Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 263
São Paulo, de 13 a 19 de março de 2008
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Via Campesina
DIA INTERNACIONAL DE LUTA DA MULHER
Brasil paga aos especuladores as maiores taxas de juros O Brasil voltou a ser o país com a mais alta taxa básica de juros do mundo. O Banco Central justifica que o atual patamar da Selic se deve à cautela diante da pressão inflacionária e ao cenário de incertezas da economia mundial. Notese que, mesmo alta, em relação aos padrões internacionais, a atual taxa é a menor da história do Brasil. Entretanto, especialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato criticam as medidas do Banco Central e apontam as conseqüências nefastas dessa política econômica, tais como a sujeição do país aos ataques especulativos e a posição de exportador de commodities e produtos de baixo valor agregado. Pág. 3
Mil mulheres da Via Campesina ocuparam os trilhos da Estrada de Ferro Vitória-Minas, uma das principais ferrovias da Vale (ex-Companhia Vale do Rio Doce), no município de Resplendor (MG), a fim de chamar a atenção para as 2 mil famílias desabrigadas pela Barragem de Aimorés
Votorantim gera lucro e pobreza no Paraná
Mulheres protestam contra transnacionais e agronegócio ilegalidades cometidas pela companhia que explora a monocultura de eucaliptos. Esses atos marcaram a abertura e o encerramento da jornada de lutas do 8 de março da Via Campesina, a qual movimentou 17 Estados. Em artigo, a feminista Nalu Faria explica que a luta das mulheres é por transformação integral da sociedade. Págs. 2, 4 e 5
5 ANOS DA INVASÃO DO IRAQUE
ONU pede para bolivianos pararem de mascar coca As Nações Unidas (ONU), através do informe de 2007 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, “exorta os governos da Bolívia e do Peru a adotarem medidas, sem demora, com vistas a abolir os usos da folha de coca”. O governo da Bolívia rechaçou a recomendação, chamando a junta de “ignorante e
anacrônica”. Acullicu ou pijcheo são duas palavras que a ONU definitivamente não conhece, relata Igor Ojeda, correspondente do Brasil de Fato na Bolívia. Ambas significam, em aymara e em quéchua, o ato de se mascar folha de coca – um costume de mais de 3 mil anos dos povos andinos. Pág. 9
Casey Rogers
Afundando no Iraque: guerra “comemora” cinco anos e segue em frente, gerando lucros para poucos
Sgt. Samuel Bendet/US Air Force
No dia 10, mil mulheres da Via Campesina ocuparam os trilhos de uma ferrovia da Vale em Minas Gerais para denunciar o desalojamento de 2 mil famílias atingidas pela Barragem de Aimorés, que fornece energia barata para a mineradora. No dia 4, 900 camponesas já haviam entrado numa fazenda da Stora-Enso, em protesto contra
O bom desempenho da transnacional Cimentos Votorantim em Rio Branco do Sul, cidade próxima a Curitiba (PR), contrasta com as condições precárias de vida da população local. De acordo com o anuário da empresa controlada por Antônio Ermírio de Moraes, apenas o ramo de cimentos lucrou R$ 5,2 bilhões, em 2006, com crescimento de 29% nas receitas. Já as suas duas fábricas no município geram 625 diretos e cerca de 300 indiretos. As plantas atraem para seu entorno pequenas indústrias de cal e serrarias, que abastecem a Votorantim de matéria-prima e oferecem trabalho degradante e mal pago para boa parte da população. Pág. 7
A divisão dos lucros da guerra Empresas brasileiras exportam uniformes e coturnos A cada dólar gasto, a cada gole de refrigerante, a cada bota furada, ou uma colherada num prato de cereais, empresários de diferentes pontos do planeta estão engordando suas contas bancárias com a guerra do Iraque, que completa 5 anos no dia 20 de março. O Brasil também “conquistou” sua fatia nesse consórcio. Os soldados que hoje matam no Iraque
usam uniformes fabricados por cerca de dez confecções mineiras das cidades de Divinópolis e Formiga. Os coturnos também são feitos em Minas Gerais, além de São Paulo e Paraná. A empresa Arroyo, de Franca (SP), por exemplo, exporta coturnos para serem usados no deserto. Cada empresa abocanha sua parte dos mais de um trilhão de dólares já gastos em uma
guerra que custa cerca de 2 mil dólares por segundo, ou 275 milhões de dólares por dia. Uma guerra que já matou 700 mil iraquianos, perdeu 4 mil estadunidenses e produziu 4 milhões de refugiados. Pág. 12
9 771678 513307
00263
Conflito na Colômbia já é regional A regionalização do conflito entre Colômbia e Equador é um fato apesar do aperto de mãos protagonizado por Álvaro Uribe e Rafael Correa. A partir de 1988, com a implementação do Plano Colômbia, os grupos armados foram empurrados para regiões fronteiriças e, muitas vezes, se refugiaram nos países vizinhos. Pág. 10
Bolivianas sorriem em banca que vende folhas de coca para mascar
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editorial NÃO CANTEMOS vitórias antecipadas. No entanto, não há dúvida de que o resultado da última reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em Washington no dia 4, foi a maior derrota colhida pelos Estados Unidos nesse organismo desde sua fundação (1948). A vitória da proposta dos governos e organizações progressistas e de esquerda do continente – de uma saída pacífica e negociada para o bombardeio e invasão do território equatoriano por forças militares colombianas – é uma derrota do belicista Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, e sobretudo do seu colega e patrono, George W. Bush, dos EUA. O tamanho dessa derrota é exatamente o mesmo do ódio e/ou do silêncio com que a grande mídia do nosso país tem tratado os resultados obtidos pela diplomacia brasileira e latino-americana. A iniciativa imediata dos governos e da diplomacia dos principais países da região – Brasil, Argentina e Chile – e o tensionamento desencadeado pelo governo do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, deslocando batalhões de blindados para a fronteira colombiana para, em seguida, apostar numa saída negociada, foram fundamentais: a OEA deixou claro que não tolerará invasões. O resultado conquistado na OEA foi confirmado no dia 7, pela
debate
Internacionalizando a paz reunião do Grupo do Rio, em São Domingos. A declaração final desse fórum afirma: “Rechaçamos essa violação da integridade territorial do Equador e (...) reafirmamos o princípio de que o território de um Estado é inviolável e não pode ser objeto de ocupação militar, nem de outras medidas de força tomadas por outro Estado, direta e indiretamente, qualquer que seja o motivo, ainda que de maneira temporal”. Ora, em linguagem diplomática, a inclusão do “indiretamente” no texto da declaração implica um claro recado para a Casa Branca. Mas, além dos países americanos, governos de países europeus como da França, Espanha e Suíça, que mediavam ou mantinham negociações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), visando resolver a questão dos prisioneiros mantidos pelos guerrilheiros (especialmente da senhora Ingrid Betancourt), protestaram contra a invasão do Equador e o assassinato de Raúl Reyes, o número 2 das Farc. Sem dúvida, as Farc sofreram importantíssima baixa com o assassinato de Reyes, seu grande porta-voz e diplomata, agora repicada com o assassinato de Ivan Ríos (ler pág. 10). Alguns analistas entendem que as
resoluções na esfera da diplomacia significariam uma vitória do presidente da Colômbia, uma vez ambos os organismos internacionais não condenaram nem impuseram sanções contra o governo colombiano (ler pág. 10). Mas, o problema Colômbia não deve ser, nem será resolvido (bem como o de qualquer país) apenas por ações externas. Medidas diplomáticas conseqüentes devem apostar sempre na criação de condições internacionais favoráveis para que os problemas internos (contradições internas) do próprio país em pauta se agudizem, e para que sejam as próprias forças políticas internas a resolver a crise na direção almejada pela diplomacia internacional. Ação externa e interna devem ser complementares. Além de poder até mesmo dividir governos da região, neste momento, qualquer medida mais dura e que ferisse o brio dos colombianos, certamente ajudaria a jogá-los nos braços da retórica nacionalista que vem sendo utilizada pelo chefe de governo que, entre outros, tem utilizado a bandeira nacional como o principal símbolo de sua campanha de permanência no poder – não por outro motivo, quatro astronautas da
crônica
Nalu Faria
Uma luta por transformação integral da sociedade
dução que marca a vida de milhões de mulheres. A responsabilidade quase exclusiva com o trabalho doméstico permanece como encargo delas, mesmo quando se recorre às soluções de mercado, contratando trabalhadoras domésticas. Várias outras questões podem ser enumeraradas como problemas que persistem, tais como os dados alarmantes de violência, os menores salários, a baixa participação nos cargos políticos, a exigência da maternidade. Nos últimos anos, vive-se um paradoxo: de um lado cresceu a incorporação do tema da igualdade de gênero nos campos normativos e institucionais, tais como governos e instituições multilaterais. Ou seja, há uma institucionalização das questões trazidas durante muitos anos pelos movimentos de mulheres. De outro lado, os dados em relação a condição das mulheres trazem elementos complexos, seja em relação à pobreza e desemprego, ao tráfico e prostituição, à responsabilidade com a manutenção das famílias, assim como o aumento da contaminação pelo HIV, entre outros. Há também um evidente retrocesso ideológico que vai desde os ataques ao direito ao aborto nos países onde é descriminalizado, ao reforço dos setores “pró-vida” e a perseguição das mulheres que recorrem ao aborto nos países onde o mesmo é criminalizado. Nessa avaliação dos retrocessos está a expansão da mercantilização da vida das mulheres, que também é marcada pela dimensão de classe. De um lado, as privatizações dos serviços públicos, a diminuição do Estado de bem-estar aumentou o trabalho doméstico e de cuidados para as mulheres. Ou seja, foi sobre seus ombros que recaiu uma enorme carga de trabalho, com a diminuição das políticas sociais. Faz parte desse processo o que muitas estudiosas chamam de globalização dos serviços de cuidados, que se refere ao grande contingente de mulheres que migram dos países do sul para o norte para trabalhar como empregadas domésticas e cuidadoras em geral.
Nota De acordo com a agência EFE, as Farc lançaram comunicado sobre o assassinato de Ivan Ríos, no qual afirmam que “A mentira ruim é a arma favorita do governo narcoparamilitar de Uribe”, informam que suas “instâncias superiores trabalham (...) no esclarecimento dos episódios” e prometem, para muito breve, uma informação da guerrilha “crível e respeitável sobre os últimos eventos”.
Marcelo Barros
Casaldáliga: testemunha da ressurreição Gama
ATUALMENTE É cada vez mais comum ouvir que a vida das mulheres mudou muito, que já conquistaram tudo. Junto com isso cresce uma outra idéia de que as mulheres são mais protetoras, cuidadosas, éticas. Essas características muitas vezes são usadas como argumentos para dizer que as mulheres são eficientes ou até mesmo superiores. À primeira vista, isso até parece algo positivo, como se fosse um contraponto à misoginia que cultiva o ódio e a desvalorização do feminino e das mulheres. No entanto, essa visão vincula à maternidade as habilidades construídas pelas mulheres e reforça que existe uma essência, fixando-as no seu papel considerado tradicional. Portanto, segue não considerando as mulheres como seres dotados de razão e inteligência, tais como os homens, e vincula suas características à biologia. A análise da história ou dos dados atuais mostra que as mulheres vivem em uma posição de desigualdade ao longo de milênios. Esse esforço permanente para naturalizar a desigualdade entre homens e mulheres é uma característica da sociedade capitalista. O feminismo atuou, de forma contundente, para mostrar que essa desigualdade é parte das relações sociais, e que estrutura o conjunto da sociedade. As relações sociais entre homens e mulheres estão estruturadas pela divisão sexual do trabalho imbricada à divisão social e internacional do trabalho. A divisão sexual separa o que é trabalho de homem e o que é trabalho de mulher e também hierarquiza, considerando que o trabalho masculino vale mais do que o feminino. É a partir disso que se configura a separação entre uma esfera pública (produção) e uma esfera privada (reprodução) que define o lugar das mulheres na sociedade. Tal processo está ancorado em uma cultura misógina e patriarcal que coloca os homens como superiores e com poder sobre as mulheres. As mulheres resistiram e lutaram para romper com essa ordem e ter acesso à esfera pública, ao trabalho remunerado, à educação, ao controle sobre seus corpos, à participação política e também para compartilhar o trabalho doméstico e de cuidados. O século 20 é considerado por muito(as) estudiosos(as) como o século das mulheres e do feminismo. Isso se refere às profundas transformações que ocorreram na vida das mulheres em várias partes do mundo. Sabe-se que muita coisa mudou, outras não mudaram e algumas se tornaram mais complexas. Um exemplo da complexidade é a tensão entre o tempo da produção e repro-
Discovery, na tarde do dia 4, foram visitar o senhor Uribe em palácio: levavam um documento da Nasa atestando que a bandeira do país fora mandada para o espaço. Ao contrário de humilhar o narco-presidente e transformá-lo em vítima de “aliados das Farc”, e/ou “dos terroristas”, o que poderia fortalecê-lo internamente, os países latino-americanos usaram das velhas máximas: 1. Não basta organizar seu exército, é fundamental desorganizar, dividir, o do inimigo. 2. Nunca encurrale seu inimigo sem permitir que tenha uma porta por onde fugir. Assim, sem motivos para esbravejar contra seus vizinhos, voltou o senhor Uribe para a Casa de Nariño, de onde deve ter acompanhado, no dia 6 (depois da reunião da OEA e antes do encontro de São Domingos), os pelo menos 200 mil manifestantes (quase 3% da população da capital) que saíram às ruas centrais de Bogotá, em protesto contra sua política, sua ligação com os grupos paramilitares de extrema direita e o narcotráfico. Segundo o periódico La Jornada (mexicano) foram gritadas palavras de ordem como “Vamos à rua, derrubar o governo
paramilitar”, outras que acusavam o presidente de “fascista, lacaio do imperialismo” e, até mesmo, “Chávez sim, Uribe não”. O tamanho da manifestação teria surpreendido seus próprios organizadores, do Movimento Nacional de Vítimas dos Crimes de Estado (Movice). Mobilizações de igual caráter foram realizadas em outras cidades da Colômbia e em 150 cidades dos cinco continentes. No que diz respeito às Farc, quanto maior o isolamento internacional e interno do governo Álvaro Uribe, maiores as chances de alcançar a saída negociada que propõe. Convém lembrar que, desde o final da reunião da OEA, já foram retomadas as iniciativas no sentido de levar a cabo as negociações para a libertação dos presos em poder dos guerrilheiros – um dos principais alvos da operação desencadeada pelo narco-presidente Uribe.
