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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 269

São Paulo, de 24 a 30 de abril de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

O dia 20 de abril de 2008 ficará marcado na história do Paraguai como o dia em que o Partido Colorado – agremiação do ditador Alfredo Stroessner – deixou o poder após 61 anos de dominação política. O ex-bispo Fernando Lugo, candidato pela APC (Aliança Patriótica para a Mudança, na sigla em espanhol), foi eleito com pouco mais de

40% dos votos, obtendo dez pontos percentuais a mais que Blanca Ovelar, sua principal adversária. Pedro Carrano, enviado especial a Assunção, informa que o desafio do novo governo agora é não se afastar do movimento popular, que construiu a candidatura de Lugo em meio aos diversos grupos políticos que fazem parte da APC. Págs. 2 e 9

Adriana Franciosi/Agência RBS/Folha Imagem

Com apoio dos movimentos populares, Lugo vence no Paraguai

Tekojoja se faz de “baixo para cima” O Movimento Popular Tekojoja (que significa “viver entre iguais”, em guarani) surgiu em 2006 a partir da inquietação de intelectuais, militantes e dirigentes de movimentos. De acordo com Joaquín Bonett, a organização do Tekojoja se faz de “baixo para cima”. O programa do movimento, que veio a organizar a plataforma da APC, nasceu de uma síntese chamada ñemongueta guazu (“grande diálogo

com o povo”), assembléias massivas organizadas em cada rincão do Paraguai. O Tekojoja organizou células que começavam nos bairros, estendiam-se até os distritos (cidades), e então para os departamentos (Estados). O primeiro recorrido levantou as demandas da população. O segundo levantou a pergunta sobre como fazer e como transformá-las em uma plataforma de poder. Pág. 9

Fernando Lugo e eleitores comemoram a vitória que acabou com 61 anos de hegemonia do Partido Colorado

Metade da nova reserva de petróleo já está destinada às transnacionais As recentes declarações de Haroldo Lima, diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), dão conta de que o Brasil terá, na Bacia de Santos, a 3ª maior reserva de petróleo do mundo. No mercado financeiro, as ações da Petrobras dispararam. Já os movimentos sociais trataram de ressaltar a

importância de retomar o controle nacional do petróleo. O engenheiro Paulo Metri afirma que a Petrobras poderá explorar apenas 45% da reserva Carioca, qualquer que seja seu tamanho, enquanto as transnacionais Repsol (espanhola) e British Gas (inglesa) terão 25% e 30%, respectivamente. Pág. 3 João Zinclar

O alto preço dos alimentos no mundo

Haiti, um país em tensão permanente

A produção em massa de vegetais – como a canade-açúcar – destinados aos agrocombustíveis elimina áreas que poderiam ser utilizadas para produção de alimentos. A afirmação é de Jean Ziegler, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação. O presidente Lula rebateu, dizendo que “o verdadeiro crime contra a humanidade será descartar a priori os biocombustíveis e relegar os países estrangulados pela falta de alimento e de energia à dependência e à insegurança”. Pág. 5

Como se não bastasse a ocupação por tropas da ONU, o preço dos cereais disparou 88% no país desde março de 2007. O arroz triplicou seu preço em menos de uma semana. Claudia Jardim informa que o aumento do petróleo, uma maior demanda de alimentos dos países asiáticos e a pressão para a produção dos agrocombustíveis incidiram nos preços. Para Camille Chalmers, há uma relação de tudo isso com a especulação do mercado financeiro mundial. Pág. 10 Guillaume de CROP

Em Jornada de Luta pela Reforma Agrária, militantes do MST da região de Americana e Cosmópolis marcham para a Usina Ester

Hidrelétricas a serviço do grande Capital

Reforma agrária não é mais pauta do governo brasileiro

Ocupação na UnB questiona democracia

A construção de novas hidrelétricas no Brasil têm, basicamente, um objetivo: assegurar o abastecimento de energia para grandes transnacionais, como Vale e Votorantim. Esta última, por exemplo, seria a grande beneficiária da usina de Tijuco Alto, no Vale do Ribeira, onde a transnacional mantém uma fábrica de alumínio. Pág. 7

O estreitamento dos laços entre o governo Lula e o agronegócio não deixa mais espaço para se pensar na realização da reforma agrária durante o governo petista. A avaliação é de Guilherme Delgado, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e um dos autores do II Plano Nacional de Reforma Agrária,

A ocupação da reitoria da Universidade de Brasília, instituição federal de ensino superior, colocou novamente em pauta a necessidade de modelos de gestão mais democráticos nas universidades públicas. Para a socióloga e professora da Universidade Estadual Paulista Orlanda Pinassi, hoje há uma democracia muito relativa. Pág. 6

engavetado por Lula. “Fica inviável até mesmo administrar os assentamentos existentes, porque as áreas são objetos de cobiça da invasão do agronegócio”, defende. Pág. 4

TRANSGÊNICOS Na França, o Faucheurs Volontaires reúne médicos, escritores, jornalistas e estudantes, além de camponeses. Pág. 12


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editorial À FRENTE da Aliança Patriótica pela Mudança (APC), o ex-bispo Fernando Lugo derrotou 61 anos de permanência ininterrupta do Partido Colorado (de direita) na Presidência do Paraguai. Fato importante e que saudamos, a vitória do ex-bispo Lugo reforça a tendência que vêm manifestando os povos do Continente, de construírem e se alinharem ao lado das propostas de mudanças, de candidatos progressistas e/ou de esquerda. Tendência na contra-mão do que se tem registrado na Europa. Conseqüência importante e também animadora da vitória dos aliancistas paraguaios é que, tendo de enfrentar uma derrota e o subseqüente afastamento do Governo do país, as elites paraguaias, que há gerações não conhecem essa condição, imediatamente após o anúncio, pelo Tribunal Eleitoral, da vitória do candidato da APC, já começaram a trocar insultos entre si. Bom sinal, dupla vitória. Esperamos que o Partido Colorado percorra o mesmo caminho de degradação lenta, gradual, porém segura que trilhou no Brasil a antiga Arena, metamorfoseada em PDS e em seguida em PFL, para hoje – velha e decadente – travestir-se

debate

O Paraguai, ou a direita fora do governo de DEM, cadáver insepulto graças ao esforço inaudito dos tucanos de o arrastarem de palanque em palanque na condição de candidatos a vice-qualquer-coisa. Mas, se para fora, e com relação ao inimigo, a APC deverá aproveitar as dissensões para alimentar a fogueira colorada – internamente, sem dúvida, seu trabalho no sentido contrário será um tanto mais titânico: manter e aprofundar a unidade política de uma frente composta por nove partidos e 20 movimentos populares. Uma costura que exigirá habilidade e paciência (sem perder a firmeza). Sobretudo porque o vicepresidente eleito, senhor Federico Franco, pertence e representa o Partido Liberal Radical, a segunda maior força partidária do país depois dos colorados.

Reformas e Constituinte Em termos de aparelho de Estado, um dos maiores desafios será en-

frentar uma endêmica corrupção e um corpo de funcionários que foi se encastelando em cargos e assumindo ao longo de tantos anos, o controle dos seus diversos mecanismos de funcionamento, e cuja grande maioria ali foi parar sem outro critério de contratação que não o QI (quem indica). E quem indicava era o Partido Colorado. No entanto, o anúncio do presidente eleito, de que convocará uma Constituinte para o próximo ano (2009), é uma acertada decisão, capaz de – entre outros importantes ajustes – resolver, ou pelo menos encaminhar uma solução para o problema acima apontado. Aliás, esses tipos de reformas, ou se faz no primeiro ano de Governo, ou não se faz.

A questão continental A vitória da APC, sem dúvida, fortalecerá – ao lado de políticas levadas a cabo por países como a

Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua e Cuba – um novo perfil que se esboça na América latina. Ainda que pesem nuances (ou até abismos) entre os governos desses países, eles têm desempenhado papel extremamente positivo no Continetne. Para ficarmos em apenas dois exemplos, lembramos o repúdio à Alca e fortalecimento do Mercosul; e a garantia da paz na região e resistência às tentativas de Washington de impor sua política de “guerras preventivas”, “combate ao terrorismo” e “flexibilização de fronteiras”, cuja importância ficou provada na recente crise desencadeada com a agressão das forças de Bogotá contra o Equador. No entanto, há nós fundamentais a serem desatados com os governos de Brasil e Argentina, e que dizem respeito diretamente à questão da “soberania energética” do Paraguai: as hidrelétricas de Itaipu e de Yacyretá. Através da primeira,

crônica

Horácio Martins de Carvalho

A amorosa e solidária jornada de lutas pela reforma agrária AO SE REMEMORAR, no 17 de abril, o massacre de Eldorado dos Carajás, não se busca tão somente a permanente solidariedade às famílias dos trabalhadores e trabalhadoras sem terra assassinados, mutilados e feridos nesse episódio de anos atrás. Nesta data, se reafirma emblematicamente que a luta social pela reforma agrária e por justiça social no campo continua viva e revivificada pelo desprendimento de milhões de famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra e de camponeses e camponesas com pouca terra. Sem dúvida alguma que não bastariam os reclamos e reivindicações formais e burocráticos desses trabalhadores e trabalhadoras perante os governos, iniciativas essas que se fazem no cotidiano. Também já se tornou lugar comum que a classe dominante brasileira e, nela, o agronegócio, é absolutamente reacionária com relação aos interesses e desejos populares, mais ainda aqueles que enfatizam a necessidade de mudanças democráticas e sociais na estrutura fundiária do país. Os interesses do capital e, portanto, da sua reprodução na busca incessante do lucro, não são critérios capazes de balizar a necessidade de reforma agrária no país. Menos ainda o são os interesses e desejos dos grandes e reacionários empresários que constroem a hegemonia dessa classe social. A herança da ‘grande fazenda’ e a mentalidade (que se renova) discriminatória social, étnica e de gênero desses empresários travestidos de modernos apenas ressaltam as manchas éticas que neles permaneceram, da cultura e economia escravagista nas quais o outro, seja o índio, o negro, o branco ou o mulato, foi e ainda permanece um objeto, por vezes elevado à categoria de mercadoria, passível de ser disposto conforme os interesses de seus donos. As ocupações de terras improdutivas ou daquelas que não cumprem a função social disposta em lei; a ocupação de prédios públicos e privados que se tornam referência exemplar da omissão dos governos e da indiferença das empresas privadas perante a desigualdade econômica e social; a ocupação de ferrovias, de postos de pedágio e de agências bancárias; enfim, essas ocupações sempre episódicas e temporárias, são portadoras de uma mensagem sutil, mas vigorosa: o povo pobre e desprovido de possibilidades econômicas efetivas de garantia da reprodução de suas vidas pessoais e familiares, não se deixará morrer à mingua e na subserviência, como faz supor grande parte das políticas públicas e a maior parte das práticas econômicas do empresariado. A luta pela garantia da vida e da sua reprodução com dignidade é, antes de tudo, um gesto de amor. As práticas das lutas sociais, ainda que endurecidas pelos desaforos daqueles que deveriam compreendê-las melhor, é a expressão extremada da amorosidade pelo viver, por essa paixão que a esperança alimenta e que a solidariedade reafirma a cada gesto social.

Marcelo Barros

Saúde e espiritualidade Gama

As famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra que se expõem aos riscos pessoais e familiares que as ocupações podem proporcionar, ainda que não seja essa a intenção dessas iniciativas, estão lutando não apenas pela sobrevivência com dignidade, mas, sobretudo, pela justiça social e a possibilidade de se tornarem sujeitos da sua história, o que uma reforma agrária ampla, massiva e imediata poderia proporcionar. Nessa ação de risco de vida, está entrelaçada, de uma certa maneira, a solidariedade entre as pessoas e as famílias, seja no compromisso com o seu futuro pessoal e com o dos seus descendentes, seja no respeito aos feitos das lutas sociais das pessoas e famílias que os fizeram acontecer num passado que se faz presente, com uma amorosidade sem limite que somente o desprendimento possível de suas vidas em luta pelas vidas de uma imensa massa de trabalhadores e trabalhadoras poderia consagrar. Quando empresas privadas como a Vale, a Syngenta, a Monsanto, a Cargill, a Aracruz, a Votorantim, a HSBC, a Itaú, a Bradesco, a Rede Globo, entre tantas outras que se fazem emblemáticas do comportamento que defende a manutenção da desigualdade social, o atraso cultural das massas, a discriminação étnica e de gênero e a depredação do meio ambiente, quando essas empresas ensaiam criminalizar as ocupações, e reproduzem a ideologia de que esses trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra são terroristas, o que estão acentuando nas suas práticas empresariais e nos discursos políticos é que querem fazer passar aos olhos da opinião pública como lições éticas – supostas no fundo de todas as razões que as iluminam –, é que os interesses das classes populares são antagônicos aos interesses de classe da burguesia. Quando as massas populares desejam melhores condições de vida e de trabalho, e os trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra lutam pela reforma agrária e por seus interesses imediatos setoriais, o que o empresariado vis-

Assunção garante energia a preço de custo para o nosso país, e com a segunda, para a Argentina. E mais, de acordo com os contratos (ainda dos anos de 1960), o Paraguai fica para si com apenas 12% da energia gerada, sendo obrigado a exportar o restante de cada hidrelétrica para, respectivamente cada sócio. Ainda que seja um assunto delicado – e que a grande mídia comercial tenta explorar da forma mais desagregadora possível – parece-nos que os indícios são positivos: não apenas as relações do novo presidente paraguaio com a presidente Cristina Kirchner vêm sendo das melhores, incluindo a presença da representante das Mães da Praça de Maio, Hebe Bonafini, ao lado do candidato da APC durante o dia da eleição, como, da parte de Brasília, temos o precedente do gás da Bolívia que encontrou, através do Planalto e do Itamaraty, uma saída capaz de contemplar as justas reivindicações de La Paz. De todo modo, coerentes com o internacionalismo que pregamos em nossas páginas, o novo presidente e o povo paraguaio sabem que podem contar com a nossa solidariedade para que lhes seja feita justiça.

lumbra, e a ideologia reacionária que os move já o fazem sentir no bolso, que esses pobres do campo e da cidade estão querendo fazer é distribuição social da renda e da riqueza, renda e riqueza que se encontra concentrada nas mãos dos próprios capitalistas. Ora, isso é aviltante para o empresariado. Contraria a ordem capitalista neoliberal das coisas. Ao povo o salário, a bolsa-família ou a misericórdia. Aos ricos, aos empresários capitalistas, o lucro, os juros, a renda da terra, a apropriação privada do patrimônio público, a liberdade de degradação ambiental, o usufruto privado e comercial da natureza, o controle do saber científico e tecnológico, as patentes, a globalização da circulação das mercadorias e dos capitais. Enfim, o aumento continuado da renda e da riqueza nas mãos de poucas e grandes empresas, e a manutenção da desigualdade social, então compreendida pela ideologia dominante como uma determinante histórica. Que bom seria se não fossem necessárias as iniciativas das lutas sociais populares, a Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária, as ocupações, os confrontos sociais e os desencontros. Que bom seria se vivenciássemos uma sociedade socialmente igualitária e mais justa. Que bom seria se a solidariedade e a fraternidade fossem as práticas do nosso cotidiano. Mas, não diria eu que essa seria uma vã utopia, porque quimera. Muito ao contrário, é um mundo que se faz necessário. Quem bom seria se o MST se esvaecesse no ar, porque já não mais seria socialmente necessário. Mas, enquanto isso não sucede, desejo longa vida ao MST, e que a Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária não deixe de salientar as dimensões da amorosidade e da solidariedade que lhe tingem a vida de vermelho, por pulsar em demasia o coração. Horácio Martins de Carvalho é engenheiro agrônomo, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e assessor da Via Campesina

A ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde (OMS) divulgou que, no Brasil, enfermidades vencidas há mais de 50 anos, como a febre amarela, ou controladas, como a dengue, voltam com toda força e, em lugares como o Centro-oeste e no Rio de Janeiro, ameaçam se tornar epidemias. Entretanto, não se trata só do risco de epidemia da dengue ou da febre amarela. A questão mais ampla é saber qual o grau de importância que os governos (federal e estaduais) dão à saúde do povo. Enquanto, no Rio de Janeiro, o Exército monta tendas improvisadas para atender aos doentes de dengue, a população do Estado de Goiás acompanhou com tristeza a demissão do secretário de saúde. Há poucos dias, os jornais noticiavam que, com dificuldade, ele havia conseguido para este ano a verba de R$ 14 milhões, quando o mínimo necessário para enfrentar a crise dos hospitais públicos e do atendimento básico seriam R$ 22 milhões. Os jornais lembraram que os R$ 14 milhões representam um índice inferior à cota prevista na Constituição Federal para a saúde. Esta irregularidade foi publicada pela imprensa e nada mudou. Em todo o país, o que se vê é um sistema sucateado de saúde pública. Enquanto os que podem, recorrem a planos privados, os hospitais públicos continuam super-lotados, quando não fechados. Os médicos que atendem ao Sistema Único de Saúde (SUS) estão insatisfeitos com as condições de trabalho. E os pacientes, principais vítimas, gemem, amontoados pelos corredores, a esperar como favor ou até privilégio o atendimento que, por justiça, seria direito fundamental de todos. Infelizmente, o fato de termos no país 118 faculdades de medicina não promete nenhuma mudança no sistema, pois muitas destas escolas formam profissionais preocupados apenas com sua renda pessoal, e não com o compromisso ético de servir à saúde do povo. A OMS define a saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Se a saúde é este equilíbrio tão perfeito, somos todos doentes, já que, de alguma dor, limitação, fragilidade ou agruras da idade, de um modo ou de outro, sempre se sofre. O que podemos garantir é um conjunto de medidas que evitem doenças e possam proporcionar uma melhor qualidade de vida a todos. Esta saúde preventiva é hoje pensada em pesquisas com o DNA, mas pode ser mais básica e acessível a todos. Trata-se de cuidar da saúde da terra, da água e do ar. Como se falar em direito universal à saúde em um mundo no qual, conforme a OMS, diariamente morrem milhares de crianças, vitimadas por doenças provocadas por falta de saneamento básico. 80% das doenças no mundo ainda estão ligadas ao uso de água imprópria para consumo humano. Um bilhão de pessoas não tem acesso à água potável limpa, e dois bilhões não contam com condições básicas de higiene e saneamento. Neste contexto, como dizer que saúde é direito humano de todos? É claro que a saúde preventiva se alicerça em uma educação que dê a todos condições para evitar doenças como a dengue, que depende de água estagnada e ambientes propícios para o desenvolvimento do mosquito que a transmite. O Ministério da Saúde elaborou uma cartilha a ser distribuída nas escolas e conta com as crianças e jovens para o êxito da campanha nacional contra os focos, nos quais o mosquito se aloja. Entretanto, a educação para a saúde deve abranger a formação de uma cultura do respeito ao outro e do cuidado com a natureza e com todos os seres vivos. Já que não contamos com um adequado sistema público de saúde, em todo o país se multiplicam grupos de saúde popular que resgatam elementos da sabedoria ancestral das comunidades e pesquisam a flora da região para atender às necessidades de saúde das pessoas. Este sistema de saúde alternativo investe no cuidado preventivo com a alimentação, com a higiene e com hábitos saudáveis, elementos indispensáveis para se garantir condições adequadas de saúde. Os agentes deste serviço são pessoas ligadas à espiritualidade (cristã ou das religiões afrodescendentes) e sabem que existe uma íntima relação entre a busca da saúde e o que as religiões chamam de “salvação”. Como recorda Roberto Cremma, entre sanidade e santidade, a única diferença é um t. Assim como a saúde, a santidade consiste na busca da integridade e da unificação interior como resposta ao amor divino e se expressa no cuidado com o outro (humano e todo ser vivo). Em várias línguas, cuidado significa cura. Todo mundo tem alguma experiência de curar e também de ser curado. Só o ser humano pode assumir o cuidado do outro e pode curar e ser curado. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 32 livros.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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Mais da metade do Bloco Carioca já é controlada por transnacionais SOBERANIA Novas descobertas na Bacia de Santos reforçam a idéia de retomar o controle nacional sobre o petróleo Renato Godoy de Toledo da Redação O DIRETOR-GERAL da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Haroldo Lima, anunciou que as descobertas da Bacia de Santos são melhores do que se imaginava e que, com a quantidade de petróleo nessa área, o Brasil terá a 3ª maior reserva do mundo. Segundo essas informações, o Bloco Carioca, na parte fluminense da Bacia, teria capacidade para extrair cerca de 33 bilhões de barris de óleo recuperável. Com a escassez do produto, o barril de petróleo chegou a ser cotado a 120 dólares (ao fechamento dessa edição, dia 22), sendo que a barreira dos 100 dólares foi ultrapassada recentemente. O anúncio gerou vários tipos de reação. Na Bovespa, as ações da Petrobras tiveram uma alta imediata, movida pelo otimismo das novas descobertas. Setores da oposição e da própria base aliada consideraram o anúncio como precipitado. Há quem peça a saída de Haroldo Lima, alegando que ele pode ter beneficiado grupos econômicos com o anúncio. Ao ser interpelado na Comissão de Assuntos Econômicos do Congresso Nacional, o diretor da ANP defendeu-se afirmando que apenas reproduziu informações contidas na revista estadunidense WorldOil. Outra reação partiu dos movimentos sociais que, sem deixar de considerar a notícia uma conquista, ressaltaram a importância de barrar os leilões de petróleo, para que toda a rentabilidade da Bacia

“As empresas estrangeiras não detêm a totalidade da tecnologia necessária. (Elas) grudam na Petrobras para esta última descobrir e produzir nos campos e, depois, elas usufruem de parcela do petróleo produzido. É verdade que elas colocam dinheiro para cobrir parcela do investimento, mas não pagam os extremamente valiosos conhecimento do subsolo brasileiro e tecnologia da Petrobras”, explica.

Quanto

1,8 trilhão

de dólares, a quantidade que o Brasil pode perder se não rever a taxação da exploração petroleira de Santos seja direcionada para o Estado e para a sociedade brasileira.

Preocupação Paulo Metri, engenheiro mecânico e conselheiro do Clube de Engenharia, ao mesmo tempo em que ficou contente com o anúncio, foi tomado por um pessimismo, motivado pelo fato de a maior parte do Bloco Carioca já estar destinada a empresas transnacionais. Ele afirma que a Petrobras poderá explorar apenas 45% da reserva Carioca, qualquer que seja seu tamanho, enquanto as transnacionais Repsol (espanhola) e British Gas (inglesa) terão 25% e 30%, respectivamente. O engenheiro afirma que o petróleo brasileiro, bem como a soberania nacional, ficou vulnerável a partir de 1995, com a emenda constitucional 9, que dá permissão a empresas privadas para extrair petróleo em território brasileiro. Um artigo da lei 9.478/95, redigido após a aprovação da emenda 9, destina a propriedade do petróleo à empresa que o encontrou e o produziu. “Com essa lei, o Brasil perde parcela da soberania. O petróleo não é igual ao minério de ferro. O petróleo é um insumo escasso em nível mundial e extremamente estratégico. Hoje, a garantia de for-

necimento de petróleo para nações desenvolvidas carentes dele é um dos principais itens nas negociações internacionais. Como o Brasil entregou parte do seu petróleo para empresas privadas, não pode contar com essa parcela como trunfo nas negociações internacionais. A reserva de petróleo em território brasilei-

ro, que foi entregue às empresas estrangeiras, cumprindo a lei 9.478, deixa de ser nacional, pois não poderemos contar com ela para nos ajudar a atingir algum objetivo nacional”, analisa Metri.

Na cola da Petrobras Além dessas considerações, Metri critica o amparo que

a Petrobras tem que dar para empresas estrangeiras. Na prática, o Estado brasileiro paga para que transnacionais extraiam o petróleo em território nacional. Hoje, a Petrobras é a empresa com maior capacidade para a pesquisa e extração de petróleo em águas profundas – como requerem as reservas da Bacia de Santos.

Taxação Metri critica o fato de a taxação brasileira sobre a exploração do petróleo ser uma das mais baixas do mundo. Hoje o Brasil taxa, nos maiores campos, no máximo, 45% do lucro líquido, sendo que nos países exportadores a média é de 85% de taxação sobre os lucros líquidos da exploração de petróleo e gás. Com essa taxação bem abaixo da média mundial, o Brasil pode perder cerca de 1,8 trilhão de dólares em tributos, na chamada camada do présal. Os cálculos são do próprio Metri, com base no barril de petróleo cotado a 100 dólares e estimando que no présal haja cerca de 60 bilhões de barris. O engenheiro afirma que o ideal seria realizar uma revisão dos contratos para aumentar a taxação da exploração petroleira, equiparandose aos padrões mundiais. No entanto, ele afirma que esse tipo de atitude gera uma represália do empresariado e da imprensa corporativa. “Se fizermos essa exigência, vão dizer que queremos romper contratos”, pondera.

Gervásio Baptista/ABr

Com grandes reservas, país deve mudar sua inserção na ordem mundial Geógrafo da USP afirma que, se entrasse na OPEP, Brasil seria um “outro país” da Redação Não são apenas os cofres públicos – e privados – que perceberão os impactos das grandes descobertas de petróleo na Bacia de Santos. A maneira como o Brasil se insere na geopolítica mundial também deve ser alterada. Um país com a terceira maior bacia petrolífera do mundo tem mais poder de barganha e mais influência nas relações internacionais, como explica o geógrafo da Universidade de São Paulo, André Martin. O estudioso explica que agora as “bolas da vez” na corrida pelo petróleo são o Atlân-

tico Sul e o Golfo da Guiné, na África, área correlata ao Brasil no passado geológico. Segundo Martin, o Brasil está alguns pontos à frente de muitos países exportadores de petróleo. “Temos uma posição distinta, em relação a outros países. A Petrobras acumulou massa crítica e agora não somos um país que apenas acha petróleo, nós podemos extraí-lo sem precisar de outros países”, comenta. O geógrafo ressalta que a composição da economia brasileira é diferenciada em relação a países onde se tem apostado em extração de petróleo – como a Nigéria e países da Ásia Central. “Temos

uma capacidade industrialtecnológica, temos uma diversidade econômica interna que não nos aprisiona somente a esse produto. Sem querer ser muito otimista, o Brasil se sai bem em qualquer cenário”, avalia. Opep Martin considera a, ainda hipotética, entrada do país na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) como uma mudança radical na inserção do país na ordem mundial, no entanto, não alteraria as principais jogadas no xadrez geopolítico. “O Brasil na Opep seria outro tipo de país. Se-

ria diferente desses países que são monoexportadores, o Brasil tem muita autonomia. No entanto, a entrada brasileira não alteraria o grande jogo, que continuaria sendo travado entre EUA e Arábia Saudita”, explica. Sobre o reposicionamento do Brasil na ordem econômica, Martin, mais uma vez, demonstra otimismo. “O país vai ser uma economia poderosa no futuro. O Brasil pode se projetar como uma Rússia, pois tem capacidade industrial e recursos naturais em abundância. Só precisa ter uma indústria naval que corresponda a essa grandeza”, defende Martin. (RGT)

Antiarmamentismo versus vulnerabilidade Brasil precisaria investir mais em defesa para ter maior inserção na política mundial da Redação Na opinião de André Martin, a questão da energia é um dos grandes temas do poder mundial, mas não o único. Como exemplo de que as fontes de energia em seu território não são os únicos elementos que acumulam força na ordem global, Martin cita os EUA, que possuem poucas fontes de energia, mas muita força bélica. O geógrafo afirma que essa é a característica que os coloca no topo das esferas de poder mundial. Para uma inserção mais determinante na política mundial, Martin afirma que o Brasil precisa de mais investimento em sua armada.

Anúncio foi precipitado, diz petroleiro Dirigente da CUT afirma que episódio revela incapacidade de Haroldo Lima da Redação

“O Brasil é um país muito antiarmamentista, o que tem um lado positivo e outro negativo. Há uma vulnerabilidade que é fruto da falta de armamento”, responde o geógrafo, ao ser questionado sobre a exploração estrangeira do petróleo brasileiro.

Conflitos Se é otimista ao falar sobre o rumo da economia brasileira, Martin vislumbra um cenário conflituoso para a relação entre os países, sobretudo em função da corrida por recursos energéticos. “A humanidade está muito grande e o mundo pequeno. Há uma corrida por recursos energéticos. EUA e China começam a penetrar na África.

Antonio Carlos Spis, petroleiro e dirigente da CUT

Há uma preocupação em ter controle de recursos estratégicos”, enxerga. Na análise do geógrafo, grandes conflitos parecem inevitáveis diante da escas-

sez. “O momento em que estamos vivendo é de acirramento entre os países. É bom que os países estejam preparados para recessões”, alerta. (RGT)

Para Antonio Carlos Spis, petroleiro e membro da executiva nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o anúncio de Haroldo Lima foi precipitado e merece ser investigado, para averiguar a quem interessou a ação do diretor da ANP. “Ele mostrou, mais uma vez, sua inabilidade. Não dá para ele continuar no cargo. Ele vem se mostrando, no mínimo, deselegante com o movimento sindical, social e estudantil, recusando-se a debater a questão do petróleo”, afirma Spis, referindo-se aos diversos convites feitos a Lima para debates sobre a questão do petróleo. Spis faz parte de uma am-

pla articulação das forças de esquerda que visa barrar os leilões de petróleo. Mesmo considerando que Lima teve uma postura equivocada, Spis avalia que seu anúncio reforça a necessidade dos movimentos de retomar a luta pela soberania. “Essas novas descobertas reforçam ainda mais a necessidade da unidade da esquerda contra os leilões de petróleo, pois o nosso patrimônio é maior ainda. Mas há uma certa ansiedade para divulgar números. Sabemos que há um grande potencial (na Bacia de Santos), mas os estudos completos sobre a quantidade de petróleo demorarão alguns anos. Não podemos ser imprudentes com uma questão grave como essa”, defende. (RGT)


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Lula abandonou a reforma agrária CAMPO Para Guilherme Delgado, governo prioriza o agronegócio e reconduz o país a um modelo primário-exportador Jorge Pereira Filho da Redação

SE A reforma agrária esteve na pauta das discussões no início do governo Lula, passados cinco anos, a realidade mudou. O assunto pouco destaque ganha na agenda do presidente. Os discursos sobre o tema – uma bandeira histórica do PT e do próprio Lula – foram se tornando cada vez mais tímidos, raros. As inaugurações de assentamentos desapareceram. E a linha mestra do segundo mandato – o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – ignora o tema, considerado outrora como uma etapa crucial ao desenvolvimento do país. A compreensão dessa mudança de postura passa pela análise do estreitamento dos laços do governo petista com grandes produtores rurais e transnacionais, evidenciado pela polêmica frase de Lula sobre os “heróis canavieiros”. Para o economista Guilherme Delgado, estudioso do campo e um dos intelectuais que participaram em 2003 da elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o governo Lula se orienta pela prioridade total ao agronegócio. “Essa reorientação termina por aniquilar uma política de reforma agrária e de reestruturação de setores rejeitados pelo processo primárioexportador”, enfatiza. Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista faz um balanço das políticas do governo Lula para o campo, ressalta as motivações que levaram o presidente a apostar suas fichas na aliança com o agronegócio, e aponta as conseqüências desse modelo primário-exportador para um projeto nacional de desenvolvimento. Brasil de Fato – Tendo participado da elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária, como o senhor avalia a política do presidente Lula para o campo? Guilherme Delgado – Quando houve a iniciativa do PNRA, e olhando em perspectiva, decorridos cinco anos, o que podemos dizer é que o governo Lula deu uma guinada em sua política agrária de 180 graus. Em 2003, começou com um programa residual de reforma agrária, continuando as ações anteriores de Fernando Henrique Cardoso, que agia em função de ocupações e ocorrências do espaço agrário. A política foi mudando e, hoje, Lula abandonou qualquer programa de reforma agrária. A manifestação mais concreta disso é a total prioridade que o governo imprime à reprimarização da economia – volta ao modelo primário-exportador, que tem o agronegócio como carro-chefe. Quais as conseqüências dessa nova postura? Essa reorientação termina por aniquilar uma política de reforma agrária e de reestruturação de setores rejeitados pelo processo primário-exportador. A política não abandonou apenas o programa residual de reforma agrária que vinha desde a nova República, como também passou a se orientar pela total prioridade ao agronegócio. Isso acarreta conseqüências desastrosas para o meio-ambiente, para o trabalho e para o país. Mas essa inflexão da política do governo Lula não foi oficializada nem explicitada durante sua campanha... Não se escreveu em nenhum documento oficial, é verdade, mas vamos interpretando os fatos e a clara priorização dos setores agroexportadores de uma forma estrutural. É a necessidade de manter em equilíbrio o balanço de pagamentos do Brasil [conta entre o que entra e o que sai do país em dólares], que fez com que o governo elegesse o agronegócio como grande supridor de dólares. O setor foi escala-

MST promove ações em 21 Estados Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe

do para suprir os deficits de serviço e do setor industrial. Manter um equilíbrio entre a saída e a entrada de dólares no país sempre foi um problema para o Estado, como na crise da dívida, em 1980. Essa alternativa pelo agronegócio como a solução encerra a questão? Bem, até 2003, a conta corrente do Brasil era altamente deficitária. A partir de então, passa a ser superavitária por conta do setor primário-exportador – sobretudo, o agronegócio e a mineração. Isso garante a situação de solvência das contas externas, essas reservas [em dólares] atingem um pico e, agora, começam a cair. Ocorre que vivemos uma situação de desindustrialização e aumento da dependência externa no campo industrial. Esse arranjo no campo da política agrícola e na macroeconomia levou a escolher a atividade primária-exportadora como eixo na reativação da economia. Esse quadro, que depende de uma situação favorável no comércio internacional, cria uma certa especialização, um lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho. E esse lugar é precário.

