Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 270
São Paulo, de 1º a 7 de maio de 2008 Rivaldo Gomes/Folha Imagem
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br Reprodução
O caso Isabella
80 ANOS
Mídia transforma notícia em episódios de novela. De acordo com especialistas, o crime só teve repercussão porque os personagens são de classe média. No mesmo final de semana em que Isabella morreu, outras quatro crianças foram assassinadas. Pág. 6
“Samba, a coisa mais importante do universo”, diz Nelson Sargento durante aniversário da Mangueira. Pág. 8
CPI aponta ilegalidades e precarização da saúde no Estado de São Paulo Especuladores comemoram elevação dos juros no Brasil Além de frear o consumo e o crescimento, as taxas de juros do Brasil possibilitam que bancos e transnacionais obtenham lucro em cima dos trabalhadores captando grandes volumes de recursos no exterior. Apenas no primeiro trimestre, essas empresas
trouxeram em empréstimos cerca de 4,7 bilhões de dólares. O que eles fazem é captar recursos a juros baixos e emprestar aos brasileiros que, ainda antes da elevação da Selic definida em abril, já pagavam as maiores taxas do mundo. Pág. 3
Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde de São Paulo mostra uma série de irregularidades na administração do setor por parte do governo estadual, desde 1998; ou seja, nas gestões de Geraldo Alckmin a José Serra, ambos do PSDB. As principais denúncias recaem sobre as organizações sociais (OS’s),
entidades privadas que recebem verbas e concessões do Estado para administrar hospitais e Unidades Básicas de Saúde. De acordo com o relatório, pessoas ligadas às próprias OS’s, inclusive professores de instituições mantidas pelas mesmas, são contratadas para prestarem serviços. Pág. 7
Mikey Mayhem
Elite racista de Santa Cruz quer autonomia na Bolívia A oligarquia separatista de Santa Cruz marcou para o dia 4 um referendo que decidirá pela autonomia do departamento boliviano. Considerada ilegal pelo presidente Evo Morales, a consulta foi idealizada pelo governador crucenho e pelo comitê cívico local. Para compreender as motivações anti-nacionais da elite de
Santa Cruz, o correspondente na Bolívia Igor Ojeda conversou com Ximena Soruco Sologuren e Wilfredo Plata, sociólogos da Fundación Tierra. Para eles, essa oligarquia mantém o poder através de uma lógica econômica baseada no latifúndio e em um capitalismo colonial que tolera a servidão. Págs. 10 e 11
Nações Unidas culpa FMI e Bird pela falta de comida Elite de Santa Cruz quer controlar a titulação de terras e a gestão de recursos naturais
Paraguai sofre Redução da jornada pauta 1º de maio “sangria” anual de US$ 700 mi Principais centrais sindicais definem bandeira unitária O principal desafio que se coloca ao presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, é o de libertar a economia do país do tripé: monocultura da soja, criação de gado para exportação e importação de produtos sem impostos. Para tanto, Lugo, que toma posse no dia 15 de agosto, espera conter a “sangria” anual de 700 milhões de dólares causada pelo desequilíbrio entre a necessária importação de petróleo e a venda de hidroeletricidade a preços ínfimos, como explica Ricardo Canese, do movimento Tekojoja. Pág. 12
Centrais sindicais do país realizam atos no Dia do Trabalhador para exigir a redução da jornada, sem diminuição de salário. De acordo com seus diri-
gentes, a medida, além de possibilitar que os trabalhadores dediquem mais tempo à família e ao lazer, distribui a riqueza gerada durante o expediente.
