Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 266
São Paulo, de 3 a 9 de abril de 2008
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br João Zinclar
CULTURA Festival de teatro na Colômbia reúne 500 mil pessoas. Pág. 12
Ao amanhecer do dia 29 de março, 700 integrantes do MTST montam barracas em terreno ocupado na cidade de Campinas (SP)
Movimentos urbanos de nove Estados lançaram manifesto, no dia 28 de março, cobrando política habitacional para famílias de baixa renda, transporte público gratuito e acesso à creche para todas as crianças. Junto com as palavras, vieram as ações. No Estado de São Paulo, três ocupações se estabeleceram. Ações também aconteceram no Amazonas, Ceará, Maranhão, Bahia, Minas e Pernambuco. Pág. 4
DITADURA MILITAR Há 40 anos, era assassinado o estudante Edson Luís. Pág. 12
TCU e mídia atacam alfabetização feita em assentamentos Mesmo com posse de documentos que comprovam a aplicação correta da verba referente ao programa Brasil Alfabetizado, a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) foi condenada – com direito a recurso – pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a devolver R$ 3,8 milhões aos cofres públicos. De acordo com o advogado da entidade, Elmano de Freitas, a decisão do tribunal é motivada por preconceito ideológico contra assentados, já que nos anos anteriores a Anca utilizava os mesmos procedimentos e o MEC sempre aprovou suas prestações de conta. Para o
Movimento urbano busca rearticulação nacional
Frase Elmano de Freitas Advogado da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) “Para a Anca, nunca interessou se o alfabetizando é do MST, de sindicato ou de partido político. Para ser alfabetizado, só nos interessa duas coisas: se ele é assentado e se é analfabeto”.
advogado, é curiosa a “coincidência” de que a veiculação da notícia pelo jornal O Globo ocorra às vésperas da tradicional Jornada de Lutas pela Reforma Agrária, que acontece em abril. Pág. 3
Governo Lula legaliza grilagem na Amazônia Se a Medida Provisória 422, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 25 de março, for aprovada pelo Congresso, as transnacionais do agronegócio terão mais um motivo para comemorar, e a reforma agrária ficará cada vez mais longe. A medida permite a venda, sem licitação, de terras públicas na Amazônia Legal que tenham até 15 módulos fiscais
(cerca de 1.500 hectares). Na prática, é a legalização da grilagem de terras públicas na região, diz Ariovaldo Umbelino, professor de Geografia da Universidade de São Paulo, que credita a emissão da MP à pressão do “agrobanditismo” – como prefere chamar o agronegócio – e à persuasão de “funcionários corruptos do Incra”, que ganham com a medida. Pág. 5
Ministério Público do Trabalho
Mesmo com calote, governo negocia dívida de ruralistas
Júri condena assassinos de agricultor em Pernambuco
Votorantim causa estrago ambiental em Minas Gerais
O governo apresentou sua proposta de renegociação das dívidas rurais. Dos R$ 87,3 bilhões pendentes, serão renegociados R$ 56,2 bilhões. A proposta prevê a redução de encargos de operações inadimplentes para saldos vencidos (provenientes dos anos 80 e 90), rolagem da dívida até 2025, descontos para passivos antigos que podem chegar a 45% do valor total e, ainda, redução de juros para operações com encargos mais elevados. Com uma dívida bem inferior à dos grandes produtores rurais (R$ 13,5 bilhões contra R$ 56,2 bilhões), os representantes da agricultura familiar reclamam maior atenção do governo e não aceitam a “diferenciação” no tratamento. Pág. 7
Num julgamento que durou cinco dias, 5 policiais militares e 9 seguranças da Usina Santa Teresa, de propriedade do Grupo João Santos, foram condenados a 18 anos de prisão pelo assassinato do trabalhador rural Luiz Carlos da Silva e pela tentativa de assassinato de outros 13 trabalhadores. O crime aconteceu durante uma greve de canavieiros, em Goiana (PE), no ano de 1998. O julgamento realizado por júri popular foi considerado o maior da Justiça de Pernambuco, em número de réus e também de duração. O caso, que completará dez anos em novembro, é resultado da ação de seguranças armados e policiais militares que atuam como milícia privada. Pág. 7
A siderúrgica Votorantim Metais, do empresário Antônio Ermírio de Moraes, é a responsável pela contaminação das águas do rio São Francisco na região de Três Marias (MG). Relatórios técnicos confirmam que o rio está com índices altíssimos de poluição por metais pesados na água, sedimentos e peixes. A empresa também é acusada de exploração e desrepeito aos direitos trabalhistas. Segundo o Sindicato dos Metalúrgicos de Três Marias, 145 trabalhadores foram afastados por doenças ocupacionais ou acidentes de trabalho. “A empresa quer nos desunir, cooptar e ameaça despedir quem não depor a favor dela”, explica o sindicalista Jorge Mendes. Pág. 9
Exploração de mão-de-obra indígena infantil por usinas é premiada com isenção de impostos no MS Apesar de ser ilegal, o aliciamento de menores indígenas com documentos falsificados para o trabalho no corte de cana-de-açúcar é comum no Mato Grosso do Sul. Sob nome falso, menino Guarani Kaiowá de 15 anos foi “contratado” por usina de álcool como se tivesse 24 anos. Como ‘prêmio’ aos usineiros por sua “contribuição ao desenvolvimento”, o governador concedeu isenção de 67% do ICMS para 44 usinas no Estado – 11 em funcionamento e outras 33 em construção. Pág. 8
Juan Mabromata/AFP
Campo e cidade: a aliança da elite argentina
Para celebrar esse feito histórico, você está convidado a participar no dia 17 de abril, a partir das 19 horas, no Tuca, em São Paulo, do ato político-cultural com participação de João Pedro Stedile, José Arbex Jr., Fábio Konder Comparato e Plinio Arruda Sampaio.
Após o aumento de impostos sobre a exportação de soja e girassol decretado pela presidente da Argentina, Cristina Kirchner, integrantes da classe média e da classe alta têm saído às ruas de Buenos Aires em “panelaço”. Apóiam um locaute que já dura mais de 20 dias. Pág. 11
9 771678 513307
00266
Na Argentina, dia 23 de março, panelaço reuniu a “elite” em defesa das oligarquias rurais
2
de 3 a 9 de abril de 2008
editorial PASSADOS 44 anos do golpe, todos se apresentam como democratas. Para um jovem, hoje, portanto, sobra sempre a pergunta: “Se todos eram democratas e se opunham à ditadura, quem deu o golpe e quem manteve o regime? A primeira resposta que lhes virá à cabeça será:
“Os militares”. Foi esta a versão que acabou por se firmar. Versão construída e difundida pela grande mídia, com o apoio e a serviço de banqueiros, grandes industriais, monopólios comerciais, latifundiários, grande capital internacional, governo dos EUA e uma série de classes e setores de classes que, juntamente com essa mesma grande mídia, conspiraram contra as reformas de interesse popular defendidas pelo governo do presidente João Goulart. Esse mesmo conjunto de civis, que se locupletaram com o regime instaurado em 1964 e o alimentaram. É certo que setores majoritrários da mais alta hierarquia das forças armadas conspiraram lado a lado com aquelas forças, e lhes serviram de braço armado no 31 de março. Além disto, ao longo dos anos de chumbo, militares se prestaram a fazer o “trabalho sujo”, reprimindo, prendendo, torturando, assassinando e ocultando cadáveres de opositores. Mas, ainda aí, não estiveram sozinhos: é sobejamente conhecido
debate
A grande mídia e o golpe o financiamento por empresários para a construção e manutenção do aparato repressivo, bem como as denúncias sobre a presença de industriais atuando nas salas de torturas. Mas nossa elite econômica tem hábitos semelhantes aos de alguns felinos, que costumam ocultar suas imundícies. E um dos seus setores, os oligopólios da comunicação, é o principal instrumento do transformismo. Com o fim regime, esses oligopólios midiáticos cuidaram de transformar os militares em bois de piranha, enquanto nos bastidores se articulavam para participar, com os seus colegas empresários financiadores do aparato da repressão, do novo banquete. Para isto venderam aos incautos a idéia de que o golpe e o regime foram obra de um estamento (forças armadas), ocultando seu caráter de classe. Desde sempre golpista, vejamos como a grande mídia se dirigiu ao país em seus editoriais do dia 2 de abril (como o golpe foi desfechado na noite de 31 de março para a madrugada do dia 1º de abril, a maioria dos jornais tratariam o assunto apenas em 2 de abril).
O Globo (RJ) “Vive a Nação dias gloriosos.
Porque souberam unir-se todos os patriotas (...) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas (...), o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (...) Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente (...) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (...) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(...) A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.(...) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos(...) .
Jornal do Brasil (RJ) “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade ... Legalidade que o caudilho não quis preser-
var, violando-a no que de mais fundamental ela tem. (...) A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas.(...)“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada”. (1º de abril).
O Estado de Minas (MG) “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”. O Dia (RJ) “A população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento”. Tribuna da Imprensa (RJ) “Escorraçado, amordaçado e aco-
crônica
Roberta Traspadini
vardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”.
O Povo (CE) “A vitória da causa democrática abre o País a perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil” (3 de abril). O Cruzeiro (RJ) “Sabíamos, todos que estávamos na lista negra dos apátridas – que se eles consumassem os seus planos, seríamos mortos. Sobre os democratas brasileiros não pairava a mais leve esperança, se vencidos. Uma razzia de sangue vermelha como eles, atravessaria o Brasil de ponta a ponta, liquidando os últimos soldados da democracia, os últimos paisanos da liberdade” (revista semanal – 10 de abril) Já imaginaram se a revista Veja existisse naquela época?
Luiz Ricardo Leitão
Gama
América Latina: dependência ou subordinação? (Parte I) O ESTUDO do Estado latino-americano em seus vários períodos históricos, guardadas as particularidades de cada nação, dentro do funcionamento geral do capitalismo, nos permite duas coisas: 1. verificar a relação de subordinação e/ou dependência de nossos países frentes ao grupo hegemônico mundial; 2. analisar a possibilidade de governos latinos representarem projetos de esquerda ou de direita. A subordinação se refere à perda absoluta do poder decisório dos ditames político-econômico-culturais de uma nação, frente ao mando de nações e/ou grandes conglomerados internacionais. A dependência se refere a um vínculo criado, pós-soberania nacional, entre nações fortes e débeis, no jogo das relações econômicas capitalistas internacionais, com uma autonomia relativa no poder de definir, para a Nação, as regras do jogo. Até o momento, das supostas (in)dependências nacionais, ocorridas em sua maioria no século 19, o continente vivia um real contexto de subordinação e subestimação. Suas riquezas territoriais, naturais e culturais eram levadas ao continente europeu como extensão do poder dominante de Portugal, Espanha e Inglaterra. As decisões político-econômicas, em meio a múltiplas lutas em Nossa América, tinham seu pólo dinâmico fora daqui. Em meados do século 19 e início do século 20, com a instauração das legais autonomias e soberanias nacionais, a partir da constituição dos Estados Nacionais no continente, o poder decisório e a construção cultural do significado e sentido dados aos conceitos começam a ganhar corpo – pátria, povo brasileiro, cultura nacional e políticas de desenvolvimento nacionais, entre outros. É neste contexto de reestruturação mundial pós segunda guerra que os Estados-nações latino-americanos entram em uma nova ordem política centrada na regulação ou na sustentação dos ciclos econômicos de produção internos, que ficaram caracterizados como modelos nacionais desenvolvimentistas. O Estado, protagonista central da lógica planificadora nacional, marcava algumas características básicas que deveriam garantir: 1. a criação, o gerenciamento e a manutenção dos principais setores produtivos da economia, com a implementação de empresas públicas estatais estratégicas; 2. a geração de um sistema logístico vinculado à nova produção industrial, sem deixar de potencializar a produção primária exportadora; 3. a qualificação da mão-de-obra que desse esse novo sentido ao desenvolvimento nacional, a partir da criação de escolas públicas, técnicas ou generalistas; 4. a criação das leis trabalhistas que abririam caminho para a lógica do proletariado fabril; 5. a obtenção de recursos financeiros e
produtivos internacionais que permitisse a viabilização de ditos projetos.
Subordinação e dependência O século 20 marcou, para a América Latina, o ingresso no desenvolvimento capitalista dependente. A subordinação aos ditames hegemônicos, então estadunidense, aparentava estar restringida. Os vínculos de dependência, com suposto sabor de soberania e autonomia, ganhavam força. Esse momento histórico evidenciou o modo particular como o capitalismo seria gerado no continente, tendo por base sua lógica geral de funcionamento: a geração de estruturas de poder econômicas e políticas que viabilizam a produção, a sustentação e o aumento do lucro burgueses, mesmo que em territórios nacionais. Vale reforçar: o Estado de direito foi criado pela burguesia, no seu afã de dividir e hegemonizar seu poder frente a outros grupos de poder das economias centrais, em plena fase de consolidação liberal, no século 17. Esse instrumento foi refeito pelo grupo hegemônico e chegou, no século 20, como moderno Estado de direito: aquele que já havia assentado as bases de poder da burguesia frente aos outros poderes, essencialmente frente à majoritária população trabalhadora, que não possuía, para além de seu próprio corpo, nenhum acúmulo de riquezas e bens. O sentido do público, frente ao privado, gerado pelo pensamento e domínio burgueses, foi o de viabilizar o aumento de seus rendimentos, através do uso e modernização do aparelho político-ideológico-econômico do Estado. Para isso, foram criados os elementos que garantiriam, por parte do Estado, a consolidação do consenso e, nos casos de rebeldia, a mão dura da coerção, o braço policial do Estado moderno de direito. Democracia representativa, sociedade civil e liberdade-fraternidade-igualdade se transformam nos princípios ético-morais de um discurso a ser absorvido por todos, a partir das práticas de coerção e consenso geridas por um grupo muito pequeno: os detentores do poder burguês consolidados no Estado. Era neoliberal Chegamos ao século 21. O Estado, protagonista da cena na estrutura nacional desenvolvimentista, começa a ser reestruturado. Entra em cena o Estado de direito em sua fase neoliberal. O elemento central deste modelo é o viés empreendedor do ganho individual. E os direitos só se darão entre aqueles que cumprirem os deveres redefinidos pelo Estado empresário moderno. Entre outras características marcantes desta nova fase dos Estados latino, temos: 1. a substituição do nacional pelo global; 2. a substituição do público-estatal pe-
lo privado nacional e/ou internacional; 3. a reformulação do significado e sentido dos direitos e deveres constitucionais; 4. a subordinação do político ao econômico internacional/transnacional; 5. a liberdade como suporte do empreendedorismo, a fraternidade como suporte do assistencialismo, a igualdade como negadora, aberta, da diversidade; 6. a abertura econômica, com os acordos políticos definidos externamente, substituta da proteção-nacional soberana. Do modelo dependente, voltamos à era da subordinação total. Mas, à diferença dos séculos anteriores, essa subordinação não se dá somente através dos jogos geopolíticos do poder entre os Estados hegemônicos centrais e os Estados periféricos. A atual subordinação se dá na lógica do poder do grande capital transnacional. Os Estados latinos não são mais os reguladores das relações entre fronteiras, mas sim os grandes parceiros dos empreendimentos internacionais nos territórios nacionais. Uma transição ininterrupta para a catástrofe popular, em meio aos ganhos capitalistas internacionais. Novas formas movimentadoras de históricos conteúdos de dominação central sobre a periferia, a partir do uso do Estado de direito burguês. Essa transição interrompida da subordinação à dependência e da dependência à subordinação dos grandes grupos econômicos internacionais reitera a necessidade da América latina repensar a integração continental que, ao mesmo tempo em que retoma a história dos Estados nacionais de direito burgueses e seus limites, nos remete à histórica necessidade do projeto continental de cunho popular. É sobre o tema do projeto popular que centraremos nossa próxima discussão sobre dependência e subordinação (a íntegra deste texto encontra-se em www.brasildefato.com.br). Roberta Traspadini é economista, Educadora popular, integrante da Consulta Popular/ES
Teoria da Conspiração LEIO NOS MATUTINOS que o alcaide de São Paulo, o ‘democrata’ (?) Gilberto Kassab, atribuiu a responsabilidade pela lentidão no trânsito paulista à ação deletéria de alguns “conspiradores”, que estariam empenhados, por meio de verdadeiros atos de ‘terrorismo’, a estabelecer o caos na ordeira e pacífica capital do capitalismo de Bruzundangas. O primeiro ‘terrorista’ flagrado com a boca na botija, ou melhor, com os pregos na borracha, seria o pedestre que furou os pneus de um ônibus e o fez atravancar um corredor viário, depois de tentar embarcar – sem êxito, claro – rumo ao serviço, a fim de ganhar seu pão de cada dia. O Sr. Kassab, que há poucos meses ocupava as manchetes da grande imprensa por decretar a interdição espetacular de um dos mais refinados bordéis da burguesia paulista é realmente um pândego de primeira linha. Em vez de estimular a expansão do transporte de massa no caótico condomínio que ele administra, decidiu catar chifre em cabeça de cobra e, para não trair o costume da terrinha, pôs a culpa no peão revoltado, que passa mais de 4 h de seu dia útil preso dentro de uma condução, chegando atrasado ao trabalho e regressando bem tarde à própria casa, que, durante a semana, nada mais é do que um reles dormitório para milhões de trabalhadores da República. Pelo visto, a teoria conspiratória do capataz paulistano já logrou imediata adesão dos pares democratas. Reunidos em Salvador para o lançamento da candidatura de ACM Neto (ave, misericórdia!) ao trono da velha capital baiana, eles ouviram o alucinado César Maia (saravá, sua banda!), que há pouco desfilava sua desfaçatez por Paris, invocar os orixás da Boa Terra e pedir-lhes que conjurassem os ventos mais pródigos a fim de soprar o malsinado mosquito da dengue em direção ao Oceano Atlântico. O caso da epidemia (ou seria “epidemaia”?) carioca, aliás, tem nos legado algumas pérolas notáveis do Festival permanente de Besteiras que Assola o País, o nosso FEBEAPÁ século 21. Que o diga a brilhante medida adotada pelo Kaiser para erradicar a doença, instruindo os escolares a vestir meias e calça comprida, a fim de dissuadir o mosquito de seus nebulosos planos (será que ele se inspirou na fartura de roupas da Família Real ao desembarcar no Rio em pleno verão de 1808?). Mais atento à sucessão municipal e ainda esperançoso de eleger sua herdeira ao trono, o famigerado alcaide insiste em dizer que não há epidemia alguma – de fato, como diria o irreverente José Simão, são apenas 30.547 casos isolados e 70 mortos que, decerto, se esqueceram de pôr suas meias... Os mosquitos devem estar, realmente, tramando alguma “conspiração” neste paraíso de (des)equilíbrio ecológico que o grande capital tratou de devastar. Há menos de um ano, era o bando da febre amarela que aterrorizava os caboclos da Amazônia e do Planalto Central. Agora, chegou a vez do Aedes aegypti. O que diria o bravo Oswaldo Cruz, se vivo fosse, deste pitoresco quadro sanitário? Se nada fugir ao script, alerta Simão, em breve teremos epidemia de amarelão, barriga d’água e bicho do pé... O leitor duvida? O pior é que os ‘teóricos’ das tramas conspiratórias não se restringem a Bruzundangas. A praga, infelizmente, se manifesta em vários rincões da Pátria Grande, conforme atesta o Sr. Uribe, que, teleguiado pelo patrão Bush, acusou as Farc de terem comprado urânio enriquecido para preparar atentados letais contra o governo da Colômbia. Para quem não se esqueceu do conto das “armas químicas” de Saddam Hussein – que nunca existiram, mas justificaram o genocídio infligido pelos EUA ao Iraque –, a história soa até ingênua. Contudo, são esses autênticos conspiradores e inimigos do povo que seguem ditando as ordens em várias nações ao sul do Rio Grande; são eles que roubam a terra dos lavradores e acusam os movimentos sociais de banditismo. Já não seria hora de conjurar os ventos da mudança e varrer essas criaturas pelos ares, com as bênçãos de Oxalá? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
de 3 a 9 de abril de 2008
3
brasil
Fotos: Douglas Mansur/Novo Movimento
TCU criminaliza educação em áreas de reforma agrária ANALFABETISMO Tribunal obriga cooperativa a devolver R$ 3,8 milhões aos cofres públicos; entidade possui documentos que comprovam aplicação correta da verba Renato Godoy de Toledo da Redação O TRIBUNAL de Contas da União (TCU) condenou a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) a devolver os R$ 3,8 milhões que foram repassados à entidade para a implementação do programa Brasil Alfabetizado. O jornal O Globo acatou a decisão do TCU e publicou uma matéria reiterando que houve desvios na conduta da Anca, que teria repassado o recurso para as secretarias estaduais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) implementarem o programa. A Anca divulgou uma nota rebatendo a acusação e esclarecendo todas as denúncias do TCU e de O Globo. No texto, a entidade informa que realiza um processo seletivo para escolher quais entidades jurídicas – por ser um movimento social, o MST não é uma pessoa jurídica – nos Estados estão aptas a receber o recurso e repassar aos alfabetizadores. A Anca afirma ter documentos que comprovam a alfabetização de alunos e que as metas estipuladas foram cumpridas. O Ministério da Educação (MEC) teve acesso a todos esses documentos. Os números da educação em áreas de reforma agrária revelam que os argumentos do TCU são equivocados – ou mal-intencionados. Somente em áreas de ocupações e assentamentos do MST, existem 2 mil escolas públicas com 200 mil educandos e 5 mil professores. Com o convênio com o MEC, por meio do programa Brasil Alfabetizado, implementado em 2003, a Anca já alfabetizou mais de 27 mil alunos e formou 2 mil educadores. Esse êxito foi atingido mesmo com uma série de problemas apresentados pelo programa. A coordenadora de educação do MST na Grande São Paulo, Rosângela Santos, afirma que o Brasil Alfabetizado enxerga a educação como uma massa uniforme, sem contar as diferenças entre os setores rurais e urbano. Rosângela afirma que a principal dificuldade para o movimento é a exigência do programa, de que as unidades educacionais sejam fixas. As diversas reintegrações de posse e a sazonalidade no meio rural criam obstáculos para os alunos freqüentarem as aulas. As listas de presença e os certificados dos alunos foram entregues ao TCU. À medida do TCU cabe recurso e a Anca deve pedir a suspensão da condenação (leia matéria abaixo).
