e Tommy Lee Jones, que no fim acabam por desconstruir a concepção de “filme policial” no estilo estadunidense comercial. A película é ambientada no Texas, já na fronteira com o México, na década de 1980. Tem enredo aparentemente simples: trata-se de um caçador que encontra uma série de corpos assassinados pelo tráfico e, ao lado de um deles,
uma maleta cheia de dólares. Ao levar a maleta, é perseguido implacavelmente por um assassino psicótico, num jogo de gato e rato. Até aí, nenhuma novidade para o cinema dos EUA. Porém, a trama é mais rica do que uma brevíssima sinopse. O filme se inicia com uma voz, uma espécie de narrador, refletindo sobre as mudanças que a região do Texas vive naquele momento. Sabemos de imediato que a voz é de um xerife melancólico que vê a violência ganhar proporções grandiosas e com requinte de crueldade. Saudosamente, lembra quando policiais trabalhavam sem armas e com um baixo índice de criminalidade. A grande sacada do filme está na forma de narrativa do protagonista vivido por Lee Jones. Um policial em fim de carreira e profundamente melancólico com sua impotência diante da “tempestade” que se avizinha, a saber, um temporal de violência gratuita e da mais completa desconsideração pela vida humana. Na fronteira Texas/México, a vida de um ser humano vale tanto quanto a de um cachorro (presença marcante no filme, os cachorros vivem as conseqüências da brutalidade humana sem compaixão). Policial conhece o assassino psicótico e sabe da sua capacidade de perseguição por dinheiro e de sua conduta mafiosa, mas já não tem nenhu-
ma força para persegui-lo como deveria. A velhice o alcança da maneira mais triste possível e num momento em que se desencadeia um tipo de violência incontrolável. Um detalhe importante: a geografia se confunde com a narrativa. O tempo inteiro o deserto acompanha os personagens e é o espaço onde acontece a luta encarniçada pela sobrevivência. Voltando à chocante cena inicial – em que o caçador encontra vários homens mortos e um sobrevivente pedindo água e para fechar a porta de uma caminhonete, com medo de lobos – ela indica um rastro de morte e resistência que será a tônica da película dos irmãos Coen. Raríssimas vezes percebe-se alguém rindo no filme. A marca é a seriedade e a tristeza de personagens completamente impotentes perante um sistema implacável com os mais fracos. Vendedores, balconistas, caixas de supermercado (profissão da esposa do caçador protagonista), funcionários de hotel desfilam no filme com rostos marcados pela escravidão da luz sem misericórdia de quem vive o cotidiano de um processo modernizador que jamais levará em conta a vida humana. Como muito bem afirma a personagem Carla Jean: “Estou acostumada com muita coisa. Trabalho num supermercado”. Frase marcante para situar o lugar de pes-
Cartaz do filme Onde os fracos não têm vez
No filme dos irmãos Coen estamos só no começo de um terror que veio para ficar e é mais real do que imaginamos, tendo sua resolução no lugar de sempre, onde os fortes de sempre têm, só eles, sua vez soas que “não podem parar o que está vindo” e que assistem a tudo numa perplexidade sem fim e numa resignação irritante. Os irmãos conseguem um feito cinematográfico interessante: articular a narrativa em três partes que correspondem a três focos narrativos, em que a trama está toda articulada e os personagens, intrincados numa perseguição que indica toda a ação da película. O primeiro foco é o personagem Llewelyn Moss, um caçador do deserto texano que encontra a mala de dinheiro depois de uma chacina cometida contra um grupo de traficantes (imagina-se de imediato uma guerra de bandidos disputando a venda de drogas). Moss e o dinheiro sofreram uma perseguição frenética de um segundo personagem, que corresponde a um segundo foco narrativo: Anton Chigurh, o matador psicopa-
ta que joga com uma moeda para saber se mata qualquer um que encontre pela frente. O terceiro e mais importante foco narrativo é o do xerife Ed Tom Bell. Pela narrativa melancólica do xerife, é possível entender o processo de mutação em que vive o Oeste estadunidense. O Oeste de John Wayne não existe mais (se é que existiu algum dia fora das lentes cinematográficas) e os “violentos índios” peles vermelhas são brincadeira de adolescentes, perto de um crime organizado que espalha um tipo de horror sem precedentes contra uma população impotente e sem rumo num deserto imenso e sob um sol inclemente... A forma como Anton mata as pessoas com um longo botijão de gás comprimido é algo assustador, que lembra aqueles filmes de terror da década de 1980, mas com uma diferença: nos filmes de
terror do período citado, havia um ar de ingenuidade e, no final, o matador psicopata era morto ou controlado ou empurrado para uma próxima parte. Era um medo que se resolvia. Ness filme, estamos só no começo de um terror que veio para ficar e é mais real do que imaginamos, tendo sua resolução no lugar de sempre, onde os fortes de sempre têm, só eles, sua vez. Até parece que não estamos numa ficção. A impotência daqueles personagens passa a ser a nossa impotência diante do horror da violência que cresce a cada dia. A falência da “épica do Oeste estadunidense” vem a partir da ascensão do terror do crime organizado em torno das drogas. É claro que a fronteira passa a ser o lugar limite para entendermos o que está acontecendo nas grandes cidades. Os irmãos Coen não filmam gratuitamente lá na década de 1980, no início de tudo. Hoje, aquela violência da fronteira é a violência da cidade. O fim do filme é a descrição de um sonho estranho do impotente xerife que não prende mais ninguém e não dispara um só tiro naquele Oeste perdido. Um filme extraordinário, daqueles que fotografam uma época num realismo sem nenhuma magia, mas com muito senso de realidade. O mundo que sai das lentes e o mundo real em que estamos é o mesmo mundo: é o lugar onde os fracos não têm vez. Romero Venâncio é professor de filosofia na Universidade Federal de Sergipe
Saiba mais Dois textos para auxiliar na compreensão das loucuras do mundo contemporâneo e do filme dos irmãos Coen são o artigo “Duas vezes pânico na cidade” que se encontra no livro“Extinção”, do filósofo brasileiro Paulo Arantes (Boitempo, 2007), e “Estado de exceção”,do filósofo italiano Giorgio Agambem (Boitempo, 2004).