Esse quadro, que depende de uma situação favorável no comércio internacional, cria uma certa especialização, um lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho. E esse lugar é precário Por quê? No momento, estamos exportando enormemente por conta do aquecimento internacional, principalmente na China e na Índia. Os preços dessas commodities estão caros, o que garante a entrada de dólares. Mas essa estratégia, a longo prazo, é altamente precária. Começamos a ter deficit, isso não compromete o equilíbrio, mas é um sinal. Numa política aberta ao fluxo de capital, você faz pressões enormes nas contas de serviços. E não compensa. É um problema que vai se acumulando. A balança tende ao desequilíbrio e vai aparecer em uma crise de liquidez internacional. Nenhum país se desen-

volve assim, apostando no primário-exportador como o setor chave. Quando a demanda externa desaquece, há uma falta de ligação desse setor com o restante da economia. Essa opção vem do governo anterior, mas foi aprofundada pelo atual. Isso representa um desastre para o desenvolvimento brasileiro. Concentra a riqueza nos detentores de patrimônios, tendo como base a aliança de grandes indústrias e latifundiários. E como fica a reforma agrária? Essa aliança impede a reforma agrária, mesmo a residual que havia sido feita no primeiro mandato. Fica inviável até mesmo administrar os assentamentos existentes, porque as áreas são objetos de cobiça da invasão do agronegócio. Como o governo não possui um projeto alternativo para trabalhar nessa perspectiva, o programa de assentamento fica refém de se transformar puramente de subsistência. Vejo o futuro não com pessimismo, porque as coisas são reversíveis no tempo e na história, mas no quadro do establishment e na inserção externa do Brasil de forma dependente, a reforma agrária se torna um evento impossível e improvável. Claro, no sentido de uma reforma agrária que promova a distribuição de renda e a eqüidade. É impossível expandir, ao mesmo tempo, o agronegócio e a agricultura familiar. O processo de reprimarização da economia engole a agricultura familiar e transforma-a em empreendimentos residuais e inviáveis. Uma das promessas do governo Lula para a reforma agrária era a de que investiria mais em qualidade do que em quantidade. No entanto, o acesso aos recursos do Programa Nacional de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é limitado (15% de contratos liberados) e a maior parte dos assentamentos estão na região Amazônica. Embora na Amazônia tenha mais terra, não é lá que há mais força de trabalho. Nesse cenário, estamos discutindo três medidas tomadas que tornam o país refém dessa reprimarização. A primeira é a MP (medida provisória) 422, que dispensa a licitação para a venda de terras públicas do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) até 1,5 mil hectares. A outra é a MP 410, de 2007, que permite que você empregue assalaria-

foram os Estados que tiveram mobilizações da jornada nacional de lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra neste mês. Para ver a relação completa dos atos, acesse a Agência Brasil de Fato e confira abaixo as manifestações de maior destaque.

dos rurais sem contrato de trabalho por até dez meses. E, por fim, tem o caso da Raposa Serra do Sol, território demarcado há três anos, invadido pelos grileiros e que não consegue se instalar legalmente porque se arma uma campanha de mídia e apoio do Judiciário contra os territórios. Há uma orquestração nacional em defesa do modelo primário-exportador. Contra essa visão, tudo é colocado como atraso. Mas o atraso é priorizá-lo em detrimento do crescimento industrial, dos serviços, da agricultura sustentável. Alguns autores colocam que, no mundo atual, a reforma agrária deveria ser vista apenas como medida de resolução de conflitos localizados... Muitas vezes, se coloca a reforma agrária como um programa oficial, mas não encontramos isso. Afirma-se que o Brasil está fora da curva e que, hoje, não se faz mais reforma agrária. A questão é discutir como inserimos os pequenos estabelecimentos. Mesmo no capitalismo, temos variantes da maior diferença. A experiência européia do pós-guerra permite que, sem uma reforma agrária clássica, as pequenas propriedades coexistam sem serem engolidas pelo agronegócio internacional. Esse padrão de desenvolvimento – que chamaríamos de uma política agrária condizente com a realidade – abriria espaço para setores do campo participarem do desenvolvimento de forma mais includente. Mas, para isso, há a necessidade de uma política econômica distinta. Nosso modelo não é parecido com o europeu nem com o dos Estados Unidos, apesar de muitos dizerem que é a nossa inspiração. O nosso agronegócio é mais desigual do que o deles. Após a abolição e a guerra civil, houve uma mudança na estrutura de posse da terra e uma ocupação do meio-oeste dos EUA. Já nós chegamos ao século 20 sem fazer nenhuma dessas mudanças. E descartamos fazê-las porque dizemos que passou o tempo. Não se passou do tempo de uma política de igualdade e distribuição. Mudaram, sim, os instrumentos, as estruturas de intervenção. Um formato de reforma agrária includente, de desenvolvimento e igualdade, não está fora da agenda ao menos que se pense que não há desigualdade no país. O pessoal acha que desenvolvimento é modernização conservadora. É a moda Geisel, desenvolver o modelo do regime militar. Agora, o Brasil precisa de

uma política clara de contenção da liberdade de ação do agronegócio. Sem isso, a reforma agrária é engodo, tão residual e incapaz de se manter que será engolida.

Há uma orquestração nacional em defesa do modelo primárioexportador. Contra essa visão, tudo é colocado como atraso. Mas o atraso é priorizálo em detrimento do crescimento industrial, dos serviços, da agricultura sustentável Mas a renda do agronegócio em alta não deixa a economia do campo mais dinâmica, melhorando a qualidade de vida da população do entorno? Vamos pegar um exemplo clássico: a produção do etanol. De 2001 para cá, o Brasil expandiu a produção de cana, que já ocupa 7 milhões de hectares dos 62 milhões de área cultivada, segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2007. Com essa expansão dos últimos sete anos, que vai continuar, a produção de cana cria em seu entorno um enorme vazio, do ponto de vista democrático. É uma plantação contínua, baixo emprego, plana. As relações de trabalho são de superexploração da mãode-obra. O índice de morbidade maior nos auxílios-doenças concedidas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) aumentou de 4 mil, em 2000, para cerca de 18 mil, em 2006. Uma proporção de 400%, um salto extraordinário, mesmo em comparação a setores mais perigosos de trabalho, atividades insalubres. A cana é um verdadeiro morticínio para o trabalhador, a pessoa tem de se ausentar porque não consegue cumprir as metas de produção. E, no entorno da plantação de cana, você tem uma renda da exportação, mas o processo distributivo para a área agrícola, para a usina, as cadeias industriais que abastecem é mínimo. Muito menor, por exemplo, do que na produção de vinhos no Chile. Ambos

os agronegócios são pautados pelo mercado externo, mas o vinho tem de ser pequena propriedade. Não se produz uva com base na plantation. O nosso modelo de commodities – cana, soja, celulose – é o pior do ponto de vista distributivo. É anti-social e antiambiental, cria um deserto verde em torno da plantation. Substitui a produção de alimentos, setores de trabalho mais intensivos. Concentra propriedade e renda, sem desenvolver a cadeia produtiva. Mas é inegável que o crescimento econômico mais recente no governo Lula vem impulsionado pelo mercado interno, o que favorece a agricultura familiar... Essas questões têm de ser vistas no contexto. De fato, a política social do governo desde 2003 teve uma conseqüência benéfica para o mercado interno. Quando você expande o salário mínimo e os benefícios do INSS, há uma expansão da demanda interna. Isso não é uma ação específica do governo Lula, mas sim da Constituição. A virtude de seu governo foi dar ao salário mínimo um aspecto mais positivo nesse sentido. Isso gerou um movimento benéfico para os produtores do mercado interno, como a agricultura familiar e o industrial. Mas isso, para se sustentar e não ficar permanentemente dependente dos eventos da política social, precisa de um projeto de desenvolvimento e de incorporação da força de trabalho, para esta não ficar excluída do mercado produtivo e dependente das benesses da política social. Como você vai ofertar uma cesta básica e vincular setores ligados à pequena agricultura e industrial. Isso não sai espontaneamente. Precisa de uma política, senão o grande ator vai abocanhando os menores. Uma política voltada ao pequeno comércio e à pequena agricultura é essencial para um desenvolvimento mais equilibrado do setor produtivo. O governo Lula teria condições políticas de fazer uma reforma agrária, como apregoou o próprio PT durante anos, quando chegou ao poder? Acho que, naquele momento, até a direita aceitava que uma coisa nova seria feita, já que perdeu a eleição. Foi uma enorme covardia política. Agora, com a prioridade ao setor primário, as coisas ficam mais difíceis. Esses elementos colocam areia nos olhos das pessoas para imaginar que as coisas estão resolvidas. Mas não é uma coisa nem outra, nem do ponto de vista da economia nem da desigualdade. A dependência externa só se aprofunda. O agronegócio não mantém a conta corrente equilibrada a longo prazo, não é capaz de criar os empregos para dinamizar o mercado de trabalho, a ponto de criar uma possibilidade de uma situação parecida com o pleno emprego. São várias questões para repensar o agrário. E não é algo tipicamente agrário, é nacional.

Quem é Guilherme Costa Delgado, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).


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Por trás da alta dos alimentos SOBERANIA ALIMENTAR Para especialistas, produção de agrocombustíveis reduz a de comida, provocando inflação mundial R. Messori/FAO

Tatiana Merlino da Redação O SUÍÇO Jean Ziegler reacendeu o debate sobre os agrocombustíveis. Relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, ele declarou que a produção em massa de tais cultivos “representa um crime contra a humanidade, em decorrência de seu impacto nos preços mundiais de alimentos”. O argumento é de que a utilização de terra para o plantio de vegetais – como a cana-deaçúcar – destinados à fabricação de agrocombustíveis como o álcool, elimina áreas que poderiam ser utilizadas para produção de alimentos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, defensor dos agrocombustíveis, rebateu as críticas feitas pelo relator da ONU: “O verdadeiro crime contra a humanidade será descartar a priori os biocombustíveis e relegar os países estrangulados pela falta de alimento e de energia à dependência e à insegurança”, disse.

Preço dos alimentos Lula também afirma que a expansão da produção de cana não é responsável pelo aumento do preço dos alimentos. “Não me digam que os biocombustíveis causam a alta dos preços. O plantio de cana não comprometeu ou deslocou a produção de alimentos”, afirmou. Segundo Bernardo Mançano, professor e pesquisador da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde coordena o Data Luta (Banco de dados da Luta pela Terra), “ao fazer essa afirmação, o presidente não apresenta dados. Isso é perigoso, porque é uma defesa ideológica de alto risco”. Ele explica que “é só observar os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) pa-

Para Jean Ziegler, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, os agrocombustíveis “representam um crime contra a humanidade”

ra compreender como a cana e outras commodities têm se territorializado sobre áreas de produtores de alimentos”. Desde 2007, os preços dos alimentos aumentaram em média 40%, e o de matériasprimas básicas, como o trigo, duplicaram. Com isso, uma série de países têm realizado protestos em decorrência da dificuldade de encontrar produtos. Para o presidente Lula, o aumento dos preços dos alimentos se dá pelo fato de “as pessoas pobres estarem começando a comer”, em lugares como China, Índia e América Latina. O professor da Unesp rebate a afirmação: “A ques-

tão é que o aumento do preço está relacionado com a falta de alimentos. Esse fato derruba o mito de que há alimentos para todos. A procura é maior do que a oferta”, explica. O engenheiro agrônomo Horácio Martins aponta que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão do governo federal, avaliou, em julho de 2007, que o milho, a soja e o trigo vêm perdendo áreas nos Estados de Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. O preço da terra também subiu em São Paulo. Segundo o Instituto de Economia Agrícola (IEA), de 2001 a 2006, o valor médio por hectare subiu 113,6%.

Aumentar a produção De acordo com Martins, os impactos da expansão da plantação de cana já são constatáveis “na concentração da terra, na desagregação dos territórios camponeses, no aumento da exploração dos assalariados rurais, na contaminação e degradação do meio-ambiente, no aumento real da emissão de gás carbônico, na desnacionalização das empresas rurais e das agroindústrias, na afirmação da dependência da economia do país à exportação de commodities, além de afirmar o modelo econômico de concentração e centralização da renda e da riqueza no campo”.

Martins lembra que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) diz que no Brasil existem “120 milhões de hectares disponíveis para o plantio de matérias-primas para os agrocombustíveis. Está-se falando de uma expropriação de territórios numa escala sem precedentes”. O engenheiro agrônomo afirma que a expansão da área plantada com cana “está provocando uma reorganização do uso da terra agricultável no país, assim como exercendo forte pressão para o desmatamento dos biomas da Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Pantanal e Cerrados. E, mais, irradia

seu modelo de produção para diversos países da América Latina”. A produção de etanol no Brasil na safra 2006/2007 foi de 21,3 bilhões de litros, ou seja, 21,9% maior que a anterior. A área ocupada com cana no Brasil na safra 2007/ 2008 é de 6,92 milhões de hectares, superior em 12,3 % à safra anterior.

Caos no futuro Para o futuro, Mançano acredita que, “se o Estado não intervier nesse processo, será o caos. Ele tem que elaborar uma política para controlar o uso do território para a produção de alimentos e de combustíveis”, avalia. A saída, aponta ele, “é aumentar a produção de alimentos. Temos terra, gente e tecnologia para isso”. O problema, diz Martins, “é que todos esses recursos e condições estão concentrados. É preciso democratizar o acesso a esses recursos e condições, como, por exemplo, realizando a reforma agrária”, conclui. Pouco antes de o presidente rebater as críticas de Jean Ziegler aos agrocombustíveis, movimentos sociais que estiveram presentes na Conferência Especial para a Soberania Alimentar, realizada em Brasília entre os dias 10 e 13, lançaram um documento condenando o uso de terras para a produção de agrocombustíveis. “Os representantes (dos movimentos sociais) expressam seu mais enérgico rechaço à geração, desenvolvimento e uso de agrocombustíveis e toda a geração de energia através da biomassa”, pontua o texto. “Fazemos nosso o chamado urgente do relator das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, para que os governos declarem uma moratória internacional sobre todos os incentivos para a produção e o comércio dos agrocombustíveis”, propõe.

CONFLITOS NO CAMPO

Síntese dos dados da CPT Frei Gilvander Moreira Em 2007, os agrocombustíveis foram apresentados como a grande alternativa ao aquecimento global. A expansão da área plantada com cana-deaçúcar veio acompanhada de inversões capitalistas em novas usinas sucroalcooleiras. Já são 363 em operação. O etanol se tornou o carro-chefe destes novos combustíveis e foi o centro da agenda do presidente Lula em suas viagens internacionais. Lula chegou a guindar os usineiros à categoria de “heróis nacionais”. Os números, porém, mostram o lado amargo da cana-de-açúcar: 52% dos trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel do Ministério do Trabalho de condição análoga à escravidão eram de usinas do setor sucroalcooleiro: 3.131 do total de 5.974.