Exemplo Se o Tribunal e O Globo acusam mau emprego das verbas, uma simples visita ao assentamento Dom Pedro Casaldáliga, em Cajamar, município da Grande São Paulo, faz com que a constatação de ambos caia por terra. O assentamento só pôde se estruturar no ano passado, já que os agricultores foram despejados seis vezes e até hoje não podem construir casas de alvenaria, devido a uma medida judicial que visa preservar as plantações de eucalipto no local. “Nem mesmo os eucaliptos que podem cair em cima das casas podem ser cortados. Acho que estão esperando morrer alguém para mu-
No alto, aula de alfabetização de adultos no assentamento Irmã Alberta (SP); lado a lado, os alfabetizandos Almerinda Marques, José Roberto Moura e Josefa Lourenço, do assentamento Dom Pedro Casaldáliga
Quanto
2 mil escolas públicas
existem em áreas de assentamentos do MST, com 200 mil educandos e 5 mil professores dar isso”, afirma a agricultora e educadora popular Ediana Alves Silva. É nesse cenário de improviso e determinação, diante dos obstáculos judiciais e políticos, que os agricultores familiares estão erradicando o analfabetismo nos assentamentos. Em São Paulo, a demanda é pequena, comparada aos altos índices de analfabetismo da região Nordeste, que o próprio governo elencou como prioridade do Brasil Alfabetizado. No Piauí, por exemplo, nos assentamentos do MST, cerca de mil pessoas foram alfabetizadas em um ano, segundo Rosângela. Em assentamentos da Grande São Paulo, os que são analfabetos estão próximos de superar esse título. No Dom Pedro Casaldáliga, dos cerca de 120 assentados, 11 eram analfabetos. Hoje todos freqüentam aulas de alfabetização.
“Sim, eu posso” Nacionalmente, os assentamentos do MST utilizam o método cubano “Sim, eu posso”. Essa técnica foi empregada também na Venezuela que, dois anos após um programa lançado por Hugo Chávez, eliminou o analfabetismo, segundo a Unesco. A Bolívia também adota a mesma ferramenta. Em situação ideal, em cerca de 4 meses o educando já está apto a escrever uma carta. O procedimento conta com uma cartilha e uma novela produzida em Cuba e encenada por atores brasileiros e militantes do MST que moram na ilha caribenha. Apesar de cubana, a novela tenta se aproximar da nossa realidade, com temas ligados à cultura brasileira, como o folclore, as tradições indígenas e o futebol. Na cartilha, as letras são associadas a números. A coordenadora de educação do MST na grande São Paulo afirma
que esta associação facilita o aprendizado, já que os números estão presentes no cotidiano dos analfabetos, nos ônibus e nas contas a pagar. Aos poucos, os educandos aprendem a formular frases com temas ligados ao seu cotidiano, como “o camponês está no campo”.
Enxergar o mundo As histórias dos alfabetizandos têm em comum a necessidade de crianças terem que abandonar os estudos para engrossar o parco orçamento das famílias de baixa renda. A assentada Almerinda Marques, 48, é um exemplo disso. Filha mais velha de uma família de lavradores de Minas Gerais, abandonou os estudos ainda na infância. Desde janeiro, freqüenta as aulas de alfabetização no Dom Pedro Casaldáliga. A agricultora relata a principal mudança em sua vida desde que as letras do alfabeto deixaram de ser meros rabiscos. “Parece que passei a enxergar o mundo, antes eu só ouvia as conversas”, explica. Agora, diz Almerinda, as receitas e a Bíblia Sagrada são leituras possíveis. A agricultora acredita ser muito mais fácil aprender ao lado de pessoas de seu convívio. “Eu tinha muita vergonha, agora não tenho mais. Com o pessoal conhecido, é mais fácil de aprender. Fico mais à vontade para fazer perguntas na aula”. Josefa Lourenço, 52, e o marido José Roberto Moura, 50, são colegas de classe e companheiros de assentamento de Almerinda. Ambos paraibanos de Cajazeiros, contam com a ajuda da filha de 7 anos para as lições. José Roberto afirma que não vai às aulas somente quando a chuva torna intransitável o chão do íngreme assentamento. “O terreno fica muito liso”, justifica. Faltando pouco mais de uma hora para a aula das 17 horas, a educadora Ediana visita a casa de José Roberto e brinca: “Pede dispensa para o seu patrão e vá para aula hoje”. “Vou fazer isso na frente do espelho então, porque eu sou o meu patrão”, responde risonho, ao lado de sua horta.
Assentamentos do MST vão ganhar novas escolas O secretário estadual de Educação do Paraná, Maurício Requião, comprometeu-se, no dia 26 de março, a construir novas escolas em assentamentos do Movimento dos Trabalhdores Rurais Sem Terra (MST). O acordo foi selado durante encontro de representantes do movimento e o secretário, na sede da Secretaria da Educação, em Curitiba. “Poucos movimentos têm o cuidado que o MST tem com a educação”, disse o secretário. Maurício Requião afirmou ainda que o início da construção será em junho e a primeira obra será no assentamento Celso Furtado, no município de Quedas do Iguaçu. A nova escola contará com 20 salas de aula e quadra poliespostiva coberta, um investimento de aproximadamente R$ 2,7 milhões. A previsão é de que outras três escolas sejam licitadas até o fim do ano, sendo duas no mesmo assentamento e outra no assentamento 8 de abril, no município de Jardim Alegre. “Saímos contentes do encontro, pela expectativa da construção dessas escolas”, ressaltou Alessandro Mariano, representante do MST. Para ele, a realização da reunião no início do ano letivo foi importante pela obtenção de respostas quanto à solicitação de cadeiras e carteiras escolares, armários de aço e demais equipamentos que serão entregues nos meses de março e abril. O auxílio do governo do Estado na realização do III Seminário Nacional das Escolas Itinerantes foi outra solicitação do movimento. O seminário ocorrerá de 5 a 9 de maio, no Centro de Capacitação de Faxinal do Céu. (Com informações do Bem Paraná)
Anca vai recorrer da decisão Advogado da entidade afirma que a posição do TCU tem cunho político e preconceituoso da Redação Assim que teve conhecimento da decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) lançou nota rebatendo as acusações do órgão e da reportagem do jornal O Globo. Na nota, a Anca afirma que o diário e a vistoria do TCU estão carregados de preconceitos ideológicos contra os trabalhadores rurais assentados. A Anca deve entrar com um recurso para reverter a decisão do tribunal. Nos próximos 15 dias, o TCU deve oficializar a decisão. “A Anca vai apresentar as provas do grave equívoco que eles estão cometendo”, afirma Elmano de Freitas, advogado da entidade.
“Eles não fizeram um trabalho de campo para ver se as pessoas estavam sendo alfabetizadas. Faltou investigar a ponta do projeto”, diz advogado da Anca Segundo ele, a decisão do TCU é “negligente”. O advogado relata que há uma “coincidência”: a veiculação da notícia ocorreu às vésperas do início da Jornada de Lutas pela Reforma Agrária, em abril. Para ele, há uma ação articulada da direita, impulsionada pela bancada ruralista,
que visa colocar a sociedade contra o movimento pela reforma agrária.
Histórico A Anca realizou um convênio com o MEC em 2003 para alfabetizar 30 mil alunos e formar 2 mil educadores. Antes do início do convênio, a Anca formou os educadores e repassou ao MEC os dados completos de todos os 30 mil alunos. O programa resultou na alfabetização de 90% dos alunos, cerca de 27 mil, o que contempla as previsões do Brasil Alfabetizado. De acordo com Elmano, a entidade, bem como o MEC, possui todos os relatórios com nomes e endereços dos educandos, o período de funcionamento das turmas, além da lista dos assentamentos onde os recursos foram aplicados. No programa Brasil Alfabetizado cada educador recebe R$ 120 mensais, mais R$ 7 por aluno. Como as salas de aula podem ter de 5 a 15 alunos, o máximo que o professor recebe é R$ 225 mensais, valor considerado baixo por Elmano. Pressão ruralista Segundo o advogado, a condenação do TCU se deu após uma pressão da bancada ruralista, durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra. A partir dali, o TCU realizou uma investigação rápida para os padrões do órgão. Mas a apuração do TCU contou com uma falha grave, segundo Elmano, por ter vistoriado apenas as entidades, não os assentamentos. “Eles não fizeram um trabalho de campo para ver se as pesso-
Quanto No programa Brasil Alfabetizado, cada educador recebe R$ 120 mensais, mais R$ 7 por aluno. Como as salas de aula podem ter de 5 a 15 alunos, o máximo que o professor recebe é R$ 225 mensais as estavam sendo alfabetizadas. Faltou investigar a ponta do projeto”. Elmano afirma que, nos anos anteriores, a Anca utilizava os mesmos procedimentos, e o MEC sempre aprovou as prestações de conta. O advogado faz uma comparação com as medidas que o TCU toma quando há indícios de corrupção em prefeituras e em órgãos públicos. “Nesses casos, eles tomam medidas mais pedagógicas, não punitivas, como fizeram com a Anca”.
Relação com MST Sobre a acusação de que a Anca estaria repassando verbas para o MST, Elmano afirma que isso, comprovadamente, não aconteceu. “Nós repassamos as verbas para pessoas jurídicas nos estados, que são associações que atuam nos assentamentos, e como a maioria dos assentamentos é ligado ao MST, as entidades podem ter parcerias com o movimento. Mas para a Anca, nunca interessou se o alfabetizando é do MST, de sindicato ou de partido político. Para ser alfabetizado, só nos interessa duas coisas: se ele é assentado e se é analfabeto”, diz.
4
de 3 a 9 de abril de 2008
brasil
Com novas ocupações, movimento urbano busca rearticulação no país CIDADES Manifesto unificado cobra política habitacional para famílias de baixa renda, transporte público gratuito e acesso à creche Apu Gomes / Folha Imagem
Eduardo Sales da Redação MOVIMENTOS populares urbanos de nove estados brasileiros promoveram atividades em 28 de março, chamando a atenção do governo e da sociedade em geral para as condições de vida degradantes de milhões de pessoas das grandes cidades. Segundo estudo da Fundação João Pinheiro, o país possui um deficit habitacional de cerca de 7,9 milhões de moradias. O objetivo da jornada nacional de luta urbana foi reivindicar habitação digna, emprego, transporte público, educação pública de qualidade, creche para todas as crianças e tarifa social de energia elétrica, dentre outros direitos reivindicados no “Manifesto popular de 28 de março”. Os movimentos populares reivindicam uma política habitacional popular baseada em subsídios com valores adequados à realidade das metrópoles. Criticam que a população com renda entre um e três salários mínimos segue excluída das políticas nacionais e estaduais, sem acesso aos financiamentos bancários e sem subsídios governamentais para conseguir moradia. Em paralelo, querem que a União desenvolva uma política nacional de desapropriações de terrenos e edifícios urbanos que não cumprem função social, destinando-os às demandas populares organizadas. Estima-se que essa é a situação de cerca de 5 milhões de residências no Brasil. Somadas à questão da moradia, mais três pautas centrais foram propostas pelo manifesto. Uma política nacional integrada de transporte urbano público gratuito. Creches financiadas pelo Estado sob o controle dos trabalhadores. E o controle restritivo das taxas cobradas por serviços públicos básicos, como água e energia elétrica, garantindo a aplicação de Tarifas Sociais previstas na lei.
Ceará sem moradia Uma das ações foi realizada em Fortaleza, onde 400 manifestantes organizados principalmente pelo Movimento dos Conselhos Populares (MCP) ocuparam a Secretaria de Assistência Social do município e protestaram em frente ao palácio do governo do Estado. As secretarias estaduais de Habitação e do Trabalho também foram ocupadas pelas organizações populares cearenses. Uma comissão com oito representantes foi recebida pelo governador Cid Gomes (PSB). “Queremos assistência técnica, crédito e apoio na comercialização”, destaca Sérgio Farias, membro do MCP. No Estado, de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de 2005, o deficit habitacional constava mais de 400 mil moradias, e, apenas na Região Metropolitana de Fortaleza, superava as 160 mil unidades – o quarto maior do país. Em Fortaleza, existe cerca de 700 favelas para uma população de 2,5 milhões de pessoas. Em Manaus, uma ocupação de 500 famílias foi realizada no Parque do Rio Negro, com apoio de sindicatos regionais. “No dia seguinte, a uma hora da manhã, fomos acordados com bombas de efeitos moral”, lembra o participante da ocupação e integrante da coordenação estadual do MTST do Amazonas Júlio César de Souza. O terreno público estadual tem 403 mil metros quadrados e suporta 2 mil moradias. Pelo Brasil Já no Estado de São Paulo, as ocupações realizadas por famílias do MTST nas cidades de Campinas, Mauá e Em-
Lonas levantadas em Mauá, interior de São Paulo; 150 famílias ocuparam terreno que não cumpria sua função social
bu das Artes na noite de sextafeira (28) conseguiram se estabelecer. Em média, 500 famílias estão acampadas em cada uma das três ocupações. Em Campinas, o risco de despejo é iminente, pois o proprietário do terreno localizado no Jardim Telesp, zona sul da cidade, tenta obter uma liminar de reintegração de posse com o juiz de plantão. Em Embu das Artes, a prefeitura ordenou que a Guarda Municipal bloqueasse as ruas de acesso à ocupação, cerceando o direito de ir e vir das famílias e apoiadores, assim como em Manaus (AM). Em São Luiz (MA), o Movimento Quilombo Urbano (MQU) realizou ato na praça central de São Luis contra a criminalização dos movimentos sociais, com participação de 1000 pessoas. O Movimento das Famílias Sem Teto e o Movimento de Luta Popular Comunitária chegaram a bloquear a rodovia federal PE22, em Recife. Em Belo Horizonte (MG), o Fórum de Moradia travou rodovias federais e ocupou, com 250 pessoas, um departamento da prefeitura Barreiro. No dia 29, no Estado da Bahia, 100 famílias, organizadas pela União por Moradia Popular da Bahia, ocuparam o terreno da Fazenda Sossego para assegurar o projeto do Crédito Solidário previsto na Estrada Velha do Aeroporto. O Movimento Sem Teto da Bahia realizará, na primeira semana de abril, ações de continuação da jornada em Salvador. Movimento das Mães Sem-Creche realizou um protesto na Secretaria de Educação de São Paulo. Em São José dos Campos (SP), houve uma marcha de mais de 500 semteto até a prefeitura, realizada pelo MUST. Assinaram o manifesto de 28 de março: Movimento Urbano dos Sem Teto (MUST); Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB); Movimento dos Conselhos Populares – Ceará (MCP); Movimento Sem Teto de Luta – Amazonas; Movimento de Luta Popular Comunitária (MLPC) – Pernambuco; Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST); Movimento das Famílias Sem Teto (MFST) – Pernambuco; Movimento Quilombo Urbano – Maranhão; Movimento das Mães Sem Creche – São Paulo; Fórum de Moradia Minas Gerais, MTL, Democrático Independente – Minas Gerais.