Para Artur Henrique, presidente da CUT, a união entre as centrais é sinal de maturidade em relação a temas de interesse dos trabalhadores. Pág. 5
O diretor-geral das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, Jacques Diouf, reconheceu, no dia 25 de abril, que políticas aplicadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (Bird) ao longo das duas últimas décadas desmontaram sistemas implementados para proteger agricultores do chamado
Terceiro Mundo. No Haiti, a repórter Claudia Jardim informa que o processo de eliminação das taxas de importações para produtos agrícolas teve início em 1986. Cálculos indicam que 800 mil postos de trabalho ligados aos setores do arroz, açúcar, frango e ovos tenham sido eliminados nos últimos anos. Pág. 9 The Stookeys
Urbano Erbiste/Folha Imagem
No RJ, combater a violência é matar pobres
Policiais do Bope buscam traficante na favela Vila Cruzeiro (RJ)
Na penúltima semana do mês de abril, a PM matou 11 pessoas em uma ação contra traficantes. Outras duas operações no mesmo mês deixaram 14 mortos, várias vítimas inocentes. Uma delas é Josélia Barros Afonso, de 70 anos. Para o coronel Marcus Jardim, “a PM é o melhor inseticida social”. E assim Sergio Cabral combate a violência no Rio. Pág. 4
Haiti: neoliberalismo resultou em aumento dos preços dos alimentos
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editorial NÃO SEJAMOS paranóicos. Mas não temos direito de ser tontos. Quando em política se multiplicam coincidências, devemos sempre estar atentos. Enfim, o que se passa em nossas fronteiras da chamada Calha Norte? Desde o bombardeio e invasão do Equador pelas tropas do narco-presidente colombiano, Álvaro Uribe, há um mês, seguido de uma inesperada visita da “chefa” do Departamento de Estado dos EUA, senhorita Condoleezza Rice, fatos aparentemente isolados têm colocado as nossas fronteiras da região, conhecida como Calha Norte, nas manchetes de jornais. Depois das pressões de Miss Condie em torno da “flexibilização das fronteiras nacionais” sempre que se tratasse da necessidade de perseguir “terroristas”, a instabilidade ronda a região. O primeiro caso foi a crise aberta pelos “arrozeiros” em parceria com o general Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Amazônia, contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR). Em seguida, a revista Isto É publica longa matéria sobre suposta guerrilha em Rondônia. Por fim, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, anuncia – contrariando
debate
A morte comanda o cangaço toda a política externa do Governo a que deveria servir – que, se as Farc pisarem em solo brasileiro, serão recebidas a bala.
O general Heleno Pereira
Depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a Reserva Raposa Serra do Sol (2005), os “arrozeiros” já atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, espancaram e balearam índios, arrebentaram postos de saúde. Somente agora, no entanto, a crise ganharia um novo protagonista: o comandante da região, general Heleno, um militar da linha dura do regime pós-64, que ganhou notoriedade por seu envolvimento no escândalo do hoje ex-juiz Nicolau dos Santos Neto. Além disso, em 2004, pouco depois de assumir seu posto de chefe da Força de Estabilização do Haiti (Minustah), atribuiu a violência naquele país às críticas do então candidato democrata à Presidência dos EUA, John Kerry, contra a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide pelo consórcio Washington-Paris. A
declaração gerou um incidente diplomático. No ano seguinte (2005), o general foi acusado, em documento lançado pelo Centro de Justiça Global da Universidade de Harvard, de dar cobertura à campanha de terror da Polícia Nacional do Haiti, e de violação (pela própria Minustah) dos direitos humanos. Agora, com suas declarações, o general violou triplamente a Constituição: primeiro, porque esta define que os oficiais da ativa devem obediência a seus superiores na cadeia de comando, em cujo topo está o presidente da República; segundo, porque a Constituição consagrou (artigo 231) o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupem; finalmente, porque é papel das Forças Armadas zelar pela aplicação da Carta. Assim, ele – e não os índios ou a Reserva – colocou em risco a Segurança Nacional. Mais que isso, clubes militares se manifestaram, abaixo-assinados circularam e o DEM cerrou fileiras. Acontece que as terras demarcadas, e outrora propriedade dos arrozeiros, é uma área entre duas cadeias de
montanhas, única passagem, naquele Estado, de acesso à Venezuela.
