Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 265
São Paulo, de 27 de março a 2 de abril de 2008
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br AFP
Pascal Guyot/AFP
CIA financia dalailama e Repórteres Sem Fronteiras Incensado pelo Ocidente como uma figura lutadora da paz, o dalai-lama é aliado do regime estadunidense. Não por acaso, o “ativista pelo Tibete livre”, que empunhou uma bandeira durante a cerimônia de acendimento da tocha dos Jogos Olímpicos de Pequim é da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF). De acordo com jornalista canadense, ambos – dalai-lama e RSF – há anos são financiados com dinheiro da CIA. Págs. 2 e 11
O começo da ruína do apartheid
Esquerda promete radicalizar contra Estudantes processam leilões de petróleo Xerox por danos morais Há 20 anos, as tropas angolanas, cubanas e do movimento de libertação da Namíbia derrotaram tropas do regime racista da África do Sul e da Unita, que contavam com apoio dos EUA. O combate, ocorrido no dia 23 de março de 1988, ficou conhecido como a Batalha de Cuito Cuanavale e é tido como um marco na derrocada do apartheid sul-africano. Pág. 12
Jovens negros que foram selecionados pelo projeto Afro Ascendentes – programa de “responsabilidade social” do Instituto Xerox –, se sentem enganados e entraram com ação por danos morais contra a empresa. O projeto tinha como objetivo garantir o ingresso de 40 estudantes no ensino superior público ou privado, pa-
gando um curso pré-vestibular e, se preciso, as mensalidades universitárias. O programa, que tinha duração prevista para 7 anos, foi interrompido pela metade. “Não queremos apenas receber dinheiro, mas discutir também essa questão da responsabilidade social”, protesta o estudante Flávio Lemos. Pág. 3
Sindicatos dos EUA ficam sem reação frente à crise O desemprego nos EUA, que, a princípio, atingiria 6,4% em 2009, agora já aponta para 25% entre os brancos e 50% entre os negros. Enquanto isso, tesoureiro da AFL-CIO, maior central sindical do mundo, recebe aplausos ao dizer que solução é trabalhar mais
e por mais horas. É o que relata Memélia Moreira, acrescentando que a mesma central tem distribuído até mesmo uma espécie de “manual de resignação” de um desses profetas de fim do mundo que afirma que a crise econômica está nos planos de Deus. Pág. 11
União contra livre comércio entre Mercosul e Israel
Constituição boliviana ainda é liberal, mas contém avanços
A luta contra a ratificação do TLC Mercosul-Israel é um dos objetivos do Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes para 2008, ano que se completam os 60 anos da nakba – a catástrofe palestina de 1948, que, para 700 mil árabes não-judeus, significou a formação de Israel e a expulsão de suas terras e casas. Pág. 6
A nova Constituição da Bolívia, aprovada em dezembro, não é totalmente revolucionária, mas garante a inclusão dos povos antes marginalizados. Essa é a avaliação de Lucila Choque, pesquisadora da Universidade Pública de El Alto e da Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte. Pág. 10
As 42 áreas em torno da bacia de Santos – preservadas em decorrência da descoberta do campo de Tupi – podem voltar a leilão com a recente cassação da liminar que suspendia a 8ª rodada. Frente à previsão de que um novo leilão deva ser marcado pelo governo Lula, o Fórum Nacional Contra a Privatização do Petróleo e Gás – que reúne entidades que vão desde a CUT
à Conlutas – marcou um seminário nacional para o dia 27 de março. Desde o ano passado, um amplo espectro da esquerda deixou desavenças de lado e se uniu contra as privatizações. Em entrevista, José Carlos Spis, petroleiro e membro da executiva da CUT, afirma que “ações ostensivas virão se o governo continuar entregando o petróleo”. Pág. 5 Cristiano Machado/Folha Imagem
Cerca de 500 integrantes do MST e do MAB bloquearam a rodovia Arlindo Bétio, que liga SP a MS e PR, em protesto contra a privatização da Cesp; leilão, que seria realizado dia 25, fracassou por falta de interesse de grupos privados
Divulgação
Empresários e As associações jagunços da BA de moradores se esvaziaram Peça do grupo aterrorizam de teatro camponeses Urge a necessidade de se CULTURA
Alfenim retrata a revolta dos Quebra-quilos na Paraíba. Pág. 8
Cerca de 300 famílias que vivem na comunidade Riacho Grande, município de Casa Nova (BA), distante 572 km da capital, Salvador, região do Semi-Árido baiano estão sendo vítimas da ação violenta de empresários e jagunços. No dia 6 de março, elas tiveram principalmente sua área de produção destruída e são intimidadas a deixar as terras onde vivem há mais de 100 anos. Pág. 7
reconstruir associações de moradores engajadas nos problemas dos trabalhadores de uma determinada comunidade. Porém, o que se vê hoje nestas organizações é a constante cooptação por parte dos partidos ou pelas organizações nãogovernamentais. Pág. 4
9 771678 513307
00265
Para celebrar esse feito histórico, você está convidado a participar, no dia 17 de abril, a partir das 19 horas, no Tuca, em São Paulo, do ato político-cultural com participação de João Pedro Stedile, José Arbex Jr., Fábio Konder Comparato e Plinio Arruda Sampaio.
2
de 27 de março a 2 de abril de 2008
editorial Assim como a Colômbia do narco-presidente Álvaro Uribe é uma questão estratégica para a geopolítica dos predadores internacionais do senhor George W. Bush na América Latina, o Tibete cumpre semelhante papel na Ásia, do mesmo modo que o 14º dalai-lama é (nos perdoem os budistas sérios e dignos) apenas um senhor Uribe que consegue chegar ao Nirvana sem necessitar de coca. Com cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados e por volta de 2,2 milhões de habitantes (censo 1990), o Tibete, desde 1951, é uma Província Autônoma da República Popular da China, situada no sudoeste do país. Tem fronteiras com Myamar (a antiga Birmânia), Butão, Sikkim, Nepal e Índia. Já antes da tomada do poder pelos comunistas chineses (1949), o Tibete – desde sempre uma região em disputa pela sua localização estratégica – era uma jurisdição de Pequim, organizando-se enquanto sociedade feudal, baseada na escravidão e subordinada a uma teocracia, regida pela aliança entre o clero budista e a aristocracia (que somavam 5% da população). Com a criação da República Popular, a decisão do novo regime foi fazer reformas pacíficas da velha estrutura tibetana. Assim, em 1954, seu 14º dalai-lama foi convidado a participar da primeira Assembléia
debate
O dalai-lama, a CIA, a geopolítica e um pouco mais do mesmo de sempre Nacional Popular da China, que elaborou a Constituição da recémfundada Repúbica, sendo eleito um dos vice-presidentes do Comitê Permanente desse organismo.
Teocracia x Estado laico Tudo parecia correr bem, com o teocrata rasgando sedas para o novo regime, até que tiveram início as primeiras reformas democráticas dessa Região Autônoma: instituição do Estado laico, abolição da servidão camponesa (95% da população constituía-se de servos) e uma reforma agrária redistribuindo as terras. Nada tão socialista, reforminhas básicas – republicanas e democráticas – das quais já haviam dado conta a Revolução Burguesa na França, em 1789, e a Independência dos Estados Unidos àquela mesma época (1776), secundada pela Guerra de Secessão poucos anos mais tarde. Nada tão radical que não se assemelhasse às Reformas de Base propostas pelo Gover-
no do presidente João Goulart, em 13 de março de 1964, que acelerariam o processo golpista em curso, acabando por depor o Governo dias depois, em 31 de março. Enfim, essas coisas que as classes privilegiadas não suportam – no Brasil, por exemplo, até uma singela política de assitência social de distribuição de bolsas é motivo de gritos, por uma elite que já se apropriou até mesmo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Conúbio com a CIA Em 1959 (10 de março), os teocratas e aristocratas à paisana se levantam, incendeiam prédios, assassinam funcionários e outros partidários das reformas, partem para a baderna e a violência – métodos típicos dessas classes perigosas em todo o Mundo. Estavam rompidos todos os acordos e compromissos com Pequim. Para por fim à onda de violências desencadeadas pelo pacífico dalai e seus asseclas, tropas chinesas ocuparam as ruas de Lhasa,
A Ditadura Reencarnada 2 – A Missão Gama
Me engana, que eu gosto. Não, não me engane, pois eu não gosto Não é de estranhar que o cronista trate esses depoimentos obtidos sob tortura e seus autores desrespeitosamente. Em “A ditadura escancarada”, segundo livro de sua tetralogia, sob o pretexto da ineficiência da denúncia moral da tortura, exime-se o escritor de condená-la desse ponto de vista, passando a abordá-la apenas de um ângulo funcionalista. Isto é, esforça-se em mostrar como a utilização da tortura pelos governos do pós-64 os levou a engendrar sérias contradições internas, pelas quais tiveram de pagar alto preço, sobretudo no momento da transição (quase
Encontro com Bush Em 2003, o Nobel da Paz e Senhor da Guerra passou 18 dias nos EUA, onde se encontrou com seu colega George W. Bush, incorporando-se, ao que tudo indica – como seu colega colombiano, senhor Uribe – à política de “guerras preventivas”. Na ocasião, declarou que que era “muito cedo para dizer se a guerra do Iraque foi um erro” acrescentando em seguida que é necessário “reprimir o terrorismo”. Agora, finaciados pela mesma fonte, o dalai e os seus comparsas do Repórteres Sem Fronteiras, financiados pela NED, dedicam-se a boicotar as Olimpíadas de Pequim (ler pág. 9). Apenas isto.
homenagem
Alipio Freire
TÍNHAMOS RAZÃO quando escrevemos, na edição anterior, que a situação do senhor Orlando Lovecchio Filho, que perdeu uma perna depois de ferido pela explosão de uma bomba colocada por um comando da Ação Libertadora Nacional (ALN) no Consulado dos EUA, em São Paulo, era apenas pretexto para o artigo “Em 2008, remunera-se o terrorista de 1968”, do jornalista Élio Gaspari, publicado na Folha de S. Paulo. Não fosse assim, depois das mensagens enviadas à Folha de S. Paulo, e do nosso artigo anterior, já teria o jornalista encontrado o caminho para garantir a reparação cabível ao senhor Lovecchio. Diga-se de passagem, este último também. A gangrena que levou à amputação resultou do fato de haver sido o senhor Lovecchio retirado do hospital (onde era atendido) e levado para a Delegacia da Ordem Política e Social (Deops) para interrogatório, somente depois do que foi devolvido à casa de saúde, com o membro atingido já então em processo de gangrena; tendo em vista que explicamos, no mesmo artigo, que “todo Estado é responsável pela integridade de seus cidadãos sob sua custódia e que, não cumprindo esse seu dever, pode e deve ser processado”; se o objetivo real fosse a defesa dos direitos da vítima, já teriam, cronista e/ou vítima, constituído advogado para processar o Estado. Mas, pela postura assumida pelo senhor Lovecchio, que, ao invés de procurar seus direitos, foi pesquisar os depoimentos sob tortura dos que colocaram e dos que supostamente teriam colocado a bomba no Consulado; pelo novo artigo publicado na Folha e em O Globo, no domingo 23, pelo senhor Gaspari (“O terrorista de 1968 remunera-se em 2008”), onde tenta achincalhar – ainda que entrecortando o texto por frases de um bom-mocismo postiço – os militantes que acusa também a partir de depoimentos obtidos sob sevícias; fica cristalino que está muito longe da verdade que estejam movidos por qualquer objetivo de justiça.
a capital, e diversos pontos da Província Autônoma. A partir daí, nenhum acordo mais seria possível. O dalai se exila na Índia, onde se estabelece cercado por uma corte de 120 mil tibetanos, e firma seu conúbio promíscuo com a CIA e com as forças armadas de Nova Delhi. É um tempo em que, enquanto o cardeal Wojtyla agia na Polônia, seu colega dalai conspirava na Índia, dando continuidade à sua carreira de senhor da guerra, da defesa dos privilégios e da exploração, embora o capital, logo depois da Queda do Muro e em pleno processo de desmonte do bloco socialista, lhe descole um Nobel da Paz em 1989. Seu colega Wojtyla não teve tanta sorte: apenas conseguiu ser indicado para a mesma láurea do Nobel. No entanto, foi coroado papa e logrou fazer seu sucessor o cardeal Ratzinger, que garante a continuidade do desmanche das conquistas alcançadas pelos católicos progressistas e de esquerda
durante os pontificados de João 23 e Paulo 6º. Vários nomes fantasia camuflaram, ao longo dos anos, a societas sceleris constituída entre o dalai e a agência estadunidense: Exército de Defesa da Religião, Sociedade Americana por uma Ásia Livre e, por fim, hoje, receber ajuda através da National Endowment for Democracy (NED), a mesma patrocinadora dos Repórteres Sem Fronteira, cujo presidente foi condecorado cavaleiro da Legião de Honra, pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy.
Morre “Serjão”, editor da revista Caros Amigos O JORNALISTA Sérgio de Souza faleceu no dia 25 de março, em São Paulo, aos 73 anos. Em seus 50 anos de profissão, “Serjão” tornou-se um dos principais nomes do “jornalismo alternativo” no Brasil. Participou da criação de alguns dos títulos mais expressivos da imprensa combativa, como a revista REALIDADE, nos anos de 1960, O Bondinho, nos de 1970, e a Caros Amigos, lançada em 1997. Abaixo, relembramos um poema do britânico John Donne (1572-1631), em homenagem a Sérgio de Souza, e republicamos texto de Mylton Severiano, editor-executivo de Caros Amigos. Em nome da redação do Brasil de Fato, nossos pesares para os familiares e amigos do “Serjão”, assim como também aos companheiros de Caros Amigos, a quem fica o necessário desafio de seguir adiante.
Nenhum homem é uma ilha (de John Donne)
lamenta). Um dos pressupostos é que parte da cúpula e setores intermediários do regime desconhecia e/ou condenava esses métodos ou, pelo menos, não sujavam as mãos, faziam vista grossa e/ou usavam de bom grado o método aplicado nos “porões”. Ora, essa manobra diversionista tem, pelo menos, tripla conseqüência: 1. Retira o foco central da questão, que é MORAL, e não “técnico-operacional”. Sim, é uma questão MORAL e faz parte da grande disputa de valores que temos de travar, para banirmos esse tipo de prática injuriosa do nosso país e do mundo. 2. Transforma torturadores e mandantes em vítimas de si próprios, de sua “inocência”, obliterando da cena o objeto de suas sanhas, os torturados. 3. Tenta nos fazer pressupor que aquele regime seria possível sem tais práticas. Embora cansativo, é forçoso repetir: a violência – entre as quais, as torturas, assassinatos e ocultações de cadáveres – não foi um acidente do regime. Ela era condição sine qua non para o sucesso do programa dos golpistas. Sabemos, através de pesquisa do Ibope realizada menos de um mês antes do golpe, que o país estava dividido em termos de opinião no que dizia respeito às reformas anunciadas pelo presidente João Goulart no comício de 13 de março, na Central do Brasil. A maioria (59%) apoiava as reformas. A violência (incluídas as torturas) foi, assim, um dos elementos da racionalidade política do grande capital, do latifúndio, da maioria esmagadora da mais alta cúpula da Igreja Católica de então, da “direita ideológica”, dos políticos (civis) que empolgaram o 31 de março, da imprensa que conspirou e apoiou o golpe, da maioria dos altos comandos das forças armadas, dos seus aliados e apoiadores internacionais – em especial, o capital e governo dos EUA. Ou seja, aquelas torturas não fugiam ao controle dos dirigentes do País (civis e militares), não aconteceram “nos porões” sem a ciência,
consciência ou planejamento dos governantes e/ou das lideranças das classes, setores, grupos e corporações que promoveram e foram base de sustentação do regime. Afirmar o contrário é tão tolo quanto dizer que os Orleans e Bragança e sua corte não sabiam o que acontecia nas senzalas e pelourinhos, ou que os capitães-do-mato fugiam do controle dos seus senhores. Não é o torturador quem faz a tortura, mas a tortura é que faz o torturador Por fim, reafirmamos: ordena a MORAL que, quando se trata de emitir opinião ou dar informações sobre militantes que sucumbiram às torturas, nunca é demais observarmos que, se não tratamos adequadamente a questão, corremos o risco de reproduzir, de forma ampliada, a destruição e desagregação iniciadas pelos torturadores, o que costuma atingir não apenas o torturado, mas também seu círculo mais próximo de afetos (familiares e amigos). É repugnante e eticamente intolerável imaginar que possamos, em algum momento, dar seqüência à obra iniciada pelos sicários. Ao expor publicamente depoimentos obtidos sob tortura sem qualquer outro objetivo senão tentar remendar as mentiras apontadas em seu artigo anterior; sem outro cuidado com a matéria que não sua obsessiva persistência em qualificar aqueles militantes como “terroristas”; o cronista reproduz de forma ampliada (bem como o senhor Lovecchio) a destruição e desagregação iniciadas pelos torturadores, há 40 anos. Ou seja, o jornalista Gaspari passa a torturar. Certamente não tem a intenção e não percebe que tem esse comportamento, pois não é um torturador. Mas, como ele bem conhece e cita de maneira oportuna em um de seus livros, “Não é o torturador quem faz a tortura, mas a tortura é que faz o torturador” (J.P. Sartre). Alipio Freire é jornalista, escritor e membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato.