“A unificação do movimento social urbano é urgente” da Redação Os acampamentos montados a partir do dia 28 de março nas cidades de Campinas, Mauá e Embú das Artes foram considerados ações de sucesso por Jota, integrante da articulação estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Agora, a partir desse fortalecimento organizacional, o MTST pretende avançar quanto aos coletivos regionais nessas cidades onde “há grandes fluxos de capital”. “Muitos movimentos ligados ao governo não fazem mais a luta da periferia”, defende o coordenador do MTST no Estado de São Paulo. As ações tiveram dificuldades quanto à integração comunicacional. A grande mídia não abordou as ações em todo o
país de forma conjunta. “A Rede Globo local projetava as regiões. Mas, nacionalmente, não divulgou. Isso impediu que outros estados se integrassem”, aponta Jota. Ele lembra que foram retomados os debates junto ao Movimento dos Conselhos Populares (MCP), ao MTST de Recife, ao Movimento Quilombo Urbano (MQU), do Maranhão, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Bahia (MSTB). “Esses movimentos não estão vinculados aos governos, mas têm pautado os problemas sociais e influenciam a distribuição das verbas do governo. Por essas razões, a unificação do movimento social é urgente”, enfatiza. Jota informa que, após as ocupações de Campinas, Mauá e Embú das Artes, os acampamentos estão se massificando. “Nós apenas organizamos os trabalhadores; a demanda por moradia só tende a aumentar os acampamentos. (ES)
“É impossível pagar o aluguel” Entre as 700 pessoas do acampamento sem-teto em Campinas, o casal Éllen e Lucas reivindica o direito a uma moradia digna João Zinclar
Camila Marins de Campinas (SP) “Uma pessoa sozinha não adianta. Mas um mutirão lutando, consegue”, afirmou a operadora de caixa Éllen Cristina de Oliveira, 21 anos. “Não temos dinheiro para pagar aluguel, porque é muito caro e nós temos que comer”, disse o motorista Lucas Aparecido de Oliveira, 23 anos. Éllen e Lucas são casados, moram nos fundos de uma casa e têm um filho para criar. O casal chegou na noite de 31 de março na ocupação feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no Jardim Petrópolis, em Campinas. Realizada na madrugada deste sábado, dia 29, a ação tem o objetivo de pressionar o poder público pela reforma urbana. No primeiro dia, a ocupação tinha mais de 300 famílias e em seu terceiro dia, aproximadamente 700 famílias já estavam no local. Em menos de dois dias, diversos barracos foram levantados e a cozinha já havia sido construída. “Estamos em um processo de divisão de núcleos, coordenação para os grupos e espaços coletivos na ocupação”, afirmou Natália Szermeta, integrante da Coorde-
Terreno ocupado em Campinas era utilizado para especulação
nação Estadual do MTST. Há mais de dez anos, a área, com cerca de 160 mil metros quadrados, é utilizada para especulação imobiliária. O terreno tem sua propriedade dividida por oito donos que devem ao poder público mais de R$ 2,5 milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). “Esta dívida é maior que o valor do terreno”, informou Natália. “Campinas possui mais de 1,2 milhão de habitantes e aproximadamente 400 mil moram em áreas irregulares, sem contar o alto deficit habitacional. Precisamos pressionar o poder público e exigir
reforma urbana”, declarou Marco Fernandez, do MTST.
Recursos fartos Mais de R$ 200 milhões em recursos federais foram repassados para a prefeitura, entre 2005 e 2008, de acordo com levantamento do próprio Executivo. Campinas é uma das cidades que mais recebeu verbas do governo federal, principalmente no que se refere ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Os recursos do PAC têm beneficiado muito mais os empresários da construção civil e do ramo imobiliário. Enquanto isso, a população mais pobre sofre com
falta de moradia e condições dignas”, afirmou Natália. Éllen e Lucas concordam com a integrante do movimento e admitem: “Campinas é uma cidade muito cara, principalmente o aluguel. É praticamente impossível conseguir uma casa e morar bem com a família”. O casal também tentou cadastramento em programas habitacionais, mas não conseguiu. “É muita burocracia. Eles pedem documentos que nem a gente sabe o que significa”, confessou Éllen. As principais reivindicações do MTST são: que a área seja desapropriada para a reforma urbana e que a prefeitura destine as verbas do PAC à construção de moradia popular digna. O coordenador de Habitação Popular da Prefeitura, Carlos Artioli, se dispôs a negociar com o movimento e, inclusive, havia marcado uma reunião para o dia 1º de abril. No entanto, de acordo com Natália, a reunião foi desmarcada por motivos desconhecidos e, até o fechamento desta edição, não havia informações sobre uma próxima reunião. Um dos proprietários solicitou um pedido de reintegração de posse, mas, ainda segundo o MTST, não houve qualquer sinal deste pedido. (CMI – Centro de Mídia Independente)
5
de 3 a 9 de abril de 2008
brasil
Medida Provisória do governo legaliza grilagens na Amazônia QUESTÃO AGRÁRIA Medida Provisória 422 permite que terras públicas na região possam ser vendidas sem licitação Gama
Dafne Melo da Redação
Antes e depois Ariovaldo aponta que legislações anteriores, como as instruções normativas 32 e 41 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já apontavam para uma flexibilização das leis que proíbem grilagens. A primeira, de junho de 2006, aumentava de 100 para 500 hectares o limite de uma área de terra pública que poderia ser vendida, mediante licitação. A segunda, de junho de 2007, dava como limite 15 módulos fiscais, tal como a MP 422. A diferença é que a instrução ainda exigia a licitação pública para se fetivar a venda, enquanto a MP a dispensa. “A venda com licitação já era um absurdo”, avalia Ariovaldo Umbelino. Na prática, o pesquisador conta que as licitações nem sempre “eram feitas como manda a lei”, nem garantiam concorrência porque “havia uma combinação, um arranjo entre os grileiros do agronegócio, e nenhum ia no leilão do outro, que ainda pagava o preço que queria porque só havia ele como interessado”, explica. Dessa forma, se a MP passar pelo Congresso, tornará legal uma série de desrespeitos à legislação brasileira – incuindo a Constituição Federal – cometidos há décadas. Corrupção no Incra O professor da USP ainda revela que o limite de 1.500 hectares sequer é respeitado, pois as transnacionais e empresários do agronegócio usam “laranjas” para grilar mais terras. Todas essas manobras e ilegalidades são feitas com a conivência de uma parcela de funcionários corruptos do Incra, que não só fazem vistas grossas, como aconselham os grileiros a entrarem com um pedido de compra da terra. “Nas superintendências do Incra da Amazônia, está cheio de processos de pessoas que querem comprar terras. Constitucionalmente, isso não é possível, mas se fosse, o governo teria que dizer que só
vai destinar uma área para a reforma agrária e que o resto seria vendido. Nenhum governo, ainda, teve coragem de fazer isso, mas também não fizeram nada para evitar as grilagens e para tirar o agronegócio das terras do Incra, que estão ao longo das faixas de rodovias e, portanto, são as terras mais bem localizadas e valorizadas”, explica Ariovaldo. A corrupção existente no Incra foi deflagrada pela Operação Faroeste, feita no final de 2004, quando foram presos diversos funcionários acusados de receberam propinas para facilitar as grilagens. O resultado, afirma Ariovaldo, é que hoje “não há um milímetro quadrado na Amazônia que não tenha alguém que não diga que é dono”, quando, na verdade, o Incra possui, ainda, 67 milhões de hectares de terras públicas na região.
Transnacionais Ulisses Manacás, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Pará, avalia que a MP vem “sacralizar” um método utilizado há séculos no Brasil para concentrar as terras nas mãos das elites. “A medida demonstra o casamento do governo com os setores do agronegócio. Além de injetar recursos, ainda garante a propriedade das terras griladas por eles”, complementa Manacás. No Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), há a previsão do asfaltamento da Cuiabá-Santarém. Nesta última cidade, há o porto da transnacional estadunidense Cargill, fechado no início de 2007 pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (lbama), após denúncia do Ministério Público de que a instalação não possuía licença ambiental para operar. Para o deputado federal Adão Pretto (PT-RS), a MP faz parte de um pacote de atitudes do governo que ferem a soberania nacional em benefício das empresas. “O caso da Stora-Enso [sueco-finlandesa] no RS, onde compraram terras a menos de 150 km da fronteira, é similar. Já existem projetos de lei como o do deputado Mendes Ribeiro (PMDB-RS) que pede a redução dessa área para 50 km”, exemplifica. No caso da Amazônia, Ulisses ainda relembra que entregar terras ao agronegócio abre maiores possibilidades para a realização da biopirataria, do saque e da pilhagem dos recursos naturais da floresta brasileira. A reportagem entrou em contato com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), mas não obteve resposta.
O histórico e a disputa pela terra no Brasil ao longo dos anos Processo de grilagens de terras da União pelo agronegócio se iniciou na ditadura militar e intensificou-se a partir de 1990 da Redação O histórico das grilagens das terras públicas da Amazônia vem de longe. Com a publicação da Lei de Terras, em 1850, todos os posseiros e sesmeiros teriam que regularizar suas propriedades em um prazo de até 6 anos. Assim, a partir de 1856, quem não fez o registro, “perdeu as terras”, que passaram para a União. Em 1891, com a primeira Constituição republicana, a União passou as terras aos respectivos Estados, conservando em sua propriedade apenas as faixas litorâneas e fronteiriças, além de outras pequenas áreas. “A partir daí, os governos estaduais é que devem fazer a regularização e definir o destino das terras devolutas, que são públicas. Entretanto, nenhum Estado do Brasil, até hoje, fez o processo de discriminação dessas terras”, observa Ariovaldo Umbelino. Já no período da ditadura militar (1964-1985), com o projeto de construção de rodovias na região amazônica, baixou-se um decretolei que federalizava as terras públicas estaduais que se localizavam até 100 km das margens das estradas. Ficou a cargo, então, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cuidar das terras. “Cla-
ro que se apareciam títulos de propriedade de terras emitidos pelos governos estaduais, esses títulos eram respeitados. Mas eram pouquíssimas as áreas onde isso ocorreu”, pontua.
Colonização fracassa A partir daí, a missão do Incra era desenvolver projetos de colonização nessas áreas. “Mas o Incra praticamente abandonou os projetos, implantou mais em Rondônia apenas, e boa parte deles fracassaram; os colonos retornaram aos seus Estados e aí tem-se a origem do MST”, explica o geógrafo. O regime militar, porém, ainda vendeu algumas terras públicas – na época, era permetida a venda de até 3 mil hectares – para transnacionais, por meio de licitação. No início da redemocratização, com o governo de José Sarney (1985-1990) e o I Plano Nacional de Reforma Agrária, em 1984, foram interrompidas as vendas de terras na Amazônia Legal. “As terras públicas tinham que ser destinadas para a reforma agrária”, diz Umbelino. No início da federalização de terras no período militar, o Incra contabilizava a propriedade de 109 milhões de hectares. Hoje, sobrou pouco mais de 67 milhões. De acordo com a Constituição de 1988, essas terras
só poderiam ser usadas para reforma agrária, regularizando a situação de populações tradicionais (quilombolas, ribeirinhos e camponeses), sendo que a posse não poderia exceder 100 hectares. “O conceito verdadeiro de posse é a quantidade de terra necessária para a família produzir seu sustento”, explica o professor.
Grilos Dutante toda a década de 1990, o processo de grilagens de terras pelas madeireiras e outros setores do agronegócio se acelera. “O governo Sarney é um período de espera, pois, com o debate da Constituição, tinha-se a esperança de que as grilagens seriam regularizadas. Nas disposições transitórias da Constituição, há um artigo que manda uma comissão do Congresso rever todas as terras públicas vendidas no período de 1964 até 1987. Isso demonstra como já se sabia dos escândalos de grilagem na região”, conta Ariovaldo. Já no governo Lula, com o II Plano Nacional de Reforma Agrária, ficou decidido que 400 mil famílias seriam assentadas e outras 540 mil teriam sua posse regularizada, em todo Brasil. Estas últimas, a maioria na Amazônia. “Bom, o Plano Nacional foi indo pro vinagre e, pior que isso, esses funcio-
nários corruptos do Incra conseguiram que o governo tomasse a iniciativa de fazer a legalização dessas terras griladas”, lamenta o geógrafo. (DM)
Para entender Módulo Fiscal, de acordo com o Incra, é a unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada município, considerando os seguintes fatores: tipo de exploração predominante no município; renda obtida com a exploração predominante; outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam significativas em função da renda ou da área utilizada; conceito de propriedade familiar. Amazônia Legal é uma área que engloba nove Estados do Brasil: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão, totalizando uma área correspondente a cerca de 61% do território brasileiro. O conceito foi criado no início da década de 1950, com base em análises estruturais e conjunturais. O governo brasileiro, reunindo regiões de idênticos problemas econômicos, políticos e sociais, com o intuito de melhor planejar o desenvolvimento social e econômico da região amazônica, instituiu o conceito de Amazônia Legal.
Ministério dos Transportes
NO DIA 25 de março, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deu mais um passo para a manutenção da injustiça social no campo. A Medida Provisória 422 – que ainda não foi apreciada pelo Congresso Nacional – permite a venda de terras públicas que tenham até 15 módulos fiscais (cerca de 1.500 hectares) sem necessidade de licitação. Na prática, a MP legaliza a grilagem de terras na Amazônia, afirma o geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, Ariovaldo Umbelino. Para o pesquisador, a edição da MP é resultado da pressão do agronegócio – ou agrobanditismo, como prefere chamar – setor que grila a maior parte das terras na região. Em 2004, os empresários fizeram uma campanha para que o governo federal asfaltasse o trecho paraense da rodovia Cuiabá-Santarém (BR163). Nessa época, o geógrafo viajou com outros pesquisadores, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para fazer um levantamento da área. “Percorremos toda a rodovia. Há um distrito no Pará chamado Castelo dos Sonhos, onde medimos com GPS um “grilo” de uma madeireira que, só pela beira da estrada, tem 40 km de terra. Sabe-se lá qual a extensão para o fundo”, conta Umbelino, que participou de várias reuniões na Casa Civil para denunciar a situação. “Eu mesmo fiz parte da tentativa de conscientizar o governo da realidade que existe na Amazônia Legal”, finaliza.
Porto de Santarém, no Pará, onde a transnacional Cargill escoa sua produção de soja produzida na região amazônica
6
de 3 a 9 de abril de 2008
brasil www.brasildefato.com.br
CRIMINALIZAÇÃO Salto qualitativo das mobilizações recentes, entre elas o bloqueio das ferrovias da Vale, deixa para trás pautas específicas, diz Gilmar Mauro
saiu na agência Lula Marques/Folha Imagem
Movimentos enfrentam novos desafios e repressão João Zinclar
Pedro Carrano de Curitiba (PR) MAIS UM trabalhador semterra foi assassinado no dia 30 de março. Enquanto o discurso oficial do governo fala em crescimento econômico, conduzido pela exportação de commodities minerais e do ramo do agronegócio – sob o controle do capital financeiro – dois pistoleiros tiram a vida de Eli Dallemole, 42 anos, membro do MST, morto no assentamento Libertação Camponesa, em Ortigueira (Paraná). O embate do movimento social contra o agronegócio, corporações transnacionais e megaprojetos do governo Lula tem sido constante. Mesmo quando a face visível da repressão está na elite latifundiária local. Em Altamira (Pará), o bispo dom Erwin Krautler sofre ameaças de morte. Entre outras lutas encampadas, Krautler atua contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (Amazonas), que ameaça atingir comunidades camponesas. Outro exemplo está no Sul do país, em Curitiba, onde os trabalhadores da empresa de fertilizantes Fosfértil – privatizada em 1993 e pertencente à transnacional Bunge – denunciam a precarização do maquinário da fábrica e os lucros recordes da empresa, e obtêm como resposta da diretoria a perseguição ao sindicato.