A “guerrilha” de Rondônia
A suposta guerrilha em Rondônia, denunciada pela revista Isto É há duas semanas, é outro mistério. De acordo com a Isto É de Daniel Dantas (Opportunity), a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) estaria implantando uma guerrilha naquele Estado. A revista descreve supostos acampamentos, homens e mulheres usando passa-montanhas, descreve ações que teriam sido levadas a cabo na região, supostos contatos com as Farc etc. Algo difícil de acreditar. Implantar e ativar uma guerrilha hoje, no Brasil, soaria tão suspeito quanto o atentado do 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas, ou o Incêndio do Reichstag na Alemanha dos anos de 1930. Um documento lançado pela LCP, dias depois que a revista começou a circular, denunciou um massacre a um dos assentamentos de camponeses organizados pela Liga, com dezenas de mortos e outro tanto de desaparecidos. Em documento entregue ao desem-
crônica
Eduardo Galeano
Nada há de estranho, nem de anormal, no projeto que quer incorporar os direitos da natureza à nova Constituição do Equador Gama
Durante mais de um quarto de século, até 1992, a empresa petroleira Texaco vomitou impunemente 18 bilhões de galões de veneno sobre terras, rios e pessoas Parece estranho, não é? Isto de que a natureza tenha direitos... Uma loucura. Como se a natureza fosse pessoa! Em compensação, parece muito normal que as grandes empresas dos Estados Unidos desfrutem de direitos humanos. Em 1886, a Suprema Corte dos Estados Unidos, modelo da justiça universal, estendeu os direitos humanos às corporações privadas. A lei reconheceu para elas os mesmos direitos das pessoas: direito à vida, à livre expressão, à privacidade e a todo o resto, como se as empresas respiras-
Luiz Ricardo Leitão
No Reino das Atualidades
A natureza não é muda O MUNDO pinta naturezas mortas, sucumbem os bosques naturais, derretem os pólos, o ar torna-se irrespirável e a água imprestável, plastificam-se as flores e a comida, e o céu e a terra ficam completamente loucos. E, enquanto tudo isto acontece, um país latino-americano, o Equador, está discutindo uma nova Constituição. E nessa Constituição abre-se a possibilidade de reconhecer, pela primeira vez na história universal, os direitos da natureza. A natureza tem muito a dizer, e já vai sendo hora de que nós, seus filhos, paremos de nos fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado que soa saindo deste país andino, e acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções que nos deu lá do monte Sinai: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”. Um objeto que quer ser sujeito. Nos fatos, não são poucos os que continuam sem direitos, mas pelo menos se reconhece, agora, o direito a tê-los; e isso é bastante mais do que um gesto de caridade dos senhores do mundo para consolo dos seus servos. E a natureza? De certo modo, pode-se dizer que os direitos humanos abrangem a natureza, porque ela não é um cartão postal para ser olhado de fora; mas bem sabe a natureza que até as melhores leis humanas tratam-na como objeto de propriedade, e nunca como sujeito de direito. Reduzida a uma mera fonte de recursos naturais e bons negócios, ela pode ser legalmente maltratada, e até exterminada, sem que suas queixas sejam escutadas e sem que as normas jurídicas impeçam a impunidade dos criminosos. No máximo, no melhor dos casos, são as vítimas humanas que podem exigir uma indenização mais ou menos simbólica, e isso sempre depois que o mal já foi feito, mas as leis não evitam nem detêm os atentados contra a terra, a água ou o ar.