Um outro lado da mercantilização é a imposição de um padrão de beleza como uma norma a ser cumprida obrigatoriamente e que supostamente pode ser comprada no mercado. Dessa forma, são colocados no mercado milhares de produtos e propostas que prometem eterna juventude e beleza dentro de uma perspectiva na qual não há escolha e que a felicidade de cada uma está vinculada ao que pode consumir. Ao lado da indústria de cosméticos e da beleza, há uma outra indústria que aufere grandes lucros com o mal estar das mulheres, que é a indústria de medicamentos. Esta também vende ilusões de bem estar e felicidade. A outra ponta dessa estratégia tem a ver com a tentativa de controle pelas empresas da terra, do território e da biodiversidade. E aí se encontra outra vez com as mulheres, que historicamente têm um papel ativo na agricultura, na seleção, preservação das sementes, no conhecimento das plantas medicinais, na defesa da biodiversidade. Todos esses elementos mostram que as vitórias não serão consolidadas enquanto não se mudar estruturalmente o modelo. Olhando para as atuais resistências organizadas pelas mulheres e para o dinamismo de um setor do movimento, é justamente isso que encontramos: as lutas cada vez mais conectam essas várias dimensões. Ou seja, a luta das mulheres não é apenas uma agenda específica a ser agregada a uma agenda macro. É uma luta de transformação integral da sociedade e se entende por isso que não se mudará a vida das mulheres enquanto não se mudar a vida de todas as mulheres. A luta é, portanto, para superar a sociedade capitalista e machista e por construir uma sociedade socialista que rompa com todas as formas de exploração, opressão e discriminação. Nalu Faria é psicóloga, coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.
O FATO DE Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia, completar 80 anos não diz respeito somente a ele e a nós, seus amigos e discípulos, mas a todas as pessoas que participam da parcela da humanidade que busca um novo mundo possível. Pedro Casaldáliga celebrou seus 80 anos discretamente, mas a coincidência deste aniversário com a proximidade da Páscoa é significativa. Tanto para as pessoas que aprenderam com ele a ligar a fé cristã com a fome e a sede de justiça no mundo, como para muitos que não tiveram a oportunidade de conhecêlo pessoalmente, o exemplo de vida e a mensagem de Pedro dizem mais sobre a paixão e a ressurreição de Jesus do que certos discursos religiosos que a humanidade tem cada vez mais dificuldade de aceitar. Paulo Freire insistia que as pessoas se educam no diálogo, a partir da referência de educadores(as) de base. Infelizmente, estas pessoas de referência para a educação popular e a libertação da humanidade são raras. Por isso, a figura frágil, mas espiritualmente gigantesca de Pedro Casaldáliga, é um tesouro apreciado por pessoas e grupos das mais diversas naturezas. Não conheci Pedro no tempo em que ainda morava na Catalúnia, antes de vir ao Brasil, mas conheço pessoas, inclusive um abade beneditino que o teve como mestre e já o admirava como profeta. Todos salientam a capacidade de ser ele mesmo e viver a fé como homem simples e aberto à vida. Pedro chegou ao Brasil quando as Igrejas da América Latina viviam a experiência luminosa da conferência episcopal de Medellín (1968) e o Brasil, grávido das comunidades eclesiais de base e da pastoral popular, enfrentava o desafio de como viver este caminho em plena ditadura militar, consolidada para garantir os privilégios dos poderosos do campo e da cidade. Neste contexto, Pedro aceitou ser bispo da prelazia de São Félix. O jeito de Pedro viver e expressar a fé valorizou a piedade do povo e ajudou-o a passar de uma fé resignada para uma espiritualidade militante. O povo não estava habituado a ver um bispo de sandálias de dedo, morando em casa de periferia e viajando pelas estradas, a pé, de canoa indígena com seus amigos Tapirapé, ou com os transportes coletivos que os pobres tomam para se locomover na região. Com ele podiam conversar sobre os assuntos cotidianos da vida e se tornarem amigos, fossem ou não casados na Igreja, freqüentassem ou não os cultos... Principalmente os lavradores sem-terra e os peões de trecho sempre tiveram em Pedro um padrinho que lhes ensinou a cantar: “Já temos terra no céu. Queremos terra na terra”. Em Goiás, tínhamos dona Aninha, Cora Coralina, a “poetisa das pequenas coisas do dia a dia”. Em São Felix do Araguaia, Pedro fazia exatamente o mesmo, no campo de uma espiritualidade poética do cotidiano. Um dos volumes do seu diário, consagrado aos anos 80, revela isso. Um dia, ele comenta uma conversa com um peão, no outro dia, a preocupação com uma menina que contraiu tuberculose e no outro, o que ouviu de um velho que morria de cirrose hepática, depois de viver sempre bêbado. Nos mosteiros antigos, uma tradição era dar ao ancião que completava 80 anos, um báculo que fazia dele pastor dos seus irmãos, independentemente de qualquer cargo pastoral que tivesse. Neste aniversário de Pedro, além dos votos e felicitações merecidas, do mundo inteiro se ergue uma imensa onda de amor e simpatia que reúne crentes das mais diversas tradições espirituais e pessoas que se declaram como crentes na sacralidade da vida e nos valores humanos. Este fórum invisível, formado por pessoas do mundo todo, certamente dará a Pedro uma força maior na luta cotidiana contra os males do corpo sacrificado em tantos anos de missão radical, vivida no cerrado do Mato Grosso, nos rios do Xingu, pelas estradas do Brasil e por toda a América Central. Ao agradecer esta festa, o que Pedro Casaldáliga continua a nos dizer é que, mesmo se os tempos são mais difíceis e a profecia mais rara, é preciso apostar na esperança e viver, de novo, hoje, a insurreição evangélica, em relação ao mundo e, quando necessário, à nossa própria confissão religiosa. Para quem não sabe, a insurreição evangélica é a energia subversiva do Evangelho, capaz de denunciar as estruturas injustas e a iniciar por nós mesmos um ensaio tímido, mas forte do reino de Deus, projeto divino de paz e justiça. No céu, Deus anda triste com a imagem que sobre ele alguns que se dizem seus amigos dão ao mundo. Pedro é testemunha da ressurreição de Jesus porque segue um mestre aberto e provocador, que nos torna cada vez mais humanos, nos joga para a solidariedade aos movimentos sociais e indígenas e é capaz de mostrar o sol, mesmo no meio das mais escuras tempestades. Um dos poemas de Pedro nos diz: “Saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 32 livros.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alípio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
ECONOMIA Com a Selic em 11,25% ao ano, Brasil ultrapassa a Turquia e volta a pagar os juros mais altos do mundo
Gama
BC mantém taxa de juros altos e país reconquista título incômodo
Renato Godoy de Toledo da Redação NO DIA 5, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) tomou uma medida que rendeu ao Brasil o título de maior taxa básica de juros do mundo: 11,25% ao ano. O Brasil já ocupou esse posto anteriormente e, agora, com a redução da taxa de juros da Turquia, os 11,25% da taxa Selic conduziram o país à primeira posição do ranking. Mesmo em nível alto em relação à economia mundial, esse patamar, que é mantido desde setembro de 2007, é o menor da história do Brasil. Na ata da reunião do Copom, as justificativas para a manutenção da Selic foram a cautela em relação à pressão inflacionária e as prováveis conseqüências da crise nos Estados Unidos. No entanto, especialistas rechaçam a argumentação e apresentam alternativas heterodoxas no combate à inflação e na prevenção à crise financeira estadunidense. Os economistas também apontam os resultados nefastos dessa opção da política econômica, que beneficia o setor financeiro – que bate recordes a cada novo balanço divulgado –, atrai investimentos de curto prazo, chamados de especulação, e relega o país a uma posição de exportador de capitais, commodities e outros produtos de baixo valor agregado. As taxas de juros elevadas tornam o Brasil um porto seguro para a especulação financeira lucrar com os títulos da dívida pública, indexados à Selic. Em 2007, em média, a taxa básica de juros ficou em torno de 13%, e a valorização do real foi de 20% – devido à entrada de dólares no país e à lei da oferta e da procura. Portanto, em um ano, a especulação acumulou um lucro de 33%.
Combate à inflação De fato, a inflação apresentou uma alta em 2007, em relação a 2006, mas na análise de especialistas, a cautela do Copom está muito além da realidade. A inflação (IPCA) passou de 2,96% para 4,36%. Guilherme Delgado, doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que combater a inflação com esse nível de taxa de juros é, no mínimo, um exagero. “A inflação tem outras medidas de combate. A taxa de juros alta é a medida mais cega e burra. É como matar uma borboleta com tiro de canhão”, explica Delgado, pesquisador aposentado do Ipea. Como alternativas ao combate à inflação, ele sugere uma presença maior do Estado na regulamentação da economia. Assim, deveriam ser controlados os preços demarcados pelos oligopólios na agricultura e fortalecida a atuação das agências reguladoras, para combater a alta dos preços administrados, tais como energia, telefonia e saneamento. Delgado também critica a obsessão da equipe econômica pelo combate à inflação, que acaba desprezando outras variáveis econômicas. “De que adianta ter inflação baixa se [o país] tiver desemprego alto, deficit na conta corrente alto e dívida alta? Não pode ser o ‘samba de uma nota só’”, acredita Delgado, referindo-se à primazia do combate à inflação levada a cabo pela equipe econômica do governo.
A professora de economia da Universidade de São Paulo (USP) Leda Paulani partilha desse raciocício. “O Copom usa um argumento clássico: se existe um excesso de demanda, tem que conter a liquidez para reduzir a pressão sobre os preços. É uma tese questionável para quem olha a economia com outros olhos. Ainda que esse argumento possa ser verdadeiro, ele não é suficiente para explicar a manutenção das taxas de juros nesse nível”, opina Paulani.
Impactos Para o economista Reinaldo Gonçalves, professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a manutenção dos juros altos é uma das “patas” do que ele cunha como “quadrúpede macroeconômico”, que caracteriza a economia brasileira nos períodos de Lula e FHC. As outras três são a política de superavit primário alto, o regime de câmbio flexível e a liberalização cambial e financeira. Reinaldo acredita que o quadrúpede tem regido o “crescimento medíocre” do Brasil nos últimos nove anos. Em sua análise, o economista demonstra como os juros altos têm beneficiado os bancos e como dão uma boa margem para que eles elevem suas próprias taxas de juros. “O sistema financeiro utiliza a Selic como intermediação de juros. Eles captam empréstimos no exterior, a juros baixos, e emprestam com juros de 30, 40%. Quanto maior a Selic, maior o spread bancário”, descreve. O spread bancário representa a diferença entre os juros básicos e os juros cobrados pelos bancos.