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américa latina
Os novos desafios da Revolução CUBA Deputados escolhem Raúl Castro para liderar um processo de aperfeiçoamento do Estado e da economia da ilha Jorge Pereira Filho da Redação SÃO 11 milhões de habitantes, a população de uma cidade de São Paulo. Seu território não é maior do que Santa Catarina. A produção anual de riqueza se aproxima à da Bahia, o sexto maior produto interno bruto (PIB) do Brasil. Às vésperas do cinqüentenário da Revolução Cubana, a Assembléia Nacional do Poder Popular (ANPP) escolheu, no dia 24 de fevereiro, Raúl Castro para conduzir uma nova etapa na história política deste pequeno país que mantém viva a chama socialista diante de um violento bloqueio comercial e militar da maior potência do planeta, a menos de 200 quilômetros de suas fronteiras. A decisão dos deputados eleitos pelo povo cubano em 2007 não surpreendeu. Raúl, de fato, já substituía Fidel Castro na administração do país. Também não se pode dizer que era imprevisível a escolha de um José Ramón Machado Ventura – um médico cubano que lutou em Sierra Maestra e já foi ministro da Saúde Pública – como o seu primeiro substituto, embora as apostas eram de que a Assembléia fortaleceria um nome de uma geração mais nova. Ventura, com 77 anos, tem idade próxima a de Raúl Castro, 76, e Fidel, 81. As duas referências cubanas históricas estarão à frente de um importante período para a Revolução: a transição entre as gerações. Um processo que não se iniciou com a carta de Fidel renunciando à possibilidade de ser reeleito pela Assembléia Popular. “Pessoas de distintas gerações passaram a ocupar cargos na Assembléia Nacional, em órgãos de direção do Partido Comunista Cubano (PCC), nas estruturas de governo e nas empresas, acumulando experiências e méritos”, explica José Ramon Vidal, professor de comunicação e coordenador do Programa de Comunicação Popular do Centro Martin Luther King (CMLK), em Havana. Segundo ele, muitos integrantes da geração histórica já morreram e, hoje, cargos de direção de órgãos intermediários e da própria Assembléia já estão com cubanos mais novos. “Isso vem ocorrendo há anos, mas agora ficou muito visível, porque deixam os cargos pessoas que lideraram o processo desde sua origem. No entanto, creio que se exagerou o alcance da decisão de Fidel de não aceitar ser reeleito”, avalia.
Desafios
Nesse cenário de mescla de gerações no comando da Revolução, Raúl Castro terá o desafio de liderar uma Cuba que respira após a ameaça de dissolução durante a época do Período Especial – quando a União Soviética ruiu e a condição de vida na ilha se deteriorou na medida de seu isolamento. “Aí está todo o heroísmo da Revolução, que, apesar do radical bloqueio dos Estados Unidos e da hecatombe do campo socialista, consegue sobreviver com um dos mais elevados índices de desenvolvimento humanos (IDH) do planeta”, comenta a socióloga Vânia Bambirra, autora do livro A Revolução Cubana – uma Reinterpretação, de 1975, tido como uma das principais obras sobre a ilha publicadas no exterior. Em seu primeiro discurso, Raúl enfatizou que consultará o irmão Fidel nas questões “de transcendência”. E assinalou que uma das prioridades do país será “satisfazer as necessidades básicas da população, tanto materiais como espirituais, partindo do fortalecimento sustentável da economia nacional e de sua base produtiva”. Embora sejam inegáveis as conquistas sociais da Revolução, o povo cubano tem sido sacrificado nas últimas décadas por uma realidade que garante o básico, no limite. O transporte, precário. A ali-
mentação cada vez mais cara – embora o governo garanta um cardápio básico para todos os habitantes. As opções de lazer, pouco acessíveis. Nada disso, no entanto, impediu que, em 2007, Cuba registrasse uma taxa de mortalidade infantil inferior à dos Estados Unidos (5,3 falecidos por mil nascimentos contra 6 nos EUA – a média da América Latina é de 26 mortos). Ou fez com que a ilha reduzisse o investimento em educação: 99,8% da população cubana acima de 15 anos é alfabetizada. Já a taxa de desemprego é nula – todos têm trabalho. A questão é que um fator externo objetivo também condiciona o desenvolvimento cubano: a inserção dependente na divisão internacional do trabalho. “A questão é complexa. A verdade é que o socialismo nunca triunfou em um país desenvolvido, mas sempre em país pobre e, por isso, ficou sempre dependente. É o caso de Cuba, que precisou sempre se escorar em alguém pela impossibilidade de alçar vôo próprio. É pedir demais para uma ilha com cerca de 11 milhões de habitantes que desenvolva uma indústria de base, de bens de consumo. Cuba sempre precisará da solidariedade internacional”, diz Vânia Bambirra, uma das intelectuais que participaram da elaboração da Teoria da Dependência. Para ela, não se pode falar em triunfo do socialismo, nem em países como a Venezuela, Equador ou Bolívia. “São governos de esquerda, mas são países sem possibilidade de desenvolver uma estrutura de produção socialista sozinhos, isolados. Algo diferente, por exemplo, do Brasil, um país que poderia andar com as próprias pernas”, comenta. O historiador Oswaldo Coggiola, da Universidade de São Paulo (USP), também tem um raciocínio próximo. “Cuba teria possibilidade de sair dessa condição, de ter uma economia baseada no setor primário, apenas se houvesse uma revolução em nível continental. A única saída seria um contexto revolucionário latino-americano. Por isso, os cubanos vêem com otimismo a relação com Hugo Chávez. A Venezuela tirou Cuba do buraco energético após o fim da União Soviética”, analisa, referindo-se ao apoio que o governo de Chávez dá à ilha com o fornecimento de petróleo mediante condições facilitadas de pagamento.