Crescimento contínuo No momento, a conjuntura é de crescimento das corporações transnacionais no governo Lula, controladas pelo capital financeiro. Em 2006, a empresa Votorantim atingiu R$ 2,1 bilhões em exportações, em diferentes ramos. Há seis anos, a empresa cresce em média 29%. Trabalhadores se manifestaram em pelo menos duas unidades da empresa: no complexo industrial de papel e celulose, em Mato Grosso; e na construção da usina hidrelétrica de Foz do Chapecó, no sul do país, contra as más condições de trabalho. No mesmo sentido, a Positivo Informática, maior fabricante de computadores do país, teve crescimento de 52,3% na receita líquida da empresa, enquanto a Vale (antiga Vale do Rio Doce) teve o lucro recorde de R$ 20 bilhões em 2007. A mineradora se expande, por exemplo, para a extração de carvão mineral em territórios como Colômbia, Austrália e Moçambique. Denunciada pela agressão ao meio-ambiente, em ato protagonizado pelas mulheres da Via Campesina, que ocuparam a ferrovia Estrada Vitória a Minas, no dia 8 de março, a direção da Vale moveu um processo na Justiça contra um dos dirigentes da Via Campesina, João Pedro Stedile. A companhia vem apostando, também, em publicidade massiva, contando com a mão amiga dos meios de comunicação empresariais. Crise nos EUA A crise do capital financeiro estadunidense é uma das propulsoras da mobilização dos movimentos sociais. A ascensão do capital financeiro, no neoliberalismo, cria a base para uma maior desestruturação do trabalho. As empresas retomam o aumento dos lucros, com maior participação no mercado de ações. De acordo com Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, o impacto da crise incide diretamente na exploração sobre a classe trabalhadora. O capitalismo apela, em fase global, para a exploração sobre a forma de trabalho es-
Terrorismo midiático
Ação de despejo da Fazenda Mãe Rosa, em Cabrobó (PE), em julho de 2007
Quanto
50
% das terras do Estado de São Paulo estão destinadas ao cultivo da cana-de-açúcar para a produção de etanol, frente ao recuo de cultivos como café e laranja cravo ou em condições de super-exploração, como no caso do monocultivo da cana. Atualmente, 50% das terras do Estado de São Paulo estão destinadas ao cultivo da canade-açúcar para a produção de etanol, frente ao recuo de cultivos como café e laranja. Outro modelo atual da exploração do trabalho são as Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs). Na visão de Mauro, tal processo está aliado à exploração indiscriminada dos recursos naturais nos países periféricos, com destino à exportação. O melhor exemplo disso é a empresa Aracruz Celulose. “Há uma pressão mundial, não só nos países periféricos, para cima da classe trabalhadora; com isso, os movimentos sociais que não abraçaram a lógica do Estado são pressionados (...) Aos movimentos que não se adaptam, existe uma repressão para coibir”, diz. Uma pressão que, para Mauro, faz com que o preço da força de trabalho caia.
Contradição O salto qualitativo das mobilizações recentes, entre elas o bloqueio das ferrovias da Vale por parte da Via Cam-
pesina, se dá na definição de uma pauta que abrange uma totalidade, e não mais uma questão específica, corporativa. Este é o novo ingrediente das mobilizações, na avaliação de Gilmar Mauro. A luta atual parte da contradição entre o desenvolvimento prometido pelas corporações e a pobreza realizada de fato. Na jornada de ocupações de hidrelétricas, realizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), foi denunciado o alto preço das tarifas, além dos lucros do setor, controlado por grupos privados. No Sul do país, os manifestantes denunciaram a venda do parque de geração de energia, privatizado em 1998 e hoje em mãos da empresa belga Tractebel Energia, controlada pela transnacional francesa Suez Lyonnaise des Eaux. “A empresa ganha R$ 135 mil reais por hora na usina de Salto Santiago sozinha, mas 90% desse lucro é enviado para fora”, critica Hélio Meca, coordenador do MAB. O Grupo Votorantim , dono de 19 usinas hidrelétricas, também é alvo das críticas do movimento, pelo controle de toda a cadeia produtiva de energia, com a finalidade da produção de alumínio – que consome 4% de toda a produção de energia nacional. “O Grupo Votorantim controla a geração, transmissão e consumo de energia, faz a mineralização do alumínio, e está envolvido neste processo de construção das hidrelétricas”, comenta o membro do MAB.
Estudantes preparam Comitê em Defesa dos Movimentos Sociais de Curitiba (PR) Estudantes do DCE da Universidade Federal do Paraná (UFPR), junto com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Terceiro Grau Público (Sinditest-PR), estão articulando o Comitê Contra a Criminalização dos Movimentos Sociais. O comitê surge de situações recentes de repressão contra os movimentos sociais, e a partir da própria repressão sofrida pelo movimento estudantil, durante a ocupação de reitorias ocorrida em vários Estados do país, na luta contra o programa governamental Reuni, e por democracia nos conselhos universitários. Comitês como este já atuaram noutros momentos. “(...) A iniciativa mais recente deu-se no ano passado, em São Paulo, após a demissão dos metroviários [cerca de 50], assim como no caso dos sindicatos que compõem a Intersindical, que têm tentado articulá-los nos espaços onde atuam. Em Londrina, existe um comitê semelhante, e no Rio de Janeiro é um pouco mais abrangente, incluindo também a luta contra a violência policial”, explica Bernardo Pilotto, da direção do Sinditest. A conjuntura para a necessidade de criação do comitê é a sinalização de que o governo Lula não oferece resistência ao capital. “A conjuntura nacional permite aos conservadores fazer uma maior repressão aos movimentos. Quando os conservadores vêem o governo de um exoperário, dirigente sindical, sendo protagonista em leis que perseguem a atividade sindical [como a lei de greve], sendo conivente com assassinatos no campo, eles se sentem mais a vontade para ir pra cima dos movimentos sociais”, acrescenta. (PC)
Mídia empresarial A vanguarda no processo de enfrentamento contra os movimentos sociais é a mídia empresarial. De acordo com Mauro, os meios de comunicação acusam os movimentos de fazerem uma “luta ideológica”, por não se aterem a uma pauta específica, ou não se limitarem à lógica institucional da compensação, por meio de programas assistenciais do governo Lula. Ao mesmo tempo, há um forte discurso de criminalização dos movimentos e da classe trabalhadora. Em entrevista dada ao Núcleo Piratininga de Comunicação, Mauro comenta: “A grande mídia reproduz a ideologia do capital, e se vê um processo cada vez maior de criminalização da pobreza, dos movimentos sociais, com proliferação de idéias fascistas. Não é um fascismo articulado, mas extremamente preconceituoso com a classe pobre”, afirmou. Fica evidente a necessidade de cooperação de classe entre o movimento urbano e rural, embora, neste momento, o sindicalismo viva um modelo de crise, resultado da reestruturação produtiva do trabalho no período neoliberal. “Existe uma expansão da classe trabalhadora, mas em um processo de fragmentação, o que causa dificuldade para o movimento sindical. O mundo do trabalho sofreu transformações intensas, com um desenvolvimento de ponta muito intenso, colocando parte da classe no desemprego, ou tentando manter o seu posto. Os processos de mobilização atual são por elevação de direitos”, analisa. Organização local Raimundo Gomes, membro da Consulta Popular no Pará, acredita que, frente ao avanço econômico de corporações, sobretudo na Região Norte, não tem sido feito um trabalho político com a classe trabalhadora, o que, segundo ele, é necessário, para que a luta não fique apenas no âmbito “econômico”. “São resistências causadas pelos grandes projetos, mas não houve muito avanço no campo da luta de classes (...) O caráter da luta atual não é o de luta de classes. Neste caso, é o da sobrevivência”, comenta. Documento recente assinado pelos movimentos sociais no Pará, anunciando o lançamento da Assembléia dos Movimentos Sociais da Amazônia, fala sobre a necessidade de um posicionamento frente ao avanço das empresas imperialistas na região. “As diversas frentes desse modelo, a pecuária, a soja, a madeira, o mineral, a siderúrgica e o hidronegócio estão impondo um novo comportamento jurídico sobre a região. [As corporações] alimentam a idéia de que são a direção moral política e intelectual desse novo ciclo econômico da Amazônia.”
Na Venezuela, intelectuais e jornalistas de 14 países participaram de encontro convocado pelo presidente Hugo Chávez sobre mídia. “O terrorismo midiático é condição para o terrorismo econômico e militar”, ratifica documento final. Conhecido por ter sofrido um “golpe midiático” em 2002 e por ter determinado o fim da concessão do canal de televisão privado RCTV em 2007, o governo da Venezuela promoveu o encontro para fazer frente à reunião da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, em espanhol), organização que o presidente Hugo Chávez considera como o “braço do imperialismo na comunicação”.
Indígenas de Santa Cruz
Decisão de cinco povos indígenas, que representam cerca de 10% da população de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, confirma que região está polarizada entre a elite local e o apoio ao governo de Evo Morales. Eles declararam, no dia 31 de março, a autonomia de seus territórios, ao mesmo tempo que determinaram não votar no referendo autonômico de 4 de maio, cujo processo continua sendo levado adiante pelas autoridades e empresários locais.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Jogo capitalista A indústria estrangeira instalada no Brasil aumentou significativamente a importação de produtos acabados nos primeiros meses de 2008, em especial o que é produzido pelas matrizes ou unidades localizadas em países mais afetados pela crise econômica. Essa é uma forma de contribuir para reduzir os efeitos da crise lá fora; a outra forma é aumentar a remessa de lucro para o exterior. As unidades daqui é que fazem o sacrifício. Pura especulação Até o megaempresário brasileiro Antonio Ermírio de Morais, dono do Grupo Votorantim , defende agora, de público (Folha de S. Paulo de 30.03.2008), o fim da isenção do Imposto de Renda para o capital especulativo. “A nossa taxa de juros é tão alta que o país vem sendo considerado como o maior cassino internacional”. Ele garante que os especuladores estão ganhando “bilhões de dólares” na ciranda financeira no Brasil. Trabalho infantil Outra pesquisa do IBGE recém-divulgada registra que, apesar de proibido por lei, o Brasil tinha em 2006 mais de 1,4 milhão de crianças – de 5 a 13 anos de idade – obrigadas a trabalhar, a maioria em atividades não-remuneradas. Os estudos comprovam que os programas assistenciais do governo, como o Bolsa-Família, não conseguiram reduzir o quadro do trabalho infantil no Brasil. A situação é de estagnação. Barbárie israelense É inacreditável que a ONU, os países ricos e os governos dos demais países da face da Terra aceitem – sem uma reação firme e digna – os ataques do Estado de Israel ao povo palestino na Faixa de Gaza. O mínimo que se deveria fazer é aprovar sanções e cortar as relações diplomáticas e comerciais com Israel até que cesse o genocídio. Nada menos do que isso. Escada petista Está cada vez mais difícil o PT nacional manter a sua linha política que proíbe alianças com o PSDB. Em Minas Gerais, ganhou a convenção petista a corrente que defende uma chapa PT-PSDB para a prefeitura de Belo
Horizonte. Na Bahia, o grupo do governador Jacques Wagner caminha para aceitar o mesmo tipo de coligação. Quem embala a candidatura presidencial nessa salada é o tucano Aécio Neves.
Desemprego sobe De acordo com a pesquisa do IBGE, o índice de desemprego nas regiões metropolitanas subiu mais um pouco de janeiro para fevereiro deste ano, passando de 8% da População Economicamente Ativa para 8,7%. De dezembro para janeiro, também havia subido de 7,4% para 8%. O patamar atual é o mesmo de outubro de 2007. A explicação do IBGE: apesar do crescimento econômico, ainda é grande o número de trabalhos temporários. Coisa rara Parece pegadinha, mas não é: a Agência Nacional de Energia Elétrica iniciou convocação de audiências públicas em algumas cidades do interior paulista, entre elas Catanduva e Presidente Prudente, para debater a redução de tarifas das concessionárias de distribuição de energia, entre 6% a 10% do preço atual. Quem tem denunciado o abuso nos preços da energia é o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Caldeirão paulistano A disputa para a Prefeitura de São Paulo, o município mais populoso do país, terá embate entre os maiores partidos da situação e da oposição (PT, PSDB, DEM) e também entre as várias siglas da direita, do centro e da esquerda (PSB, PPS, PDT, PCdoB, PHS, PSOL e PCB). O PSOL articula uma frente de esquerda com PSTU e PCB, em torno da candidatura do deputado federal Ivan Valente.
de 3 a 9 de abril de 2008
7
brasil
Julgamento histórico condena assassinos de trabalhador rural PERNAMBUCO Por unanimidade, júri considerou culpados os 14 réus acusados de matar um canavieiro; pena será de 18 anos Arquivo CPT/NE2
Mariana Martins de Recife (PE) EM JULGAMENTO histórico, que durou cinco dias, 14 pessoas – 5 policiais militares e 9 seguranças da Usina Santa Teresa, de propriedade do Grupo João Santos – foram condenadas a 18 anos de prisão pelo assassinato do trabalhador rural Luiz Carlos da Silva e pela tentativa de assassinato de outros 13 trabalhadores. O crime aconteceu durante uma greve de canavieiros, em Goiana, cidade da zona da mata Norte do Estado, no ano de 1998. O julgamento foi considerado o maior da Justiça de Pernambuco, em número de réus e também de duração. A sentença foi anunciada no início da noite do dia 29 de março.
O Caso Nada mais condizente com a realidade do Estado, conhecido como um dos que mais promove violência no campo, do que ter como maior julgamento da sua história um caso emblemático da “guerra” secular entre trabalhadores rurais e latifundiários. O caso, que completará dez anos em novembro, é resultado de uma trágica e conhecida combinação: trabalhadores rurais explorados que lutam pelos seus direitos; seguranças de usinas, engenhos e fazendas que trabalham armados e que muitas vezes não estão preparados para o serviço; e policiais militares que, em recorrentes situações, atuam como milícia privada, e não como segurança pública. Era novembro de 1998, época da safra de cana-de-açúcar em toda na zona da mata de Pernambuco. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape) estava em negociação com os usineiros para realização da convenção coletiva, momento em que são feitos acordos coletivos para toda zona canavieira entre a federação e os usineiros. As negociações desandaram e os canavieiros iniciaram uma greve geral em todo o estado de Pernambuco, que teve início no dia 1º de novembro. Na região norte da Zona da Mata, a greve teve o atenuante das péssimas condições de alojamento em que se encontravam os trabalhadores de outros Estados, contratados temporariamente para a época da safra. No terceiro dia de paralisação, na cidade de Goiana, os canavieiros ficaram sabendo, segundo João Salustiano, na época tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Goiana e testemunha do caso, que Engenho Terra Rica, da Usina Santa Teresa, forçava trabalhadores que vieram de outros estados a trabalharem em seu canavial. “Existiam seguranças e policiais militares que faziam a escolta desses trabalhadores que iam para o canavial na calada da noite, por volta das 2h da madrugada”. Ao tomarem conhecimento da ação da Usina, conta Salustiano, os grevistas tiraram um grupo de cerca de 80 trabalhadores para tentar convencer os canavieiros que trabalhavam no Engenho Terra Rica sobre a necessidade de aderirem à greve. “As empresas do grupo João Santos são muito resistentes, não gostam de pagar os direitos dos trabalhadores, forçando-os a trabalhar quase em regime de escravidão. Nós precisávamos conversar com esses trabalhadores”, relembrou o tesoureiro do sindicato. Por volta das 9h da manhã do dia 04 de novembro, os canavieiros chegaram ao engenho. Eles desconheciam que, na noite anterior, o chefe de segurança da Usina, Sylvio Frota, e o Capitão do 2º Batalhão da Polícia Militar de
O julgamento, que ocorreu após quase dez anos dos crimes e durou cinco dias, condenou os acusados a 18 anos de prisão
Pernambuco, Marcelo Renato da Silva, haviam planejado uma emboscada com dois bloqueios, cada um com dois policiais militares e dois seguranças da Usina. Ao se depararem com o primeiro bloqueio, os manifestantes foram recebidos a tiros. “Quando nós estávamos a 500 metros de onde estavam trabalhando esses canavieiros, fomos abordados por uma barricada de policiais militares e seguranças da empresa e já fomos recebidos à bala. Quando nós tentamos correr, nos deparamos com outra barricada. Foram cerca de 8 a 10 minutos de tiroteio”, conta Salustiano.
Minutos depois do disparo, uma caminhonete S-10 com seguranças da Usina e policiais militares chegou ao local, atirando contra os trabalhadores Os primeiros tiros foram disparados pelo soldado José Augusto da Silva, que, em depoimento durante o julgamento, afirmou ter pego a arma do segurança que estava no mesmo bloqueio para comunicar ao outro grupo a chegada dos canavieiros. Minutos depois do disparo, uma caminhonete S-10 com seguranças da Usina e policiais militares chegou ao local, atirando contra os trabalhadores. Quatorze foram atingidos, alguns pelas costas, como no caso de Luiz Carlos da Silva, que morreu na hora com um tiro na nuca. Luiz Carlos da Silva, à época com 27 anos, era trabalhador da Usina Maravilha, estava exercendo o seu direito de greve e lutava por melhores condições de vida para ele e sua família: uma mulher e dois filhos, uma menina e um menino, com 4 e 5 anos respectivamente. O processo contra os cinco policiais militares e contra os dez seguranças da Usina Santa Teresa foi aberto pe-
lo Ministério Público do Estado. O promotor Edson Guerra, que à época respondia pela comarca de Goiana, abriu um processo que acusava as dez pessoas por homicídio qualificado e por lesões corporais. Após o exame de corpo de delito das vítimas, a acusação passou a ser de um homicídio consumado e de outras treze tentativas de homicídio qualificado, visto os locais onde as vítimas foram atingidas e também a premeditação do crime.