Trabalho escravo Os dados sobre trabalho escravo passaram de 262 ocorrências, em 2006, para 265, em 2007, e o número de pessoas envolvidas, de 6.930, em 2006, para 8.635, em 2007. Entre os trabalhadores escravizados, superexplorados e desrespeitados, se encontram, em número muito significativo, os índios, sobretudo do Mato Grosso do Sul. Milícias A 23ª edição do livro Conflitos no Campo Brasil 2007, da CPT, aponta a diminuição no número de conflitos no campo entre os anos de 2006 e 2007, com queda de 7%. Somente a região Sudeste apresentou aumento nesse número e também na quantidade de pessoas envolvidas. A diminuição no número de conflitos pode ser interpretada pela im-

plantação de políticas sociais compensatórias, como a bolsa família, que, mesmo insuficientes, têm contribuído para a diminuição da mobilização social na luta por direitos. A quantidade de famílias expulsas entre 2006 e 2007 teve um aumento de 140%, passando de 1.809 para 4.340.

Mais violência Em 2006, eram 39 as mortes causadas por conflitos no campo, já em 2007 o número caiu para 28. O Pará, que em 2006 registrou 24 mortes e em 2007, cinco, contribuiu significativamente para essa diminuição. Enquanto isso, no restante do país, a violência contra a vida humana teve um aumento de mais de 50%. Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Paraná, Maranhão, Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte apresentaram crescimento no número de assassinatos. Logo, embora seja positiva, a diminuição geral no número de assassinatos não pode levar à acomodação da sociedade, pois 28 pessoas mortas em conflitos no meio rural ainda é um número alto. O número de pessoas ameaçadas de morte sofreu um aumento significativo de mais de 25%. Passou de 207 pessoas ameaçadas, em 2006, para 259, em 2007. Conflitos por água Mais de 35% dos conflitos pela água no Brasil aconteceram nos Estados banhados pelo rio São Francisco. Os conflitos pela água praticamente duplicaram no Brasil de 2006 (45 casos) para 2007 (87 casos). O número de famílias envolvidas saltou de 13.072 para 32.747. Dezenove Estados registraram conflitos pela água. Minas Gerais, com 20 ocorrências é, de longe, o Estado mais confli-

tivo. No geral, 47 conflitos se deram por questões de “uso e preservação” da água, 33 pela implantação de barragens e açudes e sete por apropriação particular de água. A mercantilização da água chegou a ponto de provocar dois assassinatos em 2007, em conflitos nas áreas de carcinicultura. Um no Ceará e outro no Rio Grande Norte. Um caso marcante que a CPT também documentou em 2007 foi a morte de Géssia, 12 anos, quando tentava “roubar” um balde de água, do canal de irrigação Nilo Coelho, em Petrolina (PE), mas que não abastece as famílias vizinhas a ele. Do total de conflitos pela água registrados em 2007 pela CPT, quase 38% correspondem a conflitos ocasionados por implantação de barragens e açudes. Em relação aos casos registrados em 2006 (16 casos), o número mais que dobrou nesse último ano, 33 casos. Dos 20 conflitos registrados em Minas Gerais, 17 foram causados pela implantação de barragens e açudes.

Amazônia A expansão do agronegócio na Amazônia afeta comunidades tradicionais. As Ocorrências de Conflitos por Terra revela que 54% destes ocorreram na Amazônia, 26% no Centro-Sul e 20% no Nordeste. Analisando o grupo social a que pertencem as famílias, se constata que das 66.943 famílias envolvidas em conflitos, 44% são de sem-terra, 41% de populações tradicionais e 8% de assentadas. Frei Gilvander Moreira é padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais


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Ocupação na UnB questiona democracia universitária Valter Campanato/ABr

EDUCAÇÃO Após conquistarem a renúncia do reitor, estudantes querem eleições paritárias

O próximo passo Hoje, a UnB segue o que a Lei de Diretrizes e Bases recomenda, ou seja, nos órgãos de decisão, o voto dos estudantes e dos funcionários têm um peso de 15% cada. Os 70% restantes cabem aos professores. “As eleições paritárias é consenso para todas as instâncias da universidade, além da convocação do congresso estatuinte. O (atual) reitor, Roberto

de Brasília (DF) A Finatec, fundação de apoio de caráter privado que presta serviço à Universidade de Brasília (UnB), acabou virando alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) promovida pelo Senado Federal e que investiga organizações não-governamentais (ONGs). Com ela, as fundações de mesma natureza em outras universidades públicas também ganharam notoriedade diante da possibilidade de desvio de dinheiro público, contratações sem

“As fundações são desnecessárias diante da autonomia da universidade. Dizia que elas tinham mais agilidade e não é verdade”, afirma representante do Andes

Apesar da diminuição do número de assassinatos no Brasil, a violência se espalhou pelo território. É o que dizem os dados do relatório de 2007 do “Conflitos do Campo Brasil”. Os 39 assassinatos de 2006 ocorreram em oito Estados. As vítimas mortas no ano de 2007 são de 14 Estados diferentes. E mais que dobrou o número de famílias expulsas da terra, 140% em um ano. Para a CPT, o que mais preocupa é como os latifundiários escancaram sua estratégia de fazer “justiça” com as próprias mãos, sendo que, em alguns Estados, a atuação de milícias é mais intensa e ostensiva que em outros. A Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia (CSCB) informou, no dia 17, que indígenas e camponeses realizarão, a partir de 2 de maio, uma marcha em direção a Santa Cruz de la Sierra, para protestar contra o referendo autonômico promovido pelas autoridades do departamento. Crescem os temores de enfrentamentos, já que, entre os setores que apóiam o referendo, estarão grupos conhecidos por agir de maneira violenta, como a União Juvenil Crucenista.

Juros mais altos

Após a renúncia de Mulholland, estudantes votaram pela desocupação da Reitoria da UNB

Aguiar, é a favor, mas ele é submetido ao conselho universitário. Ele vai botar peso para aprovar a paridade”, diz Danilo Silvestre, integrante da equipe de comunicação do Movimento de Ocupação da UnB. Paridade em eleições dentro da universidade não é nenhuma novidade no Brasil, apesar da resistência, na maioria das vezes por parte dos professores. Só para citar exemplos, as universidades federais de Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Viçosa, Espírito Santo, Sergipe, Piauí e Fluminense já adotam em seus estatutos as porcentagens iguais de 33% para todos os segmentos. O Ministério da Educação, por sua vez, compromete-se a respeitar as decisões deliberadas em nome da autonomia universitária.

Disputa por poder Para o representante do Sindicato Nacional dos Do-

Fundação é alvo da CPI das ONGs Nos últimos cinco anos, as fundações privadas arremataram uma média de R$ 800 milhões em convênios com o dinheiro público

Violência no campo

Marcha contra referendo

Mayrá Lima de Brasília (DF) COM A renúncia do reitor Timothy Mulholland, no dia 17, uma assembléia que reuniu cerca de 500 estudantes deliberou a saída do prédio da Reitoria da Universidade de Brasília (UnB), ocupada desde o início do mês. Foram quinze dias, muitos deles sem água e sem energia elétrica, que chamaram a atenção do país diante das denúncias de corrupção e improbidade administrativa contra os que comandavam a instituição. Mulholland é suspeito de usar R$ 470 mil da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec) na compra de móveis luxuosos para seu apartamento funcional. A pressão foi tamanha que não só ele renunciou, mas também o vice-reitor, Edgar Nobuo Mamiya. Agora, os estudantes querem mais: eleições paritárias para as instâncias deliberativas da universidade.

saiu na agência

concursos e terceirização a baixos salários. De acordo com dados do Tribunal de Contas da União (TCU) utilizados pela CPI das ONGs, nos últimos cinco anos, as fundações privadas arremataram uma média de R$ 800 milhões em convênios com o dinheiro público. Por outro lado, a comunidade universitária, na maioria das vezes, não tem mecanismos de controle dessa verba. O Andes, por exemplo, já alertava para os “problemas das fundações” antes mesmo da explosão do escândalo em Brasília. “As fundações são desnecessárias diante da questão da autonomia da universidade. Dizia que elas tinham mais agilidade, o que não é verdade, porque as universidades podem adotar uma postura ágil nos limites das leis públicas. O custo para a universidade é o mesmo, mas somam-se intermediários”, explica Zago. Já a UNE adota uma postura mais cautelosa sobre a extinção das fundações de apoio. Segundo Jesus Alcides, elas cumprem um papel “importante” no que diz respeito ao investimento à pesquisa, em novos projetos tecnológicos. “O modelo é que ruim. Numa visão responsável, teria que gradativamente acabar com as fundações privadas. Somos a favor do controle, da abertura da caixa preta das fundações”, diz. (ML)

centes das Instituições de Ensino Superior (Andes), José Zago, a resistência está na possibilidade de perda de poder. “O estudante é quem move a universidade. A qualidade boa do estudante é ser transitório. A permanência dos professores e servidores também é boa, mas se defendido com excesso pode virar corporativismo. E as pessoas querem ter controle do dinheiro, do poder”, avalia. A União Nacional dos Estudantes (UNE) concorda com a permanência de uma visão “conservadora” em relação à aceitação da paridade. “Existe uma certa dosagem de corporativismo por parte dos professores. Há um aspecto de retrocesso para eles, já que hoje têm 70% do controle. Esse debate há anos é travado, mas não existe um fator mobilizador”, avalia Jesus Alcides dos Anjos, diretor de Relações Internacionais da entidade. “Não existe democracia sem os segmentos que cons-

troem a universidade. Isso dificulta um controle social sobre os recursos, investimentos”, completa.

Separação De acordo com a socióloga da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Maria Orlanda Pinassi, o movimento estudantil é muito mais atento às questões da universidade que os professores. “Sinceramente, com o que aconteceu ano passado nas universidades paulistas (ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo e entrada da tropa de choque na Unesp), eu me surpreendi com a animosidade dos professores. Este ano houve uma separação muito grande. O movimento estudantil lutando pela universidade pública e os professores se recolhendo e, na medida do possível, hostilizando a movimentação estudantil. A paridade daria mais espaço para essa postura crítica”, opina.

Ameaça à autonomia vem das empresas “É difícil exercer uma democracia de fato num lugar que está contaminado pela lógica do capital”, afirma professora de Brasília (DF) Para a socióloga Maria Orlanda Pinassi, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o verdadeiro problema está “no que vem de fora da universidade”. “São as tentações oferecidas pelas empresas por causa das parcerias públicoprivadas (PPPs) que têm contaminado profundamente todas as instâncias da universidade pública. É difícil exercer uma democracia de fato num lugar que está contaminado pela lógica do capital”, ressalta a professora. Pinassi considera que essas parcerias comprometem a autonomia universitária. “Ela nunca existiu de fato, porque a estrutura da universidade pública, desde a sua fundação, tem algum comprometimento com o mundo que está fora. Antes dessa contrareforma universitária, que é

uma determinação do Banco Mundial e que nossas autoridades cumpriram direitinho, era possível ter alguma independência”, critica.

Elitista Para a socióloga, existe uma democracia muito relativa, uma vez que os alunos de baixa renda entram nos cursos que são deficitários e a elite ingressa nos cursos que são valorizados “no mundo do capital”. “Em se pensar em participação dentro dos fóruns, esses órgãos têm dado muito pouco espaço para as reivindicações estudantis. Reivindicações que são justas, como a moradia estudantil e o aumento no número de bolsas. Essa democracia acaba muito abstrata. Com as ocupações, os estudantes estão pondo em cheque essa democracia que não se pega”, avalia. (ML)

Finatec Despesas X Valores aplicados em projetos de pesquisa e no fundo de apoio

Ano

Despesas (em R$ milhões)

Apoio à pesPercentual de quisa* (em apoio à pesquisa/ R$ milhões) despesa

2000

19,341

0,185

0,98%

2001

23,302

0,584

2,51%

35,108

1,070

3,04%

2002

Fonte: Adunb- Primeiro Dossiê sobre Privatização Interna na Universidade de Brasília. * Para 2001-2, inclui editais de fomento e aplicações no Fundo de Apoio Institucional.

Contrariando centrais sindicais e empresários, o Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central aumentou, dia 16, em 0,5 ponto percentual, a taxa de juros brasileira, que passou para 11,75%. Como a inflação prevista é de 4,5%, a taxa real seria de 7,25%. A justificativa do Copom foi a necessidade de conter a inflação. O aumento anunciado foi considerado agressivo até mesmo para os analistas do mercado financeiro, que projetavam elevação de 0,25 ponto percentual.

Relembrando Carajás

A Jornada de Lutas que ocorre todos os anos, por volta do dia 17 de abril, não serve apenas para pedir justiça e prestar solidariedade às famílias dos trabalhadores e trabalhadoras sem-terra assassinados, mutilados e feridos no Massacre de Eldorado dos Carajás, mas também para reafirmar a luta pela terra no Brasil. “A luta pela garantia da vida e da sua reprodução com dignidade é, antes de tudo, um gesto de amor. As práticas das lutas sociais, ainda que endurecidas pelos desaforos daqueles que deveriam as compreender melhor, é a expressão extremada da amorosidade pelo viver, por essa paixão que a esperança alimenta e que a solidariedade reafirma a cada gesto social.”, escreve, em artigo (página 2), Horácio Martins, engenheiro agrônomo e assessor da Via Campesina.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Ensaio latino A vitória de Fernando Lugo, no Paraguai, reforça a tese de que a América Latina, especialmente a América do Sul, está mesmo ensaiando alternativas para a superação do modelo neoliberal, em crise nos Estados Unidos e responsável pelo aumento do desemprego, exclusão e pobreza desde meados dos anos de 1980. O que está em gestação ninguém sabe, mas implica em novo papel para o Estado e a adoção de novas políticas sociais. Morte anunciada Ex-ministro do governo FHC, o economista Bresser Pereira anunciou, na Folha de S. Paulo, “o fim inglório da onda neoliberal”. Já o presidente do conselho da TV Brasil, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, garante, na Carta Capital, que “é cedo para programar as exéquias do neoliberalismo”. Pelo menos saiu da pauta o “fim da história”. Agora é a nova crise do capitalismo que está em discussão. Tempos modernos O presidente do PMDB paulista, ex-governador Orestes Quércia, teve uma trajetória política repleta de acusações de corrupção e decadente desempenho eleitoral. Agora, no entanto, está sendo assediado pelo DEM, pelo PSDB e até pelo PT para apoiar a chapa de candidatos à Prefeitura de São Paulo. O preço do apoio cresce à medida que os principais candidatos entram em desespero. Espaço alimentar De acordo com o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, a expansão da área plantada de cana-de-açúcar entre 1990 e 2006 foi de mais de 2,7 milhões de hectares, enquanto, no mesmo período, ocorreu uma redução de 261 mil hectares de feijão e de 340 mil hectares de arroz. E o Brasil se tornou o maior importador de trigo do mundo. Apoio lucrativo O jornal Zero Hora, vinculado ao Grupo RBS, que monopoliza a comunicação social em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul com o controle de dezenas de concessões de rádio e TV, circu-

lou, no dia 16, com 23 anúncios de publicidade sobre a indústria de papel e celulose Aracruz. Isso explica porque os veículos do grupo odeiam tanto as manifestações da Via Campesina.

Decisão póstuma Criada em 1982, na ditadura militar, a Ordem do Mérito das Comunicações acaba de mudar de nome: agora se denomina Ordem do Mérito das Comunicações Jornalista Roberto Marinho. A mudança foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República. Vale lembrar que o falecido dono da Rede Globo construiu seu império com benesses do governo e serviços prestados à ditadura, às elites e ao capital estrangeiro. Mais escolaridade Embora tenha quase 100% da população alfabetizada e tempo de escolaridade maior que o do Brasil, a Argentina está empenhada nesta semana – de 21 a 27 de abril – na Campanha pelo Direito à Educação, que reúne inúmeros movimentos sociais na defesa do ensino público gratuito de qualidade para todos e garantia de 13 anos de educação obrigatória sem exclusão. Aqui, essa meta está longe demais. Reforma tributária As Brigadas Populares de Belo Horizonte lançaram um manifesto em defesa de uma verdadeira reforma tributária no país, que deve ser centrada nos tributos sobre a renda, o patrimônio e as pessoas físicas, a começar pela instituição do imposto sobre as grandes fortunas – com alíquotas de 2% a 30% a partir de patrimônio superior a R$1 milhão. A proposta é boa, mas só mesmo com revolução!