Avanços
Mas, apesar dessas limitações, os cubanos têm muito no que avançar internamente. O país vive um momento de recuperação econômica. Segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal), o crescimento foi de 11,8% em 2005 e 12,5% em 2006 – as maiores taxas da América Latina. A recuperação não supriu, no entanto, alguns dos mais graves problemas da ilha, como a produção agrícola. O país importa quase 80% do que consome. Para uma ilha dependente de recursos externos e com acesso dificultado ao dólar, é um tiro no pé. Raúl Castro dialogou com essa questão em seu primeiro discurso e afirmou que será prioritário “incrementar as produções agropecuárias e aperfeiçoar sua comercialização”. Para o cubano José Ramon Vidal, o desenvolvimento da economia merecerá atenção nesse futuro breve. “Há reivindicações justas que se referem a carências materiais que só vão ser satisfeitas mediante um avanço da economia e por sua maior eficiência. Esperamos que se consiga encontrar um modelo cubano de economia socialista eficiente em termos humanos e não só mercantis, mas também desde todos os pontos de vista, incluindo o de sua relação com a natureza”, pontua. (leia mais sobre Cuba na Agência Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br)
Valter Campanato/ABr
Raúl Castro e Lula chegam ao Palácio da Revolução, em Havana
Continuidade do socialismo cubano dependerá do envolvimento popular Segundo analista cubano, José Ramon Vidal, do Centro Martin Luther King, povo quer mais socialismo e participação nas decisões e execução das transformações Arquivo Brasil de Fato
da Redação Um dos aspectos centrais do primeiro discurso de Raúl Castro como Chefe de Estado foram as referências à participação do povo cubano na discussão dos problemas do país. “Nossa democracia é participativa como poucas, mas devemos estar conscientes de que o funcionamento das instituições do Estado e do governo ainda não alcança o nível de efetividade que nosso povo exige com todo o direito. É um tema que devemos pensar todos”, avaliou em discurso feito para a Assembléia Nacional do Poder Popular (ANPP), no dia 24 de fevereiro. Não foram poucas as referências no texto lido por Raúl ao processo de debates que teve início em julho de 2007, estimulado pelo próprio governo cubano. O objetivo foi ouvir críticas e propostas do povo para os problemas do país. Segundo José Ramon Vidal, coordenador do programa de Comunicação Popular do Centro Martin Luther King, a iniciativa colocou em evidência as carências e as reivindicações da população em uma infinidade de temas. “Foi um exercício de democracia direta impensável em outra sociedade que não seja baseada no ideal socialista. O que emergiu foi uma demanda por renovação de métodos, desburocratização de mecanismos e fortalecimento da participação popular, ou seja, foi um pedido de mais socialismo”, avalia Vidal. De fato, as primeiras ações que Raúl Castro anunciou vão nessa direção. O novo presidente cubano disse que, em alguns dias, iria suspender algumas proibições consideradas excessivas. Além disso, cogitou fazer consultas ao povo para decidir sobre assuntos de “grande transcendência”. “A determinação das prioridades e o ritmo de sua solução (dos problemas internos) partirá dos recursos disponíveis e de uma análise profunda e colegiada pelos órgãos competentes do Partido, do Estado ou do governo. Nos casos
Os irmãos Fidel e Raúl Castro: transformações darão continuidade à Revolução
em que for necessário, também por consultas prévias aos cidadãos”, sinalizou.
Futuro
A socióloga Vânia Bambirra acredita em mudanças dentro do regime socialista. “É possível que haja uma maior abertura, no sentido de maior diálogo, algo que permita até o desenvolvimento de uma oposição construtiva, mas não pró-capitalismo”, prevê. Já o historiador da USP Oswaldo Coggiola avalia que Cuba deverá seguir, futuramente, para uma administração colegiada. “A escolha por Raúl foi uma saída de transição bas-
tante sólida, mas Cuba deve seguir depois para uma opção colegiada”, avalia. Para ele, o debate na ilha é insuficiente. “Ainda é muito limitado. Uma coisa é falar de debates internos dentro do partido; outra coisa seria acertar pluripartidos revolucionários”, comenta, referindo-se também à manutenção do partido único em Cuba. Sobre o tema, Raúl discursou: “Se a sociedade cubaba está coesa em torno de um partido, este precisa ser o mais democratico de todos”. Para Ramon Vidal, o sucesso desse novo período da Revolução dependerá do
engajamento da povo cubano e das respostas do governo às demandas apresentadas. “Em seu discurso, Raúl confirmou as linhas essenciais de ação em resposta às reivindicações do povo. Da eficácia dessas respostas e do envolvimento participativo, consciente e organizado do povo nas decisões e na execução das transformações necessárias vai depender a continuidade da Revolução e de seu projeto humanista. Esta é a transcendência histórica deste momento”, analisa. (leia a íntegra do discurso de Raúl Castro na Agência Brasil de Fato). (JPF)
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“Os cubanos querem aprimorar o sistema socialista, não renegá-lo” FREI BETTO deve ser o brasileiro com mais horas de vôo entre Havana e São Paulo. São incontáveis suas visitas à ilha desde que conheceu Fidel, em 1980, durante o primeiro aniversário da Revolução Sandinista, na Nicarágua. Chegou a viajar a Cuba, em média, três vezes ao ano, em meados da década de 1980. Em 1985, escreveu o clássico Fidel e religião (1985) – resultado de uma entrevista de 23 horas com Castro, editado em cerca de 30 países, que já ultrapassou os 2 milhões de exemplares vendidos. Em 1998, agiu como interlocutor entre o Vaticano e o governo cubano para que a improvável visita do papa João Paulo II acontecesse. Só este ano, já esteve por duas vezes em Cuba. A primeira, em janeiro; e a segunda, a sete dias do anúncio de Fidel – quando se encontrou com o atual presidente Raúl Castro. Leia a seguir as suas impressões sobre a continuidade do processo revolucionário cubano, a despeito da “renúncia” do comandante-em-chefe. Brasil de Fato – Com a “renúncia” de Fidel em aceitar que fosse reeleito como presidente, como ficam os críticos que insistiam na figura de um Fidel “ditador” – quando todos os ditadores só deixam o poder quando morrem? Frei Betto – Nem todos os ditadores morrem no poder. Muitos são derrubados, como Pinochet. Mas jamais conheci um caso de renúncia. Outro dia, um amigo me disse que em Cuba não há democracia. Perguntei-lhe: e há no Brasil? Ele disse que sim. Falei: não quero ouvir sua resposta, quero ouvir sua faxineira e saber como ela se vira quando fica doente, se os filhos têm escolas de qualidade e podem chegar à universidade, se ela tira férias na praia ou viaja de vez em quando para um país estrangeiro, o que faz ela quando está insatisfeita com o governo... Nossa democracia política é controlada pelo poder do capital e estamos longe de uma democracia social e econômica. Como se posicionar contra todo aquele lenga-lenga oportunista dos EUA falando em “transição para democracia” na ilha? Com Bush, os EUA estão em plena transição para o nazifascismo, e ainda querem impor a Cuba, além do bloqueio, o seu futuro??? Os cubanos não querem que o futuro seja o presente de Honduras e Guatemala...