Economia mundial Além desse impacto, Leda Paulani relaciona essa política econômica à maneira como o Brasil se inseriu na ordem globalizada. Para ela, os impactos da mundialização da economia no Brasil se deram mais no setor financeiro do que no comercial. “Ainda que a abertura comercial tenha impactos complicados para a produção nacional, o principal efeito da globalização tem sido no setor financeiro. O país continua como exportador de commodities e produtos de baixo valor agregado. O setor industrial perdeu sua participação. Por outro lado, temos uma grande abertura financeira, com um grande fluxo de capitais”, analisa. Gonçalves condiciona essa sujeição do país à posição de exportador de produtos primários, que é fruto da baixa taxa de investimento em infra-estrutura a qual, segundo ele, é a menor do mundo. Guilherme Delgado lembra que essa posição no mercado mundial não ocorria em outros tempos. De acordo com ele, nos anos de 1970, houve uma mudança da pauta comercial brasileira com a entrada de produtos industrializados da economia mundial e, na chamada década perdida (1980), a crise financeira atingiu o Brasil e acelerou o processo de “primarização” da economia. “Nunca se agregou tão pouco trabalho ao produto. Agora, exportamos toneladas de soja e toneladas de etanol”, diz Delgado, referindo-se à baixa qualidade dos empregos que geram esses produtos. Roosewelt Pinheiro/ABr
Comissão de Assuntos Econômicos analisa taxas de juros
Brasil não está imune à crise dos EUA, dizem economistas da Redação Um dos argumentos do Copom para a manutenção dos juros mais altos do mundo é a blindagem do país perante um cenário de incertezas na economia mundial. Mas economistas com visões diferentes das da equipe econômica do governo acreditam que o país não está imune a uma fuga de dólares. Frente à crise que se desenha nos EUA, o economista Guilherme Delgado vê o momento como crucial para o Brasil mudar sua postura e evitar repetir recessões da era FHC. “O Brasil tem uma quantidade de reservas que lhe dá um poder negocial de redesenhar a engenharia financeira para enfrentar a crise, da qual não estamos imunes”, analisa. Entre as medidas sugeridas por Delgado, destaca-se uma blindagem contra o investimento de curto prazo para privilegiar o investimento de longo prazo. “Assim poderemos escapar dos efeitos mais negativos. Se repetirmos as medidas dos governos FHC1
e FHC2, teremos recessão e vamos precisar recorrer ao FMI. É hora de proteger nossas reservas”, aponta. Reinaldo Gonçalves não acredita que o governo promoverá mudanças no sentido que aponta Delgado, por ter tido uma postura demasiadamente cautelosa. “Há uma incerteza muito grande [no mercado internacional]. Se o Brasil reduz muito a taxa de juros, o país fica com um buraco muito grande no fluxo internacional de capitais. Como é um governo com uma certa covardia, ele vai continuar pecando por excesso de cautela”, diz. No entanto, mesmo com toda essa cautela, o Brasil não está imune à fuga de capitais, se a crise vier em grandes proporções. Nesse cenário ainda hipotético, nem as medidas mais ortodoxas podem salvar o país, de acordo com Rodrigo Ávila. “Atualmente, o movimento é de entrada de dólares, mas pode haver um de saída. Um agravamento da crise internacional pode reverter em crise interna. Nem aumentando os juros para 40%, como fez o Gustavo Franco (em 1999), vai segurar os dólares no país”, avalia. (RGT)
Entrada de dólares no país não colabora com desenvolvimento Gervásio Baptista/Abr
Capital que Brasil atrai é de curtoprazo e visa retorno seguro e rápido da Redação Se, por um lado, os economistas ortodoxos afirmam que a taxa Selic alta atrai os investidores para o Brasil, os especialistas não-alinhados com o pensamento do Banco Central ressaltam que a entrada de dólares no país não garante nenhuma estabilidade e não é revertida em investimento. Diante dos juros altos e da valorização do real, o Brasil é apontado como a “bola da vez” pelo economista Guilherme Delgado. “É o chamado efeito oportunista. A especulação corre para obter ganhos imediatos. Para os capitais que vão e vêm em seis meses é uma beleza, eles têm o cálculo de risco e sabem da si-
O economista Guilherme Delgado
tuação da economia brasileira”, observa. O economista ressalta que, com esse entra-e-sai de capitais, o país não assegura nenhum tipo de investimento no desenvolvimento. Delgado sugere que haja algum tipo de restrição a essa prática. Rodrigo Ávila, economista da Campanha pela Auditoria Cidadã, também vê a entrada de capitais no Brasil como uma mera especulação moti-
vada pelos juros altos. “Uma verdadeira farra”, diz ele. Reinaldo Gonçalves explica que a tendência do investidor que vem ao Brasil é sair logo, após a realização dos lucros. “Os juros altos na realidade são um elemento que lubrifica mais o movimento internacional de capitais. Com eles, há uma certa garantia em termos de entrada e saída de capital de curto prazo no país”, explica. (RGT)
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Um modelo energético voltado só para fora
Integrantes do MAB acampam na entrada da casa de força da Usina Hidrelétrica de Machadinho
sia (13%) e da China (12%). Sendo assim, por que então o brasileiro paga a 5ª maior tarifa de energia elétrica do planeta?
Entrega Para o MAB, a resposta é a situação gerada pela privatização do setor elétrico. Com a venda das estatais e a construção do novo modelo de energia, a eletricidade foi transformada em uma mercadoria, e quem passou a controlá-la foram empresas transnacionais. Desde então, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reajustou as tarifas residenciais em 386,2%, quase o dobro da inflação. Com a privatização feita no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), o preço da energia elétrica deixou de ser medido pelo seu custo de produção real (baseado na hidroeletricidade) para ser determinado pela energia que tem o maior custo de produção, predominante nos demais países (energia térmica). Ou seja, o modelo energético brasileiro passou a ser organizado para permitir que as empresas controladoras da energia (transnacionais) pudessem extrair as mais altas taxas de lucro. “Governantes levianos e sem visão estratégica entregaram a grupos estrangeiros o controle de estatais que operam grandes usinas hidrelétricas. Hoje, as principais distribuidoras brasileiras estão privatizadas. Cerca de 25% das geradoras tam-
bém já o estão e remetem grandes lucros ao exterior”, afirma Carvalho, citando um processo que prossegue. O governo de José Serra (PSDB) prepara a venda da Companhia de Energia do Esta-
do de São Paulo (Cesp), uma das maiores geradoras do país, sob críticas de sindicatos e especialistas do risco que essa operação pode representar para o abastecimento de energia.
Protestos realizados pelo MAB Em Rondônia, cerca de 700 atingidos ocuparam a Unidade Termelétrica Rio Madeira no Bairro Nacional, em Porto Velho. A manifestação tem como objetivo reivindicar da estatal Eletronorte a solução de problemas das famílias ameaçadas pela construção do Complexo Madeira. Na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, 400 pessoas atingidas pela Usina Hidrelétrica de Machadinho iniciaram uma manifestação na entrada da instalação. Os agricultores reivindicam a solução de problemas acarretados pela construção da usina. Em Tocantins, 200 atingidos, ribeirinhos e trabalhadores rurais sem-terra ocuparam a entrada da obra da barragem de Estreito. Houve confronto com a polícia, mas ninguém se feriu. No Ceará, cerca de 700 atingidos pelas barragens de Castanhão, Jaguaribe e Macito Baturité ocuparam o canteiro de obras do Canal da Integração. Para o MAB, esse canal representa a privatização da água, enquanto os atingidos pela barragem do Castanhão vivem em uma situação precária. Na Paraíba, moradores de diversas comunidades da Grande João Pessoa realizaram, no dia 11, uma mobilização diante do prédio da distribuidora Saelpa. Os moradores vão exigir o cumprimento da lei que determina a cobrança da tarifa diferenciada para os consumidores que utilizam até 140 KW/mês No Paraná, mil atingidos por barragens ocuparam a Usina Hidrelétrica de Salto Santiago, localizada no município de Saudade do Iguaçu, no rio Iguaçu. Após a privatização, durante o governo de FHC, a construção passou a ser da belga Tractebel Energia.
MEIO AMBIENTE
Maranhão procura parceiros para revitalizar a bacia do Itapecuru Em São Luís, seminário internacional discute preservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico
O governo maranhense, em parceria com órgãos nacionais e internacionais, lançou mão de uma experiência criativa: apresentar os desafios de revitalização ambiental e sustentável da Bacia do Itapecuru por meio de propostas transversais que coloquem as populações ribeirinhas e da capital São Luís (MA) como protagonistas do desenvolvimento social. Essa foi a tônica do Seminário Internacional para a Revitalização da Bacia do Rio Itapecuru, que aconteceu nos dias 4 e 5, em São Luís. Na capital e nas cidades da bacia, o deficit de saneamento básico vem provocando excesso de esgotos e de resíduos comerciais e residenciais. As queimadas, utilizadas na criação de pastos, destroem as matas ciliares, e a retirada de areia do leito para a construção civil intensifica o assoreamento. O Itapecuru apre-
A Corte Nacional Eleitoral da Bolívia (CNE) e as nove cortes departamentais decidiram conjuntamente, na noite do dia 7, suspender a realização dos referendos aprobatório e dirimidor sobre a nova Constituição e as consultas sobre o estatuto autonômico de Santa Cruz. Uma das resoluções anula os referendos constitucionais enquanto não exista uma lei que estabeleça o prazo mínimo de 90 dias. A outra estabelece que os governadores não podem convocar consultas regionais, já que esta é uma faculdade do Congresso Nacional. Inflação
Silvia Alvarez de Brasília (DF)
Eduardo Sales enviado especial a São Luís (MA)
Bolívia
Adair Sobczak/RBS/Folha Imagem
MOBILIZAÇÃO Atingidos por barragens ocupam hidrelétricas para criticar preço da tarifa de energia
O MOVIMENTO dos Atingidos por Barragem (MAB) iniciou, no dia 11, uma jornada de mobilizações para denunciar as injustiças do modelo energético brasileiro e o preço elevado da tarifa. Os protestos realizados em sete Estados se inserem nas atividades que marcam, todos os anos, o dia internacional de lutas contra as barragens, celebrado em 14 de março. “Essa luta não é apenas da população atingida pelos lagos. Todo povo brasileiro é atingido pelas tarifas caras, pela privatização da água e da energia, pelo dinheiro público investido nessas obras [via BNDES]. Portanto, a luta da energia deve se transformar em luta popular, porque, antes de tudo, é uma luta pela soberania de nosso país”, analisa Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB. A organização questiona que a energia gerada nesses mega-empreendimentos não beneficia a população em geral, mas sim empresas transnacionais que geram poucos empregos onde atuam. O país, na verdade, vive uma contradição. Gera energia pela tecnologia mais barata: a hidroeletricidade e o cidadão paga uma das tarifas mais elevadas do planeta. “Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), em 2007, a tarifa média espanhola equivalia a 118 dólares por MWh; a francesa, a 90 por MWh; e a norte-americana, 92 por MWh. Pelo câmbio do ano, a tarifa média brasileira equivalia a 147 por MWh”, compara, em artigo, Joaquim Francisco de Carvalho. O Brasil possui 10% do potencial hídrico energético do mundo, só fica atrás da Rús-
saiu na agência
senta apenas 29% da sua vegetação nativa original, com 900 quilômetros de cursos de água desprotegidos e 40% do território suscetível à erosão, conseqüência também de práticas agrícolas e pastoris que degradam as margens dos córregos nas cidades que compõem a bacia. “Há 20 anos, eu navegava no rio com uma canoa. Agora, o assoreamento dificultou isso”, lamenta o ator popular Moisés Nobre, maranhense que reside próximo à Estação Ecológica do Rangedor, em São Luís. Segundo o Governo do Maranhão, se não houver uma ação imediata para a recuperação da bacia do Itapecuru, o abastecimento de água na capital sofrerá um sério colapso dentro de cinco anos. Para o ecologista Moisés Matias, o processo de erosão tem sido permanente, mas a reversão é possível. “Precisamos repensar a concepção de revitalização. O equilíbrio ambiental não se sustenta apenas com o reflorestamento. É necessário gerar renda para que as pessoas não pesquem
os peixes que acabam de nascer e não retirem a areia do leito do rio”, explica.
Sinergia Assim também defende outro maranhense, o governador. “O Estado tem trabalhado em cima de um programa para a região. Não adianta pensar o rio enquanto meio ambiente, matas ciliares. Devemos pensar meio ambiente e ser humano. Devemos pensar em um programa que envolva todos os setores”, afirma ao Brasil de Fato Jackson Lago. Lago destaca que para enfrentar o desafio do desenvolvimento sustentável no Maranhão e vencer os índices de pobreza, seria fundamental organizar o seminário dentro de uma concepção cooperacional. “Ficou claro que não poderíamos enfrentar isso sozinhos. A expectativa é que possamos ver o surgimento de um projeto em que muitas pessoas possam ser coresponsáveis e dividir a porcentagem de responsabilidade”, salienta.