bargador José Gercino Filho, da Ouvidoria Agrária Nacional, e ao deputado Anselmo de Jesus, o sacerdote e advogado Afonso Maria das Chagas, também membro da coordenação da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia (CPT-RO), desqualifica a reportagem pela sua falta de clareza, sensacionalismo e por “passar a impressão de agir com poderes de polícia”. Referese ainda ainda a um fato constatado na região, onde “um grupo de ‘funcionários’ efetuou uma reintegração judicial (sic) à força, para não dizer a bala, sem que nada os afetasse”. De acordo com o documento, “Tornou-se pública a nota encaminhada pela Secretaria de Segurança (...) informando que, em momento algum, por parte do Estado, foi dito sobre a existência de guerrilha na região de Campo Novo, Buritis, Jacinópolis”. O texto diz ainda que o tipo de informação veiculada só pode ter como objetivo lançar uma cortina de fumaça sobre os problemas do Estado, e criminalizar os movimentos camponeses. Ainda que grave, gostaríamos de acreditar que o objetivo da publicação do senhor Dantas seja apenas esse. Rondônia, encravada entre o Amazonas e o Mato Grosso, tem uma vasta fronteira com a Bolívia.
EM SUAS Crônicas sobre a República de Bruzundangas, país quase imaginário e quase real que a sátira mordaz de Lima Barreto imortalizou, o escritor carioca nos descreve as desventuras do Visconde de Pâncome, poderoso Ministro de Estrangeiros daquela surreal nação, para preencher “um simples cargo de amanuense” (ou seja, um escrivão de documentos oficiais) que ficara vago em sua Secretaria de Estado. Avesso aos concursos públicos, o estadista julgava imprescindível que seus funcionários fossem, acima de tudo, “moços bem bonitos”, capazes de oferecer aos olhos das autoridades estrangeiras “um belo exemplar da beleza masculina de Bruzundangas”. Por isso, ao ver o retrato do bacharel Sune Wolfe, que pretendia ocupar o tal cargo, o Visconde, “pouco disposto a obedecer às leis” e “cheio de admiração pela boniteza do requerente”, redigiu um despacho dando ordens para que o candidato comparecesse imediatamente à sua presença. A entrevista-concurso do rapaz com o ministro é uma das páginas mais sarcásticas de nossa literatura. Embasbacado diante do lindo candidato, Pancôme pergunta-lhe se sabe sorrir – e o moço, repuxando os lábios e ajeitando os olhos, impressiona-o com uma “lindeza” de sorriso. Em seguida, pede-lhe que cumprimente o Major Marmeleiro, seu secretário, no que é prontamente atendido pelo bacharel, que se curva com elegância perante o oficial. Depois, para ver se “o donzel conhecia algumas outras cousas de sociedade”, ordena-lhe que dance uma valsa, melodiosamente assobiada pelo Marmeleiro – e o jovem não se faz de rogado, bailando “com todas as cerimônias e ademanes dignos de gabinete tão diplomático”...
O Reino das Atualidades é, na verdade, apenas mais uma faceta macabra de nossa periférica “sociedade espetacular” Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista européia castigou a adoração da natureza, que era pecado de idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo sem. Mais de 120 anos já se passaram e assim continua sendo. Ninguém fica estranhado com isso.
Gritos e sussurros Nada há de estranho, nem de anormal, o projeto que quer incorporar os direitos da natureza à nova Constituição do Equador. Este país sofreu numerosas devastações ao longo da sua história. Para citar apenas um exemplo, durante mais de um quarto de século, até 1992, a empresa petroleira Texaco vomitou impunemente 18 bilhões de galões de veneno sobre terras, rios e pessoas. Uma vez cumprida esta obra de beneficência na Amazônia equatoriana, a empresa nascida no Texas celebrou seu casamento com a Standard Oil. Nessa época, a Standard Oil, de Rockefeller, havia passado a se chamar Chevron e era dirigida por Condoleezza Rice. Depois, um oleoduto transportou Condoleezza até a Casa Branca, enquanto a família Chevron-Texaco continuava contaminando o mundo. Mas as feridas abertas no corpo do Equador pela Texaco e outras empresas não são a única fonte de inspiração desta grande novidade jurídica que se tenta levar adiante. Além
disso, e não é o menos importante, a reivindicação da natureza faz parte de um processo de recuperação das mais antigas tradições do Equador e de toda a América. Visa a que o Estado reconheça e garanta o direito de manter e regenerar os ciclos vitais naturais, e não é por acaso que a Assembléia Constituinte começou por identificar seus objetivos de renascimento nacional com o ideal de vida do sumak kausai. Isso significa, em língua quechua, vida harmoniosa: harmonia entre nós e harmonia com a natureza, que nos gera, nos alimenta e nos abriga e que tem vida própria, e valores próprios, para além de nós. Essas tradições continuam miraculosamente vivas, apesar da pesada herança do racismo que, no Equador, como em toda a América, continua mutilando a realidade e a memória. E não são patrimônio apenas da sua numerosa população indígena, que soube perpetuá-las ao longo de cinco séculos de proibição e desprezo. Pertencem a todo o país, e ao mundo inteiro, estas vozes do passado que ajudam a adivinhar outro futuro possível. Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista européia castigou a adoração da natureza, que era pecado de idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre a natureza e o povo, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda a América, e no mundo, continuamos pagando as conseqüências desse divórcio obrigatório. Eduardo Galeano é escritor uruguaio, autor de A Escola do Mundo ao Avesso
Publicado originalmente no semanário Brecha, do Uruguai.