O julgamento O julgamento, anunciado como o maior do Estado de Pernambuco, teve início no último dia 25, após quase dez anos de ocorrido o fato. Como em casos de crimes que atentam contra a vida, o processo foi levado a júri popular, no qual sete juízes populares (cidadãos comuns) decidem a condenação do réu ou dos réus. O júri sorteado para este caso foi composto por quatro mulheres e três homens, e presidido pela juíza de direito Marylúsia Feitosa. A pedido da promotoria, que fez a denúncia do caso, um dos réus, o administrador do Engenho Terra Rica, José Soares, foi absolvido das acusações por ter conseguido provar que estava no local do fato por ter pego uma carona e não participou nem do planejamento nem da ação. Os demais réus foram todos condenados por unanimidade pelos sete componentes do júri popular. Ficou comprovado que houve planejamento da ação que resultou na morte do trabalhador e que a mesma foi articulada entre policiais militares e seguranças da Usina Santa Teresa. Sendo assim, o Major Marcelo Renato (que, na época, era Capitão) e o chefe da segurança da Usina, Sylvio Frota, foram indiciados também pelo planejamento do crime. Todas as argumentações do promotor de Justiça, André Rabelo, e do assistente de acusação, o advogado Gilberto Marques, foram aceitas pelos jurados, que tornaram o caso ainda mais histórico por
Réus condenados Major Marcelo Renato da Silva – Polícia Militar Sérgio José de Oliveira Leomos –Polícia Militar José Augusto da Silva Neto – Polícia Militar José Marcelino da Silva Neto – Polícia Militar Rosinaldo Chagas Dantas – Polícia Militar Ângelo Alberto dos Santos – Vigilante da Usina Sebastião Augusto Ferreira – Vigilante da Usina Dílson Cosmo do Nascimento – Vigilante da Usina Cícero Vieira da Silva – Vigilante da Usina Fernando Félix Pereira da Silva – Vigilante da Usina Aluízio Antônio da Silva – Vigilante da Usina Emiliano Silvino Gomes – Vigilante da Usina Ivanildo Pereira Capitulino – Vigilante da Usina Sylvio Cláudio Coutinho Frota – encarregado de segurança
deferirem, por unanimidade, a condenação dos 14 acusados. A juíza Marylúsia Feitosa, que calculou a pena de cada um como sendo de 18 anos de reclusão, solicitou a detenção imediata dos condenados. Os policiais militares foram encaminhados para o Centro de Reeducação da Polícia Militar, o Creed, exceto o Major Marcelo Renato da Silva, que, por ser oficial, ficou no Batalhão de Choque da PM. Os seguranças da usina, por sua vez, foram levados ao Centro de Observação e Triagem de Abreu e Lima, o COTEL. Após a leitura da sentença, os advogados de defesa apelaram da decisão e pediram para que os réus respondessem o crime em liberdade. O pedido foi negado pela juíza, que alegou não ser procedente o pedido,
visto que todos eles já aguardaram os dez anos que se passaram em liberdade. Os assistentes de acusação, o advogado Gilberto Marques e o promotor André Rabelo mostraram-se muito satisfeitos com a decisão proferida pelo Conselho de Sentença. “A gente começa a ver na prática que o país está mudando, e está mudando para melhor. O Conselho de Sentença é a nação representada no Tribunal de Júri. E este tribunal entendeu a dor e a luta dos trabalhadores representados por Luiz Carlos”, declarou Marques. O promotor André Rabelo considerou a vitória como sendo uma importante conquista para a luta por direitos dos trabalhadores. “Faço uma avaliação muito correta
do julgamento. Acho que demorou, 10 anos se passaram, mas a justiça foi feita. A Justiça cumpriu a sua função e eu, como representante do Ministério Público, entendo que a decisão foi correta, de acordo com as provas existentes no processo. Isso serve de lição para que as pessoas aprendam definitivamente que o direito do cidadão deve ser respeitado, o direito de ir, vir e o de fazer greve, inclusive”. Na avaliação do presidente da Fetape, Aristides Santos, a sentença foi a mais positiva possível. “O resultado com certeza é um anúncio de que nós podemos, neste país, acabar com a impunidade. O recado importante desta decisão é para o patronato, para eles entenderem que o caminho é o diálogo, e não a força só porque tem dinheiro. E para a polícia militar também; eles precisam cuidar da segurança pública, e não fazer o papel da milícia privada. Isso tem que acabar em Pernambuco e no Brasil”. O padre Tiago Thorlby, que foi nomeado para a Comissão Pastoral da Terra para acompanhar o caso desde o início, acredita que o resultado deste processo não representa apenas uma vitória dos trabalhadores, mas também uma derrota do latifúndio do álcool e da monocultura da cana-deaçúcar. “O resultado do julgamento é uma grande vitória para o povo brasileiro, pois foram sete brasileiros que condenaram, por unanimidade, os responsáveis pelo assassinato de um canavieiro e a tentativa de homicídio de outros treze trabalhadores. Os jurados conseguiram, em cinco dias, o que o poder judiciário não realizou em dez anos – prova que este poder sofre com as procrastinações e pressões feitas pelo agronegócio de cana-de-açúcar e etanol”.
AGRONEGÓCIO
Mesmo após calote, governo renegocia redução da dívida dos ruralistas Condições oferecidas para os pequenos produtores são menos vantajosas Mayrá Lima de Brasília (DF) Depois de quase três meses de conversas, o governo federal apresentou sua proposta de renegociação das dívidas rurais. Dos R$ 87,3 bilhões pendentes, serão renegociados R$ 56,2 bilhões. A proposta – oficializada pelos ministérios da Agricultura, Desenvolvimento Agrário, Fazenda e Integração Nacional – prevê também a redução de encargos de operações inadimplentes para saldos vencidos (provenientes dos anos 80 e 90), rolagem da dívida até 2025, descontos para passivos antigos que podem chegar a 45% do valor total e, ainda, redução de juros para operações com encargos mais elevados. A oferta do governo aos produtores rurais para renegociação de dívidas surge justamente em um cenário que, segundo especialistas em agronegócio, aponta para uma tendência de lucros para o setor. “De fato, o Valor Bruto da Produção (VBP) está estimado em cerca de R$ 143 bilhões, em 2008, o que representa um ganho real de 14,3% em relação ao ano anterior, superando o pico, alcançado em
2003, quando atingiu cerca de R$ 133,9 bilhões”, afirma a nota enviada pelo próprio governo. Segundo o mesmo documento que oficializou a proposta, o setor tem plenas condições de pagar os próximos vencimentos. “A dívida agrícola, com vencimento em 2008, está estimada em cerca de R$ 11 bilhões, o que representa 7,7% da renda agrícola gerada pelo conjunto das lavouras neste ano. Os 92,3% restantes podem ser destinados a pagar os financiamentos de custeio da safra 2007/2008, além do lucro dos produtores”, diz o texto. A proposta do governo, no entanto, não satisfez a bancada ruralista na Câmara dos Deputados. Os representantes dos produtores rurais afirmaram que o setor não tem condições de pagar sua dívida e reivindica um prazo de carência. Esses deputados negam que exista “caixa” dos produtores para cobrir as dívidas, mesmo com os ganhos obtidos nas últimas safras com commodities como a soja, milho e feijão. “Qualquer atividade produtiva, seja em que área for, depende de rentabilidade para sobreviver e crescer, e com o setor agrícola não é diferente”, afirmou o presidente da Comissão de Agricultura, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), em entrevista coletiva. Em meio à discussão, cresce a conta do prejuízo para os cofres públicos das sucessivas rolagens das dívidas dos produtores rurais. Entre
1995 e 2005, segundo dados oficiais, o poder público foi lesado em R$ 10,4 bilhões. Esse recurso seria suficiente para assentar 335 mil famílias que hoje não têm como produzir por falta de terras. Ao mesmo tempo, com a outra mão, o governo ofereceu ao agronegócio uma linha de crédito, em condições facilitadas, de R$ 58 bilhões, com o objetivo de financiar a safra 2007/2008, 16% a mais que no ano de 2006.
Atenção diferenciada Com uma dívida bem inferior à dos grandes produtores rurais (R$ 13,5 bilhões contra R$ 56,2 bilhões), os representantes da agricultura familiar reclamam maior atenção do governo federal. Em carta enviada aos ministros envolvidos nas negociações com os ruralistas, sindicatos e movimentos sociais do campo não aceitam o que chamam de “diferenciação” no tratamento deste setor da agricultura. As condições de renegociação de suas dívidas são desvantajosas com relação aos grandes produtores. O governo exige que, para efetuar a renegociação, o pequeno pague de 5% a 10% do saldo devedor vencido. O percentual é de apenas 2% para os grandes produtores. O prazo para os pequenos quitarem todo o débito é de até 4 anos (contra 17 anos dos ruralistas), sem desconto adicional para a quitação. Já os grandes produtores terão desconto de 45% se pagarem até 2010.
8
de 3 a 9 de abril de 2008
nacional
O ciclo de um combustível à base de bagaço de gente e caldo de sangue ALICIAMENTO DE INDÍGENAS Sob nome falso, menino Guarani Kaiowá de 15 anos é “contratado” como se tivesse 24 anos Ministério Público do Trabalho
Cristiano Navarro de Dourados (MS) EM SETEMBRO de 2006, quando o menino Guarani Kaiowá de 15 anos, Pedro da Silva*, anunciou a decisão de largar a escola para trabalhar no corte de cana, seu pai, o viúvo José da Silva*, se viu contrariado. Não queria que o filho, um bom aluno da 6ª série da escola Loide Bonfim, da terra indígena Tey Kue, sofresse com a mesma sina que o afastou prematuramente, com 32 anos, do trabalho no campo, por um desvio na coluna cervical. Assim, seu José escondeu os documentos do filho para que ele não fosse passar 10 semanas cortando cana na Fazenda Santa Cândida, da Destilaria Centro Oeste LTDA (Dcoil), de propriedade do médico do trabalho Nelson Donadel. Ignorando os conselhos do pai, o garoto acertou com um “cabeçante” indígena da aldeia de Dourados, identificado pelo nome de Jorge, o pagamento de R$ 1.200 para o trabalho de 70 dias. A falsificação da ficha de Pedro junto a Dcoil foi feita de forma grosseira. Além de receber o nome de Devir Fernandes e a idade de 24 anos, não constava na ficha a sua foto.
Aliciamento de menores Um rapaz tímido e bastante esforçado, que freqüentava as aulas regularmente e, fora do horário escolar, fazia parte do projeto de criação de mudas de árvores para o reflorestamento da terra indígena Tey Kue, ligado à Universidade Católica Dom Bosco. Com estes adjetivos, a Irmã Anari Nantes, diretora da escola em que Pedro estudava, o descreve. Apesar de ser ilegal, o aliciamento de menores indígenas com documentos falsificados para o trabalho no corte de
Jovens indígenas se encaminham para o corte da cana-de-açúcar: aliciamento de menores é comum
cana-de-açúcar é comum no Mato Grosso do Sul. “A procura pela mão de obra [do trabalhador indígena] é muito grande, por seu bom desempenho e baixo custo. Com a grande demanda, os adolescentes são freqüentemente aliciados”, atesta o procurador do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, Cícero Rufino. Depois de prestar os primeiros 70 dias de trabalho, Pedro voltou para casa sem receber nada. O “cabeçante” informou que Pedro deveria voltar para a usina e trabalhar por mais um mês, até que o valor do pagamen-
to atingisse a quantia de R$ 1.600,00, para receber o valor integral. No início de dezembro, Pedro voltou ao trabalho nas terras da usina do médico. Doze dias depois, na noite do dia 15 de dezembro de 2006, dentro de um caixão simples, que por debaixo ainda escorria sangue, o corpo de Pedro foi entregue de surpresa na casa de sua avó. Pedro havia sido degolado na manhã do mesmo dia dentro da usina onde trabalhava. Seu corpo foi encontrado por policiais militares por volta das 14 horas, sobre um descampado de chão queimado próximo a um
monte de cana-de-açúcar que acabara de cortar, como consta em inquérito policial.
Mortos que andam Mesmo com as evidências físicas do cadáver e a flagrante falsificação nos documentos apresentados pela usina, o boletim de ocorrência foi registrado na delegacia de Iguatemi com idade e nome adulterados. Portanto, para a polícia, quem estava morto não era Pedro, mas sim Devir Fernandes. Na busca por pistas sobre o caso, nem a Fundação Nacional do Índio (Funai), nem a Fundação Nacional de Saú-
de (Funasa), nem o Ministério Público do Trabalho tinham qualquer notificação da morte de Pedro, mesmo com o nome Devir Fernandes. Na região de Dourados (MS), a forma que a Funasa tem de registrar os óbitos é através do oferecimento gratuito do caixão às famílias dos falecidos. “É freqüente a troca de documentos e falta de registro de mortos”, confirma o médico coordenador da Funasa em Dourados, Zelick Trajber. Desde o enterro de Pedro, envolto de muita comoção na aldeia Jaguapiru, pairam inúmeras perguntas. A que mais aflige seu pai, José da
Silva, é de uma objetividade cortante: “Meu guri foi trabalhar vivo e voltou morto. Quero saber: quem vai responder por isso?”. Dias depois do funeral, após juntar provas, como o resultado do exame de corpo delito, que apontou a idade de 16 anos para a vítima, e os depoimentos do autor confesso do crime e de testemunhas, seu José da Silva provou que de fato o corpo enterrado era de seu filho. De posse destes documentos, o pai de Pedro foi a gerência da usina para pedir que lhe pagassem ao menos os R$ 2 mil pelo tempo de serviço do filho. Mas a reposta do gerente da usina, segundo o pai da vítima, foi categórica: “Eles disseram que não devem nada para mim, que a quem deviam já pagaram. E que se eu quisesse qualquer dinheiro, procurasse a Justiça e a polícia”. Ainda hoje seu José da Silva procura por alguma resposta para a sua pergunta. Em português e castelhano, duas das três línguas faladas nessa região de fronteira com Paraguai, a palavra Devir quer dizer futuro. Devir está morto, mas ele não morreu ainda. Apesar de a polícia ter dado Devir Fernandes como morto, ele continua vivo. Devir, de carne e osso, mora na aldeia de Dourados e trabalha de 12 a 14 horas por dia para transformar sangue, suor e canade-açúcar em álcool combustível para a outra ponta da cadeia produtiva abastecer discursos políticos desenvolvimentistas e automóveis que rodam pelas ruas, estradas e avenidas com etiquetas ecologicamente corretas, com o nome de Total Flex. (Colaborou André Campos, da Agência Repórter Brasil) * nomes fictícios foram utilizados para não expor a vítima e a sua família.
No caminho do Exploração de mão-de-obra indígena é premiada com isenção de impostos no MS “desenvolvimento” Ministério Público do Trabalho
de Dourados (MS) A Destilaria Centro Oeste LTDA (Dcoil) não é apenas uma empresa que permite o aliciamento de menores de idade para o trabalho exaustivo do corte de cana. Pouco mais de 4 meses após a morte do garoto Pedro, a mesma Dcoil foi flagrada, no dia 27 de março 2007, por uma diligência do Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Ministério Público do Trabalho, em uma ação na qual 498 trabalhadores foram libertados, sendo que, destes, 150 eram indígenas dos municípios de Amambaí, Dourados e Coronel Sapucaia. Todos os 150 estavam alojados num barracão sem janelas que comportava, no máximo, 90 pessoas, sendo que 30 dormiam no chão. Faltavam equipamentos de trabalho adequado e alguns pagamentos estavam atrasados. “Entre os trabalhadores das usinas, é altíssimo o índice de doenças respiratórias. São muitos os casos de tuberculose. Imagine: 50 pessoas dormindo em um barracão em condições deploráveis. Se um estiver contaminado, pode contaminar todos os outros”, alerta o coordenador da Funasa. Após a diligência, a Dcoil teve de pagar multa e assinou um termo de ajustamento de conduta, no qual se compromete a melhorar a situação dos trabalhadores.
Fiscal conversa com cortador indígena
A ocorrência de assassinato e escravidão de trabalhadores indígenas não são delitos registrados somente nos limites da Dcoil. Segundo dados preliminares do relatório de violência 2006/2007 do Conselho Indigenista Missionário, em Mato Grosso do Sul, dos 53 assassinatos ocorridos no ano de 2007 com vítimas indígenas na Região de Dourados, três ocorreram dentro de usinas. A Usina Debrasa, localizada no município de Brasilândia, é outra empresa que tem em seu currículo assassinatos e trabalho degradante. Entre 2006 e 2007, foram dois assassinatos dentro dos limites da Debrasa. Além disso, em novembro último foram libertados 1.011 trabalhadores indígenas. A Debrasa, uma das se-
te usinas da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA) – pertencente ao grupo José Pessoa, um dos maiores do setor no país – é descrita pelos trabalhadores indígenas e pelo Ministério Público do trabalho como um “verdadeiro inferno”. Em decorrência da autuação, as empresas do grupo foram suspensas do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, e o empresário José Pessoa de Queiroz Bisneto foi afastado do Conselho Consultivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Foram flagradas inúmeras irregularidades, como atrasos nos salários, comida de péssima qualidade e instalações totalmente inadequadas. No banheiro, não havia água, fezes estouravam o cano e os
trabalhadores tomavam banho no rio. “Além de toda a precariedade, logo ao lado da usina se constituiu o distrito Debrasa, onde se encontram bares, prostituição, consumo de drogas e todo tipo de exploração humana que você possa imaginar”, relata o procurador Rufino.
Isenção de imposto Como prêmio aos usineiros por sua “contribuição ao desenvolvimento” de Mato Grosso do Sul, o governador André Puccineli, em meados de dezembro último, concedeu isenção de 67% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) para 44 usinas no Estado – 11 em funcionamento e outras 33 em construção. Enquanto José da Silva luta para receber os R$ 2 mil da Usina Dcoil pelos dias trabalhados por seu filho, outras cifras saltam aos olhos. Segundo o Sindicato dos Agentes Tributários do Mato Grosso do Sul, a isenção de ICMS deve diminuir em 20% a arrecadação do Estado, fazendo com que o governo deixe de arrecadar cerca de R$ 1 bilhão. Devido à isenção dada às usinas de álcool, o Estado deixará de receber, em 2008, R$ 394 milhões. Para este ano, o IBGE projeta um crescimento da área de plantio de cana-de-açúcar de pelo menos 30%, aumentando a área de 199,7 mil hectares, em 2007, para 260 mil hectares. (CN)
de Dourados (MS) Visando diminuir os impactos ambientais das queimadas para o corte da cana e a vergonhosa mancha do trabalho escravo, em agosto do ano passado, a Câmara Municipal de Dourados aprovou projeto de lei que prevê o fim das queimadas em plantações de cana-de-açúcar até o ano de 2009. Assim, as usinas que estiverem nos limites do município deverão mecanizar a colheita, dispensando a mãode-obra indígena. Do dia para noite, pelo menos 2 mil trabalhadores indígenas sem terra deste município perderão seus postos de trabalho. Na avaliação do vereador Elias Ishy (PT), que propôs a lei, o trabalho de cortador de cana é degradante e o expõe a uma série de problemas de saúde. No entanto, nem o vereador, nem nenhum dos apoiadores da proposta respondem sobre o que farão tantos trabalhadores depois da mecanização da colheita de cana-de-açúcar. A mudança da lei municipal vai de encontro ao interesse de transnacionais, como a estadunidense Cargill, a francesa Louis Dreyfus e a japonesa Mitsui, que chegam para investir no promissor mercado do álcool combustível, sem a intenção de ver seus nomes ligados ao trabalho escravo ou à poluição do meio ambiente, e que, assim, devem pressionar pela mecanização da colheita.