Outro dia um amigo me disse que em Cuba não há democracia. Perguntei-lhe: e há no Brasil? Ele disse que sim. Falei: não quero ouvir sua resposta, quero ouvir sua faxineira e saber como ela se vira quando fica doente, se os filhos têm escolas de qualidade (...), se ela tira férias na praia (...), o que faz ela quando está insatisfeita com o governo Em que medida devemos imputar ao bloqueio estadunidense a responsabilidade pelas deficiências da Revolução? Até que ponto essas deficiências (burocratização, entre elas) estão diretamente relacionadas ao corpo dirigente do processo? As deficiências da Revolução se devem ao bloqueio e também à influência soviética, pois a URSS adotou o que qualifico de “socialismo monárquico”, de cima para baixo, o que facilitou a sua derrubada. Cuba fez uma Revolução popular e procura sanear a influência soviética através da mobilização constante de sua população. Em termos numéricos, hipotéticos, qual a porcentagem de culpa do embargo no processo revolucionário cubano? Como seria Cuba sem ele? Já ouvi dizer que o bloqueio custa, em termos de perdas para Cuba, algo em torno de 18 bilhões de dólares por ano. Não estou seguro. Sem o bloqueio, Cuba poderia voltar a comercializar seus produtos com os EUA, como o faz com outros países capitalistas, como Espanha e Canadá. Hoje, há toda uma triangulação para que Bill Clinton possa fumar charutos cubanos e a filha de Bush tomar Cuba-Libre... O senhor consegue imaginar como os países do mundo responderiam aos estímulos socialistas cubanos se a revolução pudesse ter se desenvolvido sem asfixia econômica e política? Os países capitalistas jamais aceitarão
As deficiências da Revolução se devem ao bloqueio e também à influência soviética, pois a URSS adotou o que qualifico de ‘socialismo monárquico’, de cima para baixo (...). Cuba fez uma Revolução popular e procura sanear a influência soviética através da mobilização constante de sua população
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Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Lucas Lima
CUBA Para Frei Betto, autor de Fidel e Religião, população não deseja que o futuro da ilha seja o presente de Honduras e Guatemala
Acima, Frei Betto; logo abaixo, os irmão Fidel e Raúl Castro
o regime socialista, pois são todos dominados pelo grande capital, e o socialismo representa a desconcentração dessa riqueza e sua aplicação em benefícios sociais. Haveria, pois, nova Guerra Fria... Ou mesmo quente... Na mesma lógica, o processo interno de críticas à Revolução desencadeado por Raúl, com mais de 1 milhão de sugestões, é fruto da constatação de que a asfixia do bloqueio tem sido eficiente – e de que alternativas econômicas precisam ser encontradas... Ou de que é necessário fazer uma autocrítica da forma com que a condução da Revolução tem se dado? Cada momento histórico tem suas próprias exigências. Desde os anos 80, Cuba se abriu ao capital estrangeiro e, hoje, até os seus charutos são mundialmente comercializados, em parceria com a Espanha. O processo de autocrítica é uma exigência permanente de qualquer revolução que não queira se transformar em relíquia do passado... E Cuba tem sabido fazer isso muito bem. No período especial, nos anos 90, retomou a emulação moral proposta pelo Che e, agora, estimula a população a proferir abertamente suas críticas. Querem aprimorar o sistema, não renegá-lo. Como o senhor vê a presença do ex-premiê da Alemanha Oriental Hans Modrow em Havana, a convite de Fidel? Modrow sugere, a exemplo do que aconteceu com a RDA, “liberdade de viagem, reformas na agricultura e em pequenos comércios”. Vejo positiva toda iniciativa que significa dialogar com pessoas sérias, ainda que divergentes. O problema da liberdade de viagens é a evasão de divisas. A faxineira de sua casa viaja com freqüência? Já esteve no Uruguai ou no Paraguai, aqui do lado? Ou seja, os países capitalistas se dão ao luxo de permitir viagens particulares ao exterior porque só uma minoria o faz. Em Cuba, viajam todos que estão a serviço do interesse comum: professores, médicos, artistas, desportistas... Mas é impensável uma família ir passar férias nas praias do Mediterrâneo, queimando divisas que Cuba precisa. A tese de que a economia cubana tende a se abrir aos moldes chineses, como analistas conservadores estão prevendo, se sustenta? Cuba não demonstra nenhuma intenção de negar seu socialismo para se transformar num capitalismo de Estado, como a China. E com certeza o governo colegiado de Cuba prosseguirá com as mesmas lideranças, a maioria jovens, apenas sem a presença de Fidel. Apesar de Obama falar em estar disposto a se encontrar com Raúl “sem condições prévias”, em