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”
Foi-se Sérgio de Souza, o nosso Serjão Mylton Severiano, editor-executivo da revista Caros Amigos Morreu em São Paulo, aos 73 anos, o jornalista Sérgio de Souza, o Serjão. Operado dia 10 de março de 2008 em razão de uma perfuração no duodeno, morreu em decorrência de complicações na madrugada de terçafeira, 25 de março, no Hospital Osvaldo Cruz. Sérgio deixa viúva a jornalista Lana Nowikow, com quem teve três de seus sete filhos. Nascido em 1934 no Bom Retiro, bairro tradicional no centro da capital paulista, Serjão era um autodidata. Não chegou ao curso “superior”, mas fez-se na rua e nas redações “doutor” em jornalismo. Bancário, recém-casado, viu uma notícia na Folha de S. Paulo no fim da década de 1950, do tipo “você quer ser jornalista?”, e para lá se dirigiu. Fez um teste e, aprovado, entrou para a reportagem do jornal da Barão de Limeira, onde nos conhecemos. Quatro anos depois, a convite de Paulo Patarra, transferiu-se para Quatro Rodas, da Editora Abril. Ali, em 1966, faria parte da equipe que fundou e lançou REALIDADE, cujo forte era a reportagem, revista “cult” daquela editora e maior sucesso jornalístico do gênero neste país. Avesso a entrevistas, até tímido diante de uma câmera, microfone ou mesmo um colega de caneta e papel na mão, Serjão não deixou muitas pistas sobre sua vida particular, onde estudou, que preferências tinha em matéria de literatura, cinema, e outras trivialidades que costumam compor um necrológio. Certo é que Sérgio de Souza é o último monstro sagrado vivo que se vai de uma geração que fez, além de REALIDADE: a revista quinzenal de contracultura O Bondinho; o jornal mensal de política, reportagem e histórias em quadrinhos Ex-; o programa de televisão 90 Minutos, na Bandeirantes – entre dúzias de trabalhos. Há onze anos, em abril de 1997, Sérgio lançou, com amigos e associados, a revista Caros Amigos, que vinha dirigindo até duas semanas atrás. A importância de Serjão para o jornalismo pátrio é discreto como sua figura e incomensurável como seu tamanho – pois se dá justo naquele trabalho quase anônimo do editor, do editor de texto, da palavra seca, cortante, exata, da melhor linha humano-política na orientação ao repórter, ao subeditor, ao chefe de arte, ao departamento comercial, advinda de um caráter íntegro e de um senso jornalístico próprio dos gênios. Dedicou 50 anos à profissão, na qual não fez fortuna, ao contrário: deixa dívidas. Aliás, uma de suas últimas criações foi o “Anticurso Caros Amigos – Como não enriquecer na profissão”. Aos que o sucedem em Caros Amigos, fica a desmedida tarefa de homenagear sua memória fazendo das vísceras coragem e coração para tocar o barco em frente.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
de 27 de março a 2 de abril de 2008
3
brasil
Estudantes processam a Xerox Reprodução
EDUCAÇÃO MAL FEITA Empresa interrompe pela metade programa de “responsabilidade social” voltado para afrodescendentes; 16 estudantes entratam com ação na Justiça Dafne Melo da Redação EM 2003, os estudantes Alexandra Campos e Flávio Lemos estavam entre os 20 jovens negros selecionados, em São Paulo, para o projeto Afro Ascendentes, do Instituto Xerox, braço da empresa criado em 1996 para realizar ações de responsabilidade social. O projeto tinha como objetivo garantir o ingresso de 40 estudantes (metade na cidade de São Paulo, metade no Rio de Janeiro) no ensino superior público ou privado, pagando um curso pré-vestibular e, se preciso, as mensalidades universitárias. O programa, que tinha duração prevista para 7 anos, também assegurava ticket-alimentação, vale transporte, seguro de vida e uma ajuda de custo no valor de 200 reais para cada participante; prometia, também, um computador com acesso à internet para cada um e um curso de inglês. Além disso, prometia assistência médica, odontológica e psicológica até seis meses após o término da graduação. Para gerir o programa, contaram com duas ONGs: o Instituto Geledés, em São Paulo, e o Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (Cieds), no RJ. A seleção incluía provas de redação, análise de
histórico escolar e entrevistas com os candidatos. No decorrer do progama, entretanto, os estudantes começaram a enxergar algumas falhas. “Não recebemos computador nenhum, só depois de muita insistência nos deram umas máquinas velhas que nem internet podiam ter”, conta Flávio Lemos. O cursinho pré-vestibular e de inglês foram ministrados nas próprias ONGs, por profissionais contratados. “Os cursos duravam todo o dia, das 8h às 20h, e, por isso, muitos deixaram seus trabalhos. Inclusive, uma das demandas para participar do programa era a de que não podíamos trabalhar”, explica Flávio.
O corte Em 2004, Alexandra ingressou no curso de Comunicação em Multimeios na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e as despesas foram pagas pelo programa, conforme combinado. Esse foi o caso de outros estudantes que ingressaram em outras universidades privadas. A partir de 2005, entretanto, os estudantes começaram, sem explicações, a perder alguns benefícios. “Cortaram vale-transporte de alguns, sem explicação, e aí sentíamos que, a qualquer momento, iam deixar o projeto”, relembra Alexandra. No final daquele mesmo
Reprodução de imagem utilizada em apresentação do Projeto Afro Ascendentes da Xeroz do Brasil
ano, a estudante ainda recorda outro fato curioso: “A empresa pagou para os 20 participantes de São Paulo irem até o Rio de Janeiro encontrar os participantes de lá. Distribuíram camisetas da Xerox e pediram para que nós gravássemos um vídeo para falar da empresa e do projeto. A maior parte das pessoas não aceitou fazer o vídeo e o clima piorou ainda mais a partir daí”. No ano seguinte, a empresa decidiu cortar o projeto. “Quem nos comunicou, primeiro, foi o Geledés. Nos explicaram que a empresa não ia mais financiar o projeto, e aí pedimos então para falar com os responsáveis da Xerox. Foi um funcionário falar
conosco e ele apenas disse que a empresa estava entrando em falência e, por isso, cortou o programa”, conta Flávio. Na época, os estudantes que estavam em universidades privadas buscaran outras alternativas para continuar os estudos via bolsas da própria instituição ou pelo Programa Universidade para Todos (ProUni). “Tive a sorte de conseguir bolsa 100%, mas muitos colegas, não”, diz Alexandra. Flávio foi um desses. Ingressante no curso de direito da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Flávio não pode pagar pelas despesas e, hoje, sofre processo da Faculdade, que exige o pagamento da dívida.
Ação Após o fim do programa, alguns estudantes decidiram entrar com uma ação contra a empresa, por danos morais. “Não queremos apenas receber dinheiro para continuar os estudos e pagar as dívidas, mas discutir também essa questão da responsabilidade social. Essas empresas não podem fazer isso como bem entendem”, protesta Flávio, que conta que tem pesquisado sobre o tema nos últimos meses. “As empresas querem, obviamente, fazer marketing com isso. O poder público tinha que estar mais atento a esses casos”, opina o estudante. Alexandra conta que qua-
tro dos 20 estudantes participantes optaram por não mover a ação conjuntamente com os outros por receio de atingir a ONG Geledés que, na visão deles, pode ser prejudicada no processo, embora fosse apenas a gestora do projeto, ou seja, não arcava financeiramente com os cutos, o que era feito pela Xerox. Uma primeira audiência conciliatória ocorreu dia 10 de março, sem nenhum acordo entre a Xerox e os 16 estudantes. “O advogado da empresa sequer tinha conhecimento que a ação era movida por 16 pessoas e se mostrou surpreso quanto a isso. E repetiu a justificativa de que a empresa está em falência, com os ganhos caindo, e resolveu cortar o programa”, conta Alexandra, que esteve presente na audiência. Agora, cabe ao juíz da 16º Vara Civel de SP dar andamento ao processo. A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a Geledés e a Xerox. A primeira, não respondeu. Já a Xerox, por meio da assessora de imprensa Fabrícia Rosa, afirmou que as informações dadas pelos estudantes estavam equivocadas e que “a Xerox cumpriu com suas obrigações contratuais com a Geledés”. Afirmou ainda que o projeto não incluía o pagamento de mensalidades de universidades privadas. “O programa visava o ingresso de estudantes na universidade pública”, enfatizou Fabrícia. A informação, entretanto, entra em contradição com a informação dada pelos estudantes. “A proposta era entrar em instituições de excelência, não necessariamente públicas”, rebate Flávio.
IMPOSTOS
DIREITOS HUMANOS
PT e PSOL defendem tributação de grandes fortunas m eventual reforma
Médico legista que fraudava laudos na ditadura é preso
Imposto está previsto na Constituição, mas nunca foi implementado Mayrá Lima da Redação Em meio às discussões sobre o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Tributária no Brasil, o deputado Maurício Rands (PT-PE), líder da bancada, declarou que o partido irá entrar com uma proposta de taxação sobre grandes fortunas. No momento, os petistas se concentram em levantar experiências de outros países em relação às alíquotas e os percentuais de incidência na população. “É uma das matérias mais polêmicas que podem ser tratadas aqui, porque mexe com o patrimônio. Queremos propor um tributo que diminua a desigualdade social brasileira. Não queremos nada que tenha caráter de confisco, não queremos penalizar a classe média”, disse o deputado que não tem previsões para a apresentação do conteúdo do texto. Enquanto isso, o deputado Iran Barbosa (PT-SE) se adiantou e encaminhou ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, um pedido de informações sobre o número de contribuintes do Imposto de Renda (IR) de pessoa física por faixa de valor patrimonial, ao mesmo tempo que propôs um projeto de lei complementar sobre o assunto. No proposta do deputado sergipano, o tributo seria baseado no patrimônio da pessoa física e jurídica residentes no Brasil ou no exterior, desde que seus bens se encontrem no País. Valores a partir de R$ 1 milhão seriam tributáveis em até 0,7% – a alíquota poderia ser menor dependendo do valor do patrimônio. “O Imposto Sobre Grandes Fortunas permanece há 20 anos sem a necessária regulamentação em lei complementar, o que tem impedido o Poder Público de exercer a atribuição que lhe foi conferida com vistas à sua instituição de cobrança”, justifica Iran Barbosa. O Psol também já aproveitou o ensejo e defende a regulamentação do imposto. A bancada na Câmara protocolou, nesta última semana, um Projeto de Lei Complementar que define como “Grandes Fortunas” valores superiores a R$ 2 milhões (em patrimônio ou riqueza acumulada). As alíquotas variariam de 1% (a partir de
Isaac Abramovitch, que integrava a equipe de Harry Shibata, mantinha uma clínica de aborto clandestina em São Paulo da Redação
R$ 2 milhões) a 5% ( para quem possui mais de R$ 50 milhões). “Segundo um estudo do economista Márcio Pochmann, as cinco mil famílias mais ricas do Brasil detêm, cada uma, uma fortuna em média de R$ 138 milhões”, lembrou a líder do partido, deputada Luciana Genro (Psol-RS).
Longo debate A questão da taxação das grandes fortunas remete a um debate travado na Câmara há 20 anos. O Imposto está previsto na Constituição Federal em seu artigo 153. Em 1989, o então senador Fernando Henrique Cardoso chegou a apresentar um projeto de lei complementar para regulamentar a taxação, sendo ela de forma anual de 0,3% a 1% de patrimônios superiores a R$ 1 milhão. A proposta foi engavetada. Hoje, a resistência continua. Ainda em 2007, o deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) elaborou uma proposta para retirar o tributo da Constituição. Para ele, a simples determinação constitucional de sua exigência pode “incentivar a fuga de capitais, não apenas estrangeiros, mas também nacionais”. O parlamentar argumenta que “a experiência internacional com esse imposto já demonstrou que sua receita é extremamente baixa”. De acordo com Luiz Benedito, diretor de Estudos Técnicos do Sindica-
to Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), a taxação de grandes fortunas é uma “boa idéia”, porque atende ao princípio de onerar mais quem ganha mais. O especialista, no entanto, chama a atenção para o poder de fiscalização que o Estado possui para que a arrecadação seja feita de maneira eficiente. “O imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), em termos de arrecadação, é insignificante. Ele se presta para que as terras sejam produtivas, mas não vemos isso na prática por conta da dificuldade de se fiscalizar o patrimômio”, exemplifica. Dados de 2007 mostram que o ITR arrecadou apenas R$ 68 milhões, frente aos R$ 146 bilhões obtidos em cima do consumo do brasileiro. No entanto, Benedito defendeu o IGF dentro das linhas de uma “justa tributação”, em cima da capacidade contributiva do indivíduo ou pessoa jurídica. Segundo a Unafisco, o volume de impostos arrecadados conforme a base de incidência (consumo, renda e patrimônio) está assim distribuído: 53% recolhidos sobre o consumo, 46% sobre a renda e menos de 1% (0,03%) sobre o patrimônio. “Uma pessoa que ganha um salário mínimo e uma pessoa que ganha 10 mil por mês, ao comprar uma TV, pagam o mesmo imposto. Logo, proporcionalmente a sua renda, quem tem um salário menor paga muito mais”, disse.
Yuri Xavier. Ana Maria Nacinovic. Marcos Nonato Fonseca. Hiroaki Torigoi. Devanir José de Carvalho. Luiz Eduardo da Rocha Merlino. Hélcio Pereira Fortes. José Roberto Arantes de Oliveira. José Freitas. Alexandre Vanucchi Leme. Wladimir Herzog. Além de militantes de esquerda durante a ditadura militar, esses personagens têm outra coisa em comum: todos tiveram seus laudos fraudados pelo médico legista Isaac Abramovitch. Mortos sob tortura durante o regime militar, Abramovitch acobertava o motivo real dos assassinatos. Os nomes acima são apenas parte da longa lista de falsificações de Abramovitch, que integrava a equipe de Harry Shibata, também legista. Entretanto, esse não foi o motivo pelo qual o médico foi preso, dia 18 de março, pelo Grupo de Operações Especiais (GOE) da Polícia Civil. Abramovitch, 74 anos, mantinha uma clínica clandestina de aborto no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. O inquérito foi aberto na 14º Delegacia de Polícia e ainda será encaminhado à Justiça. O médico está preso na 13º DP, onde há carceragem para presos com curso superior. A polícia também apreendeu, na clínica, remédios vencidos e três pistolas. De acordo com a vigilância sanitária, as condições da clínica eram “muito ruins”. Para Dulce Xavier, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, a criminalização do aborto é o que possibilita que “esse tipo de clínica, com esse tipo de médico”, sejam cada vez mais numerosas. “Tanto podem ter médicos sérios e confiáveis que fazem abortos, como pessoas que aproveitam para ganhar dinheiro. Se não é feito no serviço público, porque é ilegal, não há controle do Ministério da Saúde, nem controle social. E as mulheres ficam vulneráveis. Acha que terá segurança ao ir numa clínica dessa, mas não tem nenhuma,
o cara faz o que quiser e como quiser. Como ainda é crime, a mulher não pode fazer nada”, avalia. Abramovitch fazia parte da equipe de Harry Shibata, outro médico legista que falsificava laudos. Shibata é acusado, inclusive, de instruir os torturadores a não deixar marcas de suas ações nos corpos dos torturados. Cecília Coimbra, do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, conta que, no início da década de 1990, o Grupo entrou com um processo no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) para que Shibata e Abramovitch tivessem suas licenças cassadas. Entretanto, os dois legistas, por meio de uma liminar, conseguiram interromper o processo que nem pôde se apreciado pelo CRM. “É absurdo que um homem desses ainda possa cilinicar. A classe médica devia se envergonhar do fato de seu conselho manter um cara desses na ativa”, opina. A militante afirma que, na época do processo, teve acesso a fotos de algumas das vítimas e que “eram mais que evidentes os sinais de tortura”. Embora não se possa precisar quantos laudos falsos o médico assinou, Cecília afirma que “pelo menos 20” foram falsificados. Cecília chama a atenção que essa atitude não era um caso isolado. “Em Estados onde a repressão foi mais forte, vários médicos legistas tinham papel de legalizar as torturas, confirmar as versões oficiais dos agentes repressores do Estado”, afirma. Entre 1990 e 1991, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os desaparecidos políticos enterrados no cemitério de Perus, Abramovitch assumiu que tinha um compromisso de colaborar com os órgãos de repressão política sem nenhuma restrição. Defendeu também o regime vigente, afirmando que a violência havia sido provocada pelos opositores e que, portanto, a resposta era à altura. (DM)
4
de 27 de março a 2 de abril de 2008
brasil
Possibilidades de mobilização em uma associação de moradores LUTA SOCIAL Espaço importante na organização popular nos anos 1980, as associações resistem, apesar da despolitização Eduardo Sales de Lima
Pedro Carrano Curitiba (PR) REFERÊNCIA PARA a organização do Movimento Popular nos anos 1980, durante a efervescência da luta de massas, as associações de moradores atualmente estão esvaziadas. Um exemplo dessa realidade foi o despejo dos moradores da favela Real Parque (no luxuoso distrito do Morumbi, em São Paulo). Não havia a referência de um espaço local de organização dos próprios moradores. Durante o despejo dos 7 mil habitantes da favela, no dia 11 de dezembro do ano passado, em uma ação conjunta do poder público com o capital imobiliário, a representação dos moradores foi realizada por uma organização patrocinada pelo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), como relata o sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, do Centro de Trabalhadores para o Ambiente Habitado (Usina). “Funcionários privados e ONGs fizeram das associações de moradores um comitê gestor dos investidores externos e porta de entrada dos financiamentos”, critica, apontando que tais grupos agem a partir da fragilidade econômica das associações de moradores, que passam a seguir a “gramática” das ONGs, em prol do capital. Frente ao visível avanço da repressão do poder contra áreas de ocupação em cidades como Rio e São Paulo, existe a necessidade de se reconstruir uma associação de moradores engajada nos problemas dos trabalhadores de uma área. No entanto, nas associações de moradores, é constante a cooptação por parte dos partidos institucionais, ou, fato comum, pelas organizações não-governamentais. A resposta para a mobilização parece estar em grupos que se organizam de modo crítico, como ocorre, em São Paulo, com grupos de jovens ligados ao rap. “Jovens que estão discutindo política não entraram na lógica eleitoral. Há, nas associações de moradores, uma perda de politização, porque as associações são vistas como currais eleitorais de partidos de esquerda e de direita. E a esquerda perdeu a inserção nas periferias”, comenta D´Andrea, que cita como referência de experiências de poder popular e que merecem melhor estudo: as Juntas de Bom Governo (JBG) zapatistas, no México, e os Comitês em Defesa da Revolução (CDR), em Cuba. Do ponto de vista do sociólogo, é necessário um espaço que considere a demanda concreta das pessoas e, ao mesmo tempo, transforme este espaço de organização em um espaço político. Na verdade, não se trata de resolver uma suposta “falta de conscientização”. Há, na opinião de Tiaraju, idealismo neste pensamento. “Os moradores sabem que a construtora que está ao lado pode comprar o terreno, assim como pode expulsá-los. Agora, eles não têm os meios materiais para mudar essa situação”, exemplifica.
cos, são alguns trabalhos daqueles que vivem em áreas de ocupação localizadas em bairros como o Morumbi. “Bairros ricos e favelas nascem juntos. A Favela Real Parque e Jardim Panorama [área próxima] instalaramse ainda na década de 1950, com a retificação do rio Pinheiros. As pessoas trabalhavam na construção civil e assentaram-se por ali”, descreve D´Andrea. Desde a década de 1990, a especulação imobiliária, de acordo com o sociólogo, ganha importância, e a força de trabalho oferecida por aquelas pessoas desvaloriza. “O capital produtivo perde em importância, o capital especulativo toma o lugar. A mão de obra passa a ser secundária, desvalorizada, ainda que esteja próxima ao local, enquanto os terrenos destinados à especulação ganham em importância”, descreve. Como as pessoas não têm a posse da terra, e ao capitalismo interessa valorizar distritos já valorizados, a tendência é a reintegração de posse, quando poderes público e interesse privado agem em pleno acordo. O economista Lafaiete Santos Neves, da UFPR, no livro Movimento Popular e Transporte Coletivo em Curitiba, descreve o desenvolvimento de eixos estruturais no planejamento da cidade, a partir do transporte público, e a sua relação de beneficiamento do capital imobiliário: “Ao privilegiar os investimentos sociais nos eixos estruturais para a expansão do transporte coletivo, favorece a valorização fundiária, beneficiando os interesses imobiliários, que insistem em estoques de terra para a especulação, obrigando a população de menor renda a se deslocar cada vez mais para a periferia da cidade”. Essas áreas normalmente estão na fronteira urbana. São regiões alagadiças e sem infra-estrutura.