Boca que mastiga vidas O otimismo dos latifundiários e das transnacionais é a desesperança do povo Guarani Kaiowá. Quanto mais avançam a monocultura e a concentração fundiária, mais este povo vê distante suas terras, solução definitiva para os problemas da violência e extrema exploração. Para além do lucro com as culturas da cana, do boi, da soja e do milho, outras facetas do uso da terra pelos latifundiários têm se revelado no Mato Grosso do Sul. Em recente matéria publicada pela agência de notícias sul matogrossense Campo Grande News, o juiz federal Odilon de Oliveira classificou as atividades do agronegócio como sendo uma “lavanderia de dinheiro para o crime organizado”. O dinheiro sujo de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, seria “lavado” com falsos números de produtividade na pecuária e agricultura. Segundo a assessoria de imprensa do juiz, só no Mato Grosso do Sul, 205 mil hectares estão sob ordem de desapropriação por servirem ao crime organizado para “lavagem” de dinheiro. Ou seja, o crime organizado no Estado teria cinco vezes mais terra do que os cerca de 40 mil Guarani Kaiowá – que possuem apenas 40 mil hectares. (CN)
de 3 a 9 de abril de 2008
9
nacional
Grupo Votorantim causa desastre ecológico em Minas Gerais João Zinclar
EXPLORAÇÃO A região de Três Marias, onde o rio São Francisco representa importante fonte de vida e sustento da população, tem sido explorada por fortes interesses econômicos, principalmente pela atuação da siderúrgica Votorantim Metais Maria Luisa Mendonça enviada especial a Três Marias (MG) “CHEGUEI EM Três Marias em 1951, com 11 anos de idade. Eu vendia pão na rua. Um dia, vi um cardume de peixes no rio e decidi tentar pescar alguma coisa. No primeiro dia, peguei uma corvina de dois quilos. O preço que consegui por ela era igual a tudo que eu ganhava vendendo pão durante um mês! Aqui era um paraíso para os pescadores”. Esse é o início da história do pescador Norberto dos Santos. A região de Três Marias, onde o rio São Francisco representa a principal fonte de vida e sustento da população, tem sido explorada por fortes interesses econômicos, principalmente pela atuação da siderúrgica Votorantim Metais, do grupo Votorantim, comandado pelo empresário Antônio Ermírio de Moraes. Norberto conta que, “em 1969, a Votorantim começou a funcionar. Foi o maior desastre ecológico que já vi. Matou tudo, até barata d’água morreu. A empresa jogava os resíduos no córrego Consciência, que ia direto pro rio. De 1969 até 1990, todos os anos era essa tragédia. Os peixes morriam por asfixia. A água ficava vermelha de tanto resíduo. Em 1997, estourou um cano na empresa e morreram 50 toneladas de peixes. A partir de 2004, começaram a morrer os “nobres” do São Francisco, que são os surubins. Até surubim de 90 quilos apareceu morto! De 2004 a 2008, nós calculamos que perdemos no mínimo 5 mil exemplares de matrizes reprodutoras. São fêmeas que pesam uns 40 quilos e cada uma tem 4 quilos de ovos, com 2 mil ovos por grama. No total, calculamos que devem ter morrido 100 toneladas de surubim. E continuam morrendo.” O Pescador Moisés dos Santos conta uma história semelhante. “Nasci na beira do São Francisco. Sou filho de pescador e minha família vivia da pesca. Mas a chegada da Votorantim afetou todo o ecossistema. Nós dependemos do rio para sobreviver”.
“Nasci na beira do São Francisco. Sou filho de pescador e minha família vivia da pesca. Mas a chegada da Votorantim afetou todo o ecossistema. Nós dependemos do rio para sobreviver”, conta o pescador Moisés dos Santos. Estudos comprovam
O Cádmio apresenta uma quantidade vezes acima do permitido; o chumbo, vezes e o cobre, vezes.
1140 32
46
zes acima do permitido; o chumbo, 46 vezes; e o cobre, 32 vezes. Sobre a morte de peixes, o relatório do SISEMA concluiu que isto ocorre porque “O efluente da Companhia Mineira de Metais – ou Votorantim Metais – em estado coloidal, pós diluição pelas águas do rio São Francisco, deposita-se nas guelras dos peixes, na forma de película impermeabilizante, provocando morte por asfixia. Esta hipótese é viável, pois a ação de zinco e outros metais pesados tem sido mais elevada nos peixes. O acumulo desses elementos acelera o processo de intoxicação.”
A destruição causada pela Votorantim, apesar de evidente, não mobiliza o poder público
Sem controle
Além dos laudos técnicos, qualquer pessoa pode constatar a presença de metais nas margens do rio. Navegando no córrego Consciência, é possível coletar resíduos tóxicos no solo de suas encostas. De 1969, quando a empresa começou a funcionar, até 1983, quando foi construída a primeira barragem de contenção de resíduos, não houve nenhum controle ambiental. Mesmo após esse período, não houve um controle eficaz da poluição. “As barragens que foram feitas para conter a contaminação estão na beira do rio e não são impermeabilizadas. Além disso, essas barragens têm bombas que jogam os resíduos diretamente no rio. Nossos poços artesianos estão contaminados. Dependemos de caminhão pipa porque não temos água potável. O tamanho da destruição é incalculável. Mas, além da empresa, eu culpo também os órgãos ambientais, que não fazem nada. Só mandam o batalhão de choque para fiscalizar os pescadores”, explica Norberto. Exames realizados pela Fundacentro na população local constataram contaminação por arsênio, manganês e zinco. “É muito sofrimento pra gente que vive na beira do rio. Os olhos e o nariz ardem tanto que parece pimenta. Vem aquela poeira cor-de-rosa e a boca fica seca, às vezes até ferida. Irrita a pele e resseca o cabelo. A gente não pode beber a água do rio e nem lavar roupa. Agora meus filhos não podem viver da pesca. Vão fazer o quê? É o fim do mundo”, conta Maria dos Santos, moradora da região. Cleide de Almeida, que mora em uma ilha no local, explica que “as hortas morreram, tinha muita fruta antes, mas as árvores morreram. Até a água subterrânea está contaminada. A Votorantim acabou com muita coisa. Quando desce o minério pela encosta do rio, fica um cheiro ruim e mata as plantas. Até os peixes vivos ficam fedendo. Quando bate o vento do lado da empresa, dá tanta tosse que não tem remédio que cure. Tem menino novo encostado, que pegou câncer e se aleijou trabalhando pra empresa. E o Antonio Ermírio é o homem mais rico do Brasil! Coitado do rio, não tem dó. Tem que tratar dele desde aqui. E imagina que esse rio vai até Pernambuco!”
Empresa mantém esquema com poder público para explorar trabalhadores O Sindicato dos Metalúrgicos de Três Marias possui registro de 145 trabalhadores que foram afastados da Votorantim Metais por doenças ocupacionais ou acidentes de trabalho. Os documentos demonstram que, a partir de 2000, a situação piorou, pois a empresa instituiu um programa de reestruturação produtiva que reduziu o número de trabalhadores e aumentou a jornada de trabalho. “Fui afastado em 2003. Tive que fazer uma cirurgia na coluna e depois fui despedido. O trabalho braçal acabou com a minha saúde. Com a reestruturação da empresa, tínhamos que trabalhar mais rápido”, afirma o operário Carlos de Lima. Outros trabalhadores têm histórias parecidas. “Diminuiu o pessoal e aumentou o trabalho. Isso arrebentou a gente. Meu ombro estourou e hoje sou aposentado, mas não recebi seguro. Por isso tem muita gente doente que continua trabalhando”, conta Pedro de Souza.
Artimanhas
Para não conceder aposentadoria, a empresa obriga os funcionários a trabalharem doentes, através de um suposto programa de reabilitação. Depois de alguns meses, muitos são despedidos e perdem o plano se saúde. “Tive artrose no ombro. Fiz duas cirurgias, mas não tive melhora. Tenho limitação para mexer o braço. O médico falou que era só problema da minha cabeça e que eu podia voltar para a mesma função. Eu aplicava remédio para dor e continuava a trabalhar”, explica o operário Geraldo Leite. Outro problema, como denuncia Adimilson Costa, é que “os trabalhadores sofrem com o esforço repetitivo e também com contaminação com cádmio e chumbo. Quando precisamos de mais de um exame, os médicos não autorizam. Por exemplo, não podemos fazer mais de uma ressonância magnética para comparar e ver se melhoramos com o tratamento”.
Controle João Zinclar
Os resultados de diversos relatórios técnicos confirmam índices altíssimos de contaminação por metais pesados na água, sedimentos e peixes. Um relatório do Sistema Estadual de Meio Ambiente (SISEMA - MG) constatou que o nível de zinco nas águas do córrego Consciência, afluente do São Francisco que recebe dejetos da Votorantim, atinge o alarmante índice de 5.280 vezes acima do limite legal. O Cádmio apresenta uma quantidade 1140 ve-
Quanto
O pescador Norberto dos Santos mostra resíduo tóxico no rio
A historia de Sérgio de Almeida não é diferente. “Eu trabalhava nos fornos, com óxido de zinco. Carregava lingote de até 70 quilos. Antes, o turno era de seis horas, mas depois passou pra oito horas. A empresa fazia competição entre as turmas para ver quem trabalhava mais. Sofri um acidente de trabalho e fui afastado. Meu tratamento foi interrompido em dezembro porque a Votorantim diz que não tem responsabilidade. A médica perita do INSS é esposa do gerente e mora dentro das dependências da empresa. Não paga aluguel, água, luz, nada. O chefe dos peritos do INSS já trabalhou para a Votorantim e agora tem uma psicóloga que é a ‘olhera’. Quer saber nossos problemas para contar para a empresa. Quando fazemos manifestação na porta da fábrica, a polícia chega batendo com cassetete.
João Zinclar
Influência na Justiça e na política garante impunidade da empresa
Quanto
145 trabalhadores foram afastados da Votorantim Metais por doenças ocupacionais ou acidentes de trabalho
Os fiscais do IBAMA avisam quando vão fazer inspeção. Aí o gerente manda esconder tudo”. Há também casos de acidentes graves, como conta Carlos Roberto. “Comecei a trabalhar na Votorantim em 1986. Em 1991, sofri um acidente e queimei metade do corpo com zinco. Fiquei quatro anos em tratamento e fiz seis cirurgias. Não posso exercer atividades no calor ou carregar peso, mas a empresa me obrigou a trabalhar através do programa de reabilitação, que criou com o INSS. Como precisava pegar peso, em 2003 tive que fazer outra cirurgia por causa de uma trombose na perna”. Vanderlei Oliveira explica que teve que se aposentar com 26 anos porque trabalhava no setor de fundição e sofreu um desligamento no ombro. “Fiz cirurgia, mas fiquei com seqüelas e o ombro atrofiou. Mesmo assim, fui liberado para voltar a trabalhar carregando peso. Aí adquiri hérnia de disco”, explica.
Discriminação
Para o metalúrgico Isac Laurentino, há ainda o problema da discriminação de trabalhadores doentes. “Fui afastado em 2004 com problemas no ombro e na coluna. Depois de um ano, a empresa mandou que eu voltasse pra mesma função. Sinto muitas dores, mas tenho que trabalhar com fundição de zinco. A empresa cria conflito e competição entre os funcionários e os outros acham que eu não estou doente. Tenho que cumprir a reabilitação, senão vou ser despedido. Outros colegas têm medo de dizer que estão doentes, para não serem discriminados. A família sofre, a gente passa vergonha”.
O poder da Votorantim, que domina a economia local, dificulta a organização dos trabalhadores. “É difícil organizar porque a empresa quer nos desunir. Então tenta cooptar, ameaça despedir quem não depor a favor dela. Sempre formam chapa branca para ganhar a eleição do sindicato, mas nunca conseguiram”, explica o sindicalista Jorge Mendes.
Impunidade
A impunidade da empresa é um dos principais problemas, como afirma o operário Valter Ramos. “A Votorantim tem influência na justiça e na política. Por isso polui o rio, a gente fica doente e não acontece nada. A empresa despeja resíduo de cádmio, zinco, chumbo, arsênio, cobre, cério e lantânio nas margens do rio. Não nasce nem capim”. A opinião dos operários coincide com a dos pescadores. Norberto dos Santos conta que sua pele fica ferida só de entrar em contato com o lodo do rio. “As algas ficam vermelhas e deixam nossa pele em carne viva. Vários pesquisadores de universidades já constataram a presença de arsênio, chumbo, zinco, cádmio e outras substâncias tóxicas na água. O pior é que não sabemos o que fazer. Não tenho esperança nas ações do Ministério Público. Eles dizem que dependemos da boa vontade da empresa e que devemos aceitar o que oferecem. Dizem que a justiça é lenta, que os processos podem demorar mais de 50 anos e nós morremos antes disso”. Para o pescador Moisés dos Santos, a solução é a organização popular. “Os termos de ajuste de conduta que a empresa assina com o Ministério Público, mesmo sendo paliativos, não são cumpridos. Se cumprissem a lei, a Votorantim seria fechada. Em dezembro de 2006, paramos a BR por 13 horas para protestar contra esse descaso. Só assim vamos conseguir alguma coisa”. (MLM)
10
de 3 a 9 de abril de 2008
internacional
Reascende a luta pelo Curdistão UM NOVO PAÍS Na Turquia, repressão contra manifestantes prende 500; no Iraque, Exército turco invade país e mata 240 guerrilheiros do PKK Waldo Lao Fuentes e Yuri Martins Fontes de São Paulo (SP) PARA CELEBRAR seu Ano Novo (Newroz, no idioma curdo), no último dia 21 de março, mais de 1 milhão de manifestantes tomaram as ruas da cidade de Diyarbakir, no leste da Turquia. A congregação, chamada pelo Partido da Turquia Democrática (PTD) – que apóia a causa curda e reconhece a luta do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como uma organização não-terrorista, ao contrário das grandes potências –, contou com fortes discursos. Seus líderes reclamaram ao governo da Turquia o cumprimento das velhas promessas de melhorar a situação dos curdos no país. Durante a celebração, foi lida uma afetuosa carta de apoio, escrita pelo líder máximo dos curdos, Addullah Ocalan (do PKK), desde o cárcere, desencadeando inúmeros cantos e gritos pela sua libertação. As comemorações ocorriam sem problemas até o dia seguinte, quando diversos enfrentamentos com a polícia nas cidades de Van, Hakkari, Siirt, Batman, Silopi e Mersin deixaram cerca de 500 presos, dois mortos e mais uma cente-
to dias de conflito intensivo – apoiados por aviões e helicópteros – deixariam um saldo de 240 guerrilheiros mortos e centenas de alvos destruídos, muitos deles civis. Com a intervenção militar, o governo turco não conseguiu frear os rebeldes, mas deixou claro que não permitirá o recrudescimento e a nova difusão da revolta. Deste modo, os turcos deram também um duro golpe no conceito religioso de Umma – que significa “a irmandade muçulmana, além das etnias”. Ao se retirarem do território iraquiano, ainda ameaçaram voltar a cruzar a fronteira, tão logo julguem necessário. Esta não é a primeira vez que os turcos invadem o país vizinho com o pretexto de erradicar as bases do PKK. O país tem, inclusive, duas bases militares instaladas, desde 1991, no Curdistão iraquiano.
na de feridos. Nos últimos anos, o PTD – criado em 2005 – vem ganhando um pequeno espaço no Parlamento, em sua busca pelo renascimento do sonho do Estado curdo.
Histórico de opressão A história do Curdistão é a história de um povo fragmentado e oprimido, de um país que carece de pátria e reclama o direito de possuir um Estado. Os curdos são, na sua maioria, muçulmanos sunitas e encontram-se divididos em diversas regiões – espalhadas pela Turquia, Irã, Iraque, Síria, Armênia, Geórgia e Azerbaijão. Em 1973, surgiria em território turco o movimento separatista do PKK, como um partido político armado de tendência marxista-leninista que luta por estabelecer um Estado soberano curdo no sudeste da Turquia. Com a ditadura militar dos anos 1980, o movimento se radicalizaria. A negativa de diálogo por parte do governo de Ancara levaria o PKK a procurar novas vias para solucionar o conflito étnico-político. O levante armado, declarado em 1984, foi então a forma encontrada para reivindicar a independência. Em 15 anos de conflito, morreriam dezenas
de milhares de pessoas. Em 1997, os EUA – cânones da “democracia” internacional – classificariam o PKK como “organização terrorista” – e, três anos mais tarde, a União Européia teria a mesma atitude. Em 1999, o líder do PKK, Abdullah Ocalan, chamado de “Apo” (tio, em curdo), foi capturado e condenado à prisão perpétua, na ilha de Imrali. Com Ocalan preso, a organização ficaria debilitada. Em
agosto do mesmo ano, parte do PKK declarou um cessarfogo unilateral. Em 2002, o PKK foi rebatizado com o nome de Congresso para a Liberdade e Democracia do Curdistão (KADEK), e assim o conflito passaria ao campo político institucional, fazendo com que muitos combatentes do PKK se refugiassem no sul do Curdistão – em território iraquiano. Um ano mais tarde, em novembro do 2003, um novo no-
me seria adotado – KONGRAGEL. A partir de então, pressões de velhos militantes do PKK formariam uma fração que retomaria a luta armada. O conflito novamente se agudizaria.