E essa porcentagem pode ser dividida, por exemplo, com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica), representada no evento por Yoshiro Miyamoto. Para ele, os obstáculos principais das ações de sua organização no Brasil são as constantes mudanças dos governos locais. “O Japão considera o Brasil como um parceiro estratégico”, conta.
Distribuição Raimundo Palhano, integrante da coordenação do evento e presidente do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (Imesc), recorda que a tradição maranhense era concentrar as ações de políticas públicas em São Luís. “O produto interno bruto (PIB) da capital corresponde a quase 40% do Estado. Deve haver uma política de regionalização. Trata-se de preservar o rio com formação social”, defende. (Leia mais sobre o seminário na Agência Brasil de Fato)
Durante o mês de fevereiro, em São Paulo, a taxa de inflação para a população de menor poder financeiro foi maior do que a observada para as pessoas com maior renda. A informação foi divulgada no dia 10 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O cálculo geral do Índice do Custo de Vida (ICV) apontou uma leve queda de 0,03%, frente à alta de quase 1% registrada em janeiro. Porém, uma análise segmentada dos números mostra que, no último mês, o custo de vida ficou 0,05% mais caro para os mais pobres. Já os mais ricos tiveram uma queda de 0,06% neste índice.
Apagão em SP
A cidade de São Paulo teve, no dia 4, uma manhã que lembrou o período dos anos 2001 e 2002, quando o país vivia um racionamento de energia e havia a constante ameaça de um apagão elétrico. Uma explosão na subestação Bandeirante da Companhia Transmissora de Energia Elétrica Paulista – Transmissão Paulista (Cteep), na zona sul da capital paulista, causou o desligamento de um disjuntor e deixou quase 3 milhões de pessoas sem luz das 8h54 às 9h39. A Cteep era uma companhia estatal até 2007, quando foi leiloada pelo governo paulista, comandado por José Serra (PSDB) e comprada pelo grupo colombiano ISA – empresa que atua na área de energia e telecomunicações na América Latina.
Bill Clinton
Grupo móvel do governo federal fiscalizou diversas instalações e encontrou mais de 130 pessoas alojadas pela Brenco, nas cidades goianas de Campo Alegre de Goiás e Mineiros, em condição degradante. A empresa é comandada pelo ex-presidente da Petrobras no governo FHC, Henri Phillipe Reischtul, e tem como sócios o ex-chefe da Casa Branca Bill Clinton e James Wolfensohn, ex-presidente do Banco Mundial.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Tortura oficial O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, acaba de vetar uma lei aprovada pelo Congresso que procura limitar os métodos violentos de interrogatório pelos órgãos de segurança daquele país, inclusive a tortura com tentativa de afogamento dos prisioneiros. Ainda tem gente que considera os Estados Unidos de Bush um exemplo de democracia. Pura mentira! Lá, a violação dos direitos humanos é escancarada e oficial. Direitos violados O Brasil vai mesmo de vento em popa na área dos direitos humanos: mais um relatório da ONU aponta a existência de tortura impune no país e vários tipos de violações praticadas sob as barbas das autoridades, inclusive o trabalho escravo; para completar, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal agora é presidida por um deputado da bancada bang-bang, que faz lobby para a indústria de armas. Muito sutil! Lado errado A ação do Estado brasileiro está sempre do lado errado: no dia 4, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul reprimiu uma manifestação das mulheres da Via Campesina com muita violência, deixou mais de 50 feridas; porque estavam dentro da fazenda ilegal da empresa sueco-finlandesa Stora Enso, que afronta a legislação brasileira com propriedade de terra na faixa de fronteira. Isso pode? Petróleo brasileiro Várias entidades sindicais e movimentos sociais do Rio de Janeiro estudam o relançamento da campanha “O petróleo é nosso”, realizada nos anos de 1950, e que obrigou o governo a constituir a empresa estatal Petrobras. Agora a campanha será dirigida contra os leilões que a estatal pretende fazer para privatizar áreas de prospecção de reservas já localizadas e mapeadas. É preciso defender o patrimônio nacional! Outro retrocesso Depois da pressão da bancada ruralista e da mídia burguesa, o governo federal recuou no processo de reconhecimento e titulação das terras pertencentes às comunidades quilombolas. Mais
de mil comunidades ingressaram com o pedido, mas em muitos casos as terras dos quilombolas estão ocupadas por fazendeiros, grileiros e empresas. Agora o processo de titulação ficará parado por tempo indeterminado.
Diáspora jovem A imprensa burguesa deu destaque aos casos de jovens brasileiros barrados no aeroporto de Madri, impedidos de entrar na Espanha e mandados de volta ao Brasil. A classe média fica indignada com o tratamento dado pelas autoridades espanholas. Mas quase nada se fala porque milhares de jovens estão fugindo do Brasil à procura de um lugar melhor para viver. A emigração para a Espanha aumentou quatro vezes no último ano. Euforia estrangeira De acordo com matéria publicada no jornal Valor Econômico, as remessas de lucros e dividendos em janeiro aumentaram 70% em relação à média de 2007. Só neste período as empresas enviaram para suas matrizes no exterior mais de 3 bilhões de dólares. Isso, certamente, em declarações oficiais, fora o caixa-dois e todos os mecanismos camuflados de transferência de recursos do Brasil para fora. Articulação midiática Em reunião realizada no dia 8 de março, em São Paulo, 42 jornalistas, professores de jornalismo e militantes da imprensa alternativa e de esquerda debateram a situação da comunicação social no Brasil e os pontos de convergência e articulação para enfrentar a imprensa empresarial e corporativa, que insiste na agenda neoliberal contra os interesses maiores do povo brasileiro. Mais um passo contra os oligopólios.
de 13 a 19 de março de 2008
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brasil
Votorantim cresce e deixa rastro de pobreza e devastação ambiental Pedro Carrano de Curitiba (PR) MAIOR FÁBRICA de cimentos e argamassa da América Latina, a Cimentos Votorantim fica em Rio Branco do Sul, município vizinho de Curitiba (PR) e um dos sete localizados na região do Vale do Ribeira. Logo na entrada da cidade, justamente ao lado da planta de produção da transnacional, ficam inúmeras áreas de ocupação irregular – à margem de córregos, em terreno acidentado ou em fundo de vale – onde moram operários da empresa. Vivem por lá também trabalhadores vindos do campo, mas que hoje trabalham na capital, fazendo de Rio Branco do Sul apenas uma “cidade dormitório”. Para os entornos da cidade, a Votorantim atrai pequenas indústrias de cal e serrarias. São cerca de 100 serrarias no município vizinho de Itaperuçu, sobre as quais pesam denúncias de trabalho escravo e longas jornadas de trabalho. Tudo isso com CNPJ: 80% das serrarias são regularizadas, apesar de fazerem trabalho ilegal. “Elas são construídas no meio do mato para a fiscalização não encontrar. Os trabalhadores são analfabetos ou semianalfabetos, os empresários não querem registrá-los e pagam a eles R$ 20 por dia para trabalhar das 7h00 às 17h30. Em uma empresa que visitamos, de seis funcionários, três eram foragidos da polícia”, comenta uma militante de associação de moradores local*.
Exploração A Votorantim é uma transnacional que possui uma infra-estrutura mundial de unidades industriais, terminais portuários e logística. De acordo com o anuário da empresa, apenas o ramo de cimentos lucrou R$ 5,2 bilhões em 2006, com crescimento de 29% nas receitas. Na área de papel e celulose, seus números atingem os R$ 3,8 bilhões. A empresa, pertencente à família do mega-empresário Antônio Ermírio de Morais, detém outras 50 empresas em diferentes ramos, exporta zinco, níquel e alumínio, aproveitando a expansão do mercado mundial. Lado a lado com a intensificação da produção está a infração aos direitos trabalhistas e danos ambientais, ainda que o discurso oficial seja de rigor com a legislação. O medo de represálias gera silêncio em Rio Branco do Sul. O último acordo entre o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Cimento, Cal e Gesso e a direção da empresa, em fevereiro, implicou na substituição de uma cesta básica no valor de R$ 220 por um ticket alimentação para os trabalhadores – além de um valor incorporado ao salário. A antiga cesta básica, comprada pela Votorantim a preços baixos, possuía uma maior variedade de produtos. Na mesma negociação com a empresa, o reajuste salarial foi apenas de 1%, descontada a inflação. Poluição Em fevereiro, também aconteceu um acidente ambiental no pátio da fábrica de cimentos. Uma caldeira estava sendo abastecida com óleo e não suportou a pressão. Cerca de 30 mil litros do combustível vazaram para o córrego mais próximo, por meio de galerias pluviais. A Secretaria de Meio Ambiente local afirmou ao Brasil de Fato que o vazamento foi detido antes de chegar ao rio.
Já o povo local confirmou que durante dois dias resíduos corriam em frente às suas casas, às vezes batendo na porta. Um operário da fábrica* que vive em uma das áreas de ocupação da cidade, sem asfalto e saneamento, trabalha carregando os fornos da fábrica com resíduos e pneus. É um dos contratados por empresa terceirizada pela Votorantim. Outros 40 funcionários reclamam do fato de carregarem 1,5 mil toneladas de pneus por mês e de não terem acesso aos dividendos gerados por esse lucrativo processo conhecido como “coprocessamento” (uso de pneus como combustível). Ao lado dos pneus, são depositados nos fornos o material conhecido como “lodo” (fezes humanas) e o poluente carvão mineral. A queima de pneus tem sido rejeitada noutros países do mundo. A porcentagem das pessoas que têm acesso a saneamento em Rio Branco do Sul é praticamente inexistente, de 0,07%. Uma das lutas de uma associação de moradores local é pela instalação de latrinas nas casas – o projeto recebeu recursos federais, mas eles estão detidos na Câmara de Rio Branco do Sul, a mesma do orçamento milionário. * Por segurança e pelo histórico de repressão no Vale do Ribeira, todos os entrevistados da matéria tiveram o nome mantido em sigilo.
Caminhão transporta madeira na rodovia PR-092, que ligae Rio Branco do Sul a Cerro Azul (PR)
Intimidação e desmobilização no sindicato da região Votorantim isola quem organiza trabalhadores.“Não há estabilidade, e pouca coragem de enfrentar”, revela ex-sindicalista de Curitiba (PR) Em Rio Branco do Sul, o quadro é de desmobilização. Alexandre*, ex-sindicalista do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Cimento, Cal e Gesso, atuou durante 14 anos no movimento sindical, a partir dos anos 1980, com o apoio da igreja, em meio à construção do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). “O movimento estava renascendo”, comenta. A primeira paralisação da fábrica, relata, ocorreu em 1984 e 1985. “Durante as eleições de 1986, buscávamos revelar as histórias de Antônio Ermírio de Moraes”, recorda. O dono da empresa era um dos candidatos ao governo de São Paulo. De acordo com ele, a linha atual da empresa é desmobilizar e abafar qualquer questionamento. “Se a pessoa começa a formar qualquer grupo, a fábrica manda a pessoa ir carregar granel, isolada. O sindicato não tem participado das ações comunitárias. Pessoas que nasceram nos anos de 1980 não têm idéia do que seja o sindicato. Hoje não há estabilidade, e pouca coragem
Raio-x A Votorantim é proprietária da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA). Por conta disso, o grupo consome 4% da energia produzida no Brasil, possuindo 29 hidrelétricas próprias. Para efeito de comparação, como a própria empresa aponta, o horário de verão traz uma economia de 5% na energia brasileira. É uma transnacional que está presente na Alemanha, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, China, Cingapura, Colômbia, Inglaterra, Peru e Suíça. (PC) Provopar
Deserto verde O número de plantações de pinus e eucalipto se expande a olhos vistos. Áreas desertificadas no topo dos morros são comuns, ao lado das árvores destinadas para cortes futuros. A plantação de pinus não respeita a legislação ambiental, uma vez que é feita em topo de morro e junto às matas ciliares. Ainda que o foco da companhia na região seja a produção de cimentos, segundo denúncias, a Votorantim é proprietária de plantações na região. Outro grupo empresarial, a Trombini, cuida do corte da madeira. “A expansão do pinus é desenfreada e ilegal em Rio Branco do Sul, sem qualquer estudo na área de preservação ambiental, acabando com a mata nativa. O plantio é feito sem efetiva fiscalização”, afirma pessoa ligada à questão ambiental na cidade*. A participação do poder público neste projeto econômico se dá somente em tempos de estiagem: fo-
cos de incêndio são causados e o corpo de bombeiros local deve estar a serviço das empresas reflorestadoras. O município de Tunas (PR) é apontado pela perseguição, por parte das empresas reflorestadoras, em caso de denúncia, tanto que o antigo secretário de meio-ambiente de Rio Branco do Sul teve o automóvel queimado ao contestar alguns focos de corte ilegal. Em documento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgado em 2006, houve denúncia contra três reflorestadoras de promover trabalho escravo – que afetou 51 pessoas – no Vale do Ribeira.