Anos de 1970/80: crise, luta pelo espaço na cidade, e experiência das associações de Curitiba A crise econômica do final dos anos 1970 causava desemprego e desgastava o regime militar. Greves de metalúrgicos e trabalhadores da construção civil impulsionavam a luta política. Seguindo o que acontecia no restante do país, o Movimento Popular se fortalecia em Curitiba, a partir do enfrentamento com o Estado na luta por serviços públicos. No turbilhão dos confrontos, estava a questão da moradia, que programas oficiais, como o Banco Nacional de Habitação (BNH), não davam conta. Não tocavam na cidade excludente. “... a luta pela regularização dos loteamentos clandestinos foi uma das primeiras ações que geraram movimentos populares em meados da década de 1970”, escreve Lafaiete dos Santos Neves. Foram geradas organizações como o Movimento de Associações de Moradores e
Sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, ao lado de moradores da Real Parque
Amigos de Bairros (MAB), em 1982, reunindo de início uma estrutura não atrelada a partidos institucionais. Antes, 32 associações formaram o Conselho de Representantes de Associação de Moradores e Amigos de Bairros e Vilas de Curitiba, em julho de 1979, experiência que durou dois anos. Havia um forte movimento de migração e inchaço nas cidades, causado pela modernização agrícola. O planejamento do poder desenhava eixos estruturais e definia a valorização da terra. A especulação corria solta, com loteamentos irregulares, incentivados pelas próprias imobiliárias, cobradoras de impostos dos moradores. O Movimento Popular então se forja no mesmo movimento da realidade, a partir das mudanças nas forças produtivas no campo em choque com a queda do trabalho na cidade.
Unidade Formas de luta se davam com unidade, apesar
da existência de três grupos: Federação de Bairros do Paraná (ligada ao PMDB), União Geral de Bairros (PT) e MAB, uma iniciativa das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), mais tarde capilarizada no PT. Após o segundo período, Jaime Lerner (prefeito entre 1979-1983, pelo Arena), a institucionalização do movimento é crescente. A grande pergunta é como a mobilização desta época, em torno de associações de moradores, carregava o gérmen da burocratização e da inserção na base vazia de conteúdo político. Seja por parte do PMDB, seja do PT. De acordo com Cesar Sanson, agente da Pastoral Operária (PO) à época, o que houve foi uma prática na qual lideranças de associações de moradores candidatam-se à câmara de vereadores. “A lógica do partido fez muito mal ao movimento popular porque imprimiu uma dinâmica de institucionalização”, avalia.
Moradores de Rio Branco do Sul apostam em Central de Associações de Moradores de Curitiba
Eduardo Sales de Lima
Capital imobiliário No Rio de Janeiro e São Paulo, para citar dois exemplos, o capital imobiliário avança sobre áreas que se mantiveram como enclaves dentro de regiões centrais da cidade. Áreas onde os trabalhadores instalaramse há décadas, devido ao trabalho. Construção civil, manutenção predial e serviços domésti-
Desarticulados, os moradores da favela Real Parque não conseguiram impedir os despejos de 7 mil moradores
Não ser domesticado pelo aparelhamento institucional de um lado, ou cair no esvaziamento político de outro: eis alguns desafios das associações de moradores. Rio Branco do Sul, cidade da Região Metropolitana de Curitiba, é marcada por mais de 30 áreas de ocupação – um prato cheio para a intervenção de vereadores em período eleitoral. Localizada no Vale do Ribeira, a região parece condenada a perseguições políticas e práticas de cooptação. Há dois anos, a experiência da Central de Associação de Moradores articula lutas em 10 áreas diferentes, não vinculadas a federações de associações ligadas
ao poder. A Central se reúne uma vez por mês. Articula pautas comuns entre lugares que não se comunicavam. As principais mobilizações até aqui se deram pela municipalização de um hospital terceirizado pela prefeitura, e pela prestação de contas da câmara de vereadores. Trabalham com uma rádio comunitária e um projeto de material reciclável. Na Central, parte dos militantes e lideranças de associações são ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e lideranças leigas da Igreja. Os integrantes reconhecem a contradição e os riscos frente à institucionalização do partido. Afinal, o próprio PT local possui cargos na prefeitura da cidade. E a cidade possui uma cronologia de cinco prefeitos tombados desde o ano 2000. (PC)
Os espaços criados na luta por democratização e contra o regime militar acabaram tornando-se apêndices do poder. Espaços como, por exemplo, o Conselho Municipal de Saúde, foram neutralizados, descreve Sanson. “Devido às forças de mobilização e de pressão, houve conquistas importantes nos anos 1980, o poder público cria fóruns e instâncias, porém a agenda institucional acabou dando a dinâmica para o movimento social”, lamenta.
“Passe-desemprego” No bojo das reivindicações do Movimento Popular na década de 1980, das lutas por serviços básicos, das lutas por moradia, houve, em Curitiba, a experiência do Movimento de Luta contra o Desemprego (MLCD), que envolvia pessoas de associações de moradores, CEBs etc. O movimento impôsse a partir de ato, durante o Primeiro de Maio, exigindo trabalho. Conseguiu abrir frentes de trabalho em calçamento, pavimentação e obras de saneamento nas periferias, gerenciadas pelo movimento e pelos trabalhadores em forma de cooperativa. A bandeira principal, recorda Cesar Sanson, foi a concessão de “passe-desemprego”. “Havia um dado volume de solicitação de passes, então o movimento os distribuía em assembléia. As associações de moradores faziam cadastro, traziam até a organização do movimento este cadastro. Cerca de 140 associações de moradores recebiam passe-livre, isto quem gerenciava era o movimento. A prefeitura emitia os bilhetes, e o movimento gerenciava”, conta. O comitê de desempregados vingou em alguns bairros, mas não em todos. A iniciativa durou até o ano de 1985, na prefeitura de Roberto Requião (PMDB), que se apropriou da iniciativa. (PC)
de 27 de março a 2 de abril de 2008
5
brasil
“Ações ostensivas virão se o governo continuar com os leilões de petróleo” ENTREVISTA Antonio Carlos Spis, da Executiva da CUT, ressalta que um amplo leque da esquerda está unida para resistir Sindipetro
Renato Godoy de Toledo da Redação
Brasil de Fato – Como se deu a constituição do Fórum Nacional Contra a Privatização do Petróleo e Gás, e a partir de que leitura de conjuntura as entidades resolveram criar essa aliança? Antonio Carlos Spis – Esse grupo foi construído coletivamente em torno da defesa da soberania nacional. Nós entendemos que a defesa contra os leilões de petróleo é a defesa da soberania nacional, que está acima dos Petroleiros, da CUT, do MST. Nós construímos uma grande aliança para fazer frente aos leilões. A agenda da ANP é uma loucura, e eu não distinguo a agenda da ANP da agenda do governo. Quando o governo diz que a culpa pelos leilões é da ANP e a ANP culpa o governo, é um jogo de empurra. Esse crime de lesa-pátria é responsabilidade do governo Lula, assim como era do governo FHC, Collor. Todos os governos que trouxeram políticas neoliberais, privatistas, são entreguistas. Nesse aspecto, pelo cenário atual de grandes conquistas da Petrobras, se aprofunda ainda mais a distorção em relação à defesa do patrimônio e da soberania. Vemos agora, com o exemplo dos cinco anos da guerra do Iraque, quais são os objetivos do Bush. Quem não tem petróleo, tenta abocanhar com guerra e quem tem, procura preservá-lo. É inadmissível a gente ver o governo brasileiro entregando as reservas de petróleo, principalmente num momento em que se divulga grandes conquistas.
Nessa bacia de Santos, que deve ter cerca de 7 bilhões de barris [por dia], 25% das reservas já não são brasileiras. Nesse processo, não se leva em conta a dedicação dos nossos técnicos, não se leva em conta o investimento brasileiro feito pela Petrobras, para localizar petróleo As descobertas na bacia de Santos são verdadeiramente promissoras? Essas pesquisas geológicas, para detectar petróleo, demoram de 10 a 15 anos. A bacia de Santos, hoje, é onde nós podemos ter uma alavanca para o desenvolvimento nacional. São bilhões de barris de petróleo, grandes reservas de gás que podem ser exploradas. Ainda tem um tempo para que elas possam ser exploradas comercialmente, mas já estão detectadas. Existem dificuldades para buscar petróleo em grandes profundidades, nessa camada de sal e pré-sal, mas a Petrobras tem tecnologia para buscá-lo em profundidade que nenhuma outra empresa tem no mundo. E qual o papel do Fórum em si? Então, o grupo tem um acordo político. Lá estão a CUT, a Conlutas, a Intersindical e a CTB, praticamente todas as centrais sindicais que têm algumas divergências profundas, mas nesse ponto estão unidas. Nós conseguimos fechar um acordo político, no final do ano passado, de que o grupo seria em defesa da soberania nacional, e que vai deliberar estratégias, calendário de mobilizações e ações ostensivas, se o governo ousar continuar marcando leilões de petróleo. Na fundação desse grupo, vocês buscaram fazer um resgate histórico da campanha “O petróleo é nosso”, que deu origem à Petrobras?
Manifestação na ANP contra a nona rodada do leilão de petróleo e gás
Esse governo tem pontos extremamente positivos, mas achamos que vacilou três vezes: primeiro, na não-suspensão dos leilões da 9ª rodada de petróleo, no ano passado [logo após a descoberta da bacia de Santos]; segundo, na renovação automática da concessão da Rede Globo; em terceiro, não querer nem ouvir o plebiscito que nós fizemos contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce Quando juntamos defensores da soberania nacional, petroleiros e movimentos sociais, isso sempre é lembrado. A primeira campanha depois do “Petróleo é Nosso” foi na década de 1950, a bandeira do “Monópolio Integral do Petróleo”. Nós temos cartazes recuperados pela CUT. Essa campanha não se restringia ao petróleo, englobava toda a cadeia da empresa nacional integrada. Isso foi se quebrando aos poucos, com as políticas iniciadas pelo Collor e pelo Plano Nacional de Desestatização. Mas isso está na memória, principalmente dos mais antigos. “O petróleo é nosso”, na verdade, é uma grande referência. Ninguém tem a idéia de repetir a campanha, porque a conjuntura é diferente. Mas a campanha tem idéias parecidas, porque tem o objetivo de tentar sensibilizar a sociedade para vir conosco nessa luta. Não adianta a CUT, o MST e a Conlutas ficar falando para nós mesmos. Num artigo (publicado na Agência Brasil de Fato), o professor Carlos Lessa sugere que o Banco Central compre as ações do petróleo brasileiro que foram vendidas para empresas estrangeiras. Dentro deste fórum, essa idéia tem apoio? Nós temos que ter algumas fases que precedam isso. Primeiro, temos que estancar esse procedimento absurdo de leilão. Quando se quebrou o monopólio estatal do petróleo e das telecomunicações, em 1995, a Petrobras foi obrigada a disponibilizar todas as suas áreas e dizer em quais ela queria continuar. Nessa época, iniciaram os leilões, que se realizam em hotéis de luxo, onde a gente não pode chegar perto, pois são cercados até por tanques de guerra. Nesses leilões, a Petrobras faz uma apresentação das suas áreas para as transnacionais, disponibiliza a sua inteligência e todo o esforço de investigação de petróleo e gás naquelas áreas. Aí vai para leilão, e a Petrobras disputa o que ela teve de investimento de décadas para se fazer a pesquisa. Ela é obrigada a dar um lance também. Qual é a malandragem das transnacionais? Elas tentam fazer uma ação compartilhada com a Petrobras. Nessa bacia de Santos, que deve ter cerca de 7 bilhões de barris [por dia], 25% das reservas já não são brasileiras. No terceiro leilão, algumas empresas deram lance no escuro. Eles compram e fazem lance no escuro porque sabem que a Petrobras vai achar petróleo. Nesse processo, não se leva em conta a dedicação dos nossos técnicos, não se leva em conta o investimento brasileiro feito pela Petrobras, para localizar petróleo. Então a Petrobras vira uma empresa qualquer. Competindo com outras. No mínimo, esperávamos do Lula que suspen-
Sindipetro
A EUFORIA do governo brasileiro ao anunciar a auto-suficiência em petróleo e a descoberta do campo de Tupi não tem respaldo na postura dos movimentos sociais com relação aos rumos da exploração petroleira no Brasil. Desde o ano passado, um amplo espectro da esquerda brasileira deixou desavenças de lado e passou a elaborar atividades conjuntas para denunciar a perda de soberania nacional causada pelos leilões das bacias petrolíferas brasileiras. Segundo Antonio Carlos Spis, petroleiro e 1º tesoureiro da CUT, a tendência é o movimento se radicalizar, se o “governo ousar continuar leiloando petróleo”. Em novembro passado, os movimentos ocuparam a sede da Agência Nacional de Petróleo (ANP), no Rio de Janeiro, para protestar contra a 9ª rodada de leilões. Com a descoberta do campo de Tupi, Spis acredita que a anulação dos leilões tornou-se ainda mais necessária. O sindicalista afirma que mesmo as 42 áreas em torno da bacia de Santos, cujos leilões foram suspensos, podem ser leiloadas em breve. Leia abaixo a entrevista com o petroleiro.
Quem é Antonio Carlos Spis é petroleiro, integrante da Executiva Nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
desse os leilões. E tem motivo para suspender: a grande descoberta [do campo de Tupi]. O governo tem uma empresa com a maioria das ações, indica o presidente, tem garantia de que essa empresa apresenta resultados, tornou o país auto-suficiente recentemente e não confia na capacidade [da Petrobras] de fazer prospecção de petróleo e gás no Brasil? Nós não temos as mesmas condições lá fora que eles [transnacionais] têm aqui, são bem mais vantajosas aqui do que lá fora. Exemplo disso é que o petróleo que a Petrobras achou no Iraque vendeu a preço de banana. Há uma situação desigual. A postura do governo, nessa área, coincide com as políticas aplicadas em outras áreas? Esse governo tem pontos extremamente positivos, mas achamos que vacilou três vezes: primeiro, na não-suspensão dos leilões da 9ª rodada de petróleo no ano passado [logo após a descoberta da bacia de Santos]; segundo, na renovação automática da concessão da Rede Globo; em terceiro, não querer nem ouvir o plebiscito que nós fizemos contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Isso é um sinal muito grave de que há uma falta de sintonia com o movimento sindical, social e estudantil. Mas temos os pontos positivos, como a legalização das centrais sindicais e a criação de processos variados de inclusão social e acadêmica. Isso o governo tem, não dá para negar. Mas para nós que lidamos com o movimento social, essas questões são muito sérias, porque nos envolvemos e nos mobilizamos. Amanhã, estaremos nos mobilizando contra a privatização da CESP [horas após a entrevista, o leilão foi cancelado], promovido pelo governo do PSDB. Nós temos certeza de que o Serra nem quer ver a nossa cara, para nós isso é da natureza da direita. Agora, se a esquerda também não quer ver a nossa cara, é um grande desrespeito com esses setores que eu citei.