Recentes ataques turcos Os recentes ataques do Exército turco tiveram como alvo principal as bases do PKK no norte do Iraque. A agressão desmedida mobilizou mais de 100 mil soldados que, em oi-
Curdistão liberal Já do lado do Iraque, a situação é diferente. Os curdos iraquianos se encontram sob o controle de dois partidos bastante amansados desde a derrubada de Saddam Hussein: o Partido Democrático (PDK) e a União Patriótica (UPK). Ambos desfrutam satisfeitos da alguma autonomia que têm em relação a Bagdá, e contam com o apoio dos Estados Unidos. Cabe lembrar que nesta zona há abundância de petróleo, como é o caso da cidade de Kirkuk (norte do Iraque). (Waldo e Yuri são editores do jornal A Palavra Latina)
Fotos: Yuri Martins Fontes
Uma ponte entre o Ocidente e o Oriente Numa balsa se cruza da Europa à Ásia, pelo coração de Istambul, centro do antigo Império do centro O Brasil de Fato publica texto e fotos do viajante Yuri Martins Fontes sobre a sua passagem pela Turquia. No total, Yuri percorreu 42 países em duas etapas. Ambas por meio de transportes públicos locais, por via terrestre e fluvial. A primeira, no período de 2001 a 2002, da Bolívia ao México. E a segunda, terminada em 2007, com duração de pouco mais de um ano, de Portugal à Índia, cruzando o sul europeu, o norte africano e o Oriente Médio. Yuri Martins Fontes Ponte entre o Ocidente e o Oriente, a Turquia foi berço de algumas das maiores civilizações, desde Tróia aos poderosos bizantinos, e passando pelo imenso Império Otomano. Viajante um tanto alheio às rivalidades atuais, ingenuamente pego o trem na famosa Tessalônica, norte grego, rumo à região da fronteira leste. Desço na Estação de Pítio, a 30 km do território turco, na esperança de uma conexão ao país vizinho. O povoado, além da Estação, se compõe de cinco casas aparentemente vazias, e um rancho acima do morro vizinho, donde de ouve o ladrar de alguns cães. Além dos animais, os outros seres vivos da vila-fantasma eram o chefe ferroviário, seu secretário e o dono do bar. - Senhor, por favor, como faço pra chegar à Turquia? - Só tomando o trem internacional que vem de Atenas, pela noite. Eram 6h da manhã, e insisto: - Mas deve haver um outro meio... É tão perto... nem que
seja preciso ir a pé... – ao que o chefe, no melhor estilo do mal-humor europeu, me responde num tom entre o jocoso e o ríspido: - Você está na Grécia, meu amigo, não na Turquia. Não tem ônibus, não há trem local e não é permitido ir a pé. Se está com bastante dinheiro, vá a pé até a próxima cidade, uns 20 km adiante, e tome um taxi! Está entendido? E agora me deixe trabalhar – e então o sujeito voltou a não fazer nada, conforme antes da minha interrupção, e eu me resignei a esperar calado.
Conflitos regionais Desde a Trácia – pequena, mas populosa porção européia – até a Anatólia asiática, os turcos não se entendem bem com seus vizinhos. Alguns destes múltiplos conflitos são atuais obstáculos à integração do país na Comunidade Européia, como os que abrangem especialmente a Grécia e a Armênia. Mas há também os casos da Bulgária, Curdistão, Síria, Irã e Iraque, só para citar os mais clássicos. Com os gregos, o problema
Do continente europeu, homem observa Istambul; ao lado, estátua em Ancara (capital turca) homenageia o líder Ataturk
territorial é tão longo quanto a antiga história destes povos. O incidente mais recente diz respeito à invasão, em 1974, da ilha de Chipre – país de maioria grega – com a conseqüente fundação da República Turca do Chipre do Norte, só reconhecida pela própria Turquia invasora. Já a dilacerada Armênia – a mais oriental nação européia, e outrora país de grande território – foi palco de um dos maiores genocídios históricos promovidos pelo Império Turco-Otomano – aliado à Alemanha, na época da primeira guerra. Foram exterminados cerca de 1 milhão de armênios, e embora o fato tenha se dado sob o governo otomano, a atual República da Turquia não reconhece o massacre. Há poucos anos, inclusive, a França curiosamente determinou que todo aquele que negasse o genocídio armênio estaria incorrendo em crime perante o Estado francês. Nada contra a lei, a curiosidade reside somente no fato de que a mesma França, através de sua poderosa Legião Estrangeira, exterminou mais de 2 mi-
lhões de argelinos entre 1954 e 1962, mas se nega a classificar sua própria brutalidade de genocídio, visto que, segundo o linguajar da intelectualidade franco-acadêmica, não houve a intenção de limpeza étnica, mas apenas de subjugar rebeldes. E haja rebeldes...
O fim da Europa Mas, à parte das contradições da História – ou dos historiadores – segui meus passos no trem noturno da Grécia à Turquia, chegando a Istambul já com a noite avançada. Embora jamais seja recomendável chegar a uma cidade com mais 16 milhões de habitantes pela madrugada, a estação era central, e o Centro, tão antigo como turístico, era bem iluminado. Havia abundante opção de albergues entre os quarteirões do morro, que começa no Estreito de Bósforo, fronteira natural da Eurásia, e sobe rumo ao impressionante Palácio de Top-Kapi – com seu harém de mais de 300 quartos e concubinas – passando mais adiante pela lendária e brilhante Mesquita Azul. Cosmopolita, e de uma be-
leza diversificada, que mescla o orientalismo ao ocidentalismo, Istambul marca a lembrança por suas pontes ligando os dois continentes, pelos bazares labirínticos com aromas das especiarias, pelo chápreto que se toma a cada esquina, ou pelas centenas de mesquitas – mas também há igrejas e sinagogas – onde cinco vezes por dia se ouvem os cantos que convocam os muçulmanos à parada das atividades e à reflexão de alguns minutos. Nem no Cairo, nem nas Arábias o canto é tão melodioso como o que se escuta nesta imponente metrópole, antiga Constantinopla – centro da civilização greco-européia por muitos séculos. Após Istambul, Ancara me pareceu comum e cinzenta. Da capital, rumei logo à região centro-leste – vizinha ao tenso território do Curdistão – onde, na Capadócia, pude contemplar as famosas cidades cujas casas foram construídas escavadas em rochas. Daí, parti à fronteira síria, repleta de soldados, arames farpados e minas – que, se-
gundo me informaram, serve para impedir o contrabando dos baratos produtos árabessírios para o europeizado e valorizado mercado turco.
Curdistão não E por falar do Curdistão, cabe aqui uma digressão final, para rememorar outra curiosidade geopolítica. Apesar de o povo curdo ser a maior nação sem terra do mundo – seu território é fatiado entre as várias nações vizinhas, desde o início do século 20 –, sua luta pela independência não é reconhecida pelos impérios chamados “democráticos”. Ao contrário dos protestos libertários em prol do Tibete – que não parecem visar tanto a paz turístico-budista, mas antes ferir o gigante concorrente chinês – nem os EUA, nem a União Européia apoiam o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, de tendência socialista). Classificam seus guerrilheiros, inclusive, de terroristas. E assim, naturalmente, estas grandes potências mantêm mais facilmente o controle da região, centro de um mar de petróleo.
Movimentação no centro de Ancara; ao lado, loja de tapetes; e o famoso chá-preto tradicional, em bazar de Kaiseri, cidade vizinha à Capadócia
de 3 a 9 de abril de 2008
11
américa latina
Contra imposto, ruralistas causam desabastecimento na Argentina Juan Mabromata/AFP
LOCAUTE Estradas foram bloqueadas depois de aumento de impostos sobre a exportação de soja e girassol; classe média faz “panelaço” em Buenos Aires Prensa de Frente da Argentina HÁ MAIS de 20 dias que, no campo argentino, quatro grandes entidades agropecuárias iniciaram um locaute patronal em protesto contra o aumento dos impostos decretado pela presidente Cristina Fernandéz Kirchner. Com mais de 300 bloqueios de estradas – conhecidos como “piquetes” – em todo o país, os grandes grupos exportadores, principais ganhadores do modelo nos últimos anos, encabeçaram o desabastecimento, exigindo que o governo nacional retrocedesse em sua medida. Durante esses dias, nas principais cidades do país, foram realizadas marchas a favor do campo, que congregaram os estratos mais altos da sociedade, e contramarchas realizadas por organizações pertencentes ao arco oficialista. Um fenômeno complexo, que vai além de um enfrentamento entre os setores agropecuários e o governo nacional, tal qual insistem em apresentá-lo os grandes meios e a própria presidente Cristina Kirchner, instalando uma leitura polarizada que não explica o todo dos acontecimentos.
O projeto kirchnerista Antes do conflito e após cinco anos de crescimento econômico contínuo, o projeto do casal Kirchner navegava por águas relativamente calmas, exceto pelo índice inflacionário ascendente. Baseados em suas alianças com os grandes grupos monopolistas exportadores, priorizando a arrecadação para pagar a dívida externa e gerando uma boa quantidade de novos empregos em condições de absoluta precariedade, havia conseguido frear e isolar qualquer projeto opositor pela esquerda. Agregando a uma efetiva política econômica discursos progressistas e designações ministeriais, o kirchnerismo conseguiu, de um lado, revitalizar e conduzir a estrutura do velho Partido Justicialista (PJ), que governa a maioria dos distritos desde o regresso da democracia; e, por outro, cooptar os dirigentes de boa parte das organizações nascidas no calor das lutas contra o neoliberalismo, nos anos de 1990, juntamente em oposição ao PJ. A medida de aumentar os impostos viria a dar ao governo uma margem maior de arrecadação, ante a uma latente escalada dos preços.
Com a desculpa do “apoio ao campo”, uma boa parte da classe média urbana destilou sua nostalgia pela ditadura e os bons tempos do ultraliberalismo, seu racismo e seu ódio de classe e seu medo da latinoamericanização da Argentina Interesses corporativos As organizações rurais em conjunto consideraram o aumento dos impostos sobre as exportações – principalmente no que diz respeito à produção de soja –, uma “medida confiscatória” por parte do governo e, mediante o uso da força, tentaram suspender a decisão do Executivo durante 90 dias para negociar. Frente ao endurecimento de ambos os setores – as entidades agropecuárias mantiveram os cortes no abastecimento e o governo condicionou o diálogo ao levantamento dos mesmos –, o desabastecimento de diferentes produtos alimentícios começou a ser sentido em todo o país: a falta de carne, leite, azeite e frutas fez com que os preços subissem estratosfericamente nos poucos estabelecimentos nos quais sobrava mercadoria. Mantendo os preços internacionais das commodities, do primeiro trimestre deste ano, ainda que com o aumento dos impostos de 35% a 44% imposto pelo governo, o nível de ren-
tabilidade dos grandes grupos exportadores será 38% superior ao do ano passado. Os níveis de rentabilidade alcançados por este setor nos últimos sete anos foi se incrementando notavelmente. A negação aos impostos por parte dos ganhadores da soja, seus mais fiéis aliados até ontem, desencadeou uma série de diversos enfrentamentos em que o governo reagiu muito tarde. O discurso de esquerda, com o qual os Kirchner maqueiam sua política, mostrou seu limite mais duro.
Reagrupamentos da direita Em 25 de março, depois de um inflamado discurso da presidente contra a medida rural, os bloqueios das estradas se endureceram ainda mais, desrespeitando a condução inicial, ao mesmo tempo que os os vizinhos dos bairros mais abastados da cidade de Buenos Aires saíram às ruas com panelas nas mãos, evocando – mesmo com os motivos, as pessoas e o contexto distintos – as marchas de dezembro de 2001, que culminaram na queda do governo de Fernando De La Rua. Com a desculpa do “apoio ao campo”, uma boa parte da classe média urbana destilou sua nostalgia pela ditadura e os bons tempos do ultraliberalismo, seu racismo e seu ódio de classe e seu medo da latinoamericanização da Argentina. A crise, inesperada, surpreendeu a presidente menos de 100 dias depois de ter assumido. Os líderes da oposição, Mauricio Macri e, sobretudo, Elisa Carrió, conseguiram ampliar seus níveis de crítica ao governo, acentuando seu discurso sobre a baixa qualidade institucional e comparando forçadamente a Argentina com a Venezuela de Chávez ou a Cuba castrista. Nunca antes haviam podido articular discursos com níveis de alcance nacional tão amplos. Porta-vozes eclesiais manifestaram publicamente seu descontentamento com o governo e, pela primeira vez em cinco anos, apareceram fissuras na estrutura partidária oficial, as quais se somaram integrantes do Partido Justicialista, a quem os Kirchner substituíram, tal como o caso do ex-presidente Eduardo Duhalde. Movimentos sociais O Movimento Nacional Camponês Indígena propôs, através de um comunicado da imprensa, “redefinir as estratégias de desenvolvimento em função da agricultura camponesa indígena, do pequeno agricultor que vive em sua propriedade, do trabalhador rural”. “Os piquetes agropecuários têm mostrado uma prepotência e virulência nunca vista. Não há nenhum tipo de ética. Quem pode lançar comida nas estradas quando há milhares de pessoas que não têm o que comer? Quem pode tirar o leite e os cereais? Os latifundiários que hoje dizem defender o país são os mesmos que defenderam o modelo da soja e a Monsanto a ferro e fogo. Há que se mostrar sinceridade. Qual é o uso dos impostos? Nós propomos que estejam a serviço dos pequenos agricultores, dos camponeses, dos indígenas” explicou Ángel Strapazzón, do Movimentos Camponês de Santiago del Estero, da Via Campesina. Entretanto, a Frente Popular Darío Santillán – movimento social e político de caráter autônomo – expressou que “enquanto as entidades oligárquicas defendem seus privilégios sem se importar com nada mais, vemos o governo, que, ainda que tendo decido sustentar a disputa pela porcentagem dos impostos com estas entidades “do campo’’, não questiona o modelo em que se sustenta a exploração agropecuária, e faz deste seu principal sustento de arrecadação, ignorando qualquer proposta de redistribuição da riqueza, que resultaria possível se o povo fosse chamado para discutir o destino da arrecadação”. Dentre os partidos políticos de esquerda, as posições foram diversas. O Partido Comunista Revolucionário e vários agrupamentos trotskistas, por exemplo, apoiaram e aderiram ao locaute patronal, tentando capitalizar, de maneira altamente pragmática, toda a luta contra o governo.
Jovens argentinas participam de panelaço promovido pelas classes média e média alta do país, no dia 25 de março
“A Praça de Maio é do povo e não da oligarquia”, diz taxista Igor Ojeda e Tatiana Merlino de Buenos Aires (Argentina) De repente, na Avenida del Libertador, o buzinaço. “Casamento?”, estranhamos. “Comemoração futebolística?”, cogitamos. Saímos da avenida e seguimos andando, procurando uma famosa casa de empanadas nas redondezas. Umas quadras mais e... Pen! Pen! Pen! Pen! “Panelaço????”. Mais um presidente argentino (uma, no caso) que iria cair? Era terça-feira, 25 de março. Estávamos entre o Barrio Norte e a Recoleta, duas das regiões mais chiques de Buenos Aires. Perguntamos a um porteiro de prédio o que era tudo aquilo, mas ele não soube explicar direito. Disse apenas que era contra a presidente e que deveríamos passar longe da Praça de Maio, pois lá o negócio ia ser feio. “A Praça de Maio é do povo, e não da oligarquia”, ouvimos de um taxista indignado na noite do dia se-
guinte, quarta-feira, enquanto caía uma chuva fininha do lado de fora. Pois era isso mesmo. O protesto era promovido por setores da classe média e classe média alta portenha, contra o aumento de impostos para exportação de produtos agrícolas, definidos pela presidente Cristina Kirchner. Apoiavam os grandes produtores rurais, que realizavam um locaute há quase duas semanas. E queriam se manifestar justamente na célebre Praça de Maio, freqüente palco de mobilizações populares, como a de dias antes, no aniversário de 32 anos do golpe militar. O que ficava evidente, ao caminhar pelas ruas dos bairros da elite portenha, era que o “panelaço” e “buzinaço” não partiam de desempregados, camponeses ou qualquer outro setor desfavorecido. Os manifestantes que tomaram as ruas com panelas na mão e cartazes que diziam “apoio ao campo” ou “sem o campo, a Argentina não é nada” eram casais, grupos de amigos, famílias, todos bem vestidos. Os sons de buzina vinham de carros caros;
os gritos, de janelas e varandas dos apartamentos elegantes e das esquinas de ruas com lojas sofisticadas. A charge de capa do jornal argentino Página 12, publicada no dia 29, ilustra perfeitamente a situação. Duas mulheres batendo panelas, que, pelo corte de cabelo, e pelas roupas, supõe-se serem de classe média alta. Uma delas diz: “Ai, querida, se eu soubesse que isso de protestar era tão divertido, teria começado nos anos de 1970”. Foi justamente essa a impressão. Estavam brincando de manifestação, de panelaço. “Esse protesto é patético”, continuou nosso taxista, praticamente com as veias da testa saltando. “Vocês podem ver como isso só está ocorrendo em Palermo, Barrio Norte e Recoleta”, completou. Menos mal que estávamos hospedados em San Telmo, bairro de classe média baixa, com seus lixos na rua, algumas casas caindo aos pedaços, um ou outro pedinte e onde não ouvimos um único “batucar” de panela.