fechar a base em Guantânamo e permitir a viagem de cidadãos dos EUA a Cuba... ele ainda é tomado pelo discurso de que “o afastamento de Fidel ainda é pouco para a democracia em Cuba”. O senhor vê avanços na relação de ambos os países caso ele seja eleito – a despeito de ser um democrata como Kennedy? Tenho simpatias por Obama, mas ele é uma incógnita. Há que esperar para ver, se eleito, como agirá no poder. O PT também não falava em reforma agrária como prioridade? Mas acredito sim que a vitória do Partido Democrata nos EUA poderá abrir novos canais de diálogo entre os dois países. O senhor conheceu Fidel em 1980, no primeiro aniversário da Revolução sandinista, na Nicarágua... Como foi esse primeiro contato com ele? Conheci Fidel em Manágua, na noite de 19 de julho de 1980, primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Lula e eu estávamos na casa de Sergio Ramirez, vice-presidente da Nicarágua, quando ele chegou para se entrevistar com empresários nicaragüenses. Cumprimentou-nos e se refugiou na biblioteca. Eram duas da madrugada quando o padre Miguel D’Escoto, chanceler da Nicarágua, indagou se tínhamos interesse em conversar com o Comandante. O diálogo estendeu-se até às seis da manhã, observado por Chomy Miyar, seu secretário particular, atento às fotografias, e Manuel Piñero, reponsável pelo Departamento de América, desabado sobre a espessa barba que servia de anteparo a um longo charuto apagado. Falamos de religião. Foi quando ele me perguntou se estaria disposto a ir a Cuba para assessorar a reaproximação entre o governo e a Igreja Católica. Respondi que dependeria dos bispos cubanos, que, no ano seguinte, responderam positivamente à proposta. Em Fidel e Religião, o senhor ressalta que Fidel usava uma corrente com uma cruz no pescoço nas montanhas de Sierra Maestra. Qual a relação de Fidel com a espiritualidade? Considero Fidel um agnóstico. Pois demonstra muito interesse por questões religiosas relacionadas com a política. Foi aluno interno de escolas católicas entre 8 e 18 anos de idade, o que significa que frenqüentava missas diárias. A medalha que usava em Sierra Maestra era um presente de uma amiga, segundo me disse. Ele se vê como um predestinado por Deus para levar a cabo o socialismo? De modo algum. Nunca percebi nele qualquer traço de messianismo. O que ele tem é muito carisma, muita consciência histórica e disposição de dar a vida pelo bem de seu povo. Fidel jamais conheceu o medo.
Fidel já disse que se, como o papa, ele, Fidel, tivesse todas as freiras do mundo sob seu comando, ressaltando sua lealdade a um ideal, a revolução socialista seria planetária. Como anda a relação do governo cubano com a Igreja Católica? O Secretário de Estado do Vaticano, Tarcísio Bertone, está em Havana... As relações entre Revolução e Igreja Católica passaram por fases positivas e negativas. Nunca houve, porém, perseguição às Igrejas, e Cuba sempre manteve boas relações com o Vaticano. Ao encontrar Fidel pela primeira vez em 1980, ele me disse que Igreja Católica e Estado não dialogavam em Cuba. As outras Igrejas, sim. No ano seguinte, iniciei o trabalho de favorecer a retomada do diálogo, o que ocorreu em 1985, 16 anos após o silêncio entre as partes. As relações voltaram a azedar em 1990, quando bispos cubanos acreditaram que Cuba seria alvo do efeito dominó da falência do socialismo na Europa. E voltaram a melhorar com a visita do papa João Paulo II, em 1998. No momento, são excelentes, e os bispos cubanos já não demonstram nenhuma intenção de que Cuba retorne ao capitalismo, embora reivindiquem mais acesso aos meios de comunicação e às prisões. Como entender o posicionamento de William Waack, que beira ao ridículo – dado ao repertório exalado de senso-comum maldoso e completamente descompromissado com a História, para não falar com o jornalismo –, apresentando Fidel como “um ancião definhando... assim como suas idéias, que foram abandonadas pelo mundo”. Jornalismo se faz com informação, e não com mágoas subjetivas. A “campanha de desinformação” desencadeada pela mídia associa, quase que abertamente, a renúncia de Fidel a uma irreversível renúncia de Cuba ao socialismo. Este ano, o senhor já esteve duas vezes em Cuba – uma em janeiro e outra no início de fevereiro. Quais os anseios da população? Hoje Cuba tem 99,8% de sua população alfabetizada; possui 67 universidades que formam, por ano, gratuitamente, 800 mil estudantes; conta com 1 médico para cada grupo de 160 habitantes (e todo o serviço de saúde é gratuito e de qualidade) etc. Ou seja, a população cubana não revela nenhum indício de querer perder essas conquistas sociais. Mas gostaria de ter acesso a mais bens de consumo e melhor transporte urbano. O El País trouxe manchete dizendo que a Justiça espanhola deveria aproveitar a oportunidade e julgar Castro por crimes contra a humanidade – reabrindo processo arquivado em dezembro. O que mais esperar? E George Adolf Bush será chamado como testemunha de acusação? O senhor se encontrou com Raúl Castro sete dias antes do anúncio de Fidel. Ele chegou a lhe confidenciar sobre o que aconteceria em poucos dias? Apenas demonstrou muita tranqüilidade, queixando-se, porém, das dificuldades econômicas. Uma nação que não possui fontes energéticas, é bloqueada e só produz fim de refeição (açúcar, rum, charuto...), faz um esforço descomunal para assegurar condições dignas de vida a toda sua população. No caminho entre o aeroporto de Havana e o centro da cidade, há dois cartazes que nenhum outro país da América Latina poderia exibir honestamente: “A cada ano, 80 mil crianças morrem no mundo vítimas de enfermidades evitáveis. Nenhuma é cubana”. “Esta noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana.” O senhor chegou a se encontrar com Fidel? Se sim, quais foram suas impressões pessoais? Não me encontro com Fidel desde fevereiro de 2005, quando estive em Cuba para a Feira do Livro. Mas temos tido contatos indiretos, como troca de saudações e presentes. Gostaria que comentasse a frase atribuída a dom Pedro Casaldáliga: “Somos soldados derrotados de um projeto imbatível”. Ainda não me considero derrotado. E uma das razões é a resistência de Cuba.