Jorge Woll/SETR
DENÚNCIA Setor de cimentos da transnacional puxa economia de Rio Branco do Sul (PR), mas população vive em condições precárias
Crianças se reúnem no Clube Ermínio de Moraes, associação de funcionários da Votorantim
Quanto
625 trabalhadores,
aproximadamente, e cerca de 300 empregos indiretos nas duas fábricas de Rio Branco do Sul
de enfrentar. A empresa coloca terrorismo nos funcionários”, afirma. O sindicato continua filiado à CUT. Hoje, porém, defende que a Votorantim segue a legislação trabalhista e florestal com rigor. “A empresa cumpre bem o seu papel em relação ao seguro do trabalho e meio-ambiente”, afirma o presidente do sindicato, Manoel Vaz de Oliveira. Mesmo assim, admite que poderia estar melhor. “Com o investimento na construção civil, esperavase muito mais reconhecimento por parte da empresa, mas conseguimos apenas 1% de reajuste salarial”, lamenta. Alexandre, ao contrário, enxerga que a instalação da Votorantim deu-se dentro de um modelo dependente, dissociado da realidade local, gerando disputas fiscais entre prefeituras, e não um projeto de trabalho para o operariado local.
“Um empreendimento grande dentro do município não gera empregos, gera impostos, para que os políticos se fortaleçam e disputem entre eles”, critica. Do seu ponto de vista, “as pessoas vieram do interior quando da construção da fábrica II da Votorantim. A empresa Trombini entrou comprando a terra, o povo vendeu”, comenta. Segundo ele, após a instalação da segunda planta da Votorantim, cerca de 300 pessoas foram demitidas, substituídas por mãode-obra terceirizada. Partiram então para trabalhar em Curitiba. Antônio Ermírio de Moraes é assinante de coluna dominical na grande mídia, com suas pensatas sobre educação. Mas o curso no Senai, procurado por boa parte dos jovens de Rio Branco do Sul, que buscam trabalhar na Votorantim, já não é mais gratuito. E a cidade não possui instituição de ensino superior. Até o fechamento desta edição (dia 11), a empresa não respondeu à solicitação de entrevista sobre as questões trabalhistas e ambientais. (PC) * Nome fictício.
Monocultura de árvores exóticas destrói florestas e biodiversidade de vapor – dados conhecidos há mais de quade Curitiba (PR) tro décadas. Para Gastão da Luz, a política de monocultura de espécies exóticas remonta à Em curso realizado em Rio Branco do Sul, década de 1960, sob o discurso do regime mio educador e botânico Gastão da Luz realizou litar de crescimento a qualquer preço. Na denúncia do ex-sindicalista Alexanum debate com moradores locais sobre a expansão do pinus e do eucalipto na região. Na dre, as reflorestadoras de pinus e eucalipconversa, apontou o alto uso de agrotóxicos to formam um poder que ameaça os trausado em ambas as culturas para combater balhadores do campo. “Ao menos, organivespas, macaco-prego e fungos. No modelo zar-se dentro das dependências da Votorande monocultura, pinus e eucalipto estão ex- tim não traz ameaças à vida. As reflorestapostos a uma série de fitopatologias, por se- doras, por outro lado, mandam matar. Elas têm o discurso de que preservam a mata cirem exóticas. “Quebra-se toda a teia da vida com a prá- liar, mas na primeira colheita queimam tutica de monoculturas de exóticas, que impli- do”, comenta. Em Rio Branco do Sul, a atividade minecam em uso de agrotóxicos, além da disseminação não controlada de sementes, inviabili- rária é a principal fonte de renda da cidazando uma agrodiversidade possível e não se de. Além da produção de calcário, o segundo mantendo a biodiversidade local. Mas essa é principal minério é o dolomito, matéria-primais uma pérola do que foi apelidado de ‘fo- ma para a produção de soja. Ao fim e ao camento florestal’, regime sob o qual a empre- bo, a Votorantim depende dos recursos husa é dona de solos, ares, águas, corpos, men- manos e naturais de Rio Branco do Sul. Utiliza a água, por exemplo, do aqüífero Karst, tes e lucros!”, acusa. Um eucalipto adulto, no verão, chega a jogar um dos maiores da América do Sul, para a na atmosfera de 700 a 2 mil litros na forma produção da jazida de Saivá. (PC)
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cultura Arquivo Pessoal
Alexandre Vannucchi Leme, tentaram calar sua voz. Tentaram MEMÓRIA No dia 17, completam-se 35 anos do brutal assassinato de “Minhoca”, estudante de geologia que insistiu no sonho de uma nação soberana em meio à ditadura militar Amancio Chiodi
Fernanda Ikedo de Sorocaba (SP)
Alexandre Vannucchi Leme, vítima da ditadura militar
Ainda durante a ditadura, praça de Sorocaba recebeu seu nome Iniciativa veio de vereador do MDB que, depois, seria indiciado por apologia ao crime de Sorocaba (SP)
preso, torturado barbaramente até a morte, sendo enterrado como indigente e que Sorocaba, modestamente, estaria reconhecendo o valor de seu filho jovem, morto aos vinte e poucos anos, “pelo único crime de pensar em um Brasil democrático e soberano para todos”. Somente após Pereira ter prestado depoimentos e terem ocorrido diversas reações de repúdio contra o inquérito, por parte de profissionais liberais, estudantes, políticos e militantes, a peça policial foi arquivada. Além da praça em Sorocaba, Alexandre dá o nome ao DCELivre da USP e a uma escola de Ibiúna (SP). Por sua resistência ao autoritarismo e pela defesa da democracia, a trajetória de Alexandre não deve ser esquecida jamais, faz parte da história contemporânea de nosso país e, como escreveu Dom Paulo Evaristo Arns, “os povos que não podem ou não querem confrontar-se com seu passado histórico estão fadados a repeti-lo”. (FI) Fotos: Pedro Viegas
Durante a infância, Alexandre Vannucchi Leme jogou futebol com os amigos e vizinhos num campinho de terra próximo a sua casa, no final da rua Amazonas. Em 7 de outubro de 1978, cinco anos após sua morte, esse lugar, onde foram realizadas milhares de “peladas”, foi transformado em praça pública e recebeu seu nome. Conforme jornais da época, a cerimônia de inauguração contou com a presença de aproximadamente 500 pessoas, entre amigos, familiares, jornalistas, militantes de movimentos sociais pela anistia e de organizações políticas.
No centro da praça, no bloco de mármore, há, na placa de bronze, a seguinte frase: “Hei de fazer que a voz torne a fluir/ Entre os ossos.../ E farei que a fala/ Torne a encarnar-se.../ Depois que se perca esse tempo/ E um novo tempo amanheça”. A homenagem só se concretizou devido ao pedido do núcleo municipal do Comitê Brasileiro pela Anistia, feito a João dos Santos Pereira, exoperário e vereador na época, pela legenda do partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que anteriormente tinha sido preso e torturado no DOI-CODI. Com os motivos mais nobres, ele fez a indicação do nome da praça, obteve aprovação por parte dos vereadores, e o prefeito da cidade fez o decreto. O que João dos Santos Pereira não esperava é que acabaria sendo indiciado em inquérito policial, acusado de ter feito “apologia de ato e pessoa criminosa”. Constava na propositura feita por ele que Alexandre foi
João dos Santos Pereira, que indicou o nome da Praça Alexandre Vannucchi Leme, inaugurada em 1978
Fernanda Ikedo, a autora dos textos que compõem esta página, é jornalista. Em 2003, ela publicou o livro-reportagem Ditadura e Repressão em Sorocaba: Histórias de quem resistiu e sobreviveu, pela Lei de Incentivo à Cultura (LINC/Sorocaba). Neste ano, também pela LINC, lançou o documentário Porque lutamos! Resistência à ditadura militar, com aproximadamente 55 minutos, que contém depoimentos de pessoas que participaram de diversos movimentos e organizações e que enfrentaram a ditadura. São eles: Adriano Diogo, Aldo Vannucchi, Egle Vannucchi Leme, João dos Santos Pereira, Maria Aparecida de Aquino, Miguel Trujillo e Osvaldo F. Noce. Eles contam suas trajetórias durante as décadas de 1960 e 1970, e como a morte de Alexandre abalou a ditadura. As cópias do DVD foram distribuídas gratuitamente em escolas, universidades, bibliotecas, movimentos sociais e entidades. Os interessados podem enviar correio eletrônico para fernanda.ikedo@gmail.com
COM FORMAÇÃO fraternal e solidária, Alexandre Vannucchi Leme nos mostra, com sua história, que ele sempre se dedicou a pensar o Brasil como uma nação soberana, com seus recursos naturais, mantendo vivo o sonho de ver o povo tendo acesso a todos os direitos básicos, de moradia, alimentação, saúde e educação. Sorocabano, nascido em 5 de outubro de 1950 e de família tradicionalmente católica, “Minhoca”, como era chamado pelos amigos, cursava o último ano do curso de geologia da Universidade de São Paulo. Estava com 22 anos quando, há 35 anos, tentaram calar sua voz na luta em defesa de seus ideais. Devido a sua engajada participação no movimento estudantil e como integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Alexandre foi alvo de perseguição de agentes da repressão do governo militar, que estava na mão do general Emílio Garrastazu Médici. Em 16 de março de 1973, o estudante foi seqüestrado e levado ao DOICODI, temeroso centro de torturas, de São Paulo. Logo sua presença foi notada por outros presos políticos que estavam em celas do corredor dessa instituição. Espancado durante sessões de bárbaras torturas, gritando de dor, Alexandre foi colocado na solitária x-zero. No dia seguinte, foi levado pela equipe A, chefiada pelo torturador de nome “Dr. José” e pelo investigador conhecido por “Dr. Tomé”, e integrada por: “Caio ou Alemão”, “Dr. Jacó”, “Silva”, “Rubens”, comandados diretamente pelo comandante daquele departamento, major Carlos Alberto Brilhante Ulstra. As torturas seguiram até aproximadamente meio-dia, quando o levaram carregado para a cela novamente. Por volta das 17 horas, o carcereiro “Peninha” encontrou Alexandre morto. Seu corpo foi retirado da x-zero arrastado pelas pernas. Naquele mesmo dia prenderam Adriano Diogo, hoje com 59 anos e deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT-SP). “Na solitária que eu entrei, ele acabava de sair morto, esvaindo em sangue. Foi morto lá e eu sei que ele não falou absolutamente nada”, conta Adriano, que era da mesma turma da geologia e também da ALN, ficou preso cerca de um ano. Ele ressalta que seu amigo Alexandre sempre foi um estudioso dedicado. “Tinha uma relação de irmão com ele. O cara tinha um nível de leitura absurdo, era super diferenciado. No trote do Alexandre, ele já escreveu um texto sobre a transamazônica e o ferro manganês, e saímos pelo campus dando palestra”, recorda. A família não sabia do desaparecimento de Alexandre. Somente após um telefonema anônimo, Dona Egle Vannuc-
Painel com fotos de Alexandre, da turma de Geologia, e de sua mãe, Dona Egle
Hei de fazer que a voz torne a fluir Entre os ossos... E farei que a fala Torne a encarnar-se Depois que se perca esse tempo E um novo tempo amanheça chi Leme, mãe do estudante, recebeu a informação de que seu filho tinha sido preso, mais nada. Com a atrocidade da estrutura montada pela ditadura militar e ignorando as dores da família, os torturadores tentaram cobrir o assassinato do estudante divulgando para a imprensa uma versão: o estudante teria sido atropelado por um caminhão na esquina da rua Bresser com a avenida Celso Garcia, em São Paulo. Foi desse modo, pelo jornal Folha de S. Paulo, do dia 23 de março de 1973, que parentes e amigos tomaram conhecimento do que havia acontecido a Alexandre. O laudo necroscópico dele, assinado pelos médicos Isaac Abramovitc e Orlando Brandão, afirmava a versão da polícia. Tanto a comunidade cató-
lica como os estudantes mobilizaram-se realizando protestos, culminando na grande missa realizada na Catedral da Sé, que reuniu cerca de três mil pessoas e demonstrou a mobilização do povo contra a ditadura militar. Os estudantes da USP solicitaram ao cardeal dom Paulo Evaristo Arns essa missa em homenagem a Alexandre. Ela ocorreu em 30 de março, numa clara demonstração de bravura e resistência do povo. Para a historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora de História Contemporânea da USP, essa mobilização acarretou na reorganização do movimento estudantil. Adriano Diogo possui a mesma opinião: “a ditadura começou a cair naquele dia, no dia em que o movimento estudantil se organizou com dom Paulo”. O corpo de Alexandre foi jogado numa vala do cemitério de Perus, como indigente, ou seja, sem qualquer identificação, mesmo tendo sido publicada em diversos jornais a notícia da morte do estudante com os dados pessoais, incluindo a filiação correta. Somente dez anos depois, em 1983, a família conseguiu fazer o traslado dos restos mortais para o cemitério de Sorocaba, cidade natal do estudante. Pedro Viegas
Noite de vigília de Alexandre, 10 anos após sua morte
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américa latina
Desrespeito a uma cultura milenar Ruth Chong
TRADIÇÃO Bolivianos rechaçam recomendação da ONU para que se proíba o hábito de se mascar coca e defendem qualidades da planta Igor Ojeda de La Paz (Bolívia) ACULLICU OU pijcheo. Duas palavras que a Comissão de Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (ONU) definitivamente não conhece. Pelo menos não no seu sentido mais transcendente, cultural. Sagrado. Ambas significam o ato de se mascar folha de coca. A primeira é em aymara, a segunda em quéchua, as duas principais línguas indígenas da Bolívia. Acullicar ou pijchar, no entanto, vão mais além que isso. São um costume de mais de três mil anos dos povos andinos, assim como também são milenares os usos da planta na região. Nas reuniões de sindicatos ou movimentos, em encontros de amigos, em festas, no trabalho nas minas, em rituais religiosos, em tratamentos médicos. Em muitas ocasiões do cotidiano boliviano, a coca ou o ato de mastigá-la está presente como elemento central. Freqüentemente, a bochecha avultada de alguma pessoa acusa o acullicu ou o pijcheo que, além de tudo, estão associados a inúmeros benefícios medicinais e nutritivos. Pois a ONU, através do informe de 2007 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), entidade colaboradora de sua Comissão de Entorpecente, “exorta os governos da Bolívia e do Peru a adorarem medidas, sem demora, com vistas a abolir os usos da folha de coca contrários à Convenção de 1961, incluída a prática de mascá-la”.