O que fizeram, após a descoberta da bacia de Santos, foi retirar do leilão 42 áreas em torno das jazidas, desconhecendo a conquista que viria depois, a do pré-sal. Há um campo inexplorado, de grandes conquistas por aparecer. Eu duvido que alguma pessoa séria do Brasil questionaria a suspensão dos leilões Há uma previsão para novos leilões? O 8º leilão foi suspenso, porque descobrimos falhas no processo de licitação e entramos com uma liminar. Principal-
mente porque provamos que estavam sendo leiloadas áreas onde existe petróleo, então é um investimento sem risco, é só fazer um buraco que o petróleo espirra na cara. Cassaram a liminar agora, e estava previsto um novo leilão em março. A 8ª rodada não está suspensa, a qualquer momento ela pode ser marcada. Por isso, nós marcamos um seminário nacional para o 27 de março. O governo não parou os leilões. O que fizeram, após a descoberta da bacia de Santos, foi retirar 42 áreas em torno das jazidas, desconhecendo a conquista que viria depois, a do pré-sal. Há um campo inexplorado, de grandes conquistas por aparecer, que pediria mais seriedade no encaramento dessa questão. Eu duvido que alguma pessoa séria do Brasil questionaria a suspensão dos leilões. Leiloando áreas, se entrega o que você não sabe o que é ainda. Essas 42 áreas preservadas voltam a leilão com a cassação da liminar da 8ª rodada. É absurdo isso. Se conseguirmos truncar esse processo de leilões, podemos realizar um bom debate sobre o marco legal e a lei brasileira de petróleo. O Sérgio Gabrielli [presidente da Petrobras] falou que quer discutir o marco legal, mas não dá para fazer isso leiloando. Tem que parar os leilões e discutir os marcos legais. Qual é a sua avaliação sobre o roubo de informações sobre a bacia de Santos, ocorrido em fevereiro? Houve negligência? Eu ainda acho que aquilo foi armado. Eu não tenho segurança para seguir a tese da Polícia Federal, de que foi um furto comum, de que quem furtou nem sabia o que tinha lá. É muito suspeito que dados confidenciais estejam num contêiner e num lap top daquele tamanho. Os técnicos e engenheiros da Petrobras utilizam equipamentos bem menores para guardar dados confidenciais. Eu mantenho minha suspeita. Isso é gravíssimo. Logo após a 9ª rodada, acontece uma coisa dessa. Talvez, na próxima rodada de licitação, alguma empresa morda a língua e cuspa alguma informação que não deveria possuir.
No dia do leilão, ocupamos a sede da ANP no Rio de Janeiro, com MST, UNE, Conlutas... Eu conversei com o Haroldo Lima [DiretorGeral da ANP, do PCdoB] pelo celular, à noite, e argumentei: “Venha aqui, senão não vamos desocupar”. Mas ele disse: “Já leiloou tudo”. Respondi que não interessava, que queríamos discutir Há uma promiscuidade entre o setor público e privado? Existem denúncias, desde o governo FHC, de que diretores da Agência Nacional do Petróleo (ANP) têm relações com o setor privado. Há vazamento de informações? Se isso está acontecendo eu não sei. Mas o fato é que as agências reguladoras são um covil, em que há loteamento de territórios entre partidos políticos. A ANP hoje é controlada pelo PCdoB. O movimento social não viu nenhuma diferença do tratamento da ANP em relação à política de desestatização conduzida por outras agências controladas por outros partidos. O Haroldo Lima [Diretor-Geral da ANP] é insensível na discussão conosco. No dia do leilão, em 28 de novembro passado, ocupamos a sede da ANP no Rio de Janeiro, com MST, UNE, Conlutas... Eu conversei com o Haroldo pelo celular, à noite, e argumentei: “Venha aqui, senão não vamos desocupar”. Mas ele disse: “Já leiloou tudo”. Respondi que não interessava, que queríamos discutir. Ele acabou indo para lá. Fizemos um debate e ele foi intransigente nas posições de direita, mantendo a importância dos leilões, que tinha arrecadado bilhões, dizendo que não poderia suspender porque isso seria um atraso, um desrespeito, e que se a Petrobras estava em outros países, os outros países podem estar aqui também. Discussões muito rasteiras. Da virada do ano para cá, conversei diversas vezes com ele para realizarmos um debate com a posição da ANP. Mas ele fugiu. Infelizmente, ele, que é um companheiro do PCdoB, com história, tem um papel frustrante, nesse episódio, para o movimento social e estudantil.
6
de 27 de março a 2 de abril de 2008
brasil www.brasildefato.com.br
Evaristo SA/AFP
saiu na agência Privatização fracassa Depois de protestos de movimentos sociais, ações na Justiça e desinteresse dos grupos privados, fracassou a tentativa do governador de São Paulo, o tucano José Serra, de vender a estatal Cesp. O leilão, previsto para ocorrer no dia 26 de março, foi cancelado. A estatal iria ser vendida por R$ 6,6 bilhões, embora o Citibank tenha estimado um valor superior, de R$ 15 bilhões. Já o sindicato dos eletricitários apurou que a empresa vale R$ 21 bilhões. A discrepância nos números levou os sindicalistas a moverem uma ação pedindo a anulação da lei, alegando prejuízos ao patrimônio público. “Nova era” no Chipre
O primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, cumprimenta o presidente Lula em encontro de 2005
Frente unida contra Israel no Mercosul UMA NOVA OFENSIVA Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes organiza série de ações para 2008, ano que completam-se os 60 anos da nakba, a catástrofe palestina; luta contra ratificação do TLC é um dos principais objetivos Arturo Hartmann de São Paulo (SP) EM 2008 completam-se os 60 anos da nakba, a catástrofe palestina de 15 de maio de 1948, o que, para cerca de 700 mil árabes não-judeus, significou a formação de Israel e a conseqüente expulsão e deslocamento de suas terras e casas. No Brasil, uma frente conjunta de movimentos sociais e entidades da sociedade civil, sob o Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes, está com as mãos ocupadas com as mais diversas ações para não deixar passar em branco o aniversário da catástrofe. Dentro daquilo que pode ser feito dentro do território brasileiro, e junto ao governo nacional, uma das campanhas mais importantes do movimento é a luta contra o Tratado de Livre Comércio (TLC) que o Mercosul está prestes a ratificar com Israel. A história da luta contra o acordo não vem de agora, e teve uma importante vitória em 2006. Em abril daquele ano, o site da Fiesp dava declaração do embaixador Regis Arslanian – na época, diretor de Departamento de Negociações Internacionais do Itamaraty: “Tudo leva a crer que o acordo será assinado ainda este ano, no segundo semestre. A negociação está acontecendo de forma muito rápida, talvez como nunca tenha acontecido num acordo deste porte”. Dois meses depois, em junho, Israel começaria a atacar Gaza e o sul do Líbano. No Líbano, deixaria, em dois meses, cerca de 1.100 mortos. A pressão da sociedade civil, organizada já sob o Comitê, estancaria o acordo, mas não o eliminaria por completo. O Tratado foi, então, assinado mais de um ano depois, na calada do ano de 2007, em 18 de dezembro, na cúpula do Bloco em Montevidéu. Acordo fechado, sobra a seus opositores barrá-lo na aprovação de seus termos específicos, que é obrigado a ter no Legislativo brasileiro.
Frente parlamentar Entre as ações que o comitê conseguiu tomar está a formação de uma Frente Parlamentar na Assembléia Legislativa e a aprovação de uma moção de apoio à campanha que quer barrar a entrada de Israel no Mercosul. Para o deputado estadual Raul Marcelo, do Psol, essas ações são importantes para haver a divulgação do movimento contra o TLC com Israel. “Muitos setores progressistas não estão sabendo desse tratado, portanto, temos que divulgar essa questão, e a Assembléia
Ato em São Paulo lembra o Dia da Terra na Palestina O Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes, dentro das atividades que realizará, organiza, para o dia 30 de março, um ato lembrando o Dia da Terra na Palestina. A data é uma homenagem à memória de seis palestinos árabe-israelenses mortos pelo Exército de Israel em 1976, durante um protesto contra a retirada de casas, levada a cabo dentro do processo da tomada de terras. Um ato público em memória das vítimas dos mais recentes ataques à Gaza, quando foram mortas cercas de 120 pessoas, será realizado na praça Osvaldo Cruz, em São Paulo, a partir das 10h. (AH) tem esse papel. Há muitos deputados que podem se posicionar nessa questão. É importante esse processo político para que se exerça pressão sobre o Senado no momento da ratificação do TLC, a fim de que ela não ocorra”. O comitê pretende levar uma comitiva à Brasília na segunda quinzena de abril para se reunir com autoridades brasileiras. Os países do Mercosul já têm relações comerciais com Israel. O Brasil, especificamente, trava essas relações comerciais há 11 anos, que trazem seguidos deficits para a balança brasileira. Segundo a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), no ano de 2006, os valores movimentados entre os dois países foi de 1,1 bilhão de dólares. A Argentina tinha o mesmo problema brasileiro até 2000, quando inverteu a balança e acumulou variados superavits até 2006. Arlene Clemesha, professora da USP, diretora do Instituto da Cultura Árabe e membro do Movimento Palestina Para Todos e do Comitê de Solidariedade, diz que a concretização do TLC entre Mercosul e Israel seria um ato político. A argumentação do comitê que quer barrar o acerto é que não pode haver um tratado dessa magnitude com um país que insistentemente viola resoluções e leis internacionais. Entre as políticas israelenses de colonização, está o controle das fronteiras palestinas e, conseqüentemente, de toda renda que a Autoridade Nacional Palestina consiga fazer com o comércio internacional. A favor dessa argumentação, está o fato de que, desde 2000, quando Israel iniciou a construção do Muro que corta e divide cidades no interior da Cisjordânia, ficou claro que a ocupação usaria cada vez mais a via sul-africana, a via do apartheid. A caracterização geográfica do domínio israelense através de bantustões (durante o regime do apartheid, qualquer dos territórios com limitado grau de autodeterminação reservados aos negros sul-africa-
nos) controlados coloca outro problema para países que queiram comerciar com Israel. Existiria uma base jurídica dentro da lei internacional para que esse comércio não acontecesse.
Precedente Em 4 de novembro de 1977, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução 418, que dava início ao embargo econômico que pressionaria a África do Sul a acabar com a violência contra a população negra do país. Assim é aberto o texto da resolução, que pode ser encontrado na página da ONU: “O Conselho de Segurança, recordando a resolução 392 (1976), de 19 de junho de 1976, condena fortemente o governo sulafricano por recorrer à violência massiva e à morte da população africana, incluindo crianças e estudantes e outros que se opõem à discriminação racial, e chama o governo para que acabe urgentemente com a violência contra o povo africano e que tome passos urgentes para eliminar o apartheid e a discriminação racial”. Por último, no item 2, a resolução “decide que todos os Estados devem cessar qualquer provisão à África do Sul de armas e materiais relacionados de qualquer tipo, incluindo a venda ou transferência de armas e munição, veículos militares e equipamentos (...), e partes sobressalentes dos equipamentos mencionados acima, e deve cessar também a provisão de todos os tipos de equipamentos e produtos para a manufatura ou manutenção dos mencionados acima”. A decisão da ONU contra a África do Sul foi dada no campo do Conselho de Segurança, o que lhe dá um caráter de obrigatoriedade. Por isso, o embargo ao apartheid africano foi efetivo. Uma solução como essa contra Israel dificilmente passaria no atual CS. No entanto, há uma decisão jurídica, de caráter consultivo da Corte Internacional de Justiça, apreciada a pedido da Assembléia Geral
da ONU, que considerou, ilegal em 9 de julho de 2004, o Muro que corta o interior da Cisjordânia.
Construção do muro No relatório final da Corte, também disponível na página da ONU, está afirmado, entre outras coisas, que: “Por 14 votos a 1, a construção do Muro por Israel, a força ocupante, nos Territórios Ocupados Palestinos, incluindo Jerusalém Leste, e seu regime associado, são contrários à lei internacional” e que “por 13 votos a 2, todos os Estados estão sob a obrigação de não reconhecer a situação ilegal resultante da construção do Muro e não podem oferecer ajuda ou assistência em manter a situação criada por tal construção; todos os Estados membros da Quarta Convenção de Genebra, relativa à Proteção de Populações Civis em Tempos de Guerra, de 12 de agosto de 1949, têm em adição a obrigação, enquanto respeitarem as regras das Nações Unidas e a lei internacional, de assegurar a cooperação de Israel com a lei humanitária internacional, como posto pela Convenção”. As decisões da Corte são apenas consultivas e não tem a obrigatoriedade das resoluções decididas pelo Conselho de Segurança. Fertilizantes químicos Um outro problema do acordo Mercosul-Israel é que ele não observa o problema de produtos originados nos assentamentos israelenses da Cisjordânia. O item A, do Artigo 4 do TLC, assim diz: “Os seguintes produtos se considerarão como produzidos ou obtidos em sua totalidade em Israel ou em um Estado parte do Mercosul: produtos minerais extraídos do solo ou subsolo de qualquer das Partes Signatárias, incluídos seus mares territoriais, sua plataforma continental ou sua zona econômica exclusiva;”. Arlene diz que, quando a União Européia assinou TLC com Israel, esse ponto foi objeto de dez anos de disputas jurídicas, pois o bloco europeu se recusou a aceitar produtos dos assentamentos. “A maior parte das exportações de Israel para os países do Mercosul são químicos, especialmente fertilizantes. Pelo menos quatro fábricas de químicos estão em assentamentos na Cisjordânia, alguns deles foram fechados em Israel para serem transferidos aos assentamentos, onde não há limitações de regulamentação à destruição do meio ambiente ou à destruição da saúde do povo palestino”. Produtos químicos fertilizantes, segundo a Aladi, foram responsáveis por 42,5% das importações brasileiras de Israel.
Um mês depois de ser eleito presidente do Chipre, o comunista Demetris Christofias retomou as negociações para pôr fim à divisão do território do país. Em encontro com o dirigente da República Turca do Chipre do Norte, Mehmet Ali Talat, os dois Chefes de Estados decidiram abrir um ponto de passagem entre as duas áreas, no coração da capital Nicósia. Christofias afirmou que a ação inaugura uma “nova era” na relação entre os dois territórios. O país está dividido desde 1974, quando cipriotas-gregos, apoiados por Atenas, protagonizaram um golpe de Estado.
Reinstalação da Constituinte
O Movimiento Al Socialismo (MAS, partido do presidente Evo Morales) propôs a ampliação do mandato da Assembléia Constituinte da Bolívia por um ou dois meses, para que “ajustes” sejam feitos no novo texto constitucional, aprovado em dezembro de 2007. A sugestão, criticada pela presidente da Constituinte, Silvia Lazarte, é um sinal de abertura ao diálogo entre governo e oposição.
Escassez de água
A crise hídrica mundial, agravada pela mudança climática, não se restringe aos países pobres. Mais de cem milhões de europeus sofrem com a falta de água potável, afirma um estudo divulgado pela Organização das Nações Unidas.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Promessa japonesa Ao optar pelo padrão japonês de TV digital, em 2006, o governo federal anunciou que uma contrapartida acertada com a indústria japonesa era a construção, pela Toshiba, de uma fábrica de semicondutores no Brasil. Menos de dois anos depois, a Toshiba deixa claro que não tem interesse na tal fábrica. Ou o anúncio era uma cascata ou quem negociou não soube amarrar direito a contrapartida. O Brasil levou o cano. Desinteresse político Segundo pesquisa Datafolha, em cinco anos, o percentual de brasileiros sem vinculação com partidos políticos saltou de 42% para 54%. Uma das razões é que os partidos atuais perderam ou embaralharam suas bandeiras de luta. O desencanto da juventude com os partidos tem a ver com a sensação recorrente, no Brasil, de que todos são iguais ou parecidos – e a luta política não leva a mudanças reais e verdadeiras.
Empresa assassina Acaba de ser lançado na França o livro O mundo segundo a Monsanto, da jornalista Marie-Monique Robin, que conta a história nefasta da transnacional estadunidense Monsanto. O livro inclui resultados de pesquisas com o pesticida roudup, integrante da composição de sementes transgênicas, que é causador de abortos e nascimentos prematuros. Até quando essa empresa continuará atuando impunemente no Brasil?
Plano tucano Está cada dia mais claro que as críticas de setores tucanos à revista Veja visam o enquadramento da publicação ao esquema da futura candidatura do PSDB à Presidência da República, em 2010. Os tucanos sabem que eles têm mais chance na linha da continuidade melhorada do atual governo do que fazer oposição frontal e direta. Porta-voz natural do tucanato, a Veja está mais para a pauleira do que para a conciliação.
Violência radiofônica No último dia 17, a Polícia Federal e a Anatel apreenderam os transmissores de 30 rádios comunitárias na Grande Recife, em Pernambuco. A justificativa, mais uma vez, era de que essas rádios prejudicavam as transmissões do tráfego aéreo. A repressão só acontece porque o governo federal não libera os alvarás das comunitárias e faz o jogo das rádios comerciais – a maior parte, nas mãos de políticos conservadores.
Ritual repetido Está marcado para os dias 12 a 16 de maio, em Brasília, o Grito da Terra de 2008, organizado por sindicatos e federações de trabalhadores rurais. Este ano, as principais reivindicações são: maior agilidade na liberação de recursos para habitação rural, garantia de previdência para os trabalhadores rurais e política agrícola voltada à agricultura familiar. Mais uma vez, o governo receberá os trabalhadores com muitas promessas. Omissão total A imprensa empresarial não deu destaque, mas jornais e sites alternativos informaram, há mais de 50 dias, que a prefeitura do Rio de Janeiro havia desviado 6 milhões de reais do serviço de combate ao mosquito da dengue. O serviço estava desativado. A epidemia – previsível – chegou logo depois. Quem vai assumir os mortos da negligência?