de 28 de fevereiro a 5 de março de 2008
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internacional
Nos EUA, Cuba divide candidatos Divulgação
ARTIGO McCain disse que preferiria ter ouvido a notícia da morte de Castro; Hillary anunciou, caso seja eleita, de não ter a intenção de negociar com Raúl; enquanto Obama se encontraria com ele Memélia Moreira de Orlando (EUA) “Fidel, Fidel, que tienes Fidel? que los americanos no pueden con el! Fidel, seguro! Adelante, dá-le duro”. ESSAS ESTROFES, quase desconhecidas para quem tem menos de 50 anos, eram cantadas em sussuros no Brasil dos anos 70 do século passado, quando a ditadura militar ainda rosnava por todos os cantos. A gravação, pirata e de péssima qualidade, fora feita por alguém que participou de uma reunião acontecida na Itália, quando se começava a falar da anistia. Quem podia, copiava a fita cassete, passava adiante e, principalmente, aprendia as letras de todas as músicas que exaltavam a revolução cubana. E eram muitas. O estrebilho continua atual, e os estadunidenses sequer puderam comemorar o repouso do guerreiro, 49 anos depois de ter sacudido toda a América Latina e o mundo com uma revolução literalmente nas barbas do Tio Sam. Eles bem queriam soltar fogos, mas Fidel, propositadamente ou não, apresentou sua renúncia num dos mais delicados momentos da vida econômica dos Estados Unidos que, para completar o quadro, vive uma acirrada disputa eleitoral entre os candidatos do Partido Democrata para saber quem será o ungido para as eleições de 2008. Ou seja, além de deslocar o foco da campanha para a ilha de Cuba, que fica a 20 minutos de vôo a partir de Miami, Fidel, mais uma vez, obrigou os Estados Unidos a discutir a ilha que há mais de uma semana está presente em todos os debates entre os concorrentes à Casa Branca. A crise e as eleições talvez tenham sido os dois principais fatores que determinaram reações mais cautelosas que exuberantes entre as autoridades e os pré-candidatos à presidência. Exibições de júbilo ficaram por conta dos exilados “gusanos” e, assim mesmo, foram demonstra-
Hillary Clinton, Barack Obama e John McCain: diferentes planos para Cuba
ções esparsas que não chegaram a alterar a vida de Miami, onde se concentram a maioria dos exilados. Em “Little Havana”, bairro ocupado majoriatariamente por cubanos, mesmo aqueles que passaram o último meio século odiando Fidel Castro e conspirando contra sua permanência no poder, mediram suas palavras para falar sobre a renúncia. Afinal de contas, o sucessor é Raúl Castro, que provavelmente seguirá a linha do irmão, com algumas mudanças já previstas pelo próprio Fidel. A primeira manifestação com a mudança veio da Casa Branca e não foi surpresa. O presidente George W. Bush, por intermédio de seus porta-vozes, avisou que não suspenderá o embargo contra o povo cubano, em vigor desde em 1964. Bush, cuja popularidade não chega a 40% há mais de dois anos, será obrigado a engolir as próprias palavras. Afinal de contas, o Congresso já mandou avisar que quer discutir imediatamente o assunto para alterar os dispositivos legais adotados durante a administração do democrata Lyndon Johnsohn, que substituiu John Kennedy.
John McCain A nota dissonante em meio às reações partiu – como era de se esperar – do pré-candidato (praticamente já escolhido) republicano John McCain. Na mesma terça-feira, 19 de fevereiro, dia em que Fidel renunciou, McCain, em uma de suas dezenas de entrevistas diárias à
televisão, deixou escapar seu mais profundo desejo, dizendo que preferia ouvir a notícia da morte do presidente de Cuba. Se fosse atento à História, McCain teria ficado em silêncio. Nos últimos 49 anos, todos os presidentes dos Estados Unidos, com exceção de Jimmy Carter, tentaram matar Fidel Castro. Ora por meio de agentes da CIA infiltrados na Base de Guantánamo, ora por meio dos “gusanos” que se dispunham a missões suicidas. Fidel não apenas sobreviveu aos atentados como também, nesses 49 anos, enterrou cinco presidentes estadunidenses (John Kennedy, Lyndon Johnsohn, Richard Nixon, Gerald Ford e Ronald Reagan). Portanto, mesmo sem acreditar nas bruxas, é recomendável não revelar desejos dessa natureza.
Hillary e Obama Entre os democratas, no debate do dia 21 de fevereiro, quando o jornalista mexicano Jorge Ramos, da Univision, fez sua primeira intervenção, perguntando a Hillary Clinton se poderia se encontrar com o presidente Raúl Castro, Hillary, que não perde a oportunidade de demonstrar seu autoritarismo, respondeu com uma conjunção adversativa: sim, ela se encontraria, “mas” na condição de Raúl Castro “mostrar evidências reais de mudança em direção à democracia, liberdade de imprensa e libertação dos presos políticos”. Seu concorrente no Partido Democrata, senador Barack Obama, mais habilidoso, re-
petiu a crítica feita em 2000, quando disse que “a política americana para Cuba falhou e tem demonstrado ser um grande fracasso”, condicionou o encontro com Raúl Castro a uma “agenda” pré-estabelecida, na qual se discutiriam as liberdades citadas por Hillary. O auditório da Universdade de Austin, onde aconteceu o debate entre os dois concorrentes pelos democratas, explodiu em aplausos. Já o ex-presidente Jimmy Carter, detentor de um Prêmio Nobel da Paz e um dos políticos mais respeitados tanto no seu partido quanto entre os republicanos porque é responsável por uma agenda positiva para os EUA, foi mais direto. Disse ele que, “passados tantos anos, os dois países já amadureceram o suficiente para abrir negociações”.