“Esse é nosso pão, o sustento de nossas famílias. A ONU não pode nos destruir com suas leis que impõem que a coca e o acullicu devem morrer”, revolta-se Pastor Mamani, dirigente da Federação de Chulumani Sustento
A Convenção de 1961 inclui a planta andina em uma lista de entorpecentes proibidos internacionalmente. De acordo com o documento, a mastigação de coca, assim como o consumo de chás ou qualquer outro derivado, tem um impacto no aumento da dependência às drogas na Bolívia, que, segundo a entidade, vem aumentando. Desse modo, a ONU pede que, além da proibição ao consumo de coca, o governo adote programas educativos que previnam “a expansão dessa prática aos estudantes e jovens em geral, aos condutores de veículos de transporte público e a outros grupos vulneráveis da população da Bolívia”. “Esse informe produz um dano grande a nós que cultuamos a coca e acullicamos. Não é a coquita que mata, que envenena. Ao contrário, ela nos dá força para o trabalho. Não podem cortar o acullicu e a coca. Esse é nosso pão, o sustento de nossas famílias. Nós temos todo o direito de nos mantermos, de sobrevivermos. A ONU não pode nos destruir com suas leis que impõem que
a coca e o acullicu devem morrer”, revolta-se Pastor Mamani, dirigente da Federação de Chulumani, organização de plantadores de coca da região de Yungas, ao norte de La Paz. “Em seu estado natural, ela não é droga. É uma folha sagrada, milenar”, completa. Para a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a ONU considera a folha de coca ruim porque “lhe disseram isso há muitos anos”. Segundo ela, existem produtos realmente danosos que não são levados em conta, como o tabaco e o óleo reciclado. “Ninguém sabe, fora dos EUA, que, antes de entrarem nas partidas, os jogadores de futebol americano mascam tabaco. Agora, muito mais prejudicial que o próprio tabaco é o óleo reciclado, cuja permissão de utilização foi dada em 1996 pela Organização Mundial da Saúde. Sabemos que ele causa câncer de fígado e pâncreas”.
“Aberração”
Na opinião da socióloga Silvia Rivera, o informe da ONU é uma agressão à soberania boliviana e à cultura indígena. Além disso, baseia-se em um estudo sem rigor científico e vai de encontro aos interesses da medicina ocidental. De acordo com ela, em 1950, a entidade enviou à Bolívia uma comissão para investigar a folha de coca. “O documento que se originou daí era uma aberração, baseado em especulações, em provas fragmentárias. Só estiveram aqui 18 dias e entrevistaram donos de fazendas, capatazes de minas, engenheiros, médicos. Nunca chegaram diretamente ao consumidor. Quem dirigia essa comissão era o presidente da American Pharmaceutical Association”, conta. Segundo a socióloga, nessa época havia uma medicina com uma visão progressista, que considerava superstições qualquer medicina indígena. Desse modo, tal estudo segue vigente e, com base nele, a coca foi incluída como substância ilegal na Convenção de 1961. Ela lembra, ainda, que uma cláusula desta convenção permitia a produção, a compra e venda e o transporte da folha de coca apenas para saborizante sem alcalóides. “E a patente mundial da coca como saborizante é da Coca-Cola. Ou seja, se protege os interesses dessa corporação”.
Interesses
No entanto, para Rivera, outros interesses também são atendidos, como os da indústria farmacêutica e da medicina ocidental. “O negócio é mais importante que a saúde. O objetivo não é curar, mas criar dependência. É o vício à droga tolerado. Nesse contexto, a coca é uma ameaça”. Acompanhando a indignação da população em geral, o governo da Bolívia rechaçou a recomendação da ONU, chamando a Jife de “ignorante e anacrônica”. No dia 10, em Viena, na Áustria, uma delegação do país deixou claro seu protesto na abertura da reunião da Comissão de Entorpecentes do organismo. Em seu discurso, o vicechanceler boliviano, Hugo Fernández, criticou a “desconsideração e falta de respeito” da Jife com relação a uma tradição de mais de três mil anos. Na ocasião, Fernández anunciou uma solicitação formal de retirada da folha de coca da lista de entorpecentes da ONU.
Tratamento anti-drogas com base na coca Jorge Urtado, médico boliviano fundador do Museu da Coca de La Paz, contraria radicalmente a afirmação da ONU de que o acullicu leva ao vício em relação às drogas. Ele utiliza justamente a mastigação da folha de coca para recuperar dependentes de cocaína. De acordo com ele, antes de usar tal método, 25% dos viciados deixavam de consumir a droga. Com o acullicu, a proporção subiu para 50%. (IO)
Comerciante vende folha de coca em feira boliviana
“Coca não é cocaína” Pesquisadores relacionam as propriedades medicinais e nutritivas da “folha sagrada” Quanto
de La Paz (Bolívia) O argumento de pesquisadores bolivianos e cidadãos comuns é contundente. “Coca não é cocaína”, dizem. Eles deixam claro que a cocaína é produzida através de um alcalóide da planta, e que, para isso, ele deve passar por um processo químico. Mas, mais que tudo, defendem as diversas propriedades medicinais e nutritivas da “folha sagrada”. Segundo a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a planta andina atua nos sistemas respiratório, digestivo, circulatório e nervoso central. “É boa para dor de estômago, dor muscular. Eu, por exemplo, emagreci 14 quilos. Eliminei o problema grave de gota que tinha. Sintome muito bem, fisicamente e espiritualmente. Vejo a vida com outros olhos”, conta. Ela explica também que a folha de coca contém uma grande quantidade de cálcio, maior, por exemplo, que a do leite. Tal nutriente ajuda a fortalecer os ossos e a combater a osteoporoses. “Por isso que os fósseis de nossos antepassados, quando desenterrados, possuem arcadas den-
15 vezes é quanto a coca possui a mais de fibras do que os vegetais
tais completas”, exemplifica. A folha de coca, de acordo com alguns estudos, elimina gorduras, o colesterol e os triglicérides, combate diarréias e hemorróidas, previne o câncer do cólon e do reto e é um bom suplemento para diabéticos. A planta, além disso, aumenta o rendimento físico em trabalhos longos, pois faz baixar a produção de adrenalina e, conseqüente-
mente, o consumo de oxigênio. Daí o seu uso abundante nas minas. Um estudo de 1973, realizado por investigadores da Universidade de Harvard, dos EUA, concluiu que a coca possui uma completa gama de vitaminas e minerais. Ela contém, por exemplo, três vezes mais fibra que os legumes, 14 vezes mais que as frutas e 15 vezes mais que os ve-
getais, além de uma grande quantidade de vitamina A. “Os lugares de grande altitude da Bolívia possuem comidas com poucas fibras, muitos carboidratos e bastante gordura. E a falta de fibra produz muitos problemas de estômago. Minha proposta é a industrialização da farinha de coca para adicionar à farinha de trigo ou qualquer outra”, explica Maria Eugenio. É isso o que faz Silvia Quisbert, de uma padaria ecológica de La Paz. “Nós trabalhamos com a farinha de coca orgânica. Colocamos 90% de farinha de trigo, ou de milho, e 10% de farinha de coca”, explica. O resultado são as tortas, bolos, bolachas, empanadas e até chocolates que ela produz, todos com uma coloração verde. Para a micro-empresária, a recomendação da ONU se deve à má informação por parte dos responsáveis pelo informe. “Nossa folha sagrada não surgiu esse ano. É nossa alimentação”. (IO)
Três milênios de tradição indígena Rob Tron
de La Paz (Bolívia) O uso da folha de coca pelos povos indígenas dos Andes remonta a mais de três mil anos. A descoberta de estátuas representando humanos com uma protuberância em uma das bochechas demonstra que o hábito de mascar coca é milenar. De acordo com a socióloga Silvia Rivera, a coca, para os andinos, era um bem de grande valor, e possuí-la era sinal de prestígio. Na época do Império Inca, havia, inclusive, plantações estatais. “Seu uso tinha a ver com as relações de poder”. Já na era colonial, os espanhóis costumavam fornecer folha de coca para os índios que trabalhavam nas minas. “Os grandes produtores de coca eram espanhóis. A partir do século XVII, na região de Yungas [ao norte de La Paz], eles começaram a possuir grandes fazendas que utili-
Mineradores mascam a folha de coca
zavam mão-de-obra escrava negra. Nesse período, há um aumento no consumo devido à intensificação do trabalho minerador. Havia uma enor-
me rede de comerciantes indígenas que vinculavam o produtor com o consumidor. Foi a primeira mercadoria indígena moderna”, conta.
A Bolívia é o terceiro maior produtor mundial de coca, depois da Colômbia e do Peru. O governo boliviano estima que, mensalmente, cerca de 1,1 mil toneladas da planta são consumidas no país. Silvia Rivera calcula que existam três milhões de acullicadores. Além do uso medicinal e nutricional, a folha de coca está fortemente vinculada à religião andina, sendo parte central dos rituais. “A religião indígena está baseada no culto aos ancestrais, que estão encarnados em acidentes geográficos, como morros, rios, lagos. E em todas as cerimônias se utiliza a folha de coca”, explica. Além disso, a planta possui uma significativa importância na socialização dos povos andinos. “Todo evento social começa sempre com a coca. Toda discussão em um sindicato, em uma organização indígena, todas as festividades, todos os conflitos etc”. (IO)
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américa latina AFP/Eitan Abramovich
Fim da crise não soluciona regionalização do conflito INVASÃO DE TERRITÓRIO Ao não ser condenada de maneira enérgica, atitude de Uribe abre precedente para que ações deste tipo se realizem em outros países vizinhos Claudia Jardim de Caracas (Venezuela) A AMÉRICA Latina esteve à iminência de um conflito armado nas últimas semanas. “Estávamos dispostos a apoiar o Equador até as últimas conseqüências”, admitiu uma fonte do governo venezuelano. Mas, o aperto de mãos entre os presidentes do Equador, Rafael Correa, da Colômbia, Álvaro Uribe e da Venezuela, Hugo Chávez, selou a saída diplomática que amenizou a pior crise vivida pela região andina em décadas. O discurso conciliador de Chávez abriu o corredor político para Uribe – após horas de bombardeios verbais que condenavam a incursão militar do Exército da Colômbia em território equatoriano, em ação que resultou na morte de 25 guerrilheiros das Farc, entre eles, Raúl Reyes, o número dois da guerrilha. No entanto, longe de indicar uma saída para as razões da contenda – a regionalização do conflito armado colombiano – o aperto de mãos, aplaudido (no dia 7) por todos os países membros do Grupo
do Rio e comemorado com especial efusão por Chávez, não significa a eliminação da doutrina de guerra preventiva, até então pouco utilizada na região desde o fim das ditaduras militares.