Não confundir camponeses com latifundiários Adolfo Pérez Esquivel A greve agrária na Argentina, que já dura mais de 20 dias, é utilizada por setores golpistas para desestabilizar o governo e seguir explorando o povo com total impunidade. Os impostos que o governo impõe sobre as exportações possibilitaram diversas leituras e contradições, que, provocando confusão, gerou os protestos realizados pelos setores do campo. É necessário diferenciar se estes grupos estão juntos e decididos a desestabilizar o governo ou têm suficiente clareza para se diferenciar na luta e nas reivindicações. Lembro de uma pequena história que diz: “O ladrão corre para o Leste e a polícia corre para o Leste. Os dois correm para o Leste, mas com intenções diferentes”. Os produtores agropecuários nunca tiveram tantos lucros como nos últimos anos, beneficiando-se com a política de câmbio e as exportações de soja e girassol. Os indicadores são eloqüentes e concretos. Contudo, é necessário fazer uma análise dos custos que essa atividade tem para o país, sua rentabilidade e concentração de riqueza em poucas mãos. As grandes corporações agropecuárias, as transnacionais, destruíram e queimaram milhares de hectares de bosques, apropriando-se de grandes extensões de terra, para plantar soja transgênica. Utilizam agroquímicos altamente tóxicos sem se importar com as conseqüências para o meio ambiente e a vida da população.
Recuperação econômica Por outro lado, as contradições do governo não são poucas, mas é necessário reconhecer que foram da-
dos alguns passos importantes para a recuperação econômica, e isso é positivo. O saque a que foi submetido o país durante a crise de 2001 foi um golpe de Estado econômico, levando ao exterior os capitais e levando ao fechamento de fábricas, desabastecimento, aumento do desemprego e da pobreza, provocado por capitais financeiros e pelo sistema bancário, que buscaram o esvaziamento do país sem se importar com as conseqüências sociais. Setores da chamada “classe média acomodada” saíram estes dias em “apoio ao campo”, com a panela de aço inoxidável e a colher de prata para apoiar a greve agrária. Muitos já julgaram que a falta de memória é um mal superado. Esqueceram-se que a classe média acomodada sempre acreditou estar a salvo do caos do país. A realidade lhes demonstrou que o capital financeiro não tem amigos, tem interesses. Essa mesma classe média que também foi vítima do esvaziamento econômico e perdeu seus recursos e economias depositados nos bancos. É necessário recordar disso neste momento, e lembrar hoje, também, que ninguém se diz responsável por esta situação e, lamentavelmente, a impunidade continua. O governo precisa assumir que se equivocou ao colocar os impostos de forma indiscriminada, por igual, não diferenciando os pequenos e médios produtores rurais, que são a maioria. Muitos destes têm sérias dificuldades em sua produção e suas terras estão hipotecadas. O governo se equivocou ao julgá-los com a mesma vara com que mede as grandes corporações e os latifundiários, que têm lucros exorbitantes que tiram do país e que não estão dispostos à redistribuição da riqueza. Reitero, estamos frente à histó-
ria do ladrão e da polícia, em que os dois correm para o Leste, mas com intenções diferentes.
Diálogo A presidente Cristina Fernández Kirchner pediu que acabem com a greve para dialogar e encontrar uma saída ao conflito. É uma medida prudente que os produtores rurais não podem deixar escapar. O diálogo é o caminho para se encontrar soluções. O governo não pode voltar a se equivocar e tem que diferenciar o camponês do latifundiário. Não pode permitir nem se deixar arrastar pelos golpistas, para que provoquem um enfrentamento entre trabalhadores. Há momentos na vida que o ensino é duro, mas se aprende. Os camponeses lutam por seus direitos e resistem na esperança de poderem um dia viver com dignidade e recuperar a soberania nacional, hoje ameaçada pelos grandes interesses econômicos, que se negam a redistribuir a riqueza. O governo deve ter políticas claras e coerentes entre o dizer e o fazer. Hoje estão vendendo o território nacional, devastando suas riquezas e empobrecendo seu povo. Os impostos são necessários, não somente ao setor agropecuário, mas também às empresas de mineração e petroleiras. Para isso, são necessárias políticas públicas a fim evitar a exploração irracional e recuperar a soberania perdida. Os impostos devem dirigir-se corretamente para construir o país que queremos. Fica um grande caminho a percorrer, que é necessário assumir entre todos e todas. Adolfo Pérez Esquivel é Prêmio Nobel da Paz.
12 de 3 a 9 de abril de 2008
cultura
Festival de teatro reúne 500 mil pessoas em Bogotá Divulgação
COLÔMBIA Festival Iberoamericano de Teatro atrai público com celebrados grupos internacionais e teatro de rua Camila Moraes de Bogotá (Colômbia) EM MEIO a acusações quase que diárias da Colômbia aos governos do Equador e da Venezuela, e de réplicas não menos agressivas, Bogotá viveu, em 17 de março, dias de puro teatro, apesar da grave crise diplomática internacional. A cidade recebeu o Festival Iberoamericano de Teatro, um dos mais importantes do mundo, que celebrou seus 20 anos de história com 650 apresentações, em salas e ruas, de grupos clássicos, de vanguarda, de dança e de música de 45 países dos cinco continentes. O festival foi inaugurado no dia 7 de março, logo após a marcha contra os paramilitares e a parapolítica, que encheu as ruas da capital (veja reportagem em www. brasildefato.com.br). Segundo o programador do evento, Wilson León García, “este ano, o Festival desenvolveu espetáculos em formato pequeno, calculados para um público entre mil e du-
as mil pessoas; médio, para umas cinco mil; e grande, para uma assistência ao redor de 80 mil”. No entanto, o público superou as projeções. “Chegavam cinco mil pessoas quando a obra era para mil, e entre 12 e 15 mil para peças de cinco mil”, acrescentou. Mas o pico da superlotação foi mesmo no encerramento, que aconteceu no Parque Simon Bolívar, utilizado para os vários eventos públicos de entrada gratuita que acontecem em Bogotá, como o famoso Salsa al Parque. Quase 500 mil espectadores estiveram presentes na apresentação Um pouco mais de luz do Grupo F, uma das companhias de pirotecnia mais importantes do mundo – importada da França junto com os 567 quilos de fogos de artifício que iluminaram Bogotá na noite de 23 de março.
Atrações internacionais Foram vários os destaques da programação. Como convidado especial deste ano, o Reino Unido compareceu com uma obra de Shakespeare, Cimbelino, executada pela
Cena do espetáculo Les Tambours de Feu (Tambores de Fogo), do grupo espanhol Deabru Beltzak
prestigiosa Royal Shakespeare Company e pelo Kneehigh Theatre, sob direção de Emma Rice. Entre os espetáculos circenses, foram especialmente aplaudidos o Circo Eloize, do Canadá, em co-produção com o Teatro Sunil, da Suíça, o grupo africano Baobab, o Circa, da Austrália, o Circo
da Madrugada, da França e o Déjà Vu, da Colômbia. A Casa de Bonecas, de Mabou Mines, dos Estados Unidos, uma peça somente com atores anões, esgotou em poucos dias seus ingressos, assim como a montagem de Macbeth, do Düsseldorf Schauspielhaus, da Alemanha, o grupo Apostolia Pa-
padamaki, da Grécia, e a Missa Flamenca: os ciganos cantam a Deus, da companhia espanhola Tito Losada. Do Brasil, veio Gaivota – Tema para um conto curto, montagem da obra de Anton Tchekhov, dirigida por Enrique Diaz, que colheu ótimas críticas depois das apre-
sentações em São Paulo e no Rio de Janeiro e também comoveu os críticos de Bogotá (“Gaivota” foi uma das seleções de imperdíveis da Arcadia, a principal revista de cultura colombiana). Dos shows e concertos que também marcam o festival, a apresentação mais concorrida ficou a cargo da mexicana Lila Dows, com músicas inspiradas nos antigos códigos indígenas do México, boleros, rancheras (originalmente mexicanas, mas muito ouvidas na Colômbia) e canções populares de Oaxaca (a cidade de origem da cantora), em que Downs evidencia seu compromisso político e social. O encontro lotou a área de shows da “Cidade Teatro”, montada em um espaço permanente de feiras da cidade, com atrações que reuniram 35 mil pessoas diariamente. Porém, entre os colombianos – tão reunidos ao redor do teatro nesta ocasião, como em poucos países se vê –, o grande espetáculo foi mesmo na rua, em 32 espaços públicos, com grupos de países como França, Chile, Espanha, Bélgica, Itália, Polônia e República Dominicana, e entrada 100% grátis, em contraposição aos altos preços dos ingressos para assistir às peças (leia mais sobre o festival em: www. festivaldeteatro.com.co).
ANÁLISE Reprodução
Março de 1968: 40 anos depois Rodrigo Valente Há quarenta anos, em 28 de março de 1968, era assassinado pela ditadura militar o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto. O jovem, de apenas 17 anos, foi morto com um tiro no peito quando participava de uma simples manifestação pela reabertura do restaurante universitário O Calabouço, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Revoltados, os estudantes ocuparam a Assembléia Legislativa para velar o corpo e, no dia seguinte, realizaram, em conjunto com diversos setores sociais, um gigantesco protesto durante o enterro. Mais de 50 mil pessoas participaram do cortejo fúnebre, à época só comparável aos de Getúlio Vargas e Carmem Miranda. Se o movimento estudantil já estava articulado e promoveu importantes manifestações desde 1966 – como, por exemplo, a chamada Setembrada, em São Paulo – o assassinato de Edson Luís potencializou essa insatisfação e fez eclodir as maiores e mais vigorosas manifestações abertas de repúdio à ditadura desde sua implantação, em 1964. As principais cidades do país foram tomadas por passeatas contra a violência e a falta de democracia. O assassinato de Edson Luís funcionou como se mais combustível houvesse sido derramado sobre uma chama que já se encontrava acesa.
O turbilhão político 1968 é um marco na luta por liberdades em todo o mundo. A ofensiva do Tet, no Vietnã, as revoltas estudantis na França, a primavera de Praga, na antiga Tchecoslováquia, o movimento por direitos civis nos Estados Unidos são apenas os episódios mais conhecidos. O mais impressionante de 1968 é que, apesar de haver uma sinergia política entre os diversos acontecimentos, cada um tinha suas causas e contradições próprias. Não é plausível dizer, por exemplo, que a França tenha tido influência direta sobre os estudantes brasileiros.
Aliás, parte importante do mito criado em torno de 1968 reside exatamente no fato de que, em um curto período de tempo, vários movimentos de massa, particularmente dirigidos pela juventude, tomaram de assalto tantos lugares em tão distantes partes do globo. Dos Estados Unidos ao Japão, da Europa Ocidental à Oriental, da América Latina à China e Sudeste asiático, todos foram sacudidos pelo turbilhão político da época. Até hoje se tenta explicar o que exatamente aconteceu naquele ano, sem que se obtenha uma resposta definitiva. Entretanto, é consenso que rupturas profundas nos valores, no comportamento, na moral sexual e nos direitos civis aconteceram naquele período. A partir de 1968 , a revolução de costumes, que já vinha se impondo durante a década de 1960, se consolidou em definitivo. As transformações foram tão fortes que as velhas formas de se comportar, de se vestir, de se expressar artisticamente foram rapidamente transformadas em artigos de museu. Não há dúvidas de que o mundo, após atravessar 1968, não era mais o mesmo. Na realidade, os desdobramentos daquele período estão em andamento até os dias de hoje. O movimento feminista dos anos 1960 ainda não realizou todas as suas aspirações, e o mesmo pode-se dizer do movimento negro ou por direitos civis. Mas é certo que foram realizadas rupturas com várias formas de autoritarismo. Destaco pelo menos a mudança significativa na relação entre pais e filhos, entre marido e esposa (ou namorado e namorada) e entre professor e aluno. Hoje tais relações são tratadas com muito mais igualdade. Em um país da periferia do capitalismo, como é o Brasil, todas essas mudanças se deram claramente de forma mais lenta e gradual, e não se concretizaram da mesma forma que na Europa Ocidental. A longa duração da ditadura fez com que muitas conquistas fossem interrompidas ou pelo menos atrasadas. Ainda
hoje escutamos os ecos das reivindicações de 1968 e muitas delas ainda estão distantes de nossa realidade.
O movimento estudantil O ano de 1968 marcou o auge do descontentamento social com a ditadura, particularmente dos setores médios urbanos. Em 1964, a chamada classe média, apesar de dividida, apoiou em sua maioria o golpe, influenciada pela crise econômica e pela propaganda anticomunista. O aprofundamento da recessão econômica e o fechamento político do regime foi aos poucos levando esses setores para a oposição. Os estudantes – filhos daquela classe média – seguiram o mesmo caminho. De forma diferente dos sindicatos combativos, dos partidos de esquerda e das Ligas Camponesas, imediamente após o golpe, o movimento estudantil sofreu uma perseguição menos implacável, mesmo com o incêndio da sede de sua entidade de representação nacional, a União Nacional dos Estudantes (Une), no Rio de Janeiro, promovido pelos golpistas. A Une, apesar de colocada na ilegalidade, já em 1965 estava reorganizada em todo o país, e legitimida pelos estudantes.
Em 1968, as entidades estudantis – Une, UEEs (uniões estaduais de estudantes), centros acadêmicos, grêmios e outras entidades de secundaristas etc. – lançam uma grande ofensiva contra a ditadura. Aquele movimento que fermentava e crescia nas universidades e escolas, agora saía mais uma vez às ruas das principais cidades. A própria sociedade passou a reconhecer os estudantes como representantes e porta-vozes de sua oposição ao regime. Seguidas manifestações, ocupações de faculdades e universidades, greves e passeatas mostravam que os estudantes estavam cada vez mais organizados e radicalizados. Os líderes e suas bases rompiam com a política tradicional. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), de orientação pró-soviética, em pouquíssimo tempo perdeu sua influência junto à juventude, que criticava sua passividade frente ao golpe. Em sua maioria, os dirigentes estudantis pertenciam à Ação Popular (AP) – com origem na esquerda católica –, a dissidências de esquerda do PCB, e a outros agrupamentos surgidos àquela época, nos quais se misturavam trabalhistas, nacionalistas e marxistas de diversas nuances, corren-
tes livres de responsabilidade frente ao fracasso do projeto levado pelo Governo João Goulart e que, por isso, logo se legitimaram. As maiores mobilizações de massa ocorreram em junho, quando foi organizada, no Rio de Janeiro, a conhecida Marcha dos 100 mil. Repetindo o acontecido no enterro de Edson Luís, vários setores se uniram aos estudantes para realizar o protesto, desta vez ainda maior. Professores, intelectuais, artistas, mães e pais de alunos, sindicalistas, religiosos aderiram à passeata. A Marcha dos 100 mil foi realizada sem incidentes e representou o auge do protesto de massa contra a ditadura, em 1968. Manifestações de mesma proporção aconteceram em outras cidades, especialmente nas capitais.
Limites do movimento No início do segundo semestre, o movimento estudantil parecia reflorescer em todo o país. Paralelamente a isso, crescia também a escalada da respressão. Muitos confrontos são registrados em todo Brasil, resultando em presos, feridos e até mortos. Episódios como a Sexta-Feira Sangrenta, no Rio de Janeiro; a invasão da Universidade de Brasília; e a Batalha da Maria Antônia, em São Paulo, mostravam que as condições de luta estavam muito mais difíceis, e setores da sociedade que ainda se encontravam desorganizados passam a refluir em sua participação e apoio público às manifestações. Sem um amplo movimento dos trabalhadores, que naquele ano realizaram duas grandes greves – em Osasco (SP) e Contagem (MG) – mas que foram imediatamente reprimidas, seria impossível derrubar a ditadura. Os movimentos sindical e camponês ainda estavam debilitados ou em processo inicial de acúmulo de forças, desde que suas organizações foram invadidas, colocadas sob intervenção, ou simplesmente destruídas pelos golpistas, como o caso das Ligas Camponesas. Em outubro, com a queda da 30° Congresso na Une, em Ibiúna (interior de São Paulo), mais de 700 lideranças e dirigentes estudantis acabaram presos, o que debilitaria ainda mais o movimento. Em 13 de dezembro de 1968, o governo do generalpresidente Arthur da Costa e
Silva decretou o Ato Institucional Número 5 (AI-5). As últimas liberdades democráticas foram suprimidas, e o país entrou em um de seus períodos mais sombrios. A violência política praticada pela ditadura após o AI-5 impossibilitava de imediato a organização ou manifestação de qualquer movimento de oposição. Porém, não foi apenas a repressão que fez refluir o movimento estudantil de 1968 . Com grande parte de seus dirigentes e líderes estudantis obrigados a atuar na clandestinidade, pressupondo a inviabilidade de continuar construindo um movimento de massas, parte significativa das organizações às quais estavam ligadas essas lideranças acabou optando pelo confronto armado imediato. A avaliação de que seria possível, naquele momento, derrubar a ditadura pelas armas era enganosa, e aquela entrega generosa à luta até as últimas conseqüências acabou por se mostrar desastrosa do ponto de vista da política. Nos anos seguintes, muitos daqueles jovens que protagonizaram nas ruas a resistência à ditadura acabaram mortos em combate ou assassinados nos porões da repressão. Aquele vigoroso movimento estudantil surgido em 1968 estava debelado.
Há um legado de 1968 ? Apesar de derrotado em seu objetivo principal de derrubar a ditadura, o movimento estudantil de 1968 também obteve vitórias. Concretamente, a universidade pública continuou existindo em nosso país, e muitas de suas reivindicações acabaram em parte conquistadas nas décadas seguintes. Além disso, a ditadura, mesmo que tardiamente, foi derrotada, e hoje é objeto de escánio e de condenação pública. Os ideais daquele movimento estudantil que floresceu no país em 1968, mesmo que brutalmente interrompidos por alguns anos, puderam renascer na segunda metade da década de 70, em uma nova geração de estudantes, na reorganização do movimento operário e camponês, na redemocratização e em outros belos momentos políticos vividos pelo Brasil a partir da segunda metade dos anos 1970. Rodrigo Valente é jornalista e estudante de história