Democratas e republicanos Mas o debate não se restringiu a ocupantes, ex-ocupantes e postulantes à Casa Branca. No Congresso, o senador republicano Jeff Fleck, representante do Estado do Arizona, um dos parlamentares que mais trabalham pelo fim do embargo junto a seu partido, afirmou da tribuna que “a saída de Fidel Castro abre a possibilidade de novas relações entre Cuba e os Estados Unidos. Está mais do que provado que o embargo colocou Cuba como grande vítima da História. Não deixemos que o sucessor de Castro aproveite dessa mesma vantagem”.
Em resposta, Mitch McConnell, republicano do Estado de Kentucky, foi absolutamente contrário à proposta de seu colega Fleck. “A renúncia não é suficiente para suspendermos o embargo. Vamos esperar para ver se a brutalidade do regime de Castro vai continuar com seu sucessor, antes de abrirmos qualquer canal de negociação.” McConnell não expressa a opinião da maioria do seu partido.
Gusanos e refugiados Nem todos os cerca de 1,5 milhão de exilados cubanos que vivem nos Estados Unidos são inimigos do regime da ilha. Há aqueles, denominados “gusanos”, que nesses 49 anos foram apoiados em sua luta anti-castrista, e os “refugiados”, cubanos que chegaram aos Estados Unidos no início dos anos 90, escapando da situação de penúria de Cuba após a queda do regime comunista no Leste europeu. E entre os gusanos, mesmo aqueles que se vestiram para chamar atenção dos canais de televisão, não conseguiram reunir número suficiente de manifestantes para comemorar a saída de Fidel Castro. Pelas ruas de Miami, Santiago Portal, um desses gusanos, todo vestido de branco e com um chapéu que reproduzia a bandeira cubana, carregava um cartaz no qual se lia “Fidel morreu, eu quero mudanças”. Santiago não conseguiu arrastar sequer dois manifestantes e passeava solitário com seu cartaz em Bay Biscayne, em frente ao mar
do Caribe. As demais reações, mesmo de alegria, foram moderadas, a exemplo do policial John Negroponte, filho de exilados e já nascido nos Estados Unidos. Seu único comentário sobre a renúncia foi “eu sei que ainda vai levar tempo para os EUA suspenderem o embargo, mas tenho esperanças de que isso aconteça tão logo seja possível”. Mesmo diante da insistência dos repórteres para saber se ele estava feliz ou não com o fim da era Castro, Negroponte se recusou a fazer maiores comentários. A refugiada A. (usamos só a inicial de um de seus nomes porque refugiados não podem manifestar opinião política), adolescente de 18 anos, há um ano vivendo nos Estados Unidos, apesar de ter enfrentado momentos duros com a escassez de alimentos no seu país, não faz críticas a Fidel. Mesmo obrigada a se refugiar, A. tem grande respeito por Fidel e faz duras críticas aos EUA, apesar de ser agradecida por ter conseguido o status de refugiada. Para ela, o grande responsável pelos males que seus patrícios enfrentam é a “teimosia dos Estados Unidos, que insiste em manter o embargo. Se não fora isso, Cuba não teria problemas. Raúl vai mudar muita coisa e Cuba vai ficar bem”. E, com uma pontinha de saudade do país onde nasceu, ela encerrou a conversa dizendo “tenho orgulho do meu país, onde os médicos são melhores que aqui, e Fidel não se foi. Está apenas cansado”.
12 de 28 de fevereiro a 5 de março de 2008
internacional Ryan Swift/CC
Kosovo, petróleo e Estados Unidos OURO NEGRO Em busca de uma rota mais segura para obter petróleo, mais uma vez EUA incentivam divisão étnica; Halliburton também está envolvida Achille Lollo do Rio de Janeiro (RJ) COM MUITA dificuldade, a mídia do chamado Primeiro Mundo conseguiu justificar o reconhecimento, por parte da Casa Branca e dos países da União Européia, da proclamação de independência unilateral do território de Kosovo. O argumento utilizado pelos estrategistas da OTAN era de que, “após dez anos de ‘ocupação’ e a ‘fuga’ de 500 mil sérvios do território de Kosovo, era mais que justo operar uma artificial divisão territorial da Sérvia, para dar à maioria étnica albanesa o poder de criar um novo Estado”. É evidente que ninguém acreditou que este novo Estado vai respeitar a minoria sérvia composta de 120 mil pessoas, e que hoje – após os massacres de março de 2004 – ocupam a região nortenha de Mitrovica, a fronteira natural entre a Sérvia e o Kosovo. Por isso, a “grande mídia” enfatizou os violentos ataques que grupos de extremistas nacionalistas promoveram na capital sérvia, Belgrado, contra as embaixadas dos EUA, Croácia, Grã-Bretanha, Alemanha, Turquia e a bancos italianos, franceses e austríacos para criminalizar, ainda mais, a Sérvia e seu povo. Uma operação que aliviava as responsabilidades da diplomacia ocidental, que logo voltava a ameaçar a Sérvia de possíveis sanções, caso a revolta continuasse. De fato, a secretária de Estado estadunidense, Condolezza Rice, o ministro dos
O efeito pós-Kosovo traz consigo o risco de romper o delicado equilíbrio étnicopolítico na Bósnia-Herzegóvina, onde os sérvios votaram no Parlamento uma possível proclamação de independência e que agora pode novamente dividir o país com a volta da Republika Srpska Negócios Estrangeiros francês, Bernard Kouchner; o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, FrankWalter Steinmeier; e o ministro das Relações Exteriores (interino) italiano, Massimo D’Alema se aproveitaram desse contexto para reafirmar a lógica imperial que, desde 1990, persegue o objetivo de destruir o mito da Federação Socialista Iugoslava através de pequenas, mas sangrentas, “guerras de libertação étnicas”. Uma estratégia que iniciou seu curso na Macedônia, pa-
ra depois atuar na Eslovênia, em Montenegro e explodir em guerra de “limpeza étnica” na Croácia, na BósniaHerzegóvina e finalmente no Kosovo, com a participação de quase 26 mil soldados dos EUA e seus aliados europeus da OTAN.