Poluição empresarial A ONG Defensoria da Água divulgou recentemente, no Rio de Janeiro, o ranking das empresas mais poluidoras dos recursos hídricos no Brasil, entre elas a Petrobras, a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Sadia. Ao invés de verificarem os estudos da ONG e adotarem medidas para evitar a contaminação dos mananciais, as empresas preferiram contestar as informações. É mais fácil. Abandono indígena Mais uma vez, a ONU acusa o Brasil de não responder de maneira satisfatória sobre o desrespeito aos direitos dos povos indígenas, em especial sobre a situação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, que ficou 15 anos sem demarcação e continua invadida por grandes empresas agrícolas arrozeiras. A desatenção do governo afeta mais de 18 mil índios dos povos patamona, uapixana, taurepangue, macuxi e ingaricó.
de 27 de março a 2 de abril de 2008
7
brasil
Jagunços e empresários oprimem famílias no Semi-Árido da Bahia DIREITOS HUMANOS Empresários usam pistoleiros para expulsar famílias de terra onde viviam há mais de 100 anos CPT
Clarice Maia de Casa Nova (BA)
“Me deixaram dentro do carro, a uns 150 km da comunidade, cercado de policiais. Um deles perguntou: ‘atiro logo nele?’. Nunca pensei que nós poderíamos passar um momento assim”, relata agricultor Joaquim Pereira da Silva, o morador mais velho, conta que “o pessoal vive aqui perto do braço do rio, mas sempre tirou o sustento de lá. O registro diz que eu tenho 96 anos, mas eu sou o mais novo dos 10 filhos que meu pai criou nessas terras”. Maria Eterna Pereira da Silva, 56, uma das filhas dele, completa: “tem mais de 100 anos, o povo já usava essa terra”. “Não é a primeira vez que tentam nos expulsar. Nos anos de 1980 aconteceram conflitos graves que deram início a um processo de reconhecimento das famílias, que está sendo desrespeitado. Até as terras onde já há início da demarcação estão no processo, eles dizem que são donos de tudo porque era da Usina”, comenta Zacarias Ferreira da Rocha, 42, mostrando o marco colocado na área que seria do pai dele. O agricultor é presidente da Associação dos
A família de Maria de Lurdes, que teve casa e roçado destruídos, se abriga sob lona improvisada sobre cercado
Pequenos Produtores da comunidade de Riacho Grande, que, junto com as associações das comunidades de Salina da Brinca, Melancia e Jurema, aglutina os moradores das quatro propriedades cobiçadas pelos empresários.
Conflitos A situação se agravou quando o juiz de Casa Nova, Eduardo Ferreira Padilha, determinou a Imissão de Posse das quatro fazendas – Lages e Fazenda Baixa do Umbuzeiro, Fazenda Urecê e Fazenda Casa Nova. A entrega do mandado, dia 6 de março, pelo oficial de justiça, foi acompanhada por “policiais civis e militares, a polícia da caatinga, muitos seguranças armados, representantes dos empresários e pelo menos seis tratores que entraram destruindo tudo. Eles ameaçaram e prenderam duas pessoas, só que não autuaram ninguém”, conta Cícero Félix, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Me prenderam por volta das 07h40, mas só tiraram as algemas depois das 11h, porque eu disse que tinha dor no estômago. Eles me deixaram dentro do carro, a uns 150 km da comunidade, cercado de policiais até as cinco horas. Um policial até perguntou: ‘atiro logo nele?’. Nunca pensei que nós poderíamos passar um momento desses, com tanta falta de respeito”, lamenta Raimundo Nascimento Campos, 41. As famílias que possuíam casas dentro da área tiveram tempo apenas de retirar os pertences. Os outros que apenas tinham as áreas de cultivo tiveram as benfeitorias arrasadas pelos tratores. Depois de uma audiência com o Ouvidor Agrário Nacional, Gercino José da Silva Filho, os agricultores conseguiram uma decisão favorável para que fossem investigados possíveis abusos e irregularidades cometidas por policiais. Seria feita também uma representação na Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça para apurar possível ilegalidade cometida pelo juiz local. Mas as intimidações continuaram, assim como a “tentativa de expulsar as pessoas das terras”, comenta Pedro Teixeira, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia. “Eles chegaram já com a ordem determinada pelo juiz. Esperava que pelo menos nós fôssemos ouvidos pela justiça”, diz Zacarias.
Os tratores continuaram dentro da área, acompanhados pelos seguranças armados que começavam a levantar guaritas e restringiam a entrada e saída dos moradores. Em uma ação ousada, no dia 15 de março, foram reunidas mais de 300 pessoas, representantes das famílias atingidas. Eles fecharam a entrada e forçaram a saída de todas as máquinas e jagunços, com a intenção de barrar a destruição das benfeitorias. Dois dias depois, nove homens armados e encapuzados invadiram o local, fizeram disparos, ameaças de morte, bateram e queimaram algumas pessoas, inclusive crianças, que foram usadas como reféns para coibir reações. Os barracos que haviam sido levantados pelos agricultores, após a derrubada das casas, foram destruídos. No dia seguinte, três mulheres fizeram exames de corpo delito para comprovar as agressões. Os trabalhadores apresentaram queixa na delegacia de
polícia civil, do município, mas o delegado afirmou que “não podia fazer nada”, conta Marina Braga, da CPT. Dessa forma, foi acionada a Companhia de Policiamento e Ações na Caatinga (CEPAC). “Eles estiveram lá, viram os caras encapuzados e não fizeram nada. Não prenderam ninguém, pelo contrário, ficaram conversando. Desse jeito, os moradores tiveram que recuar até que, na audiência pública, que deve acontecer no município, com o Ouvidor Agrário Nacional, possam decidir sobre a melhor forma de agir”, conta Marina. Ela diz ainda que a “a situação pode se agravar. Os trabalhadores não se conformam de ver seu trabalho sendo destruído. As criações podem ser perdidas, assim como o mel das caixas das abelhas. Se for pra morrer de fome, passando necessidades, com certeza eles vão escolher morrer nas terras deles, isso é o que mais preocupa se a situação continuar assim”.
Caso revive o “Escândalo da Mandioca” Moradores afirmam que empresários são intermediários de outros interessados na terra de Casa Nova (BA)
CPT
EMBAIXO DA sombra de um Juazeiro está instalada uma família de cinco pessoas. Dentro e em volta do cercado, coberto com lona, foram improvisadas a cozinha e área de dormir. O roçado, que servia para sustento, está destruído e a criação de caprinos, ameaçada. Casa, roçado e criação levaram cerca de 11 anos para serem conquistados. “Se vencermos essa luta, espero passar o resto da minha vida aqui”, conta Maria de Lurdes da Costa Rodrigues, 40, observando os entulhos da antiga moradia. Ela, junto com o marido e os três filhos, assistiu a casa ser colocada abaixo em poucos minutos pela ação de tratores resguardados por policiais, seguranças armados e ordenados por empresários, com o aval do juiz local. A comunidade é Riacho Grande, município de Casa Nova (BA), distante 572 km da capital, Salvador, região do Semi-Árido baiano. A família de Maria de Lurdes é uma entre as mais de 300 que, em 6 de março, tiveram principalmente sua área de produção destruída e são intimidadas a deixar as terras onde vivem há mais de 100 anos. A posse da área, de aproximadamente 30 mil hectares, está em disputa com empresários que, em uma astuta jogada, passaram a substituir o Banco do Brasil e se tornaram credores de uma dívida milionária, conforme a cláusula segunda da cessão de créditos relacionada nos autos do processo, por R$ 639 mil, deixados pela Agroindustrial Camaragibe S.A. Falida e envolvida no chamado “Escândalo da Mandioca”, nos anos de 1980. As famílias são caracterizadas como comunidades de Fundo de Pasto, que significa um modo de viver baseado em áreas coletivas ou comunitárias, com criatórios a solta e pastagens nativas. As terras invadidas são utilizadas por elas como principal fonte de renda e manutenção: plantio de mandioca, melancia, melão, feijão, entre outros; pastoreio de cerca de 15 mil cabeças de caprinos e apicultura, com mais de 3 mil caixas de abelhas.
Zacarias Ferreira mostra o marco na área que seria de seu pai
A Agroindustrial Camaragibe S.A. foi construída no final dos anos de 1970 e início da década de 1980, com investimentos para produção de álcool a partir do processamento da mandioca. No mesmo período, veio à tona o “Escândalo da Mandioca”, golpe em que empresários desviaram verbas milionárias. A Camaragibe decretou falência, foi abandonada e o Banco do Brasil ficou como principal credor da dívida de oito cédulas hipotecárias dos supostos bens da empresa, conforme os autos do processo. A atualização da dívida – transformada de cruzeiro para real, com correção de juros – pode ultrapassar, segundo Pedro Teixeira, R$ 40 milhões. A partir de uma negociação com o Banco do Brasil de Nova Iguaçu (RJ), em que “nenhum morador foi consultado”, segundo os agricultores, os empresários Carlos Nisan Lima e Silva e Alberto Martins Pires Matos passaram a ser credores e detentores dos direitos da Camaragibe, conforme o processo, por R$ 639 mil. “Não é justo desalojar tantas famílias, para colocar uma, não é justo”, comenta Raimundo. As negociações avançaram mais. Os herdeiros proprietários da Camaragibe detinham ainda o título de devedores do crédito milionário adquirido pela agroindustrial e não pago. Carlos Nisan e Alberto, com poderes adquiridos de negociação, resolvem quitar a dívida milionária dos herdeiros por R$ 700 mil, pagos não em espécie, mas em forma
dos imóveis contíguos supostamente pertencentes à agroindustrial, uma área total com mais de 25 mil hectares: Fazenda Lages e Fazenda Baixa do Umbuzeiro, Fazenda Urecê e Fazenda Casa Nova, exatamente onde estão localizadas as comunidades de fundo de pasto. Os moradores suspeitam que os dois empresários sejam apenas intermediários de outros interessados nas terras, que ainda conservam grande área preservada e é cortada por um ‘braço’ da barragem da hidrelétrica de Sobradinho. Alberto é diretor do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Juazeiro (BA). Também é um dos diretores da empresa Sane Engenharia Ltda, envolvida em um escândalo no município de Uauá (BA). Seria também sócio da Qualitycal Indústria e Comércio Ltda e, em julho de 2004, fora condenado pelo Tribunal de Contas da União e Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) da Bahia, por ter acumulado o salário de servidor federal e o de Secretário de Obras do Município de Juazeiro (BA), durante dois anos. Carlos Nisan é conhecido na região pela especulação imobiliária. Segundo moradores, ele seria “o maior intermediário” de mamona na região. “Há cerca de três anos, fornecia mamona para uma empresa de São Paulo que faliu. Comprou a companhia e hoje adquire toda a mamona da região de Jacobina, Miranguaba e Irecê (todas na Bahia), para produção de biodiesel”, comenta um morador da região que não quis se identificar, mas afirma conhecer o empresário há mais de 10 anos. (CM)
8
de 27 de março a 2 de abril de 2008
cultura
Quebra-quilos ou um Brecht numa certa Paraíba TEATRO Peça do diretor Márcio Marciano e o grupo de Teatro Alfenim retratam a Revolta dos Quebra-quilos num viés brechtiano
Divulgação
Romero Venâncio
“Quando é abatido o que não lutou só o inimigo ainda não venceu” B. Brecht
“Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os Funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis” R. Schwarz COMECEMOS COM um pequeno princípio metodológico: leremos a peça “Quebraquilos”, trabalho extraordinário do diretor Márcio Marciano e do Grupo de Teatro Alfenim, pelas lentes do teatro dialético brechtiano. Em nenhum momento forçaremos a barra para colocar numa camisa de força importada um arrojado “teatro paraibano”. Longe disso. É que, pela formação do diretor na Companhia do Latão, e por uma série de cenas que nos levam a um certo “estranhamento”, fica fácil aproximarmos a peça “Quebra-quilos” de algumas categorias desenvolvidas pelo teatrólogo alemão B. Brecht. Marciano e o Alfenim produziram um texto vigoroso e inteligente, à altura de qualquer grande trabalho teatral no Brasil contemporâneo. Escolheram uma temática nada neutra politicamente, da história do Nordeste e, em particular, da Paraíba: a revolta dos Quebra-quilos de 1874. As informações históricas vêm a “conta-gotas”, pois fica notório que o interesse da peça não é nos contar uma história “tal qual foi” (se é que isto é possível para a historiografia acadêmica!), mas fazer uma leitura “dramática” de momentos/ acontecimentos significativos da pesquisa feita sobre o determinado acontecimento.
A Revolta Retomemos um pouco da história da revolta dos Quebra-quilos para voltarmos à peça e percebermos que a escolha do Grupo Alfenim foi mais do que feliz em um momento de “despolitização” do teatro brasileiro, em que seguir um “modelo televisivo” (da rede Globo, em particular) passou a ser fórmula de sucesso para vários grupos teatrais da nossa Pindorama. Seguindo os estudos de Manuel Correa de Andrade, Peter L. Eisenberg e Hamilton de Mattos Monteiro sobre o Nordeste na segunda metade do século XIX, podemos afirmar que a região estava, neste período, à beira de movimentos rebeldes. Tudo era motivo para revolta e violência. Nas principais cidades nordestinas, de tempos em tempos, ocorriam motins populares. As decisões governamentais que não tinham apoio ou compreensão popular não eram acatadas. A população revoltava-se contra o recrutamento militar, contra os impostos, contra o registro civil dos nascimentos e óbitos, contra o censo geral da população do Império, contra a aplicação dos novos padrões de pesos e medidas etc. Não realizavam simples passeatas e protestos, mas autênticas lutas com mortos e feridos aos montes. Além disso, desde a chamada “Revolução Praieira” (1848-1850), havia uma animosidade latente entre grandes proprietários e trabalhadores rurais (brilhantemente alegorizada na peça num encontro entre um fazendeiro decadente, o alferidor do Império, e uma negra prostituta). A tudo isto somava-se a atua-
ção da imprensa e dos políticos liberais, bem como a luta entre facções das classes dominantes, disputando o controle das funções públicas. A difícil situação econômica da região ocasionava o rompimento da precária relação entre as classes sociais, e entre estas e o Estado monárquico. As insurreições, conflitos e violências demonstravam a profundidade das contradições econômicas que ameaçavam transformar a região em um bolsão de revoltas que estavam fugindo ao controle das classes dominantes. E, na história, isto sempre foi um grande problema para as organizações populares. Quando as classes dominantes recuperam seu poder, as lutas populares são difamadas, injuriadas e relegadas ao esquecimento pela história oficial. Coisa que a peça do Grupo Alfenim não quer deixar acontecer no bom espírito brechtiano.
Compreensão histórica Para uma melhor compreensão histórica do valor da peça “Quebra-quilos”, duas coisas não podem ficar de fora: a primeira é o entendimento de que o Nordeste é uma das provas vivas do resultado da exploração predatória dos recursos econômicos de uma região. Para atender a interesses externos, que, depois de esgotada, é abandonada. De região heróica da época áurea da produção açucareira e da vitória contra os holandeses, passa a ser acusada de ignorante, fanática e indolente, quando economicamente não mais interessa. A segunda coisa é que as revoltas (entre elas, a do Quebra-quilos) devem ser entendidas, sem excluir aspectos particulares e conjunturais, a partir da crise econômica que assola a região e que se aprofunda nas décadas finais do século XIX (nisto, a peça é impecável, a questão econômica está no centro dos vigorosos diálogos). Nos últimos meses de 1874 e princípios de janeiro de 1875, quatro províncias do Nordeste – Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas – foram assoladas por uma nova rebelião que abalou as principais comarcas da Zona da Mata e Agreste de Pernambuco e Paraíba e várias localidades de Alagoas e Rio Grande do Norte. De uma maneira geral, os fatos ocorreram de forma parecida: a cobrança de impostos provocava protestos, e daí partia-se para a agressão, com os revoltados pobres quebrando pesos e medidas do “novo sistema métrico decimal” e, em seguida, destruindo arquivos das câmaras municipais, coletoria, cartórios civis e criminais, registros de hipotecas. Algumas vezes, a cidade ou vila era invadida por grupos armados, “cujo número variava de 60 a 600”, que realizavam os mesmos feitos de destruição de papéis e de novos padrões de medidas. Isto tudo pesquisado por Hamilton de Mattos Monteiro na obra Crise agrária e luta de classes, e por Peter L. Eisenberg, em Modernização sem mudança.
Um outro dado importante para o entendimento da peça é que o movimento do Quebra-quilos, na Paraíba, teve início em uma feira, na Vila de Fagundes, pertencente à Comarca de Ingá. O povo que ia à feira abastecer-se de gêneros alimentícios pronunciou-se contra a cobrança absurda de impostos denominados “imposto do chão” (extraordinariamente ilustrado na peça em um diálogo entre a feirante negra e o cobrador de impostos corrupto).
Repressão A grande quantidade de pessoas que protestava e o reduzido número da força policial deram vitória momentânea aos insurretos, enquanto a notícia se espalhou como num rastilho de pólvora pelo Nordeste afora. A partir de então, uma após outra, várias localidades da Paraíba sofreram os efeitos da pequena rebeldia das “massas populares desenfreadas”. Há dados históricos que tornam as atividades dos Quebra-quilos muito mais complexas socialmente. Infelizmente, não é possível analisar tais detalhes importantes num curto texto dessa natureza. Uma coisa é certa: assim como muitas outras rebeliões populares na história moderna, os “Quebra-quilos” também sofreram uma forte oposição violenta por parte do Estado brasileiro, cruel e implacável quando se trata de reprimir as organizações populares (para uma atualização dessa situação, lembremos as ações do Estado brasileiro no que diz respeito às ocupações lideradas pelo MST durante o governo FHC). A repressão foi considerada pela historiografia extremamente violenta contra os “rebeldes quebra-quilos”. A ação
das tropas foi de verdadeira selvageria, aplicada cegamente contra “culpados” ou inocentes. Na peça do Grupo Alfenim, a violência estrutural do Estado é representada na morte da personagem Joaquina. Um pano vermelho é a simples ilustração de um “mar de sangue” que banhou os pobres Quebra-quilos na sua heróica resistência às forças imperiais.
Quando as classes dominantes recuperam seu poder, as lutas populares são difamadas, injuriadas e relegadas ao esquecimento pela história oficial O movimento foi derrotado e massacrado, mas sua memória marcou certa historiografia. E quanto mais nos afastamos do acontecimento, mais ele nos clama para ser interpretado. Como afirma Walter Benjamin: “cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.”