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brasil

Energia para o quê? E para quem? Pedro Carrano de Curitiba (PR) “NÓS, OS moradores do Vale do Ribeira, não precisamos de mais alumínio, quem precisa é a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA)”. A denúncia é da ambientalista Laura Jesus Maria e Costa, do município de Cerro Azul, no Vale do Ribeira – lado paranaense do rio Ribeira. Nessa região, caso o projeto saia do papel, a construção da usina hidrelétrica de Tijuco Alto pode afetar diretamente cerca de 600 pessoas de cinco cidades diferentes. À energia produzida cabem dois destinos: alimentar a planta de alumínio da Votorantim, na cidade de Alumínio (SP), ou então ter o seu excedente vendido. A megaempresa de Antônio Ermírio de Moraes, inclusive, possui atualmente 18 pequenas hidrelétricas. O exemplo do projeto em Tijuco Alto é sintomático (saiba mais abaixo), embora, seja dos menores. Com capacidade para produzir somente 300 megawatts (MW), não se compara a projetos como o da hidrelétrica de Belo Monte (PA), no rio Xingu, que alcança os 11 mil MW de energia, comparável em quantidade à produção de Itaipu, embora sem o mesmo desempenho. Outro grande projeto é o das usinas de Santo Antônio e Jirau (RO), no rio Madeira, com capacidade estimada em 6.450 MW.

Modelo global A hidrelétrica de Belo Monte tem como um dos seus objetivos gerar energia para a fabricante de alumínio Albrás, cujo controle acionário é repartido entre a transnacional Vale (antiga Vale do Rio Doce, dona de 51% das ações) e o consórcio japonês Naac (49%). Este “reúne os maiores produtores de alumínio do Japão que decidiram fechar suas fábricas ainda nos anos 1980 por causa do alto custo da ele-

Reprodução

DESENVOLVIMENTISMO Construção de usinas hidrelétricas responde à demanda das indústrias eletrointensivas, como a de alumínio Quanto

12% da energia produ-

zida no Brasil é consumida pela indústria de alumínio

tricidade”, como descreve Célio Bermann, da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Energia no Brasil: para quê? para quem?. O professor explica que o Japão é o principal beneficiário da exportação do alumínio (90%), base para a indústria automobilística. Atualmente, a energia é recebida da usina de Tucuruí, segunda maior brasileira (7.960 MW), no rio Tocantins. Da energia produzida, a Albrás detém a prioridade, seguida da Alunorte (produtora de alumina) e da mina de Carajás (minério de ferro). Em 2002, os eletrosintensivos usavam 67% da potência disponível da usina, de acordo com obra A eletricidade gerada em Tucuruí: para onde? Para quê?, editada por Oswaldo Cevá, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com ele, a energia de Belo Monte teria um destino semelhante. “Ela se destinaria principalmente à ampliação das indústrias eletrointensivas no Pará, no Amapá, talvez a abastecer Manaus, e, de qualquer modo, parte da eletricidade dali iria reforçar o sistema interligado nacional, onde várias atividades eletrointensivas estão se ampliando”.

Transferência A indústria de alumínio está marcada pelo alto dispêndio de energia. Sozinha, ela usa 12% da que é gerada no país. Altos índices de consumo também caracterizam as eletrointensivas do setor de celulose e cimento para construção civil. Cobre e níquel são outros potenciais clientes. A produção de energia necessária para tanto causa um

De acordo com sociólogo paraense, preço do produto cresce quatro vezes ao ser transformado no exterior de Curitiba (PR)

Usina de Tucuruí: 7.960 MW de energia para produção de alumínio

grande passivo ambiental, que os países centrais estão buscando transferir para a América do Sul, a África e a Ásia. Segundo Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), esse modelo energético exporta produtos de alta densidade energética, com as eletrointensivas recebendo a energia a preços de custo. “O Brasil entra com rios e terras. Há uma crise mundial de energia, que afeta os países centrais do capitalismo. Transfere-se a produção para os países que têm energia em abundância e, no Brasil, há um potencial hídrico de 70% a ser aproveitado”, lista.

Para entender Tucuruí – Atualmente é maior usina hidrelétrica instalada na região Norte. Fornece metade da energia produzida para as fábricas Almar (pertencentes às transnacionais Alcan, Alcoa e Billiton) e Albras (Vale e consórcio japonês), de alumínio. A construção da usina, em 1984, deslocou mais de 24 mil pessoas de sua região de origem

As principais hidrelétricas Belo Monte – Pode atingir mais de 14 mil pessoas, inclusive a reserva do povo indígena Paquiçama Juruna. Está prevista a viabilização da obra por meio da construção de cinco barragens, que inundariam um total de 10 mil quilômetros quadrados. Os consumidores prováveis para a energia do rio Xingu são as fábricas Alumar e Albrás (alumínio), aparte a expansão das minas da região Carajás. De acordo com Oswaldo Ceva, da Unicamp, o projeto data de 1980. “Já tentou se implantar duas vezes, em 1988 e em 2001, e foi derrotado. Na primeira vez, politicamente pelos movimentos locais e pelos índios da bacia do Xingu e, na segunda vez, por uma ação civil pública que interrompeu a elaboração do estudo de impacto. O governo Lula, principalmente

Brasil exporta alumínio com baixo valor agregado

após sua aliança integral com o grupo do ex-presidente José Sarney, ressuscitou o projeto Belo Monte”, comenta. Santo Antônio e Jirau – Usinas projetadas para o rio Madeira. Gilberto Cervinski, do MAB, descreve que tal projeto se dá segundo o interesse de empresas distribuidoras de energia, do setor eletrointensivo – responsável por 30% da demanda –, do agronegócio, da indústria de máquinas e equipamentos e dos bancos. Conta ainda com dinheiro público: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai financiar essas obras, no valor de R$ 28 bilhões. “O que, dividido pela população de Rondônia, seriam R$ 20 mil por pessoa”, afirma.

De geradora de infraestrutura a mercadoria A partir da década de 1990, energia passou a ser vista como um negócio de Curitiba (PR) Na opinião de Antônio Goulart, engenheiro eletricista da Eletrosul e membro do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (SengePR), a energia, no Brasil, desde a década de 1990, virou uma mercadoria. “Tornou-se um negócio, um negócio em si mesmo. Antes ela era trabalhada como não-mercadoria, como afirmou o (sociólogo da USP) Chico de Oliveira, para gerar infra-estrutura”, comenta, ressaltando que a produção de energia hidráulica, puxada por grupos transnacionais, é atraída pelo seu baixo custo, associado ao preço do petróleo, que se aproxima da marca dos 120 dólares. No momento, a agência internacional de energia projeta um crescimento da produção no Brasil, até 2030, em um investimento previsto de 160 bilhões de dólares. Enquanto no mundo apenas 10% da energia é renovável, no Brasil esse número atinge 40%, destaca Goulart. O questionamento, para ele, deve recair sobre o contexto no qual o projeto das hidrelétricas está inserido. “A energia é gerada para quem e para quê? Para que fim se destinam essas usinas? É para a acumulação capitalista que os grandes pacotes energéticos se colocam, dentro de um projeto subordinado”, responde.

Quanto

665 e número de

grandes indústrias e eletrointensivas responsáveis pelo consumo de 25% da energia produzida no país

A crítica de especialistas e do movimento social se dá sobre o custo da energia ofertado às transnacionais. O professor Célio Bermann, da USP, conta que o custo da produção de energia está estimado em cerca de 40 dólares para cada megawatt/hora (MWh). A Albrás, entretanto, paga somente 22 dólares por MWh. “Quem está pagando a diferença é o povo brasileiro. E essa situação foi alterada recentemente (2004) com um novo contrato entre a Eletronorte e a Albrás. Durante 30 anos (de 1974 a 2004), a Albrás pagou 12 dólares por MWh”, afirma. Existem, de acordo com o MAB, 665 grandes indústrias e eletrointensivas responsáveis pelo consumo de 25% da energia produzida no Brasil. E contando com a vantagem de desfrutar do preço de custo, sem alteração. Além de ser um setor com baixíssima geração de emprego. “Para os demais – cidadãos, pequena e média indústria – cobrase energia de acordo com o padrão internacional (equiparado ao petróleo)”, lamenta Cervinski. (PC)

Pesquisadores apontam que a geração de energia atende à demanda das eletrointensivas, cuja produção, porém, terá valor agregado em outros países. “A Vale, ao invés de investir na produção do alumínio transformado (com maior valor agregado, como esquadrias de alumínio para a construção civil) continua produzindo o alumínio primário de baixo valor agregado, que gera um baixo número de postos de trabalho”, aponta Célio Bermann. O sociólogo e jornalista paraense, Lúcio Flávio Pinto, acrescenta: “Transformado lá fora, o alumínio cresce quatro vezes mais de valor na primeira transformação em condutores de alumínio, panelas etc”, comenta. Para ele, porém, neste momento é a indústria da alumina que cresce, por não necessitar de grandes quantidades de energia (caso da empresa Alunorte, que se tornou a maior do mundo no ramo), enquanto a indústria do alumínio (como a Albrás) opera no limite das forças produtivas, justamente pela fome por maior quantidade de energia.

Indústria do alumínio já opera no limite das forças produtivas, justamente pela fome por maior quantidade de energia Para exportação De acordo com Bermann, uma tonelada produzida de alumínio traduz-se em uma quantidade de energia suficiente para o consumo mensal de 100 famílias. “No governo Lula essa situação está cada vez mais rigorosa, em relação à indústria de produção de bens primários, como é o caso da produção para exportação de minério de ferro. Cerca de 70% do alumínio produzido é exportado. Siderurgia e celulose são outros dois setores voltados para exportação. Esses setores caracterizam a forma como a economia brasileira está inserida no mercado globalizado. E há números que mostram o setor de eletrointensivos degradando o meio-ambiente”, comenta. Liberação de gás metano na atmosfera é uma das características da construção de barragens para as usinas. Hoje, a produção no país é de 1,6 milhão de toneladas de alumínio. As principais empresas são Albrás, Alcoa, CBA, Alunorte e Alcan. “Esse aumento da produção exige maior disponibilidade de energia, existe uma clara relação entre produção de energia elétrica e esses setores”, afirma Bermann. Por fim, ele comenta que se trata de uma falsa questão pressionar para que a produção de energia nessas hidrelétricas seja voltada para o consumo interno, na região amazônica. A política econômica voltada pra exportação rege a produção em grande escala do setor. “O consumo dessa energia só pode ser feito por indústrias de grande porte, como mineração de ferro e caulim”, exemplifica. (PC)


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cultura

Brasil de Fato comemora 5 anos Mais de mil pessoas comparecem ao ato político-cultural realizado no teatro da PUC em São Paulo para marcar a data CERCA DE mil pessoas, entre representantes de movimentos sociais, organizações nãogovernamentais, políticos, estudantes e militantes estiveram presentes no ato políticocultural em comemoração aos cinco anos do Brasil de Fato, que foi lançado em 2003 durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. O evento, que teve falas, apresentações musicais e homenagens foi realizado no Tuca, teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), no dia 17. Na abertura, o editor-chefe Nilton Viana lembrou que o jornal passou por diversas dificuldades ao longo de seus cinco anos: “Neste país, é difícil manter uma imprensa livre e comprometida com a luta dos povos. Mas nós resistimos e isso é motivo de muito orgulho. Esses cinco anos representam uma vitória para a classe trabalhadora”. Viana ressaltou a importância de se comemorar o aniversário do jornal no Tuca, “um espaço símbolo de resistência durante os anos de chumbo da ditadura”, e, por fim, pediu “vida longa ao Brasil de Fato”.

Informar e formar O deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) defendeu a importância do jornal. Ele lembrou do papel que os jornais alternativos cumpriram durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. “Naquela época,

Brasil de Fato que temos, para o Brasil que queremos Uno-me a vocês nesse ato político-cultural dos 5 anos de Brasil de Fato. Com todos os sonhos e gestos, lutas e esperanças de tantos e tantas que vêm dando sua vida e às vezes também sua morte, devemos construir, no dia a dia local e com o horizonte infinito, a nossa utopia. Eu estou quieto à beira do Araguaia, nesta caseira prisão domiciliar do meu pequeno ditador Parkinson. (Mas estou de coração com vocês). Na Agenda Latinoamericana de 2009, que acabamos de preparar, convocamos ao sonho radical de um socialismo novo. Seguiremos unidos. Recebam um forte abraço fraterno de um velho companheiro de caminhada. Pedro Casaldáliga – Bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia

vivíamos uma ditadura militar. Hoje vivemos a ditadura da informação, do pensamento único, da hegemonia”, explicou. “Por isso, todos os movimentos sociais deveriam fazer um tributo ao jornal por informar, formar, tratar de países que estão se levantando, que têm governos populares e democráticos de verdade”, frisou. O jornalista Alipio Freire, representante do conselho editorial, destacou a relevância da publicação, “mesmo num país onde se lê pouco. O jornal serve como um instrumento de organização”. Para ele, “somos pequenos, mas temos força e representatividade, o que não é assumido publicamente pelos nossos opositores”. Para João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e membro do conselho político, o Brasil de Fato “cumpre o papel de ajudar na reflexão das mazelas da sociedade, que é muito mal retratada nos meios de comunicação da burguesia”. Em sua fala, também defendeu um controle maior em relação à distribuição das verbas publicitárias do governo para comunicação, “pois a grande mídia se apropria de todas”.

Homenagens Uma das homenagens feitas durante o evento foi aos fotógrafos colaboradores que aju-

daram a construir a publicação, com uma menção especial a Flávio Cannalonga, que faleceu em fevereiro de 2007. Também foi homenageado o jornalista Sérgio de Souza, fundador e editor-chefe da revista Caros Amigos. Souza faleceu em março. José Arbex Jr., editor da Caros Amigos e professor de jornalismo da PUC, afirmou se orgulhar de ter sido editor do Brasil de Fato. “Nós criamos o jornal para se contrapor à canalha patronal que impera na grande imprensa”, disse. Arbex citou o tratamento dado pela imprensa à morte da menina Isabella. “Essa tragédia ocupa o noticiário todos os dias. Fala-se só disso para não se falar de coisas como a crise do capitalismo, as reservas de petróleo brasileiras sendo entregues à Repsol e casos de países onde os povos originários estão tomando seu destino em suas mãos”, colocou. Personalidades que não puderam estar presentes ao evento mandaram cartas de saudação parabenizando o aniversário da publicação. Entre eles, Emir Sader, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Frei Betto, Osvaldo Coggiola, Plinio Arruda Sampaio, José Luis Fiori, Fábio Konder Comparato, dom Pedro Casaldáliga e dom Demétrio Valentini.

Vontade política Frei David, representante do Educafro, colocou co-

mo desafio ao Brasil de Fato fazer “ampliar a voz de quem vem dos quilombos e denunciar a falsa libertação dos escravos”, e Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres, lembrou que o jornal só existe por conta de “uma vontade política por parte dos que resistem ao neoliberalismo e ao fim da história. Temos que continuar militando nessa causa insistentemente”, defendeu. Uma das grandes características do jornal, apontou o jornalista Vito Gianotti, coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação, é ser plural. “Essa é sua grande característica, juntamente com servir à militância, àqueles que querem mudar a sociedade”, assinalou. Em seu depoimento, o geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, Ariovaldo Umbelino, disse que assim como se luta contra o “latifúndio da informação” há a luta contra o “latifúndio do saber” e o “jornal também é um espaço para quem luta contra o latifúndio da pesquisa”. De acordo com ele, o periódico tem lugar para todos aqueles que lutam contra injustiças. “E aproveito para convidar todos que estão aqui a voltarem em cinco anos para comemorarmos 10 anos de vida”. O chargista Carlos Latuff completou: “Que ele continue por mais cinco, dez, quinze, vinte anos”.