“Estávamos dispostos a apoiar o Equador até as últimas conseqüências”, admitiu uma fonte do governo venezuelano Qualquer lugar “Perdeu-se a oportunidade de condenar e sancionar de maneira enérgica a violação da soberania do território equatoriano, abrindo o precedente para que ações deste tipo se realizem em outros países vizinhos”, analisa Miguel Hernandez, chefe do departamento de Estudos Latinoamericanos da Universidade Central da Venezuela. “Ao não ser sancionado, o governo Uribe sai fortalecido,
e com ele, suas ações de combate à guerrilha, seja onde for que ocorram estes combates”, advertiu. Na declaração da reunião do Grupo do Rio afirma-se: “Rechaçamos esta violação da integridade territorial do Equador e, por conseguinte, reafirmamos o princípio de que o território de um Estado é inviolável e não pode ser objeto de ocupação militar nem de outras medidas de força tomadas por outro Estado, direta ou indiretamente, qualquer que seja o motivo, ainda de maneira temporal”. Leonardo González, analista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz), considera que, apesar de não ter havido sanção, os presidentes latinoamericanos fizeram com que o governo Uribe entendesse que o princípio de soberania dos Estados tem de ser respeitado.
Guerra preventiva “A política de guerra preventiva aplicada pelos Estados Unidos é algo que não se havia visto na América Latina. Depois da reunião do Grupo do Rio, ficou claro que ne-
Chávez conversa com Uribe durante a 20ª Cúpula do Grupo do Rio , na República Dominicana
Essa não foi a primeira vez que o governo Uribe entra em território vizinho para cumprir seu objetivo de eliminar a guerrilha nhum país está disposto a aceitar essa política de intervenção, mas o problema se mantém latente e permanece enquanto existir o conflito colombiano”, afirma González. “O Grupo do Rio resolveu o problema apenas no âmbito da diplomacia, mas não o problema de fundo”, acrescenta Miguel Hernandez. Essa não foi a primeira vez
que o governo Uribe entra em território vizinho para cumprir seu objetivo de eliminar a guerrilha. Em 2005, Rodrigo Granda, considerado o chanceler das Farc, foi capturado em Caracas sem que as autoridades venezuelanas fossem informadas, provocando a primeira de uma série de crises diplomáticas entre Chávez e Uribe.
Já o primeiro mal-estar diplomático entre Rafael Correa e Álvaro Uribe ocorreu em 2007, no início do mandato do presidente equatoriano, devido a fumigações que o governo da Colômbia realizou com o agrotóxico glifosato na fronteira com o Equador, alegando ser parte de seu plano de erradicação das plantações de coca na região.
Plano Colômbia empurrou Traidor quer 2,6 milhões de grupos para as fronteiras dólares por assassinar Ivan Ríos Reprodução
de Caracas (Venezuela) A regionalização do conflito se aprofundou nos anos de 1980, quando o narcotráfico e as ações paramilitares agem com mais intensidade. Mas o fator determinante que teria empurrado o conflito aos países vizinhos foi a aplicação do Plano Colômbia, iniciado em 1988 no governo de Andrés Pastrana. O presidente do Equador, Rafael Correa, acusou o colombiano Álvaro Uribe de descuidar de suas fronteiras e, com isso, permitir a regionalização do conflito armado colombiano aos demais países da região. “Aqui, os culpados não somos nós, os vizinhos, e sim a Colômbia, que não cuida das suas fronteiras. Nos custa milhões de dólares e sangue cuidar da fronteira norte [com a Colômbia], argumentou Correa, durante uma troca de acusações com Álvaro Uribe, na reunião do Grupo do Rio. Leonardo González, analista do Indepaz, explica que, com as ações do Plano Colômbia, os grupos armados foram empurrados para as regiões fronteiriças e muitas vezes passaram a se refugiar nos países vizinhos. “Esse é o aspecto militar da internacionalização do conflito”, afirma.
Imigrantes A Venezuela é um dos países que há anos tem sentido o efeito da guerra do outro lado da fronteira, que dura quase 60 anos. E não apenas a guerrilha a tem cruzado. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur),
atualmente 200 mil refugiados da guerra vivem na Venezuela. No total, estima-se que 2 milhões de colombianos tenham buscado vida melhor deste lado da fronteira. É o caso do trabalhador informal Nelson González. “Às vezes, acompanhava minha mãe para lavar roupa no rio Magdalena. Um dia, senti uma coisa roçando na minha perna e, quando vi era uma cabeça, me assustei (...) foi então que comecei a entender o que era a guerra que eu ouvia meus pais falarem”, conta González, enquanto arrumava os cintos de couro que vende no centro de Caracas. González conta que decidiu vir à Venezuela para tentar melhor sorte e fugir da guerra em seu país. Quando cruzou a fronteira, há 30 anos, decidiu morar no Estado de Táchira e continuar o trabalho no campo, que havia aprendido desde menino.
De novo “Quando cheguei, trabalhei de empregado em uma fazenda de gado. Juntei dinheiro e consegui comprar um pedacinho de terra, onde tinha uma roça e uns animais. Coisa pouca, só para manter a família, mas estava feliz”, afirma o colombiano. “Até que um dia, estava cuidando do gado quando chegaram uns homens camuflados pedindo “vacuna”, aí pensei: outra vez a mesma história”, recorda. O pagamento de “vacunas” é uma espécie de imposto cobrado pelos grupos armados, sejam eles Farc, ELN ou AUC. O relato do imigrante colombiano é parte do cotidiano de milhares de venezuelanos que vivem nos Estados
fronteiriços com a Colômbia, onde o controle dos grupos armados é quase absoluto. Há um abandono do Estado. O pagamento de impostos e seqüestros é parte da lei local imposta pela violência. “Foi por isso que decidi largar tudo e vir para Caracas. Demorei um pouco para acostumar com a cidade, mas aqui estou longe disso [guerra]”, relata Nelson, em meio ao ruído ensurdecedor da buzina dos carros e de uma apressada ambulância. Para Miguel Hernandez, um dos caminhos para solucionar o conflito colombiano, que também passou a ser problema de seu país, é a normatização da guerra a partir da concessão do status de beligerância às guerrilhas e da compreensão a fundo das causas do conflito. “Não reconhecer que a guerrilha é produto ou reflete de maneira distorcida o conflito que possui profundas raízes geradas pela pobreza e desigualdade social é não entender a realidade colombiana”, afirma Hernandez. Para o analista colombiano Leonardo González, do Indepaz, existem duas saídas: “Uma é a guerra, que é a aposta de Uribe”, disse. A outra opção seria um espaço de diálogo entre governo e guerrilhas, em que os vizinhos, a seu ver, devem participar. “A solução para o conflito deve passar também pela internacionalização da paz. Os vizinhos têm o dever de apoiar uma saída negociada e política, não militar”, avalia González. A cada ano, de acordo com o Indepaz, 10 mil pessoas são mortas em conseqüência da guerra. (CJ)
de Caracas O assassinato de Ivan Ríos por seu guarda-costas, dias após a morte de Raúl Reyes, foi o segundo grande golpe que atingiu as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em menos de uma semana. O Exército colombiano havia oferecido 2,6 milhões de dólares para quem revelasse o local onde estava escondido Ríos, um dos principais membros do secretariado das Farc. Pedro Pablo Montoya, apelidado de “Rojas” convenceu Ivan Ríos a se afastar das tropas durante um combate com o Exército. Longe dos demais rebeldes, matou-o com um tiro na testa enquanto dormia. Rojas cortou a mão direita de Ríos e a entregou ao Exército para comprovar a identidade do comandante das Farc. “É um golpe muito duro, o mais duro nos mais de 40 anos das Farc”, explica Leonardo González, analista do Indepaz. “Militarmente, é mais dura a morte de Ivan Ríos. Politicamente, a de Raúl Reyes. É um golpe militar e moral para as tropas da guerrilha”, acrescenta. Rojas disse ter assassinado o líder guerrilheiro por ter sido pressionado pelo Exército e para preservar a sua própria vida. “Esta situação ocorreu pela pressão do Exército colombiano. Completavam-se 15 dias, a alimentação estava no fim e a qualquer momento entrariam as tropas [do Exército]”, argumentou em uma entrevista concedida no quartel do batalhão do Exército colombiano, dia 9. De acordo com fontes colombianas, desde a morte de Ríos, o secretariado estaria incomunicável. O governo Uribe sentencia
Raul Reyes e Ivan Ríos; membros das Farc assassinados
o início do fim das Farc. “As Farc estão machucadas, estamos chegando ao fim do fim”, disse o comandante do Exército colombiano, general Mario Montoya. González concorda que neste momento o governo está ganhando a guerra, mas, a seu ver, as baixas dos dois líderes guerrilheiros não significa o fim do grupo rebelde. As Farc combatem há muito tempo, sabem se recompor, e acredito que o Exército colombiano conhece bem esta capacidade da guerrilha. É um golpe duro, mas não de morte”, afirma.
Recompensa Rojas advertiu que novas traições ocorrerão no interior da guerrilha devido ao cansaço de alguns combatentes e pela atrativa recompensa oferecida pelo governo colombiano. “Que cumpram [com o pagamento da recompensa]. Eu não espero promessas. Se se fala, se cumpre, para que exista credibilidade com os demais”, advertiu. A decisão de pagar ou não os 2,6 milhões de dólares a Rojas tem divido opiniões na
Colômbia. De acordo com pesquisas de opinião realizadas no país, 60% dos colombianos apóiam que o governo pague a quantia oferecida. O promotor-geral da República, Mario Iguarán, argumenta que “um medo insuperável, um erro invencível ou um estado de necessidade excludente são causas que poderiam exonerá-lo [Rojas] de responsabilidade”, o que significa eximir Rojas de responder pelo crime de homicídio, podendo assim receber a recompensa. Se o Ministério Público optar por julgar Rojas, a estratégia do governo de contar com a colaboração de guerrilheiros desertores para eliminar os líderes da guerrilha se tornará pouco efetiva. “Não estamos no Velho Oeste, onde se oferecia uma recompensa pela captura de alguém, vivo ou morto”, avalia González. “Consideramos que não é ético o fato de se matar uma pessoa e pagar por isso. Isso dá o direito a qualquer pessoa matar a outra que esteja sendo buscada pela justiça.” (CJ)
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áfrica
Horas depois do ataque ao Equador, Somália também é bombardeada ÁFRICA Aviões dos Estados Unidos atacam território somali poucas horas depois do ataque da Colômbia contra o Equador; ações extra-terriroriais em qualquer ponto do planeta indicam inflexão qualitativa na metodologia de guerra AFP/Jose Cendon
No mesmo final de semana que aviões da Colômbia lançaram bombas contra o Equador, aviões dos Estados Unidos bombardearam a Somália. Os ataques ocorreram por uma diferença de poucas horas – as Farc foram atingidas no sábado, dia 1º, e supostos membros da Al-Qaeda, no domingo, dia 2. Sobre o ataque contra o país africano, pouca foi a repercussão, apesar de terem morrido três mulheres e três crianças e outras 20, ficado feridas – entre elas, mais quatro crianças. Tudo indica que uma inflexão na metodologia de guerra está em curso: estabelece-se que, em nome do “combate ao terrorismo”, ataques extra-territoriais possam se dar em qualquer ponto do planeta – com a expectativa da anuência da comunidade internacional. No caso da Somália, bombardeada perto de sua fronteira com o Quênia, mísseis de precisão do Exército dos Estados Unidos foram usados contra duas casas “onde estavam conhecidos terroristas” ligados a operações da Al-Qaeda do Leste Africano. Leia abaixo análise sobre os interesses dos Estados Unidos na Somália, escrita antes do ataque.
Mulher se abriga sob tenda em campo de refugiados em Mogadishu, em novembro do ano passado
Glen Ford A POLÍTICA exterior estadunidense é a causa direta da crise humanitária na Somália – a pior de toda a África, de acordo com funcionários da ONU. Por este motivo, há pouco tempo,
os meios de comunicação de massa corporativos dos EUA diziam pouco ou nada sobre as centenas de milhares de somalis – já são cerca de meio milhão – que enfrentam a morte por fome ou doenças, por causa de uma guerra instigada e facilitada por Washington.