Contexto atual Acreditamos que aqui entra a importância da peça Quebra-quilos e do texto dramático produzido por Márcio Marciano e seu grupo, no contexto atual. Seguiram eles aquela assertiva benjaminiana: “historicamente o passado não significa conhecê-lo como foi. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” Além dessa visão da história (honesta e generosa com os
pobres derrotados), há os elementos do teatro de B. Brecht, bem dosados e esteticamente situados nessa perspectiva de história que tem raiz na filosofia de W. Benjamin. O primeiro elemento brechtiano que salta aos olhos na peça é o recurso do estranhamento. Poderíamos destacar vários elementos que exercem esse efeito, mas um nos chama a atenção: a música. A presença musical tem aquele componente chamado por Anatol Rosenfeld de “alegre efeito didático”. Poderíamos perguntar: o que tem a ver com uma peça sobre um acontecimento do século XIX uma música típica do século XX e que nos remonta ao “velho Sofista”? Tudo, absolutamente tudo. A música nos leva de imediato à reflexão sobre o que era o Homem (a medida) e no que se tornou depois das “desmedidas das medidas” (a coisa é a medida do Homem). Numa frase luminar de Anatol Rosenfed: “peça deve, portanto, caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica, para demonstrar a sua condição passageira.” É exatamente esta relatividade histórica que a peça “Quebra-quilos”, com a música sobre a famosa frase de Protágoras, quer nos fazer refletir (palavra-chave no universo brechtiano): sobre o que acontece com o Homem no século XIX e até hoje. A música nos transporta do palco, sem nos tirar do lugar, para um lugar onde imperam todas as leis férreas contra os seres humanos, tendo os mais pobres como os mais atingidos na sua condição. Mais um elemento que a música nos faz refletir: se estas coisas são relativas, não são “enviadas por Deus”, logo, são mutáveis. Na peça do grupo Alfenim, o teatro é visto como teatro.
Não quer iludir o espectador. Os atores se “transformam” no palco, a cena é construída e desfeita tendo como mediação apenas um jogo de luz e sombras (este apenas não faz jus ao inteligente e sutil trabalho de iluminação). Muito se teria a comentar nessa peça seminal de um “Brecht na Paraíba”. E acredito que não passará em brancas nuvens um trabalho dessa natureza para alguns estudiosos ainda engajados em analisar uma dramaturgia radicalmente política. Uma coisa mais: o “Quebra-quilos” vem num momento em que se comemoram os 50 anos de “Eles não usam black-tie”, de Guarnieri. Tanto Marciano como Guarnieri quiseram nos mostrar um caminho para um teatro que não seja apenas de “culinária”, um teatro que nos torna estranho perante a nossa situação habitual, a ponto de ela (a nossa situação num mundo cada vez mais miserável para os mais pobres) ficar estranha a nós mesmos... Quando vejo muitos jovens ainda interessados num teatro da natureza do Arena ou do Latão (a presença de muitos jovens paraibanos nas apresentações do “Quebraquilos” é uma prova disto), sinto-me tentado a reconhecer que, algumas vezes, ele pode nos levar do “choque do não-conhecer ao choque do conhecer”; forte e penetrante como a vida se descobrindo e se parindo num mundo hostil. Um teatro como “Quebra-quilos” pode nos indicar que a generosidade, sem populismo ou pieguismo com os mais pobres, ainda nos faz pensar. A questão não está no teatro, está mundo. Romero Venâncio é professor do departamento de filosofia na Universidade Federal de Sergipe
de 27 de março a 2 de abril de 2008
9
internacional
Quem é o “pacifista’’ dalai-lama CONFLITO NO TIBETE Incensado pelo Ocidente como uma figura impoluta, lutadora da paz e da não-violência, o dalai-lama, ou Tenzin Gyatso, está longe de merecer o epíteto de pacifista que a mídia ocidental lhe aplicou nos últimos 50 anos Louisa Gouliamaki/AFP
AFP
Humberto Alencar EXILADO EM Dharamsala, na Índia, onde está à testa de uma comunidade de 120 mil tibetanos, o 14º dalai-lama é apresentado desde 1959 pelos meios de comunicação de massa como “um dos maiores defensores da paz no mundo’’ e “líder espiritual’’. Seus gestos desmentem esses epítetos. Em 2003, o “líder espiritual’’ budista passou 18 dias nos Estados Unidos, onde se encontrou com o presidente do país, George W. Bush, e o então secretário de Estado, Colin Powell. Os EUA tinham recentemente estabelecido o Tibetan Policy Act, uma lei que regularizava a ajuda aos separatistas, em 2002. O que disse e fez por lá revela que o homem que ostenta o título de Prêmio Nobel da Paz, obtido em 1989, age de forma diametralmente oposta ao discurso que mantém. A Casa Branca não divulgou o teor das conversas, mas, a julgar pelas declarações posteriores do dalai-lama, um dos resultados da visita foi sua incorporação à política de guerras preventivas, aspecto central da estratégia agressiva do imperialismo estadunidense na atualidade. “É muito cedo para dizer se a guerra no Iraque foi um erro’’, afirmou, para acrescentar, em seguida, sua convicção de que é necessário “reprimir o terrorismo’’, sem explicar o que queria dizer com “reprimir’’.
tabelecer uma linha sucessória segura para os separatistas, o dalai-lama propôs então um “referendo’’ entre os budistas tibetanos sobre mudar ou não o atual processo de reencarnação de modo que pudesse ter influência na escolha de seu sucessor. A idéia não foi bem recebida pelos budistas, porque contraria a lógica religiosa: como encontrar a alma de alguém em outro corpo, se você ainda não desencarnou?
Participação no poder
Anti-desenvolvimento
Em 1954, o 14º dalai-lama participou da primeira Assembléia Nacional Popular da China, que elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido eleito como um dos vice-presidentes do Comitê Permanente dessa Assembléia. Na ocasião, pronunciou um discurso afirmando: “Os rumores de que o Partido Comunista da China e o governo popular central arruinariam a religião do Tibete foram refutados. O povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças religiosas’’. Em 1956, o dalai-lama assumiu a presidência do comitê provisório encarregado de organizar a região autônoma do Tibete. As relações entre os governos central e local estavam, portanto, normalizadas. O conflito ressurgiu quando se cogitou em promover a reforma democrática do Tibete, separando a religião do Estado, abolindo a servidão rural e a escravidão doméstica e redistribuindo a propriedade das terras e dos rebanhos, monopolizada pela aristocracia civil e pelos mosteiros. Após o exílio, o dalai-lama, cercado pelas forças anti-chinesas e separatistas tibetanos, traiu completamente a sua posição patriótica original. A facção pró-ocidental, aproveitando-se da insatisfação entre lamas e nobres, retomou a ofensiva. Agitando as bandeiras separatista e religiosa, e apoiada pela CIA cada vez mais desinibidamente, como hoje se reconhece, essa facção fundou uma organização política, a “Quatro Rios e Seis Montanhas’’, e uma organização militar, o “Exército de Defesa da Religião’’, e iniciou em 1956 ataques armados a funcionários e prédios públicos, a obras de infra-estrutura e até mesmo a tibetanos que apoiassem o movimento democratizador.
Como reencarnar?
Traindo seus princípios religiosos, em novembro passado, o dalai-lama propôs que, em vez de esperar que os sábios religiosos encontrassem a próxima encarnação após sua morte, ele escolhesse sua própria encarnação. Geralmente, depois da morte do dalai-lama, autoridades budistas tibetanas, orientadas por sonhos e sinais, identificam uma criança que vai substituir o líder morto. Para impor seu método e es-
Protesto da RSF: ataques financiados
Assim como exilados tibetanos, ONG Repórteres Sem Fronteiras também recebe dinheiro da CIA O líder espiritual do Tibete, dalai-lama, dá a mão a George Bush
O governo central da China inaugurou em 2006 a maior ferrovia do mundo, ligando o Tibete ao resto do país. A ferrovia custou 4,1 milhões de dólares e atravessa o platô tibetano para ligar Lhasa aos centros econômicos da China. A ferrovia é uma ferramenta vital para a economia tibetana, a mais pobre da China, mas o dalai-lama e os separatistas consideram a estrada de ferro uma “ameaça’’. Alegam que a ferrovia trouxe “novos ocupantes’’ e é um meio de “roubar’’ as riquezas naturais do Tibete. Desde 1985, o Tibete é uma “zona de turismo livre’’, substituindo o “turismo acompanhado’’ que vigorava até então, a ferrovia veio apenas aumentar o desenvolvimento econômico local. Semanas atrás, Tenzin Gyatso lançou, pela mídia, um apelo vazio para que a “comunidade internacional’’ investigasse o que chamou de “genocídio cultural’’ no Tibete, após a violência perpetrada nas ruas de Lhasa por monges e seus seguidores.
O ouro de Washington
De acordo com o historiador americano Jim Mann, citado pelo página na internet Global Research, “durante os anos 1950 e 1960, a CIA apoiou ativamente a causa tibetana com armas, treinamento militar, dinheiro, apoio aéreo e todo o tipo de auxílio’’. Além de Mann, outro estudioso das ações da CIA na Ásia, Michael Parenti, fez recentemente a seguinte observação: “(...) nos Estados Unidos, a Sociedade Americana Por uma Ásia Livre, uma fachada da CIA, propagandeou ferozmente a causa da resistência tibetana, com o irmão mais novo do dalai-lama, Thubtan Norbu, tendo um papel ativo nessa organização. Outro irmão, também mais novo, do dalai-lama, Gyalo Thondup, estabeleceu uma célula de operação de ‘inteligência’ com a CIA em 1951 (embora o apoio oficial da agência tenha sido estabelecido somente em 1956). Mais tarde, essa célula foi treinada e transformada em uma unidade de guerrilha da CIA, sendo seus recrutas lançados por pára-quedas no Tibete.’’ De acordo com documentos abertos pela inteligência estadunidense no fim da década de 1990, revelou-se que o movimento tibetano no exí-
lio recebeu cerca de 1,7 milhão de dólares por ano, na década de 1960, para operações contra a China, enquanto 180 mil dólares anuais eram pagos regiamente (e diretamente) ao dalai-lama. Em 1969, entretanto, o apoio secreto pela causa tibetana foi interpretado pela CIA como infrutífero, e a agência de espionagem decidiu retirar a ajuda aos “revolucionários’’ tibetanos. No entanto, a ajuda monetária anual ao “pacifista’’ dalai-lama perdurou até 1974, quando Nixon normalizou as relações com a China. O presidente que lhe sucedeu, Gerald Ford, encerrou o envolvimento da administração estadunidense com os exilados tibetanos, em um novo contexto da estratégia dos Estados Unidos para a Guerra Fria. A fase seguinte do relacionamento entre Estados Unidos e o dalai-lama e os seus apoiadores foi direcionar a opinião pública mundial a considerar o Tibete como uma questão de direitos humanos, em um engajamento político contra a China. Em 1979, a relação entre re-
gime estadunidense e dalailama sofre uma nova modificação, com o “pacifista’’ obtendo um visto de entrada nos EUA sob a administração Carter. A “causa tibetana’’ encontra então novos patrocinadores, com representantes do Congresso estadunidense trabalhando em conjunto com os separatistas tibetanos para enfocar a atenção dos governos seguintes e do resto do mundo na “questão tibetana’’. Nos dias de hoje, a ajuda financeira e política aos exilados tibetanos parte de um poderoso braço da CIA, a National Endowment for Democracy (NED), organismo criado a partir de 1984, sob a administração Reagan, e que patrocina e subsidia movimentos pró-estadunidenses ao redor do planeta, como os que recentemente derrubaram os governos da ex-Iugoslávia, em 2002, Geórgia, em 2004 e Ucrânia, em 2005. O trabalho da NED, desde a década de 1990, entre outros, é propalar os discursos e ações “pacifistas’’ do dalai-lama ao redor do planeta. (texto publicado originalmente na página www.vermelho.org.br)
Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Engana-se quem pensa que o “ativista” que empunhou uma bandeira negra, com algemas no lugar dos tradicionais anéis olímpicos, durante a cerimônia de acendimento da tocha dos Jogos Olímpicos de Pequim, em Olímpia, na Grécia, o tenha feito por motivos nobres, em defesa dos “direitos humanos” e da chamada “liberdade de imprensa”. A ONG a qual pertence, a francesa Repórteres Sem Fronteiras (RSF), é financiada pelo mesmo braço da CIA que patrocina há anos os exilados tibetanos sob o comando do dalai-lama, a National Endowment for Democracy (NED). O fato, denunciado em artigos e em livro pelo jornalista canadense Jean-Guy Allard, foi uma das razões que fizeram com que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) retirasse, no dia 12, o seu coauspício à RSF. O jornalista relata, entre outras coisas, os vínculos da RSF com agentes confessos da CIA e o
apoio financeiro que a ONG recebe da União Européia (UE). Em 2005, por exemplo, a UE entregou mais de 1 milhão de euros à RSF. Fontes diplomáticas da agência da ONU disseram que a atuação da RFS não se atém aos propósitos da Unesco, “ao quererem arvorarem-se em tribunal da Inquisição para julgar nações em vias de desenvolvimento”, e que pensam em romper definitivamente a relação que mantêm com a RSF e excluir qualquer tipo de colaboração no futuro.
Boicote “europeu”
Não deixa de ser sintomático que o secretário-geral da RSF, Robert Ménard, tenha sido condecorado cavaleiro da Legião da Honra pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy, exatamente um dia antes do “protesto”. E que o próprio Sarkozy – que ocupará a presidência rotativa da União Européia durante os Jogos – venha agora defender o boicote de chefes de Estado à cerimônia de abertura, marcada para 8 de agosto, a despeito da vontade do povo francês. que não concorda com o boicote.
ANÁLISE
O conflito tibetano é uma briga de brancos Cristóvão Feil Antes de comentar sobre os conflitos no Tibet, quero deixar claro que não compartilho em nada do que faz ou prega o regime chinês (continental). Acho aquilo uma deformação pseudo-socialista com enclaves territoriais de neoliberalismo selvagem, mão-de-obra que roça a escravidão, tal como a fase de acumulação primitiva experimentada pela Europa nos séculos 18 e 19, jornadas desumanas de mais de dez horas, descanso semanal reduzido, recrutamento quase militarizado, trabalho feminino intensivo etc. Isto posto, é bom informar que na velha China existem três grandes famílias étnico-lingüísticas, e pelo menos 14 etnias diferentes, a saber: as Sino Tibetanas, Han (chineses), Hui (chineses muçulmanos), Tibetanos, Kadai (incluindo os Tai e Zhuang), Miao-yao; Austro asiáticas, Môn e Khmers, Coreanos, Tajiques indo-europeus; Altaicas: Mongóis, Tunguzes, Uigures, Cazaques e Quirquizes. Existem problemas com lutas independentistas em pelo menos três regiões autônomas. Em todas existem Assembléias Deliberativas com participação das populações locais nas decisões – uma espécie de Orçamento Participativo chinês.
É intrigante, pois, que somente o Tibete – uma província ainda feudal e com governo teocrático – tenha se sublevado, nas antevésperas de um evento mundial como as Olímpíadas de Pequim. Segundo o portal Resistir.info, em julho de 2007, a embaixada estadunidense na Índia patrocinou um encontro inusitado entre o líder temporal e religioso do Tibete, o dalai-lama, agentes da CIA e a sub-secretária de Estado dos EUA, a neocon Paula Dobriansky. Nesta reunião, foi decidido que, nos primeiros meses de 2008, haveria uma grande marcha de exilados tibetanos numa grande cidade global, e protestos populares em território tibetano – o que efetivamente está ocorrendo no momento. Não é preciso dizer que toda essa estratégia tem um custo econômico, e este custo é coberto pelo polpudo orçamento da CIA. Os Estados Unidos, investidos do espírito imperial, querem minar a China, que desponta como uma das grandes potências mundiais – tanto militar quanto tecnologicamente – nos meados do século 21, e para tanto não hesitam em fomentar conflitos abertos nas contradições políticas e étnico-religiosas chinesas. Um parêntese necessário: vocês sabem o que significa dalai lama? Significa
“Oceano de Sabedoria”. Aliás, o único sujeito na face da Terra, além do papa católico, que é titulado com o atributo de Sua Santidade, é o dalai-lama do Tibete. Quem suspeita que haja um mínimo de espontaneidade nas manifestações “populares” de Lhasa, capital do Tibete, está completamente ingênuo na história, sem desmerecer a repressão chinesa na província, que ocorre desde 1950, quando a revolução maoísta começou na Ásia.