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américa latina

Povo paraguaio dá um passo histórico com a vitória de Lugo APC

FIM DE UMA ERA Desafio do novo governo é não se afastar do movimento popular que construiu o programa e a candidatura de Lugo, em meio aos diversos grupos políticos que fazem parte da Aliança Patriótica para a Mudança Pedro Carrano de Assunção (Paraguai) INCIDENTES E denúncias sobre as práticas de compra de votos do Partido Colorado em bairros, distritos e povoados do Paraguai não foram suficientes para alterar o resultado qualitativo das eleições de 2008: a participação popular fez a diferença e escolheu Fernando Lugo, com 40,82% dos votos, a APC [Aliança Patriótica para a Mudança, na sigla em espanhol] contra 30,72% da candidata colorada, Blanca Ovelar. Os rumores de intimidações e compra de membros das mesas de votação não foram suficientes para conter a participação massiva. O resultado foi anunciado pela Justiça Eleitoral paraguaia às 21h45 do domingo, dia 20, quando 92% das urnas já haviam sido apuradas. A luta, até o fechamento desta edicão, era pelas candidaturas populares para governadores departamentais, senadores e deputados, que garantiriam mais mobilidade e apoio ao novo presidente. No final da tarde de domingo, na sede da APC, quando os primeiros resultados de boca-de-urna indicavam a vitória de Lugo, a bandeira paraguaia e o nome do ex-bispo eram ovacionados. O coordenador-chefe da campanha, Miguel Angel Lopez Perito, anunciava que finalmente o país vivia “a queda da ditadura de Stroessner” (1954-1988, reeleito oi-

to vezes), e se iniciava a verdadeira transição.

60% de participação

Na sua fala, Lugo afirmou “que os pequenos também podem vencer”. Naquele momento, já não havia chance de uma temida fraude. O trabalho de criminalização dos movimentos sociais, realizado ao longo de seis décadas pelo partido hegemônico, já não cumpria mais a sua função. A participação eleitoral atingiu 60% da população. Para comemorar a vitória, o Panteón de los Héroes, em Asunción, abrigava milhares de pessoas. A maioria eram jovens cuja última grande movimentação aconteceu durante o “marzo paraguayo”, em 1999, com a morte de sete manifestantes e a queda do então presidente Raúl Cubas Grau. Ainda assim, eles nunca haviam visto outro grupo no governo do país. O Paraguai teve 13 presidentes sob a tutela colorada, e assistiu apenas a enfrentamentos entre os próprios colorados. “O Partido Colorado sempre foi o oficialista e ao mesmo tempo a oposição”, afirma Joaquín Bonett, líder do departamento central e membro do Movimento Popular Tekojoja (que significa “viver entre iguais”, em guarani). Carros tomaram conta de uma cidade que até a noite de sábado estava em silêncio. “Combatendo a ditadura de Stroessner ao longo de toda a militância, muita gente não pode ver este momento”,

Desafios ao Paraguai Dentro das áreas de prioridade programática da APC, elaborada com a participação dos movimento sociais, para serem aplicadas nos primeiros meses do governo Lugo, encontram-se, em síntese, as seguintes questões:

Itaipu

O objetivo é dispor dos excendentes hidrelétricos na produção da usina e receber o preço justo, como confere o próprio tratado assinado por Brasil e Paraguai. Outra prioridade é o fornecimento interno de energia, para cobrir o deficit de atendimento que atinge a populalção do país.

Reforma agrária integral

A terra passa a ser um direito, no campo e na cidade. No entanto, o acesso à terra tem que estar estruturado por condições de acesso ao mercado e crédito, como informa Joaquín Bonett, do Tekojoja . Porém, em suas colocações, Lugo e o vice-presidente, Federico Franco, vêm reforçando a questão da conciliação entre grandes e pequenos produtores, e que não haverá desapropriação para a entrega de terras.

Educação e Saúde

Oferta de ensino e saúde gratuitos, sustentados pela base material necessária (alimentação, material escolar etc.).

Reforma Judiciária

Assim como derrotar o partido Colorado foi uma tarefa histórica, reformar o Poder Judiciário é outra questão urgente, no país onde Estado e partido Colorado estão enraizados.

Cultura

De acordo com o coordenador de cultura do Movimento Tekojoja, Ramón Sosa, existe um forte problema cultural na fronteira com Brasil e Argentina, onde os alunos estudam em busca de alimentação. O problema econômico da migração, na sua avaliação, também repercute na questão da cultura. “São escravos que estão fora, enviando dinheiro para as pessoas, trabalhando em duras condições, enviando dólares para o consumismo.”

Descentralização e autonomia

A APC enfatizou a chegada ao poder Executivo, devido à centralização política na figura do presidente. De acordo com os movimentos, chegar à presidência era uma tarefa prioritária em relação às eleições locais. A meta, neste momento, é descentralizar os recursos, pois 94% da arrecadação é direcionada ao governo.

Economia

Marcada neste momento pela exportação de soja e pecuária, cujas terras são controladas por 1% da população, dividido o restante entre a elite paraguaia e brasileira. Outro produto de exportação denunciado no Paraguai é a chamada “carne humana”; ou seja, a migração, que leva atualmente 700 mil paraguaios a uma verdadeira diáspora. Foi o país da América Latina com o maior número de migrantes entre os anos de 2003 e 2008.

Fernando Lugo comemora a vitória obtida com 40,82% dos votos: “pequenos também podem vencer”

emociona-se a jornalista Mariela Gonzalez.

Itaipu

Finalizado o pleito, com a vitória irreversível de Lugo, que será empossado no dia 15 de agosto, novas questões táticas se anunciam. Logo nas primeiras entrevistas, o tema da revisão dos contratos de Itaipu com o Brasil se mostrou urgente, na voz de jornais como o ABC Color, de maior tiragem no país. A presença de Frei Betto, acompanhando Lugo na votação, reforçou a expo-

sição do tema. O frade dominicano assinalou a vontade do governo brasileiro em atender a demanda da APC (cumprir o tratado de Itaipu no capítulo que se refere ao preço justo na energia), apesar de, do outro lado do planeta, em Gana, Lula ter saudado a vitória de Lugo, acenando porém que não pretende tratar do assunto. “Em Itaipu, temos um tratado e ele será mantido”, afirmou o presidente brasileiro. Entretanto, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, sinalizou a possibilidade do diálogo.

Conciliação

Já no dia seguinte à eleição, vários matizes políticos deram o primeiro passo, dentro da APC. Um tema bastante levantado é a correlação de forças que formam a aliança. Na primeira entrevista coletiva após o resultado das eleições, Lugo acenou pela conciliação entre a classe política paraguaia, em nome de um projeto de país deixado de lado até então. “Faço um convite muito especial, a toda a classe política, a todos sem exceção: inclusive àqueles

que não compartilham destes ideais. Juntos cremos que [este país] voltará a ser grande”, expressou. O descontentamento e o desgaste popular foi um fator para a eleição da APC. O outro papel decisivo coube – como Lugo ressaltou em seus agradecimentos – aos comissários que fiscalizaram as eleições em cada distrito, à APC e aos movimentos populares. Inferiores em número, jogando o jogo desigual das eleições, cumpriram um trabalho militante exemplar.

Programa de governo Tekojoja nasceu de um ñemongueta guazu, “grande diálogo com o povo” APC

de Assunção O nome de Fernando Lugo é o que garantiu unidade para a APC durante a campanha eleitoral. Seu nome se insere na sigla de modo independente. Seu programa de governo foi construído com forte influência do Movimento Popular Tekojoja, formado por intelectuais e movimentos de base organizados há pouco mais de um ano. O Tekojoja começa a brotar a partir da inquietação e de encontros entre intelectuais, militantes, lutadores sociais, dirigentes de movimentos, em janeiro de 2006. Mais tarde, em março, veio a convocação da “Marcha contra a impunidade”, em protesto contra a violação constitucional do atual presidente, Nicanor Duarte Frutos, ao assumir a presidência do partido e do país ao mesmo tempo. Nesse instante, a capacidade de convocatória, expressa na figura de Lugo, foi considerada fundamental para a marcha, explica Joaquin Bonett, do Tekojoja. “Faltava uma pessoa com capacidade convocatória, sem a qual não chegaríamos a 20 mil pessoas, e a marcha atingiu 45 mil”, relata. O primeiro congresso do movimento foi realizado em 17 de dezembro de 2006, reunindo 1.900 delegados. Ainda no final do ano, Lugo receberia a proposta, sustentada por 100 mil assinaturas, para deixar de exercer a função de bispo e ser o nome para as eleições. Paralelamente, o Tekojoja organizou células que começavam nos bairros,

Já eleito, Lugo atende à imprensa internacional

estendiam-se até os distritos (cidades), e então para os departamentos (Estados). No distrito de San Lorenzo, por exemplo, onde existem 52 bairros, foram criadas células para cada um deles.

Ñemongueta guazu

De acordo com Joaquín, a organização do Tekojoja se faz de “baixo para cima”. O atual programa do Movimento, que organiza a plataforma da APC, nasceu de uma síntese chamada ñemongueta guazu (“grande diálogo com o povo”), assembléias massivas organizadas em cada rincão do Paraguai. A primeira levantou as demandas da população. A segunda levantou a pergunta sobre como transformá-las em uma plataforma de poder. Lugo esteve presente. Dentro da APC, mesmo com a hegemonia numérica do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) – segundo maior partido do país – militantes ligados aos

movimentos populares insistem no controle popular sobre o governo Lugo. “Miramos os processos em partidos vizinhos, como na Bolívia e Equador, onde a institucionalidade é um espaço de confrontos de intereses, sustentados pela participação popular”, comenta Cixto Pereira, um dos nomes do Movimento Tekojoja eleito para o Senado paraguaio (membros de movimentos também podem concorrer nas eleições).

Liberais

Ainda que a expectativa de vitória seja baixa, o Movimento Tekojoja lançou 625 candidatos. Os colorados seguem hegemônicos no Parlamento, embora combalidos pelas atuais eleições, e não possuírem mais o mesmo número de cargos. Ainda assim, no Senado, por exemplo, entre 45 representantes, sabe-se que 15 são colorados e 14, liberais. Na postura dos liberais pode estar a chave da

futura postura do governo de Lugo, para que lado ambos podem pender, juntos ou separados. Na opinião de Karina Rodrigues, da direção do PMAS, que se mantém à esquerda na APC, o partido não pode perder o trabalho de base nos distritos. Outro militante do movimento afirma a necessidade de estar em cada pequena luta nos distritos e na grande Assunção, onde possuem inserção. Para eles, as condidaturas locais podem dar legitimidade e suporte a estes trabalhos. “Será necessário também um trabalho com as pessoas, passadas as eleições. Não podemos chegar ao governo e abandonar o processo de consciência. É preciso trabalhar com os movimentos populares, esta força tem que dar a direção e o caminho do governo”, sintetiza Karina.

Passe-livre

O P-MAS surge das lutas estudantis por passe-livre no transporte para os estudantes, nos anos de 1990. Institucionalmente, o partido disputa sua segunda eleição. Destaca-se pela agitação e propaganda. Com o mote, por exemplo, “Que viagem eles”, referia-se, de modo crítico, à questão da imigração, fazendo campanhas para juntar fundos para a compra de passagens de avião para os colorados. “Um erro histórico da esquerda foi promover o culto ao personalismo. Então, em nossas campanhas, trabalhamos com a denúncia e com a ironia”, comenta Henrique, um militante do partido. (PC)


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américa latina

A crise no Haiti vai continuar CAOS SEM FIM População se revolta contra aumento do preço dos alimentos, política econômica e forças militares da ONU Darren-Ell

Claudia Jardim de Porto Príncipe (Haiti) “AQUILO FOI só o começo”. A sentença é de um vendedor ambulante que passa o dia em meio ao caótico centro de Porto Príncipe, capital do Haiti ,ao se referir à convulsão social vivida no país em meados de abril, motivada pelo aumento dos preços dos alimentos. A aparente tranqüilidade conquistada após a destituição do primeiro-ministro e da promessa de redução dos preços do arroz não perdurará, de acordo com Juin Miguel: “Essa calma vai durar pouco”, adverte. Os principais jornais do país encabeçam seus editoriais advertindo que a crise continua. Na rua, o sentimento é o mesmo. “Como um presidente, o chefe do país, diz na televisão que não pode fazer nada para garantir que o povo tenha comida, que é culpa do mercado? Eu não entendo isso. Não temos trabalho, não temos comida, não temos nada”, afirma Miguel, pai de quatro filhos, enquanto esperava pacientemente que alguém que lhe comprasse utensílios de cozinha. Já eram três da tarde e tinha ganho menos de um dólar. Em meio ao vai e vem e ao caos do trânsito e do mar de vendedores ambulantes, mulheres anunciam a gritos a mercadoria à venda. As bacias equilibradas na cabeça levam frutas, verduras, balas, chicletes, vende-se de tudo. Cerca de 92% dependem da economia informal.

Motivo da revolta O aumento dos preços dos alimentos, do arroz em especial, que foi triplicado em menos de uma semana, a política econômica e a presença das tropas da Minustah – missão de paz das Nações Unidas – motivaram as manifestações iniciadas dia 3, em Les Cayes, região Sul do país, e que se estendeu para a capital Porto Príncipe. A crise era previsível e, de acordo com analistas, o governo optou por não evitá-la. O incremento do preço do barril de petróleo, que alcançou o recorde de 113 dólares, o aumento da demanda de alimentos dos países asiáticos e a pressão para a produção dos agrocombustíveis incidiram no aumento dos preços. No entanto, para o economista Camille Chalmers, a instabilidade dos preços dos alimentos também está relacionada com a especulação do mercado financeiro mundial, afetado pela crise econômica global. A seu ver, muitos empresários veêm os alimentos como a saída para recapitalizar parte dos lucros perdidos em outros setores da economia. “O alimento é um produto de primeira necessidade, é vital, então é mais fácil lucrar desta forma. Se vemos a disponibilidade de alimentos no mercado mundial, vemos que não há uma escassez tão grande que possa justificar um aumento tão rápido dos preços. É um fenômeno altamente especulativo”, avalia. Os cereais sofreram um incremento de preços de 88% entre março de 2007 e março deste ano. A cesta básica, que inclui carne, farinha e leite aumentou 57% neste mesmo período, de acordo com a FAO. “Tudo isso incide na alta dos preços, que ganha um impacto devastador sobretudo em países como o Haiti”, afirma Camille. Protestos Em Les Cayes, as manifestações foram organizadas por meio de uma rádio comunitária que informava as razões da mobilização e convocava a população às ruas. “Saímos a protestar pela alta de preços dos alimentos, contra a política neoliberal deste governo e para exigir a saída das tropas da Minustah”, afirma Guy Numa, do Movimento Democracia Popular (Modep) – uma das organizações que se uniu aos protestos na capital do país. “Essa situação é insustentável, o povo não agüenta mais tanto sofrimento”, acrescenta. As manifestações foram reprimidas pelas tropas das Minustah quando os manifestantes entraram na sede de telecomunicações da missão militar.

Blindados da Minustah (tropas da ONU) em patrulha: protestos populares contra a alta de preços de alimentos e a presença militar no país

Quanto

88%

foi o quanto o preço dos cereais aumentaram entre março de 2007 e março deste ano Quatro pessoas foram mortas, três delas pela missão de paz das Nações Unidas, outra pela Polícia Nacional. Dezenas resultaram feridas. “Se queriam a saída da Minustah, com os protestos, conseguiram ratificar o mandato das Nações Unidas por mais um longo período. Para a comunidade internacional, isso prova que o Haiti ainda não alcançou estabilidade”, critica Patrick Elié, ex-ministro de Defesa durante o segundo governo de Jean Bertrand Aristid.

Os protestos incendiaram a capital Porto Príncipe. Os manifestantes chegaram aos portões do Palácio de Governo para exigir a presença do presidente haitiano. Uma semana antes, Preval teria admitido em uma entrevista que ele também estava sofrendo pela alta dos preços dos alimentos e que, se preciso fosse, se uniria às manifestações. Mas não saiu às ruas. Após três dias de manifestações, o presidente haitiano se comprometeu a reduzir em 8 dólares o preço do arroz, apaziguando a revolta. A promessa tem o prazo limitado de um mês. Logo depois, os preços se estabilizaram em 51 dólares por cada saco de 45 quilos de arroz. “É uma concessão muito limitada e artificial, não resolve o problema”, afirma Chalmers.