De maneira sistemática a imprensa evita – e assim, encobre – histórias que contradizem a mítica narrativa estadunidense: que os Estados Unidos querem fazer bem ao mundo, e que apenas fazem mal por engano. O terrível dano infligido à Somália foi absolutamente
premeditado, como parte integral dos planos estadunidenses de trazer o falaz argumento da “guerra contra o terror” à África, como fachada para dominar o continente e suas riqueza. Desde o fim formal do colonialismo na África, a política dos Estados Unidos tem sido espalhar o caos naqueles lugares onde Washington fracassou em impor regras, favorecidos pelos seus próprios “homens fortes”. Quando, no começo de 2006, grupos muçulmanos derrotaram os senhores da guerra da Somália – um país que é 99% muçulmano – uma aparência de paz e, pelo menos, alguma esperança pelo futuro se enraizaram no país. Em todos os aspectos, a vida estava voltando ao “normal” para um povo que só havia conhecido enfrentamentos brutais desde 1991. Uma paz desse tipo era inaceitável para a administração Bush, que incitou uma histeria massiva nos Estados Unidos, alertando que a Al-Qaeda estabeleceu uma base na Somália, e atiçou o regime da vizinha Etiópia, histórica rival da Somália, a atacá-la. Os Estados Unidos trabalharam de mãos dadas com os invasores etíopes em todos os níveis do Exército da Etiópia,
enquanto os aviões dos EUA repetidamente provocavam o terror a partir dos céus. Assim que os etíopes plantaram a si próprios no território e impuseram seu governo-fantoche somali na capital, Mogadishu, os Estados Unidos enviaram seus outros agentes africanos à região – o Exército de Uganda – para constituir a maioria das “forças pacificadoras” na Somália. A resistência somali à invasão etíope considerava a estas “forças de paz” africanas em Mogadiscio como agentes dos EUA – e, com respeito ao Exército ugandês, estão certos. Se houve alguma vez uma fórmula para gerar uma guerra sangrenta e prolongada na Somália, essa é a ocupação etíope – a qual já está unificando diversos elementos da população em uma frente de resistência comum. Esta guerra desestabilizará também a própria Etiópia, um país com mais de 1/3 de muçulmanos e casa de muitos que se opõem ao regime ditatorial de Adis Abeba. Se o governo dos Estados Unidos estava buscando um plano para assassinar centenas de milhares de africanos, o encontrou. Desta vez, no entanto, como no Iraque, Wa-
shington tem criado mais caos do que pode manejar. As Nações Unidas acharam necessário organizar o envio de jornalistas estadunidenses para que testemunhassem a carnificina que seu próprio governo tem levado a cabo na Somália – os mesmos estadunidenses que clamam preocuparem-se com o povo de Darfur, e que prometem que o novo Comando Africano dos Estados Unidos trará paz ao continente. Os estadunidenses, assim como os europeus antes deles, trazem apenas a paz dos mortos. (do Global Research, www.globalresearch.ca) Glen Ford é editor-executivo do Black Agenda Radio Report
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internacional
Os lucros da guerra contra o Iraque AFP/STR
5 ANOS DE GUERRA De empresas do setor bélico às de alimento, de empresas de construção civil às de confecção de uniformes, cada uma abocanha sua parte dos mais de um trilhão de dólares gastos até o momento Memélia Moreira de Orlando (EUA)
A cada dólar gasto, a cada gole de refrigerante, a cada bota furada, ou uma colherada num prato de cereais, empresários de diferentes pontos do planeta estão engordando suas contas bancárias Dois meses depois de instalados no Iraque, analistas militares começaram a perceber que esta não seria uma das muitas guerras “de baixa intensidade”, bem ao gosto dos Estados Unidos, e que seria necessário ficar mais tempo para controlar a resistência iraquiana. Então, refizeram os cálculos e, pela nova previsão, os mesmos analistas concluíram que, se a guerra se estendesse até 2010, seu custo total seria de um trilhão de dólares. Faltam dois anos para se chegar a 2010 e já foram gastos mais de um trilhão. Isso significa que nenhum dos cálculos feitos até agora pode chegar perto do valor total a ser gasto. Nem mesmo a pesquisa apresentada pelos professores Joseph Stiglitz, da Universidade de Columbia, e Prêmio Nobel de Economia em 2001, e da professora Linda Bilmes, da Universidade de Harvard, se sustentou por muitos dias. Eles previram um gasto de um a dois trilhões de dólares, mas, esta semana, as cifras já ultrapassaram um trilhão. E o presidente Bush (e seu candidato John McCain) nem de longe acena com a possibilidade de retirada das tropas.
Sem os custos indiretos E as cifras não incluem os custos indiretos da guerra (tratamento médico para aqueles que voltam inválidos física ou psicologicamente, pagamento de pensão às viúvas e aposentadorias por invalidez para os veteranos). E estamos nos referindo apenas à guerra do Iraque. A do Afeganistão gasta bem menos e, tal-
Mãe iraquiana segura nos braços filho morto por atirador desconhecido em Bagdá, setembro do ano passado
vez por isso, seja menos acompanhada de perto pelas organizações não-governamentais que divulgam informações sobre as guerras, entre elas, a Priorities Projects. Essa organização combate a guerra na linguagem que os estadunidenses mais entendem: a língua do bolso. Na sua página da internet, caso um texano queira saber quanto do seu imposto está sendo gasto para matar, basta clicar no mapa e a resposta é imediata. Sem qualquer discurso pacifista, eles apenas calculam quanto daquele imposto poderia ir para o serviço médico e para a segurança e educação.
Quem lucra Mas a guerra não gera apenas mortos e inválidos para sempre. Há também aqueles que estalam a língua de prazer ao ouvir a explosão de bombas. Há quem lucre com esta guerra. Por isso, este mês, um seleto grupo vai comemorar o 5º aniversário da ocupação estadunidense no Iraque. Para eles, essa guerra, a primeira guerra “privatizada” da história da humanidade, transformou-se num “negócio da China”. A cada dólar gasto, a cada gole de refrigerante, a cada bota furada, ou uma colherada num prato de cereais, empresários de diferentes pontos do planeta estão engordando suas contas bancárias. Um dado curioso a respeito das empresas e corporações que trabalham no Iraque é que quase todas elas respondem a processos em diferentes tribunais dos Estados Unidos, ora por evasão de divisas, ora por sonegação fiscal, superfaturamento e até mesmo por desrespeito aos direitos humanos, como é o caso das duas empresas de segurança (responsáveis pelos mercenários). Uma dessas empresas processadas já foi condenada. Exatamente aquela que é responsável pela fabricação de tanques, veículos militares e armamentos, a Custler Battles. Muitos dos carros de combate vendidos não funcionaram, e a Custler foi condenada a pagar multa de 10 milhões de dólares. E também na área de equipamentos pesados, a Boeing e a Lockheed são as duas empresas de engenharia aeronáutica que mais faturam com as guerras do Iraque e Afeganistão. Quem encabeça a lista das empresas que lucram com a guerra é nada menos que a Halliburton. O nome parece não dizer muito, mas é uma das maiores corporações es-
tadunidenses e, entre seus sócios e ex-dirigentes, uma figura que sempre age nas sombras até na política. Trata-se do vice-presidente Dick Cheney. Qualquer estadunidense diz, sem pestanejar, que Cheney é “mais bem preparado que Bush” mas, mesmo assim, preferiu ser vice. E, quando compôs a chapa com George W. Bush, em 2000, Dick Cheney se desligou formalmente da direção da corporação. Apesar disso, continua ativo e garantindo espaço para a Halliburton, não apenas no fornecimento de material para a guerra, como também na reconstrução do Iraque e do Afeganistão. E o que faz a Halliburton? Se alguém pensou na palavra petróleo, acertou. Ela é uma das maiores empresas do mundo em serviços para campos petrolíferos e, também, uma das maiores empreiteiras do planeta. A receita da Halliburton passou de um para 16 bilhões de dólares nesses cinco anos de guerra. Além disso, a Halliburton figura entre os principais suspeitos no roubo das informações da Petrobras, no dia 14 de fevereiro, no Brasil. Sim, a Halliburton está na lista dos interessados no mega-poço de Tupi, descoberto pela empresa brasileira. Para quem tinha alguma dúvida sobre o real motivo da guerra, a lista daqueles que lucram com o holocausto do povo iraquiano é a prova de que a ocupação tem como principal objetivo o controle dos poços de petróleo. Além da Halliburton, outros nomes do setor petrolífero também estão engordando suas contas. Muitos deles, nossos velhos conhecidos, tais como a Texaco, Shell, British Petroleum e Exxon Mobil.
Em segundo lugar A seguir, vêm as chamadas “empresas de segurança”, que são, na verdade, as empresas que fornecem mercenários (eles são contratados a preços que variam de 10 a 15 mil dólares por mês). As duas maiores empresas desse setor que atuam no Iraque são a CACI e a Titan. Em 2005, agentes da CIA declararam ao jornal The Washington Post que 50% dos 40 milhões de dólares do seu orçamento se destinavam a essas empresas. Chamados de empreiteiros, os “funcionários” dessas empresas são os principais responsáveis pelo que se chama de “trabalho sujo”, ou seja, torturas contra os presos
de Abu Ghraib e da base de Guantânamo. As duas estão sendo processadas pela organização Center of Constitutional Rights por tortura e abuso de prisioneiros de guerra.
Construção civil No ramo da construção civil, quem se destaca é a empresa californiana Bechtel. De uma só vez, ela foi presenteada com um contrato de 2,4 milhões de dólares para coordenar a reconstrução da infraestrutura do Iraque. Logo no primeiro trabalho, o primeiro fracasso: a Betchel não concluiu a tempo a construção de um hospital infantil em Bassorá. Para piorar, o orçamento para a construção envergonharia até a Construtora Gautama, pois saltou de 70 para 90 milhões de dólares. É verdade, esse foi o custo de um hospital infantil em Bassorá. O setor da alimentação Para não ficar só na indústria pesada, a guerra distribui seus ganhos também para outros setores, como, por exemplo, o da alimentação. E aí vem a Halliburton de novo. É, essa corporação é dona dos famosos “flocos de milho” Kellog´s, que alimenta dez entre dez soldados americanos. E como misturar cereal com leite? Ora, para isso tem a Nestlé, uma das maiores empresas do mundo no ramo de laticínios e a preferida do governo estadunidense em todas as guerras, desde a Coréia. Quase inexpressiva no cenário internacional, a empresa Kentucky Fried Chicken (fabricante e distribuidora de frango frito nos EUA) abaste-
ce os soldados e mercenários com suas caixinhas de asa, ante-coxa, coxa e peito de frango fritos. A escolha da Kentucky, segundo especialistas, tem objetivos psicológicos, pois suas caixinhas são conhecidas e os soldados, ao recebê-las, “se sentem em casa”.
O Brasil também “conquistou” sua fatia nesse consórcio. Os soldados que hoje matam no Iraque usam uniformes fabricados por cerca de dez confecções mineiras das cidades de Divinópolis e Formiga E para beber? Bom, aí vem mais uma curiosidade do povo americano. Maniqueístas por excelência, até para beber eles se dividem entre direita e menos direita. Os menos direita, que aqui são chamados de “esquerda”, tomam Coca-Cola. Os de direita, que até hoje acreditam que o prato preferido de comunistas são as criancinhas, só bebem Pepsi-Cola. Então, para manter a tradição republicana, os soldados que estão no Iraque são abastecidos pela Pepsi-Cola.
Os lucros do Brasil Mas os lucros dessas guer-
ras não se concentram apenas nas grandes potências. O Brasil também “conquistou” sua fatia nesse consórcio. Os soldados que hoje matam no Iraque usam uniformes fabricados por cerca de dez confecções mineiras das cidades de Divinópolis e Formiga. Entre essas empresas, encontra-se a Marluvas, cujo gerente, Fernando Malta, ao mesmo tempo em que se desculpa por colaborar com as atrocidades que estão sendo cometidas, diz que não perderia “essa oportunidade de gerar lucro para Minas e para a empresa”. E os coturnos são feitos também em Minas, além de São Paulo e Paraná. A empresa Arroyo, de Franca (SP), por exemplo exporta coturnos especiais para serem usados no deserto.
É dando que se recebe Talvez por coincidência, todas as empresas estadunidenses envolvidas na guerra e reconstrução do Iraque foram também os maiores doadores para a campanha de George W. Bush em 2004. Driblando as leis, juntas, elas doaram cerca de 500 mil dólares para a campanha, o que se constitui na maior soma de dinheiro já recebida por qualquer outro nome da política estadunidense nos últimos 15 anos. Entre consulta aos documentos e escrita, a repórter levou 3 horas e 45 minutos para escrever este texto. Durante esse tempo, o povo americano gastou aproximadamente 200 mil dólares para matar crianças, mulheres e homens no Iraque.
Sgt. Timothy Kingston/US Army
ANTES DE você acabar de ler esse parágrafo, os Estados Unidos terão gasto mais de 2 mil dólares para matar indiscriminadamente crianças, mulheres e homens em Bagdá, Basra ou outra cidade qualquer do Iraque. Não, isso não é uma piada. A guerra custa US$ 2.053 por segundo, ou 275 milhões de dólares por dia. E, passados cinco anos de ocupação, matou 700 mil iraquianos, perdeu 4 mil estadunidenses e produziu 4 milhões de refugiados. Todas as previsões de gastos se transformaram em peça de ficção. Em 2003, quando os Estados Unidos deslocaram seus soldados e contrataram mercenários para ocupar o Iraque, os economistas do governo de George W. Bush calcularam que os custos não ultrapassariam 50 bilhões de dólares. Ainda naquele ano, as cifras caíram por terra.
Soldado estadunidense revista casa de família iraquiana