Antes de 1950
Mas, e como era o Tibete antes de 1950? Um paraíso liberal-religioso onde o Oceano de Sabedoria banhava docemente todas as criaturas vivas? Nada disso. Vejam trechos do artigo “Confira os mitos e os fatos concretos sobre o Tibete”, do veterano jornalista Duarte Pereira, conforme dica do blog Na Periferia do Império. “As leis confirmavam essa estrutura desigual, dividindo a população em três estratos e nove graus, com direitos e deveres distintos. Não havia, portanto, igualdade jurídica, nem mesmo para as mulheres do estrato dominante. Se um nobre matava um servo ou um escravo, pagava uma indenização. Mas, para servos e escravos que agredissem um nobre ou furtassem um bem, os códigos previam penas cruéis, como espan-
camentos brutais, mutilação de mãos ou pés, extração dos olhos. Até entre os monges, a disciplina era mantida à custa de chicotes e surras, como relata o dalai-lama em sua autobiografia. Além de uma prisão pública e precária em Lhasa, havia guardas, tribunais e cárceres privados nos mosteiros e nas grandes propriedades.” “Os monges da camada superior e os nobres mais influentes monopolizavam os direitos políticos. O dalai-lama encabeçava o governo desde meados do século 18. Os demais cargos eram repartidos entre lamas e nobres leigos. A Seita Amarela, do dalai-lama, era privilegiada em relação às demais seitas e o budismo tibetano, em relação às demais religiões.” “O Tibete antigo não tinha nada de idílico, portanto. É espantoso que se invoquem os ‘direitos humanos’ para defender esse regime opressivo e cruel, em que a maioria da população, formada por servos e escravos, não gozava de liberdade pessoal, nem dispunha de qualquer direito político.” Vamos olhar agora com outros olhos as notícias e imagens do conflito do Tibete que despejam na nossa casa todas as noites. Aquilo lá não tem mocinho, só tem bandido. Pura briga de branco, como se dizia na senzala brasileira. (publicado em www.di ariogauche.blogspot.com)
10
de 27 de março a 2 de abril de 2008
américa latina
Uma Carta Magna de transição Aizar Raldes/AFP
BOLÍVIA Para especialista boliviana, a nova Constituição do país ainda é liberal, mas garante a inclusão dos povos antes marginalizados Igor Ojeda de La Paz (Bolívia) “ESSE NOVO texto constitucional não é totalmente revolucionário”. A avaliação é de Lucila Choque, pesquisadora da Universidade Pública de El Alto e da Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac). Para ela, a nova Constituição, aprovada em dezembro, é de transição: ainda é liberal, já que “estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante”. Mesmo assim, ela destaca inúmeros avanços que a Carta Magna pode trazer ao país se for aprovada em referendo – cuja realização permanece indefinida, devido à disputa entre governo e oposição –, principalmente na questão dos direitos dos povos indígenas. Ainda segundo Choque, em entrevista ao Brasil de Fato, o novo texto prevê as autonomias departamentais (principal reivindicação da oposição), mas com uma diferença fundamental em relação às demandas regionais: “o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado”. Brasil de Fato – Raúl Prada, constituinte do Movimiento Al Socialismo (MAS) e ligado ao vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, disse uma vez que a nova Constituição ainda é liberal; é uma Constituição de “transição”, que consolida o caminho para transformações mais profundas. Lucila Choque – Esse novo texto constitucional não é totalmente revolucionário. É liberal porque ainda estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante. Quando Raúl Prada diz “liberal”, refere-se a 1825, quando o país foi fundado como uma república. Os latino-americanos estavam copiando as fundações na Europa dos Estados-Nações, cujas bases eram hegemonistas, ou seja, uma só língua, um só território, uma uniformidade. Adotamos a democracia, mas uma democracia liberal, representativa. Agora, a brecha se abriu. Se a Carta Magna de 1826 foi realizada por uma elite, a casta crioula, agora, essas revoltas que aconteceram nos últimos anos – posso dizer nos últimos 500 anos – permitiram que esses povos que não gozavam de seus direitos agora participem. Então, não é só liberal. É também comunitária. No novo texto constitucional, já não é dito que a Bolívia é uma república. E, sim, que é um Estado. O que se entende por Estado? É o povo. Ou seja, é a maioria marginalizada, oprimida, que está participando. Os outros já estavam. Agora se soma. No entanto, nossos povos, em seu imaginário, não pretendem fundar um socialismo ou comunismo, porque essas são propostas modernistas, e as de nossos povos são anti-modernistas. A correlação atual de forças não permite uma mudança de sistema, e sim o que se está tentando fazer: que os direitos dos povos indígenas se incluam na nova Constituição. Nela, por exemplo, há os direitos fundamentais e há os direitos fundamentalíssimos. O direito à vida, à cidadania desde o nascimento – não apenas na hora do voto –, o direito à educação, à saúde, à moradia digna e, principalmente, à alimentação. Ou seja, o Estado deve ter uma política alimentar. Essas coisas não existem na Constituição liberal vigente.
A correlação atual de forças não permite uma mudança de sistema, e sim que os direitos dos povos indígenas se incluam na nova Constituição Mas, não é uma Constituição indigenista, como diz equivocadamente a direita. É liberal. Porque, no primeiro artigo, diz que a Bolívia é um Estado Social de Direito. Ou seja, está aceitando leis, e leis com direitos. Os que estavam propostos como direitos humanos desde a Europa, e não como nossas necessidades. Na visão anti-modernista de sociedade de nossos povos, não existe o conceito de direito, e sim de dever. Essa visão anti-modernista não tem nada a ver com aversão à tecnologia. E sim que a natureza não é vista como matéria-prima, mas como uma mãe. Deve ser cuidada, e não utilizada como mercadoria para benefício de poucos. Quais são os principais avanços na nova Constituição? Em primeiro lugar, o tipo de Estado que se quer adotar. Na Constituição vigente, herdamos um Estado colonial, que buscava a fundamentação da ideologia modernista, que destrói a natureza, e
Bolivianos cercam o Congresso, em La Paz, exigindo a convocação do referendo que ratificará a nova Constituição proposta por Evo Morales
O maior aporte dessa nova Constituição é no tema de direitos. Estão se constitucionalizando, por exemplo, os direitos das crianças, dos adolescentes e dos idosos por meio disso, os povos. O maior aporte dessa nova Constituição é no tema de direitos. Estão se constitucionalizando, por exemplo, os direitos das crianças, dos adolescentes e dos idosos. Direito ao trabalho e ao emprego. Quase toda a população está presente com seus direitos. No entanto, por que falamos que ainda é um texto de transição? Porque não está exatamente como os povos queriam. Porque houve uma disputa no cenário da Assembléia Constituinte. Então, os governistas cederam em algumas coisas para garantir tais direitos. O tema da educação também vai mudar. Pretende-se que o Estado garanta que uma criança, ao nascer, chegue, gratuitamente, pelo menos ao bacharelado. Quais foram os retrocessos principais, em relação à proposta popular, no contexto dessa disputa que aconteceu na Assembléia Constituinte? O novo texto Constitucional é um produto tanto da direita quanto dos povos que estavam participando. A direita trabalhou para que a Constituição vigente, criada por seus pais ou avós, não se diluísse. Por isso, houve essa disputa. Não aceitam que aqui haja os direitos desses povos, e sim que se mantenha o Estado anterior. Na Constituição vigente, é dito que a Bolívia é um país multiétnico. Os povos eram vistos como etnias, ou seja, como tribos, em estado de desaparecimento. Agora, são considerados nação. Isso eles não querem. De que maneira as reivindicações da maioria indígena são atendidas? Quais artigos garantem a inclusão dessa maioria? Desde o artigo 1º, que diz que a Bolívia é um Estado Plurinacional Comunitário. O artigo 5 diz que o idioma oficial não é somente o castelhano, e sim também os idiomas das nações e povos indígenas originários. Além disso, são todos citados no texto. Não se diz simplesmente “as etnias” [A Bolívia possui 36 nações originárias]. No capítulo de direitos, por exemplo, nos civis e políticos, o artigo 21 diz que os bolivianos e as bolivianas têm direito à autoidentificação cultural. No capítulo 4, sobre os direitos das nações e povos indígenas originários e camponeses, há muitos artigos que foram tirados da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU [lançada em setembro de 2007].
Sob quais preceitos a autonomia indígena está colocada? O único proprietário dos recursos naturais é o Estado. Com a autonomia, os povos serão consultados sobre a gestão desses recursos e, além disso, serão beneficiados de uma maneira mais direta, não mais com esse rodeio burocrático, em que o Estado outorga primeiro para os governos departamentais, depois para os municípios e, se sobrar algo, para os povos. O povoado onde se encontre petróleo ou gás, por exemplo, vai ser consultado se vende ou não, senão, ele vai ser prejudicado. Se o Estado decide, junto com eles, vender, produzir, exportar ou industrializar, essa sociedade vai se beneficiar primeiro. A autonomia contempla também a maneira de autogovernar-se, as formas como se elege. A sociedade boliviana não é homogênea. Em alguns lugares, os representantes são eleitos por meio de assembléias, e não pelo voto. Em outros, há uma rotação de pessoas. Isso tudo existe, mas não está formalizado na Constituição vigente. Quais são as diferenças entre a autonomia departamental proposta na Constituição e aquela dos estatutos autonômicos da oposição? Está bem claro que os estatutos autonômicos querem dividir a Bolívia em duas. Pretendem fazer suas próprias leis, que beneficiem somente os latifundiários, em detrimento dos povos indígenas que estão na região. Pretendem adotar um sistema de governo centralista. Porque é uma elite que se apoderou das decisões. Por trás disso, estão as transnacionais, a embaixada estadunidense, empresas privadas, que sempre usaram os recursos naturais da Bolívia como matéria-prima, como mercadoria, para encher seus bolsos. Porque, mais que tudo, essa nova Constituição irá prejudicar os latifundiários. E no novo texto constitucional, como está colocada a questão da autonomia departamental? Propõe que os departamentos tenham certas competências, inclusive legislativas, mas com o reconhecimento de que o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado [os estatutos autonômicos pretendem dar aos departamentos o poder sobre os recursos em seu território]. E, como dissemos antes, o Estado é o povo. Segue-se pensando na unidade, na integração. Em relação ao modelo econômico, a senhora acredita que a nova Constituição caminha no sentido de desmontar o neoliberalismo no país? Sim. Em que pontos? Por exemplo, quando se propõe que os recursos não sejam depredados de ma-
Quem é Lucila Choque é pesquisadora e docente da Universidade Pública de El Alto (UPEA). Trabalha para a Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac), entidade vinculada ao Executivo que foi criada com o objetivo de apoiar o processo Constituinte e pós-Constituinte, estabelecendo a relação entre a sociedade civil e a Assembléia. É autora do livro La Guerra del Gas Contada por Mujeres.
neira perversa, como faz o capitalismo, e sim cuidando do meio ambiente. No entanto, isso ainda é letra morta. O que se tem que fazer são políticas econômicas novas que cuidem do meio ambiente e dos povos. Está dentro do conceito de modelo de desenvolvimento sustentável. Então, na medida que o Estado gesta o desenvolvimento, é uma forma de desmonte do neoliberalismo? Acredito que sim. Não agora. Seguimos no modelo de desenvolvimento neoliberal. Continuamos com o saque. Porque sequer o governo Evo Morales está em um novo tipo de Estado. Está administrando esse Estado. Agora, a partir disso, certamente vai ter um trabalho muito forte para mudar. E em relação ao latifúndio? O texto fala de um limite à extensão das terras, que será de cinco mil ou dez mil hectares [a população deverá decidir o tamanho máximo em um referendo]. Mas, ao mesmo tempo, o texto fala em função econômica e social. Não poderá existir, de nenhuma maneira, propriedades maiores que cinco mil ou dez mil hectares ou estas serão respeitadas quando cumprirem tal função? Lamentavelmente, esses latifundiários não são verdadeiros trabalhadores da terra. Quando se diz que se deve cumprir uma função econômica social, isso quer dizer que os povos indígenas camponeses não podem estar isolados e abandonados. Não se pode deixar morrer de fome um povo quando há terra em que este poderia trabalhar. Esses povos estão vivendo, na verdade, como escravos. Porque nunca tiveram título, e não têm outra alternativa que trabalhar nesses latifúndios. No entanto, se houver propriedades que excedam os dez mil hectares, e estiverem trabalhando nela, não vão tirar essas terras do proprietário. Porque realmente lhes estão dando uma função econômica e social.
Para entender Crioulo – termo utilizado em castelhano para se referir aos descendentes de europeus nascidos na então América espanhola.
de 27 de março a 2 de abril de 2008
11
internacional
Nos EUA, sindicatos não reagem APATIA Tesoureiro da AFL-CIO, maior central sindical do mundo, recebe aplausos ao dizer que solução é trabalhar mais; central distribui espécie de “manual de resignação” de um desses profetas de fim do mundo que afirma que a crise econômica está nos planos de Deus Reprodução
Reprodução
Memélia Moreira de Orlando (EUA) MARCHA EM direção ao Capitólio com bandeiras desfraldadas e cartazes de protesto? Não. Barricadas ao longo de Wall Street? Também não. Comícios-relâmpago nas proximidades do número 16000 da Pennsilvania Avenue, onde fica a Casa Branca? Nem pensar. Panelaço ao redor da Suprema Corte? Como? No país do hamburguer, coca-cola e fast-food, panela é artigo de antiquário. Afinal de contas, que atitudes e respostas os sindicatos e a American Federation of Labor and Congress of Industrial Organization, a maior central sindical do mundo, mais conhecida pela sigla AFL-CIO, estão fazendo para proteger seus filiados e reagir à crise econômica que vem abatendo o país e já dá sinais de que vai mergulhar os EUA numa trágica recessão? Em uma palavra, nada. Absolutamente nada de concreto. Nem mesmo a central concorrente “Change To Win”, de orientação progressista, demonstra apetite para enfrentar os verdadeiros responsáveis pela crise. Até agora, suas manifestações foram feitas quase em sussuros. Sem qualquer estratégia, a “Change To Win”, com uma ou outra frase mais dura do que sua rival, a AFL-CIO, é a própria imagem do sindicalismo estadunidense: dividido e desorientado.
Fim do mundo Em compensação, e por mais incrível que possa parecer, praticamente todos os sindicatos e até a AFL-CIO vêm oferecendo ajuda espiritual, uma espécie de “manual de resignação” a todos que acessam suas páginas na internet. Trata-se do livro 2008 – God´s Final Witness (numa tradução livre, 2008 – o Testemunho Final de Deus). O autor, Ronald Weinland, é um desses profetas de fim do mundo que, entre outras pérolas, diz a seus leitores que a crise econômica e uma guerra mundial definitiva estão nos planos de Deus. Em outras palavras, de nada adianta qualquer reação, pois são desígnios de Deus. Quem quiser o livro, basta pedir ao seu sindicato ou baixar pela internet. É de graça.
O desemprego que, a princípio, atingiria 6,4% em 2009, agora já aponta para 25% entre os brancos e 50% entre os negros Para entender o efeito de um livro com esse conteúdo, é preciso ir às raízes da sociedade estadunidense. Nação pós-cristã, os estadunidenses são inquestionavelmente, para o bem ou para o mal, o povo mais fundamentalista do mundo, em qualquer uma das religiões que professem. Mais que em qualquer outro ponto do planeta, a famosa frase “religião é o ópio do povo” tem uma dimensão concreta. Quem entendeu muito bem essa realidade foi o presidente Hugo Chávez, quando disse que o presidente George W. Bush é o “Demônio”. Essa é a linguagem de mais fácil compreensão para o estadunidense médio. A partir daí, pode-se entender a importância do apelo religioso que está sendo usado pelos sindicatos. Mas engana-se quem pensar que os dirigentes sejam tão fervorosos. Os líderes sindicais, principalmente John Sweeney, o todo poderoso presidente quase vitalício da AFL-CIO, têm consciência de que nem a crise, que em dois meses devorou 50 mil postos de trabalho, e muito menos as guerras pro-
2008 – o Testemunho Final de Deus
Trabalhadores da construção civil fazem pausa no topo de prédio no Rockfeller Center, em 1932
vocadas e sustentadas pelos Estados Unidos integram os chamados “planos divinos”.
Declarações Sweeny, num arremedo de protesto, disse, no último 4 de março, que “a crise tem sua raiz na política econômica dos últimos anos, que desorganizou o mercado financeiro e, desobedecendo as regras do senso-comum, deixou de lado os interesses daqueles que esperam realizar o Sonho Americano” (leia-se sonho da casa própria, da propriedade privada). É preciso dizer que a expressão “Sonho Americano” é sempre grafada em maiúsculas, como se fosse um dogma de fé. John Sweeny continuou no mesmo tom dizendo: “É inconcebível que, dentro da nação mais rica do mundo, um trabalhador de tempo integral não possa se permitir a pagar as prestações de um empréstimo da casa própria”. A ladainha se repetiu numa nota oficial da AFL-CIO. E ponto final. Nenhuma palavra, muito menos uma análise sobre a verdadeira raiz do problema, como se toda a crise se resumisse às dificuldades de comprar uma casa. Não é à toa que essa central sindical por anos e anos tenha sido sustentada pela CIA, e preserve, cuidadosamente, sua fama de peleguismo. Mas os estadunidenses mais incrédulos não hesitam em dizer que sindicatos e máfia são sinônimos. Jimmy Hoffa, presidente do sindicato dos caminhoneiros, que desapareceu misteriosamente em 1975 (seu corpo jamais foi encontrado), que o diga. Mais horas de trabalho Com voz embargada e gestos teatrais, o tesoureiro da AFL-CIO, Richard Trumka, fez a festa do patrão. No dia19 de março, falando no auditório do Sindicato de Michigan para uma platéia que incluía estudantes universitários e trabalhadores, ele disse aquilo que qualquer chefe, em qualquer regime, gostaria de ouvir. Sem meias palavras, analisou o problema e apontou soluções afirmando: “Mais do que qualquer outro país no mundo, nosso país vem crescendo econômica, política e socialmente nos últimos 30 anos. Para evitar a estagflação (inflação sem crescimento econômico), desemprego, erosão do sistema de saúde, redução das pensões e aposentadorias nós, a classe média estadunidense devemos trabalhar mais e por mais horas. Trabalhadores, famílias e sindicatos podem reconstruir e restaurar o Sonho Americano”. A média de horas trabalhadas é de nove horas/dia, cinco dias por semana. Ao contrário do que se podia prever, Trumka não foi vaiado. Ao contrário, recebeu os aplausos de rotina.