Cai o primeiro-ministro; Preval sofre pressão de conservadores de Porto Príncipe Junto com o preço do arroz, outro desdobramento dos protestos da população haitiana foi a queda do primeiro-ministro Jacques Edouard Alexis e seu governo. “Alexis não representava os interesses do povo. Precisamos de um governo que não seja refém do neoliberalismo”, afirmou Joazile Jean Rodolphe, senador do partido social-democrata PONT, responsável pela exposição dos motivos que levaram à derrocada do governo. Para o economista Camille Chalmers, os senadores utilizaram as manifestações para incentivar a queda do governo, tentativa que havia falhado em fevereiro. “Aproveitaram os protestos para fazer o que queriam há muito tempo, mas os protestos nascem do descontentamento da população”, analisa. “Alexis estava se projetando como um candidato presidencial e isso ameaçava os interesses daqueles que têm o mesmo objetivo”, acrescenta. As eleições presidenciais de 2006 foram ganhas por René Preval com maioria nas urnas, mas sem a constituição de candidaturas para deputados e senadores aliados ao Espoe, aliança que congrega o partido de Preval. De acordo com Chalmers, a limitada presença de partidários de Preval no Congresso determinou que Câmara de Deputados e Senado fossem controlados por outros quatro partidos majoritários de centro e direita, obrigando-o à conformar um governo de coalizão, no qual a distribuição de ministérios e cargos públicos são utilizados como pequenos feudos de promoção política.

Conspirações Para Patrick Elié, as manifestações não foram somente utilizadas para derrubar o primeiro-ministro, e sim articuladas para tal fim. “Havia uma necessidade real, a fome e a in-

satisfação com o governo, mas a ação foi articulada por conspiradores”, afirma Elié. De acordo com Elié, que preside uma comissão de Segurança Pública para reestruturar os corpos policias do país, Preval enfrentou dois inimigos de uma só vez, sem prever as conseqüências. Um primeiro alvo teria sido o narcotráfico. Preval anunciou uma política de endurecimento ao tráfico, responsável por 15% de toda a cocaína que chega aos EUA, e à chamada “elite econômica”, ao exigir o fim da evasão de impostos e ao levar à prisão um dos grandes empresários do país, acusado de sonegação. “O governo não se preparou para o contra-ataque. Aqui há um ditado que diz: não compre intestinos de cabra se você não está preparado para destripálas”, afirmou Patrick Elié. A destituição do primeiro-ministro não foi discutida publicamente. A exigência para que Alexis abandonasse o cargo foi tramada em um quarto de hotel, a portas fechadas. A ação foi liderada por Yuri Latorture, sobrinho do ex-primeiroministro BBB Latortue, que assumiu o poder após o golpe de estado de 2004, que derrocou Aristid. Dezesseis senadores, o número exato previsto pela Constituição, retiraram seu voto de confiança no primeiro-ministro, levando à sua destituição. Já para as organizações sociais, a destituição do primeiro ministro é interpretada como uma manobra do governo para terminar com as manifestações, “responsabilizando” um de seus homens pela atual crise. “Destituem o primeiro-ministro não porque consideram que com isso o problema será resolvido, mas sim para acalmar a população e desviar a atenção do foco principal. O problema continua, e novas manifestações virão se não houver mudanças na política econômica”, adverte Guy Numa do Modep. (CJ)

Após abertura comercial, país depende da importação de arroz Até 1980, no entanto, era o milho a base da alimentação dos haitianos de Porto Príncipe O aumento dos preços do arroz foi a gota d’água. Os haitianos tomaram as ruas para protestar contra a carestia e contra as políticas adotadas pelo governo, que incluem o aprofundamento da liberalização da economia e a manutenção da missão de paz das Nações Unidas (Minustah). A crise também serviu para que os haitianos recordassem que o arroz não era, até 1980, a base da alimentação da população. “O arroz era uma comida quase especial, que se consumia no domingo, quando muito”, recorda Miguel Ronel, diretor do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA). O Haiti, até o ano de 1970, era auto-suficiente na produção nacional, basicamente orientada na produção do milho, sorgo, tubérculos e leguminosas. Até então, somente 10 milhões de dólares eram gastos com a importação de alimentos. Agora, somente o arroz corresponde a 250 milhões de dólares na balança de importações.

Políticas do FMI Esse hábito foi modificado a partir de 1980, com a introdução paulatina do arroz proveniente dos Estados Unidos. Em 1986, aplica-se o primeiro plano de ajuste estrutural, orientado pelo Fundo Monetário Internacional, e os impostos sobre a importação caíram. “É o primeiro golpe que se dá aos produtores nacionais, as chances de competir eram muito limitadas”, afirma o agrônomo Franck Saint Jean, especialista em planos de Soberania Alimentar. Junto com as importações, crescia o consumo do arroz. Na década de 1980, um haitiano podia consumir até 25 quilos de arroz anualmente. Em 2004, o número saltou para 45 quilos anuais por pessoa. Deste total, apenas 20% do arroz é produzido no país. “Passamos de auto-suficiência na produção agrícola a dependentes dos EUA”, avalia o economista Camille Chalmers. “O país mais pobre do continente é o terceiro maior impor-

tador mundial de arroz dos EUA”, acrescenta. A opção pelo arroz, em detrimento de outros cereais, nota-se no prato dos haitianos. A porção do arroz é consideravelmente superior à do feijão, da banana frita ou da mandioca.

Abertura comercial O segundo golpe à produção nacional veio em 1994, a partir do retorno ao governo de Jean Bertrand Aristide, exilado após o golpe militar sofrido em 1991. Aristide aprofunda a abertura para as importações. Ao mesmo tempo, o mercado agrícola interno era arrasado pela impossibilidade de competir com os produtores subsidiados pelos EUA. Um relatório elaborado pelo Ministério de Agricultura em 2007 afirma que “este processo de liberalização do regime comercial tinha como objetivo assegurar a segurança alimentar no país e apoiar a produção destinada à exportação”. No entanto, o próprio governo admite o fracasso. “Desafortunadamente, essa política não deu os resultados esperados. A ausência de medidas compensatórias, que visam diminuir o efeito do choque sobre a economia, e a rapidez com a qual este (modelo) foi adotado gerou efeitos mais negativos sobre a agricultura, e a situação alimentar da população haitiana se deteriorou consideravelmente”, afirma o Relatório de Orientação da Política Agrícola de 2007. A partir de 1995, o imposto que se pagava para a importação do arroz caiu de 50% a 3%; para o trigo, a redução foi de 50% a 0%; e o do porco e o do frango, de 40% a 5%, de acordo com cifras do organismo Christiana Aid, de 2006, citado no informe do governo. “Importamos 1 milhão de ovos diários da República Dominicana e temos capacidade de produzir aqui”, afirma Miguel Ronel, diretor do INRA. Eliminação Um ponto chave no processo de deterioração da economia camponesa haitiana, recordada por todos os analistas consultados pelo Brasil de Fato, foi o extermínio da criação de porcos crioulos, estabelecido em 1980 no regime do ditador Duvalier. O porco era o banco da família camponesa. Se alguém ficava doente, ou se

tinham que pagar os estudos dos filhos, o porco era a garantia. Na década de 1980, o Haiti exportava carne suína para os EUA e houve um surto de febre porcina, que afetou parte da produção do país. De acordo com o economista Camille Chalmers, os produtores de gado dos EUA viam a produção pecuária hatiana como ameaça e utilizaram a febre porcina como argumento para eliminar a competição. “Exigiram que a USAID – órgão do governo estadunidense para ajuda internacional – e o próprio governo pressionassem o governo haitiano para matar todos os porcos, e Duvalier aceitou”, recorda. Os EUA investiram, na época, 23 milhões de dólares para eliminar todos os porcos do país, e apenas 5 milhões foram gastos para substituir os animais crioulos por uma outra raça originária dos EUA. “Os porcos que trouxeram eram industriais, não estavam adaptados ao campo. Os camponeses gastavam mais com a alimentação dos animais do que com seu próprio alimento, era absolutamente inviável. Com o fim dos porcos, eliminou-se o sustento da economia camponesa e podemos entender a origem do que está acontecendo hoje”, afirma o analista Marc Arthur Film Aimé, diretor do Instituto Cultural Karl Leveque. De acordo com dados do governo, 56% da população rural vive em condições de pobreza extrema. Nesses lugares, 20% das crianças sofrem de desnutrição, a metade da população não dispõe de serviço de saúde e 4 de cada 5 pessoas não têm acesso à água potável. A pobreza também acelerou o desmatamento no país. “Antes, a fonte de liquidez da família camponesa era o porco, agora a única fonte de liquidez é a árvore. Quando não têm nenhum dinheiro, cortam uma árvore que equivale a 600 dólares e que é destinada à produção de carvão”, afirma Camille Chalmers. No campo, a energia elétrica é praticamente inexistente. Na cidade, a situação não é muito diferente: cerca de 70% da energia do país é proveniente do carvão extraído da madeira. Quando anoitece, o caos das ruas de Porto Príncipe se perde na escuridão. (CJ)


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internacional

Crise financeira atinge países que assinaram TLC’s com os EUA Reprodução

ESTADOS UNIDOS Costa Rica, Honduras e Guatemala já sofrem com desemprego por terem empresas com contratos exclusivos com o país; ainda assim, Bush insiste em assinar TLC com a Colômbia

tados Unidos. Para um país com uma população de pouco mais de 3 milhões, o número é significativo. Honduras e Guatemala seguem o mesmo caminho. E os primeiros resultados já podem ser percebidos na costa da Flórida, para onde migram centenas de pessoas, principalmente da América Central e dos países banhados pelo Caribe. Nos dois últimos meses, o número de imigrantes para o sul dos Estados Unidos passou de 130 por mês para mais de 180. E, na noite de 21 de abril, a Guarda Costeira da Flórida recolheu 60 mortos de um barco que vinha carregado de haitianos e salvadorenhos fugidos da miséria de seus países. Só três dos náufragos sobreviveram.

Memélia Moreira de Orlando (EUA) DAQUI A alguns anos, muitos anos, quando historiadores e arqueólogos se debruçarem para estudar as cinzas do capitalismo, no capítulo “recessão americana”, certamente o Brasil será citado como um dos países que sobreviveu à grande crise. E um nome terá destaque nesse capítulo: o do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que, com respaldo dos movimentos sociais da América Latina, resistiu à assinar um acordo que levaria o continente à catástrofe que começa a ser vivida pelos estadunidenses. Sua persistência para evitar que o Brasil assinasse o acordo de criação da Área de Livre Comércio da América Latina (ALCA) na reunião de Miami, foi decisiva para nos tornar menos vulneráveis à crise. Naquele outono de 2003, na ensolarada Miami, Amorim usou todas as cartas e virou o jogo em favor do Brasil, deixando um alerta para os demais países latino-americanos. A ALCA, nos termos pretendidos pelo Império, era nociva aos interesses dos países que vivem ao sul dos Estados Unidos. Seu comportamento foi exatamente o inverso de seu antecessor no ministério, Felipe Lampréia, que não só era favorável à ALCA, como chegou ao cúmulo de, nas discussões sobre esse tratado de livre comércio, assinar um acordo bilateral com os Estados Unidos, cedendo a Base de Alcântara, no Maranhão, para uso exclusivo dos gringos. Mais uma vez, os movimentos populares e o relator do assunto na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, o então deputado Waldir Pires (PT-BA), evitou uma “Base de Guantánamo” em território brasileiro.

Em 2003, a persistência do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, para evitar que o Brasil assinasse o acordo de criação da Área de Livre Comércio da América Latina (ALCA) na reunião de Miami, foi decisiva para nos tornar menos vulneráveis à crise Sem estardalhaço, Celso Amorim enfrentou um plenário que reunia ministros de 34 países latino-americanos, homens de negócios de todo o continente e, principalmente, Robert Zoellick, que era subsecretário de Comércio dos Estados Unidos e hoje, presidente do Banco Mundial. Era um encontro de diplomatas, mas o jogo foi pesado, principalmente porque Zoellick chegara ao cúmulo de dizer que “ou o Brasil adere à ALCA ou vai se aliar à Antártida”.

Miami, novembro de 2003: movimentos sociais de toda América Latina protestaram contra a ALCA

Os países que aceitaram assinar acordos conhecidos pela sigla TLC (Tratado de Livre Comércio) já vivem as angústias da crise que começou com os bancos que praticavam o sub-prime (juros abaixo dos valores do mercado) nos empréstimos imobiliários, e hoje já atinge boa parte da economia estadunidense, que começa a viver sua primeira grande recessão do século 21 Mas Celso Amorim não se intimidou. Ele resistiu e, ao enfrentar os anfitriões, e demais ministros da América Latina, provocou também a agonia dos tratados comerciais que os EUA queriam mais uma vez impor à nossa América. Lá fora, isolados da reunião, os movimentos sociais de toda a América Latina demonstravam sua total repulsa ao tratado nas manifestações que nos jornais estadunidenses foram chamadas de “a batalha de Miami”.

Brancaleone x caubóis De um lado, bombas de pimenta, gás lacrimogêneo, 30 mil homens vestidos de preto dos pés à cabeça, cobertos por elmos à prova de balas, outros formando uma barreira, montados em bicicletas com luz de neón, camburões, jovens policiais com algemas penduradas na cintura, atiradores de elite na coberturas dos hotéis da avenida Bay Biscayne, armas ostensivamente à mostra. Do outro, pessoas coloridas, desarmadas, com alegres e ritmados gritos de protesto que misturavam inglês, português, espanhol, lembrando “o incrível Exército de Brancaleone” – um cavaleiro atrapalhado que lidera um pequeno e esfarrapado Exército – , vigiadas pelo ar por helicópteros com seus potentes faróis, e pelo mar, no azul do Caribe da baía Biscayne, por um portaaviões de tamanho médio. Todos prontos para atacar os 15 mil manifestantes que, naquele dia de 2003, diziam “não” à ALCA. No auditório da Igreja Batista, na mesma avenida em que aconteciam os confrontos, num discurso para um público de mais de 3 mil pessoas, o poderoso John Sweeny, presidente da maior central sindical do mundo, a AFL-CIO, alertava o auditório contra os efeitos nefastos da ALCA, “que vai tirar mais empregos dos estadunidenses, como fez o NAFTA [Área de Livre Comércio da América do Norte, integrada pelos Estados Unidos, México e Canadá]”. Seus seguidores engrossaram a marcha enquanto clamavam “Fora Bush”, palavra de ordem imediatamente apoiada pelos manifestantes latino-americanos.

A 400 metros dos manifestantes, no hotel Inter-Continental, um cinco estrelas cercado por telas eletrificadas, Celso Amorim, quase de forma solitária, e até contra seu colega, Fernando Furlan, então ministro da Agricultura, anunciou que seu país não assinaria o acordo nas bases propostas pelo governo estadunidense, mentor intelectual da ALCA ou FTAA, na sua sigla em inglês. No Brasil, poucos se lembravam que, naquela data, 19 de novembro, se comemorava o Dia da Bandeira. E nenhum brasileiro, mesmo vidente, com bola de cristal ou babalorixá e seus búzios, podia prever que naquele dia, a voz solitária do ministro tornou o Brasil mais resistente nos anos seguintes. Os demais países que prontamente concordaram com Zoellick e aceitaram assinar acordos conhecidos pela sigla TLC (Tratado de Livre Comércio) já vivem as angústias da crise que começou com os bancos que praticavam o subprime (juros abaixo dos valores do mercado) nos empréstimos imobiliários, e hoje já atinge boa parte da economia estadunidense, que começa a viver sua primeira grande recessão do século 21. E uma recessão que a cada dia mais se aproxima de uma depressão.