Cinismo Como sempre, os EUA foram os mais cínicos. De fato, o porta-voz do Departamento de Estado, Sean McCormak, no dia 17 – querendo humilhar e provocar ainda mais os sérvios – declarou à
“Obrigado EUA” estampa camiseta de mulher; ao fundo, luminoso avisa que Kosovo declara independência
imprensa: “registramos o fato de o Kosovo ter declarado sua independência. Saudamos o claro empenho do governo kosovar em proteger as minorias étnicas”. Neste contexto, o presidente Boris Tadic e o novo primeiro-ministro, Vojslav Kostunica, tiveram que rever sua postura pró-União Européia e voltar a dialogar com a Rússia de Putin, que neste momento é o único país que pediu uma reunião com caráter de urgência do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O próprio Vojslav Kostunica foi moralmente obrigado a convocar a manifestação popular contra o “roubo do Kosovo por parte dos EUA e OTAN”, juntamente com o líder ultranacionalista, Tomislav Nikolic. Uma manifestação pacífica mobilizou mais de 500 mil pessoas em Belgrado e foi finalizada com os ataques às embaixadas e aos bancos ocidentais, por parte de várias centenas de grupos nacionalistas extremistas, como resposta à atuação que os EUA e os países da OTAN mantêm contra a Sérvia desde 1990.
Respingos na Bósnia Ataques que preocupam, bastante, os analistas da OTAN e sobretudo os do Departamento de Estado dos EUA, porque o povo sérvio, na realidade, aplaudiu as manifestações violentas e transformou o jovem Zoran Vujanovic em novo herói nacional, que morreu queimado durante o assalto à embaixada estadunidense de Belgrado. Um sinal de alerta para os EUA, visto que a Sérvia e seu povo nunca aceitarão a independência de Kosovo, mesmo com a proposta de poder entrar na União Européia em 2010. Um alerta que já soa pesadamente nas chancelarias européias, visto que o efeito pós-Kosovo traz consigo o risco de romper o delicado equilíbrio étnico-político na Bósnia-Herzegóvina, onde os sérvios votaram no Parlamento uma possível proclamação de independência, que agora pode novamente dividir o país com a volta da Republika Srpska. AMBO A pergunta mais recorrente é por que os EUA passaram por cima do direito interna-
Afinal, por que os EUA e a OTAN criaram as condições geoestratégicas para tornar Kosovo a nova colônia estadunidense na Europa? Tudo se iniciou em 1995, quando a empresa Brown & Root (de propriedade da transnacional Halliburton, do então Secretário de Defesa Dick Cheney), a pedido do Pentágono, fez um “estudo sobre as alternativas energéticas ao petróleo iraquiano” cional para coroar presidente do Kosovo um indivíduo como Hashim Thaçi, que com seu ELK (Exército de Libertação do Kosovo) transformou este território no principal reduto de narcotraficantes e bandidos do mundo inteiro. Afinal, porque os EUA e a OTAN criaram as condições geoestratégicas para tornar Kosovo a nova colônia estadunidense na Europa? Tudo se iniciou em 1995, quando a empresa Brown & Root (de propriedade da transnacional Halliburton, do então Secretário de Defesa Dick Cheney), a pedido do Pentágono, fez um “estudo sobre as alternativas energéticas ao petróleo iraquiano”. Este estudo apontava a exploração massiva e barata das reservas petrolíferas do mar Cáspio, cujo petróleo podia ser exportado pelos EUA e países da União Européia através de um original sistema de transporte AMBO (mar-terra-mar) que a Halliburton pretende inaugurar em 2010, e que já custou 1,3 bilhão de dólares. As principais vantagens estratégicas deste projeto são: 1) As transnacionais podem negociar os contratos de venda do petróleo diretamente com os pequenos Estados produtores, na maioria monitorados pelo Departamento de Estado; 2) Todas as operações de perfuração e escoamento do petróleo não dependem mais da intermediação de sociedades russas; 3) Os altos níveis de extração de petróleo na região do Cáspio compensam a baixa da produção no Iraque; 4) Para evitar o congestionado acesso ao Mar Negro (no estreito de Bósforo transitam só navios-petroleiros de porte médio com 150 mil toneladas), o petróleo é transportado com navios do terminal petrolífero da Geórgia até o porto búlgaro de Burgas, onde
um megaoleoduto leva o petróleo do Cáspio até o porto albanês de Vlore – onde será recarregado nos superpetroleiros de 500 mil toneladas e transportado até os EUA e países europeus. O único inconveniente deste projeto: “o oleoduto devia passar por Kosovo, que, em 1995 era ainda uma província da Federação Socialista da Iugoslávia”. Por isso, enquanto os países da OTAN criavam as condições políticas para destruir a Iugoslávia através de uma sistemática “guerra humanitária para o restabelecimento da democracia”, os serviços secretos dos EUA (CIA) e do Reino Unido (M-15) montavam as peças do Exército de Libertação de Kosovo. O preço desta operação era alto, visto que tiveram que fechar os olhos sobre os criminosos negócios (contrabando, narcotráfico, lavagem de ativos de origem mafiosa) aos quais o “líder” Hashim Thaçi e os homens do ELK estavam diretamente envolvidos. Conclusão: em 1999, os EUA e a OTAN atacaram a Iugoslávia e “libertaram”o Kosovo. Logo, o Pentágono encarregou a empresa Brown & Root para construir no Kosovo duas bases militares de grande importância estratégica, Camp Bondsteel e Camp Monteih. Outra, surgiu em Khanabad, no Uzbequistão, onde se encontram 70% dos campos petrolíferos das reservas do Cáspio. Já não é mistério; hoje todo o mundo sabe que as bases de Camp Bondsteel (que ocupa um perímetro de 10 quilômetros quadrados) e Camp Monteih foram construídas para controlar as estações de bombeamento do oleoduto em Kosovo, garantindo, assim, um “seguro escoamento” do petróleo para todos os países do Primeiro Mundo.