Protestos Embora os sindicatos demonstrem desinteresse real na defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, há vozes pregando. Por enquanto, eles são pouco ouvidos, quase se escondem em blogs da internet e, quando fazem palestras, o público ainda é reduzido. Trata-se da chamada “esquerda estadunidense”, integrada por intelctuais liberais, professores ou pesquisadores de universidades, que rararamente são convidados pelos sindicatos para explicar o fenômeno e indicar caminhos. Da UCLA (Universidade da Califórnia-Los Angeles), o professor Robert Breener, num artigo para o jornal esquerdista Contra a Corrente, alerta os estadunidenses para a gravidade da crise, afirmando que ela “tem se mostrado cada dia mais devastadora que a Grande Depressão. Tudo isso por causa dos bancos. Ou se adota uma mudança total no sistema bancário ou essa recessão não terá paralelos na história”. Outra voz de alerta é a do professor Dan LaBotz, militante da “Ação Progressista de Cincinatti”. No seu artigo “Crise Econômica, Trabalho e Esquerda”, ele recomenda como primeira reação o “reconhecimento do perigo”. Sem meias palavras, ele acusa o presidente George W. Bush de repetir o mesmo erro de seu antecessor na Casa Branca, Herbert Hoover, que, depois do crash de 1929, insistia em negar que a economia estava em perigo. Mais desemprego Para tirar o sono dos banqueiros, LaBotz não hesita em afirmar que, “apesar da voz corrente dizer que a crise atingirá apenas pessoas comuns, é fundamental que banqueiros, financistas e governos entendam que essa crise tem poder de se espalhar rapidamente por todos os setores da sociedade. É claro que os pobres e famintos serão as primeiras vítimas porque será mais difícil ainda lhes dar alimentos, mas ela não poupará os ricos, que devem enfrentar não a fome, mas a violência e a bancarrota”. Diante da inércia dos movimentos sindicais, o professor Dan LaBotz lembra que “quando chegar a recessão, e ela não está distante, companhias vão falir e o desemprego que, a princípio, atingiria 6,4% em 2009, agora já aponta para 25% entre os brancos e 50% entre os negros [o desemprego dos negros é sempre duas vezes maior que o dos brancos, em qualquer situação, com ou sem crise]”. Ao traçar um paralelo entre o comportamento dos sindicatos na crise dos anos 30 e dos sindicatos nos dias de hoje, LaBotz incita os trabalhadores à reação. Diz ele que, a exemplo dos anos 30, as es-
querdas deveriam organizar os comitês de desempregados para protestar e promover confrontos contra as forças oficiais, exigindo uma política de emprego. Seus apelos, entretanto, soam quase como lamento, porque ele reconhece que nem a esquerda, nem a central sindical progressista têm qualquer estratégia para enfrentar os problemas reais. “Ao contrário da esquerda de 1930, nenhum sindicalista ou movimento sindical de hoje defende a luta revolucionária socialista. Não há sequer vestígios de socialismo dentro da clas-
se trabalhadora. O socialismo sobrevive apenas na academia, enquanto os trabalhadores estão divididos entre republicanos e democratas, que raramente oferecem qualquer alternativa de mudança. Nosso desafio hoje é construir a independência do movimento trabalhista que possa lutar por uma vitória socialista nas próximas décadas. Mas, para isso, seria necessário lutar contra o capitalismo, criar uma nova sociedade, uma nova economia.” As palavras do professor têm uma sonoridade quase ingênua para quem mili-
tou ou milita nos movimentos sindicais da primeira metade do século 20 nos Estados Unidos. Mas hoje, depois da Guerra Fria, elas arrepiam até mesmo as classes mais exploradas que, aparentemente, preferem aceitar a sugestão de Richard Trumka, por mais horas de trabalho. Enquanto isso, o desemprego cresce solto. Até agora, já passados três meses de 2008, o Estado da Flórida, para onde migram estadunidenses (e estrangeiros) em busca de emprego, não promoveu sequer uma “feira de trabalho”, eventos que são verdadeiras festas e nos quais empregadores contratam mão de obra, inclusive especializada. Essas feiras, sob responsabilidade do governo e da iniciativa privada, costumam acontecer a cada três meses, mas não há notícia de nenhuma para os próximos cinco meses. Até quando vai durar essa apatia? Ninguém sabe. A qualquer momento, talvez antes do fim do ano, o estômago possa responder.
12 de 27 de março a 2 de abril de 2008
áfrica Pascal Guyot/AFP
Cuito Cuanavale: o princípio do fim do apartheid ANGOLA Batalha em que tropas angolanas, de Cuba e do movimento armado de libertação da Namíbia derrotaram tropas do regime racista da África do Sul, apoiadas pela Unita e pelos EUA, completa 20 anos Beto Almeida de Brasília (DF) HÁ 20 ANOS, em 23 de março de 1988, travou-se, no sudeste de Angola, a decisiva Batalha de Cuito Cuanavale, na qual tropas angolanas, de Cuba e da SWAPO – movimento armado de libertação da Namíbia –, unidas, derrotaram tropas do regime racista da África do Sul, que tinham o apoio da Unita e dos EUA. Não surpreende que os meios de comunicação comerciais, sempre tão zelosos em comemorar as datas mais banais, seja sobre um desfile de moda, uma festa grã-fina ou um festival de cerveja ou de rock, tenham a mais completa insensibilidade para um registro, ainda que informativo, sobre esta Batalha de Cuito Cuanavale, epopéia tão marcante na caminhada da humanidade para enterrar um dos mais selvagens e brutais regimes da história, o apartheid mantido por décadas pela oligarquia racista da África do Sul, obviamente, com a sustentação da “democracia” estadunidense. Vale relembrar. Em 1987, a situação em Angola se agravara drasticamente. Aliás, nunca tinha sido tranqüila a situação para o movimento de libertação de Angola, desde o início de sua luta contra o colonialismo português. Depois de fundado, no início dos anos de 1960, o MPLA, dirigido pelo poeta e médico Agostinho Neto, consegue grandes avanços a partir da Revolução dos Cravos, quando o movimento de militares revolucionários derruba a ditadura salazarista em Portugal, a 25 de abril de 1974. O colonialismo português entrava em colapso total e o novo governo, dirigido por militares revolucionários, adota posição de solidariedade com os movimentos de libertação das ex-colônias portuguesas. A 11 de novembro de 1975, as tropas do MPLA tomam a capital Luanda e declaram a Independência e a fundação da República Popular de Angola. Mas não houve paz. Imediatamente, os EUA – que já haviam patrocinado com dinheiro e armas a criação da Frente Nacional para a Libertação de Angola, dirigida por Holden Roberto e com apoio total do governo reacionário do Zaire, de Mobuto Sezeke –, e também a Unita – dirigida por Jonas Savimbi, com apoio direto do regime racista da África do Sul –, determinam ações para desestabilizar o novo governo angolano, impedindo que a independência fosse seguida da reconstrução de um país dilacerado pela guerra colonial. A guerra recrudesce em Angola, país rico em diamantes e petróleo; o Exército da África do Sul intervém diretamente.
Brasil reconhece Angola Agostinho Neto solicita ajuda militar de Cuba, que, com o apoio da URSS, atende. Um fato notável é que o primeiro país a reconhecer o novo governo de Angola é o Brasil, então presidido por Ernesto Geisel. A posição brasileira causou grande insatisfação junto ao governo dos EUA. Aliás, o reconhecimento brasileiro à Independência de Angola inseria-se num leque de medidas da política externa de então – tais como o reatamento com a China, a Romênia, o acordo nuclear Brasil-Alemanha e o rompimento de um Tratado Militar com os EUA e outras – que já indicava um outro alinhamen-
to internacional do Brasil, chegando a motivar uma visita repentina do Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, ao Brasil. Segundo os relatos, Kissinger teria reclamado junto ao presidente Geisel da política externa brasileira. Teria mesmo dito, em tom de ingerência, que a postura brasileira, reconhecendo o governo de Agostinho Neto, representaria, na prática, “fazer o jogo do comunismo internacional, o Brasil alia-se a Cuba”. A resposta de Geisel teria deixado Kissinger surpreendido e irritado: “Senhor secretário, a nossa política externa não está em debate com o senhor!” Bem diferente da diplomacia de “pés descalços” e subserviente que o Brasil veio a experimentar nos anos de 1990, a era da privatização.
Cuba contra o apartheid Apesar da solidariedade militar cubana a Angola, a crescente intervenção dos EUA no conflito, através da África do Sul, faz com que boa parte do território angolano escape do controle do governo. Em outubro de 1987, o presidente angolano, José Eduardo Santos, expõe a Fidel Castro as dificuldades monumentais e o risco de uma derrota militar. Solicita, uma vez mais, que Cuba conceda mais apoio militar. A dramática situação angolana é analisada exaustivamente pela direção cubana, que decide empenhar-se ainda mais decisivamente na guerra de libertação do povo angolano, baseandose nos princípios do Internacionalismo Proletário, inscrito na Constituição Socialista de Cuba. As tropas angolanas e cubanas, posicionadas na localidade de Cuito Cuanavale, estavam sob intenso bombardeio do Exército racista da África do Sul. O risco de massacre era iminente. Enquanto resistiam, um novo plano estava sendo elaborado em Cuba para inverter esta situação desfavorável. Em sucessivas viagens de 15 horas de Havana até Luanda – num itinerário inverso ao dos navios negreiros – aviões transportam dezenas de milhares de soldados cubanos. Há também o fornecimento de mil tanques, milhares de baterias anti-aéreas e, num prazo recorde de 60 dias, é construído um aeroporto com estrutura suficiente para pouso e decolagem dos modernos aviões Mig-23, de fabricação soviética, que Cuba também forneceria a Angola, juntamente com seus melhores pilotos. O plano estava traçado para a batalha final de Cuito Cuanavale: 40 mil soldados cubanos bem armados e treinados, 30 mil soldados angolanos e 3 mil guerrilheiros da SWAPO, o Exército de libertação da Namíbia, país que também estava ocupado por tropas da África do Sul. Rumo ao Sul Fidel havia encarregado o general Cintra Frias, veterano guerrilheiro de Sierra Maestra, do comando destas operações em território angolano. Na oportunidade, Castro teria confessado ao líder do Partido Comunista da África do Sul, o branquelão Joe Slovo, que a estratégia seria como a de um boxeador: “Enquanto seguramos o inimigo com a mão esquerda [Cuito Cuanavale], vamos atacando com o punho direito”. A situação militar se inverte graças a esta massiva e preparada intervenção cuba-
na, país que chegou a enviar a Angola, ao longo dos anos, cerca de 350 mil homens e mulheres internacionalistas, garantindo de fato a verdadeira independência na jovem nação africana. Não suportando os golpes recebidos, em especial uma grande surra promovida pela atuação dos pilotos cubanos nos MIG-23, a batalha decisiva ocorre no dia 23 de março de 1987, uma derrota fundamental das tropas da África do Sul que Nelson Mandela assim descreveria: “Cuito Cuanavale foi a virada para a luta de libertação do meu continente e do meu povo do flagelo do apartheid!” Sem dúvida, a luta de libertação da Namíbia também recebia um grande impulso, e, dois anos mais tarde, este país também declararia a sua Independência. Entretanto, o governo racista de Botha preocupava-se, pois, pela potência e envergadura da estratégia armada por Cuba no sul de Angola, chegou a imaginar que as tropas cubanas pudes-
Soldados cubanos e angolanos em patrulha, em fevereiro de 1988, pouco antes da batalha
sem dirigir-se rumo ao Sul, ou seja, rumo a Pretória. Na fuga, as tropas racistas bombardearam pontes, revelando medo de uma ofensiva rumo ao Sul. Enquanto as batalhas ocorriam, com sucessivas derrotas impostas às tropas da África do Sul, ocorriam, no âmbito da ONU, as famosas negociações em busca de um acordo, negociações em que os representantes dos EUA exibiam toda sua hipocrisia. Mas há um diálogo que merece ser re-
lembrado, quando o representante do regime racista nestas negociações pergunta ao representante de Cuba, Jorge Risquet, se havia a intenção de uma ação militar rumo ao Sul. A resposta é dessas que entram para os anais de história militar: “Se eu lhe disser que vamos rumo ao Sul, isto seria tomado como uma ameaça; se eu lhe disser que não vamos rumo ao Sul, isto seria para vocês um calmante”. Deixou o racista atônito e confuso. E,
em outra oportunidade, deu o toque de realismo que a arrogância sul-africana não queria reconhecer. “A África do Sul não tem condições de impor na mesa de negociações uma situação de vantagem quando, no campo de batalha, está sendo fragorosamente derrotada.” De fato, os negociadores sul-africanos diziam que se retirariam “para a Namíbia”. A história foi diferente, pois tiveram que sair de lá também.
A visita de Condolezza e o ministro negro Fotos: Antonio Cruz/ABr
de Brasília Exatamente quando a Secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, visitava o Brasil, onde, entre muitos temas mais importantes e nada divulgados, assinou um Plano de Ação pelo qual Brasil e EUA decidem atuar conjuntamente para “eliminar a discriminação racial”, a TV Cidade Livre, canal comunitário de Brasília, realizava um debate sobre a Batalha de Cuito Cuanavale, com participação de embaixadores de Cuba, Angola, Namíbia e África do Sul, agora livre do apartheid. O texto firmado por Condoleezza e o Ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, afirma que Brasil e EUA “partilham a característica de serem sociedades democráticas multiétnicas e multi-raciais”, o que teria motivado um comentário de Fidel Castro em uma de suas Reflexões do Comandante: “É assombroso. Penso que é exatamente o contrário o que acontece nos EUA”. Sem dúvida, basta verificar as condições de vida da população negra que ainda hoje vegeta sob os escombros do furacão Katrina, em Nova Orleans. Ou contar o contingente de negros nas prisões estadunidenses. Ou a quantidade de eleitores negros que foram sub-repticiamente retirados do cadastro eleitoral para assegurar a vitória suspeita de Bush nas decisivas eleições presidencias na Flórida, em 2000. Quanto ao Brasil, sabemos que os negros são maioria nas prisões, nas filas do desemprego, entre os que recebem os salários mais baixos, entre os que vivem nas favelas, entre os que estão nas fazendas com trabalho escravo. Num quadro dantesco como este, a simples existência de um Ministério da Igualdade pode ser uma boa notícia, demonstrando a sensibilidade que o presidente Lula tem para a questão racial, afinal, um de seus grandes amigos, na época da fábrica, era um negro. Também é importante que uma das primeiras leis por ele sancionada é exatamente a que introduz a disciplina His-
A secretária Condoleezza Rice e o ministro Edson Santos
tória da África nos currículos da escola brasileira.
Solidariedade? No entanto, não se deve deixar passar a oportunidade para uma reflexão bem mais profunda, por exemplo, a partir da divulgação pela TV Brasil da histórica importância da Batalha de Cuito Cuanavale para a libertação da África do Sul e para o começo do fim do apartheid, permitindo às novas gerações tomar conhecimento de que houve um povo capaz de levar sua solidariedade à expressão máxima de concretude: Cuba socialista foi o único país que pegou em armas para combater o apartheid e para defender a independência de uma nação irmã ameaçada pela ação colonialista dos EUA em apoio à África do Sul e ao Exército mercenário da Unita. Ou seja, nada pode ser mais assombroso, como disse Fidel, que a Condoleezza venha reivindicar seu país como uma democracia multi-racial e multi-étnica. Cuito Cuanavale deve servir também para os movimentos sociais, especialmente ao movimento negro brasileiro, para refletir que a solidariedade deve ter tradução real, pois não se tem notícia de que os nossos irmãos angolanos tenham recebido do movimento negro, em solidariedade, uma aspirina que fosse. Enquanto que Cuba enviou para Angola 350 mil homens e mulheres, de lá trazendo apenas seus mortos e as medalhas desta vitória que jamais poderá ser apagada da consciência da humanidade. Mui-
to se exalta que o Brasil é o país com maior população negra fora da África, mas qual foi a nossa solidariedade concreta quando ela foi tão necessária? Quando vários estudos registram o seqüestro impiedoso de contingentes negros africanos para formar o escravagismo nas Américas, e isto é uma verdade cruel e inapagável, Cuba foi capaz de inverter o itinerário: negros, brancos e mestiços partiam do Caribe para a Mãe África, que estava sendo estuprada pelo apartheid e pelos EUA, para oferecer solidariedade, para lutar com armas nas mãos, ombro a ombro com angolanos e namibiamos e impor a primeira derrota, que tinha que ser militar, ao apartheid. Como disse Mandela, em Cuito Cuanavale se deu a virada. Mas, uma virada marcada pela consciência das tropas cubanas de serem a continuidade histórica do internacionalismo proletário, de fazerem reviver o brado heróico de Stalingrado, de retomarem o exemplo revolucionário das massas vietnamitas que também derrotaram os EUA. Para a África, Cuba enviou negros, brancos e mestiços alfabetizados, cultos, um Exército bem treinado, com consciência socialista, e que não esteve em Angola para rapinar petróleo ou diamante, como hoje fazem de modo selvagem e assassino as tropas estadunidenses no Iraque. E a solidariedade cubana com a África não se esgotou naquela histórica epopéia militar: hoje, milhares de médicos e professores cubanos trabalham em deze-
nas de países africanos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o contingente de médicos cubanos na África supera o número de médicos que todos países ricos somados têm hoje naquele continente que tanto rapinaram... Por isso, é indispensável um debate mais aprofundado sobre o papel de Cuba e Angola na luta contra o apartheid, pois não faz nenhum sentido falar da luta contra o racismo e desconhecer esta contribuição, ignorar a dimensão histórica da Batalha de Cuito Cuanavale e, ao mesmo tempo, tomar como exemplo de luta anti-racial o modelo estadunidense, quando foram os EUA os principais sustentadores do apartheid. Recomendação ao ministro Edson Santos: que tal promover um debate sobre a Batalha de Cuito Cuanavale na TV Brasil, exibindo os excelentes documentários cubanos sobre esta guerra de libertação, com o que poderíamos furar o enorme bloqueio informativo contra esta verdadeira façanha histórica realizada por Cuba para derrotar o criminoso regime do apartheid? O momento é importante, não apenas pela data, mas também porque uma das missões que trouxe Condoleezza Rice ao Brasil é a de intimidar a comunidade de países sul-americanos diante da excelente proposta brasileira de criação de um Conselho de Defesa do Atlântico Sul. Há quem acredite que ela veio aqui para combater o racismo, mesmo sendo tão assombroso acreditar nisto. (BA)