Recessão x depressão O professor Aírton Queiróz, do Departamento de Economia da Tecnologia da Universidade Federal Fluminense, chama a atenção para a diferença entre “recessão” e “depressão”. Diz ele que a “economia estadunidense, embora já tenha, na margem, entrado em recessão – que significa redução do ritmo de crescimento –, ainda cresce, mesmo que pouco. Recessão não é depressão. Este último fenômeno é muito mais grave, significa volumes nacionais de produção física menores que nos trimestres/ anos anteriores, o que causa desemprego de gente de capacidade produtiva, de investimentos, em movimento de bola de neve, isto é, ladeira abaixo, comprimindo o

O presidente George W. Bush parece desconhecer a tragédia que se forma ao seu redor. E, num alheamento que se assemelha à oligofrenia, Bush ainda insiste em assinar tratados comerciais. Sua mais recente investida é a Colômbia, “em defesa da democracia no país” Os sobreviventes desses naufrágios, cada dia mais freqüentes, obviamente, vão se juntar ao exército dos ilegais que aceitam qualquer tipo de trabalho em troca de salários abaixo do mínimo do Estado da Flórida, que é de US$ 6,75/ hora. Ou seja, mais uma razão para os sindicalistas estadunidenses baterem forte contra os tratados de livre comércio.

consumo e destruindo a economia”. O professor diz que ainda é cedo para avaliar até onde vai chegar a crise, porque, afirma, “só houve grandes danos nas empresas imobiliárias, em bancos de investimentos e em algumas seguradoras. Os balanços dos gigantescos bancos comerciais referentes ao primeiro trimestre de 2008 ainda não saíram”. Mas, mesmo reconhecendo que o fenômeno ainda não se enquadra na depressão clássica, Queiróz chama a atenção para o fato de que os “Estados Unidos vivem, desde a década de 1970, acima de suas possibilidades, formando dívidas públicas e privadas crescentes, e um dia a fatura teria que chegar. Até que demorou muito para chegar a conta. E só chegou um pedaço pequeno dela”. Ou seja, provavelmente o valor total da conta mergulhe o país na depressão, palavra estigmatizada para qualquer estadunidense com mais de 60 anos. Se a depressão ainda é só uma ameaça, ela vem solapando até mesmo os grandes bancos. É o caso do Citi. Considerado o maior banco privado do mundo em ativos, assistiu um rombo colossal nos seus lucros em 2007, em decorrência da crise imobiliária. O rombo foi de 18 bilhões (bilhões!!!) de dólares, e o anúncio de que 20 mil empregados serão demitidos até o final do semestre.

Primeiros efeitos Mesmo que a depressão ainda pareça distante, a recessão já começou a fabricar suas vítimas, não só dentro

“Os Estados Unidos vivem, desde a década de 1970, acima de suas possibilidades, formando dívidas públicas e privadas crescentes, e um dia a fatura teria que chegar. Até que demorou muito para chegar a conta. E só chegou um pedaço pequeno dela”, diz professor de economia da Universidade Federal Fluminense dos Estados Unidos. Ela começa a atingir aqueles que assinaram acordos bilaterais de comércio com os EUA. A primeira vítima é a Costa Rica. Em 2007, o governo promoveu um referendo para aprovação do TLC. Na época, a Igreja Católica e os movimentos sociais acusaram o presidente costarriquenho, Oscar Arías, de compra de votos para aprovar o tratado. E agora, 14 meses depois do referendo ser aprovado, os trabalhadores costarriquenhos já sabem o quê significa “livre comércio” com um país em bancarrota. Na primeira semana de abril, 1.600 pessoas perderam o emprego numa fábrica que tem contrato exclusivo com os Es-

Colômbia Apesar da derrota em Miami, apesar dos anúncios de catástrofes, e apesar de todos os alertas de que os tratados vão criar mais desemprego num país que, por causa da crise, está perdendo mais e mais postos de trabalho, o presidente George W. Bush parece desconhecer a tragédia que se forma ao seu redor. E, num alheamento que se assemelha à oligofrenia, Bush ainda insiste em assinar tratados comerciais. Sua mais recente investida aconteceu no início de abril, quando o presidente mandou ao Congresso a mensagem para que fosse votada a lei autorizando os EUA a assinar o TLC com a Colômbia. Ele pediu pressa “porque o Tratado de Livre Comércio com a Colômbia atende nossos grandes interesses nacionais e é em defesa da democracia na Colômbia”. O velho discurso, dessa vez, não colou. George W. Bush mais uma vez frustrou-se. Nancy Pelosi, deputada democrata do Estado da Califórnia, e terceira na linha de sucessão presidencial (ela é presidente da Câmara), depois de dizer que “o presidente vai nos levar à bancarrota com as guerras do Iraque e Afeganistão e a crise econômica”, usando de suas prerrogativas contitucionais, decidiu fazer o projeto tramitar em “60 dias legislativos”. Ou seja, mais de seis meses. Em outras palavras, o próprio Congresso estadunidense deu o tiro de misericórdia no grande sonho de se ter uma zona franca de comércio do Alasca à Patagônia, transformando em cinzas não apenas a ALCA (que ainda povoava o imaginário de Bush), mas seu sucedâneo, o TLC. E ele próprio já admite, nas reuniões de gabinete, que o prazo estipulado por Nancy Pelosi, “liquida o tratado”.


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internacional Guillaume de CROP

Foices contra a contaminação biotecnológica FRANÇA O movimento Faucheurs Volontaires reúne médicos, escritores, jornalistas e estudantes, além de camponeses bioecológicos e produtores prejudicados pela contaminação de suas produções por transgênicos Douglas Estevam de Paris (França) “LEIS INJUSTAS existem. Devemos nos contentar em obedecê-las ou nos esforçar para corrigi-las?” As palavras de Henry Thoreau, primeiro ativista e formulador da desobediência civil, são reivindicadas e atualizadas na França com as ações dos Faucheurs Volontaires – numa tradução livre, “os que usam foices voluntariamente”. Nos dias 8 e 9 de abril, em Chartres, ocorreu o primeiro julgamento dos 58 faucheurs processados pela neutralização do campo de pesquisa de milho trangênico da Monsanto, na cidade de Poinville. A parcela de 2 mil metros quadrados da SAS Monsanto Agriculture France foi neutralizada no dia 18 de agosto de 2007, por faucheurs volontaires vindos de diferentes regiões da França como Centre, Bretagne, Île-de-France, Nord. O estudante Henry, de 15 anos, que também era um dos acusados, teve seu processo refutado pelo juiz do palácio de Justiça de Nantes. Na semana seguinte, seria José Bové e mais 11 faucheurs que responderiam processo no tribunal de correções de Bordeaux, acusados por terem neutralizado um silo com mais de duas toneladas de milho transgênico, em Lugos, mas tiveram seu julgamento adiado em função do pouco tempo que os advogados tiveram para preparar a defesa. Todos eles são acusados, de acordo com o Código de Procedimento Penal francês, por “destruição do bem de outrem”.

“Eu destruí minúsculas usinas que podem destruir e contaminar minha alimentação. Eu conheço o princípio da propriedade privada. Se eu cometi um ato grave, é porque a situação é grave. A Monsanto transgride minha integridade física, ela não tem rédeas para sua monstruosidade, ela lhes deixa escapar” disse Phillippe, carpinteiro, um dos acusados em Chartres.

Não só camponeses Os faucheurs volontaires defendem a não-violência como forma de intervenção, o engajamento consciente e a ação coletiva. O movimento conta hoje com mais de 7 mil integrantes na França, de diversas faixas etárias e condições sociais. Entre eles, estão não só os camponeses bioecológicos ou produtores prejudicados pela contaminação de suas produções por transgênicos, mas também médicos, escritores, jornalistas e estudantes, ou seja, um heterogêneo grupo de cidadãos. O cirurgião vascular Michel Cogan destaca que “a importância de pessoas não habituais nestas ações pode mostrar, notavelmente entre a comunidade médica, como a perspectiva da saúde pública pode mobilizar as pessoas”. Por meio da neutralização dos campos de experiências e outras ações, são denunciados os riscos de contaminação irreversíveis de outras espécies vegetais, entendidas como um atentado ao patrimônio da humanidade. Em seu programa, os faucheurs se negam a aceitar o totalitarismo dos OGMs (organismos geneticamente modificados) na agricultura e na alimentação,

Quanto

7 mil

pessoas fazem parte do Faucheurs Volontaires. assim como as imposições da OMC (Organização Mundial do Comércio), que submetem os camponeses do Norte e do Sul do mundo à dominação das empresas de biotecnologia que, em vez de reduzir a fome no mundo, gera risco de aumentá-la.

Direito à intervenção Os faucheurs envolvidos na neutralização de Poinville publicaram a Declaração de Chartres, na qual expõem os motivos que os levaram a realizar sua ação. Neste documento, eles afirmam que agiram em nome do Princípio de Precaução, inscrito na Constituição Francesa pela Carta, do Meio-Ambiente e adotado como Lei Constitucional em março de 2005. De acordo com o 3º artigo da Carta “toda pessoa deve, dentro das condições definidas pela Lei, prevenir sobre os atentados que ela é suscetível de provocar ao meio-ambiente ou, ao menos, limitar suas conseqüências”. Em sua declaração, os faucheurs afirmam que “os autores de disseminação voluntária, empresas ou agricultores, não podem deixar de responder à população sobre os amplos riscos e perigos sociais, ambientais, econômicos, políticos e sanitários que sua atividade provoca”. Alegando recusar-se a entrar em debates científicos, a Monsanto não apresentou testemunhas no tribunal de Chartres. Por parte dos acu-

Debates paralelos serviram de formação de Paris “A desobediência civil é uma verdadeira escola. O que estamos fazendo aqui é uma faculdade popular. Estes debates, estes julgamentos, são formadores de consciência”, foram as palavras de Jean Baptiste Libouban, o idealizador da organização dos Fauchers Volontaires, ao término do primeiro dia de julgamento. Com efeito, um conjunto de atividades foram organizadas na cidade de Chartres durante o processo. Cientistas, pesquisadores, filósofos, jornalistas, entre outros, proporcionaram uma profunda compreensão dos aspectos políticos, econômicos e ambientais envolvidos na temática de OGMs. A programação havia começado na véspera, com a exibição e debate com a realizadora do filme O Mundo segundo a Monsanto, de Marie-Monique Robin. O minucioso trabalho de investigação da jornalista apresenta com documentação rigorosa os danos ambientais e para a saúde provocados pelos produtos da transnacional. Traça em detalhes o lobby feito pela empresa para a liberação de seus produtos, por meio da presença de funcionários ligados a ela ocupando altos postos na Casa Branca. As participações da empresa na Segunda Guerra mundial; na produção da bomba atômica; na criação do agente laranja, utilizado na guerra do Vietnã; e o controle exercido sobre cientistas e jornalistas. Na seqüência dos debates, vieram temas sobre a legislação de OGMs, mercado internacional e ciên-

cia. A pesquisadora Isabelle Goldringer, do Instituto Nacional de Pesquisas em Agronomia, relatou a política dos órgãos de pesquisa, que prioriza apenas o desenvolvimento de projetos voltados ao mercado, e afirmou a necessidade do desenvolvimento da autonomia dos camponeses, a valorização da biodiversidade e a produção agroecológica. Christophe Bonneuil, doutor em história da ciência, reafirmou o depoimento que havia apresentado no tribunal, enfatizando o importância da sociedade civil na produção do conhecimento. O cientista Christian Velot ressaltou as ações contra os centros de experimento de transgênicos como uma forma de resignificar o papel da pesquisa, sua orientação política e econômica. Ele negou o discurso da autonomia da ciência frente ao controle imposto pela orientação de mercado e criticou sua submissão frente à elaboração de tecnologias produtivistas.

Marchas O debate público era complementado pelas marchas realizadas durante os dias de julgamento, pelo centro da cidade de Chartres, com paradas de denúncia em frente à loja McDonalds. A cada dia a marcha contava com mais participantes. No último, colegiais da cidade se pronunciaram relatando a total ausência de debates sobre o assunto na imprensa e na escola, o desconhecimento das implicações da produção transgênica, e se interrogando sobre as possibilidades de ação também daqueles que não eram camponses. (DE)

Protesto francês: “OGM, eu não quero mais isso”

sados, cientistas, escritores, senadores e agricultores serviram de testemunhas. Entre eles estava Christian Velot, mestre de conferências em genética molecular na Universidade de Paris-Sud. O cientista relatou a experiência realizada na Itália, na qual ratos “alimentados com soja transgênica durante seis meses apresentaram alergias no estômago. Depois que a alimentação com esta soja foi interrompida, as alergias cessaram”. Velot denunciou ainda os cortes de créditos para pesquisas e alerta para a urgência de realização de estudos independentes, “pois não dominamos todos os efeitos colaterais de

OGMs a curto, médio e longo prazo”.

Lavoura contaminada Outra testemunha que deu sua palavra em defesa dos faucheurs foi o agricultor Patrick de Kocho, que só planta orgânicos. Em 95, ele começou a produzir cereais, e, em sua primeira colheita, já foram encontrados traços de soja OGM. Os processos movidos na justiça francesa não resultaram em nada e ele moveu um processo contra a Monsanto nos EUA, ainda sem definição. Em seu testemunho, ele diz que “os atos de cidadania que os faucheurs de OGMs realizam, com o objetivo de evi-

tar as contaminações que colocam em risco os agricultores engajados numa produção de qualidade, acordam os cidadãos e interpelam a justiça sobre seu trabalho”. A senadora do Partido Verde, MarieCristine Blandin, que teve uma participação ativa nos recentes debates sobre OGMs durante o Grennelle Environnement (um debate multipartidário que reuniu representantes do governo e de ONGs para discutir temas relacionados ao meio ambiente, com o objetivo de se chegar a um consenso), lembra que “mesmo os promotores de OGMs reconhecem o problema da disseminação de milho transgênico”.

Faucheurs Volontaires surgiram em 2003 para apoiar a luta dos agricultores franceses de Paris As ações de neutralização de campos de pesquisa em OGMs na França começaram pouco após a implementação desta tecnologia no país. Desde 1996, o sindicato Confédération Paysanne vinha apresentando dados críticos sobre a utilização dos produtos da indústria de biotecnologia. Em 1997, seria realizada a primeira ação contando com a participação de mais de 300 pessoas. A corte de apelação de Grenoble reconheceu o caráter agrícola e rural desta ação anti-OGM e constatou que o sindicalismo consiste também na defesa da saúde e do meio ambiente. Após uma ação de 1998 contra um estoque de sementes de milho transgênico da Norvatis, aconteceu a primeira prisão de José Bové e Riesel, porta-vozes do sindicato. A segunda prisão de José Bové, em 2003, depois da desmontagem de uma unidade do McDonalds, e a quantidade de processos movidos contra a Confédération dificultaram cada vez mais as ações e tornou preocupante o futuro do sindicato.

O mentor Jean Baptiste Libouban, idealizador da Faucheurs Volontaires, havia participado de algumas das ações da Confédération Paysanne e acompanhado o caso do agricultor canadense Percy Schmeiser, condenado pela Monsanto a pagar royalties quando ele teve sua produção contaminada. Nascido em 1935, Jean Baptiste tem uma longa história

de luta pelos direitos do homem e pela desobediência civil. Por meio de ações de não-violência, ele lutou contra a construção da bomba atômica francesa, contra a extensão militar sobre a região de Larzac, contra as guerras do Golfo e do Iraque. Ele é um dos membros da Communautés de l’Arche, movimento criado após a Segunda Guerra mundial pelo discípulo de Gandhi, Lanza del Vasto. Ciente das dificuldades que a Confédération Paysanne vinha encon-

Nos três primeiros anos de atuação, os faucheurs já tinham neutralizado campos de experiências com transgênicos em toda a França trando para dar continuidade a suas ações, Jean Baptiste apresentou a José Bové a proposta de constituição do movimento dos Faucheurs Volontaires. Em 2003, por iniciativa de Bové, foi realizado, na região do Larzac, um grande encontro para preparar um contra-debate à Conferência de Cancún, da OMC. Organizado em torno de vários temas, como privatização da água, poluição, OGMs e mundialização, o evento, representado por diversos movimentos altermundialistas, reuniu mais de 300 mil pessoas. Foi neste encontro que Jean Baptiste Libou-

ban lançou a proposta de organização do movimento. Neste primeiro momento, a organização se constituiu com 400 membros. Em menos de dois anos, o movimento contaria com 5 mil membros. Nos três primeiros anos de atuação, os faucheurs já tinham neutralizado campos de experiências com transgênicos em toda a França. Mais de 20 ações tinham sido realizadas: jornadas de propaganda, conferências, julgamentos, destruição de silos etc. Em junho de 2006, o Ministério da Agricultura estimava que mais de 40% dos campos de produção transgênicas tinham sido eliminados.

Convicção profunda O que caracteriza a organização dos faucheurs é seu engajamento como um chamado à consciência, não uma incitação à destruição. Também não se reduz a um setor da sociedade, mas ao conjunto de homens e mulheres empenhados em conter a destruição engendrada pelo mercado. As ações são reivindicadas pelos seus sujeitos, eles querem assumir a responsabilidade pelos seus atos e seus significados, pois eles têm uma convicção profunda da necessidade social do que fazem. Inúmeras vezes, centenas de voluntários se apresentaram para serem julgados junto com os acusados. É uma organização sem centralização de poder e de tomada de decisões coletivas, que exige a responsabilidade pelos próprios atos. A ação se configura como coletiva, como um engajamento pessoal vivido coletivamente em nome do bem comum. (DE)


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