Por fim, faltava, obviamente, testar as aptidões intelectuais do mauricinho. O Visconde lhe solicita, então, que escreva uma carta ao Ministro do Interior, para sugerir a presença de um enviado da República ao Congresso Internacional de Encaixotamento de Pianos, em Seul. Esse, porém, era o ponto fraco do candidato, que não sabia redigir cartas... Pâncome, contudo, não o reprova: como era “elegante, bonitinho, bom dançador”, tinha todas as qualidades de um perfeito amanuense. Isso de escrever, pondera o extraordinário diplomata, aprende-se com o tempo... Lembrei-me de Bruzundangas quando soube, há poucos dias, que em um concurso público para escriturário da Prefeitura de Taubaté (terra natal do genial Monteiro Lobato, no interior de São Paulo) a banca incluiu, dentro de uma insólita disciplina de “Atualidades”, questões que, talvez, nem Pâncome e seu amanuense lograriam formular. Uma delas indagava, por exemplo, qual era o casal ‘global’ que recentemente se separou; outra citava os nomes de três ex-Big Brother (!) e pedia ao futuro funcionário que identificasse o ano de sua participação no fenomenal programa da rede que tem “um Q de qualidade”; uma terceira inquiria quais são os três pilotos brasileiros da atual temporada de F-1. E assim seguia o “exame”, sem incluir, naturalmente, nenhuma pergunta sobre o autor de O Sítio do Pica-pau Amarelo, decerto a maior obra da literatura infantil nacional. O Reino das Atualidades é, na verdade, apenas mais uma faceta macabra de nossa periférica “sociedade espetacular”. A mídia já é, há muito tempo, o IV Poder real e imaginário de nossa República de Bruzundangas. Entretanto, o que mais me inquietou foi saber, por meio de uma longa investigação feita pelo New York Times, que o Pentágono alugou vários generais da reserva das Forças Armadas dos EUA para “analisar”, diante das câmeras de tv, a situação militar do Oriente Médio após os ataques de 11 de setembro e a invasão ao Iraque. Em cumplicidade com os meios de comunicação, o complexo industrial-militar ianque coopta a intelligentsia estadunidense e, com imensa desfaçatez e frieza, induz seu povo a subscrever sucessivos genocídios nos quatro cantos do mundo. Em tempo: aqui no Brasil, o Sr. Bornhausen, em nome da “liberdade de mercado”, reagiu com veemência à proposta de João Saad, da TV Bandeirantes, de inclusão de 50% de produção nacional de audiovisual nos canais privados de tv, o que seria um grande passo em defesa de nossa identidade cultural na telinha. Será que ele também consta da folha de pagamentos da Casa Branca? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
Ciranda financeira dá altos lucros aos bancos e às transnacionais Divulgação
ECONOMIA Setor privado mantém altas taxas de captação de recursos externos e ganha emprestando esse mesmo dinheiro aos brasileiros, a juros mais elevados Dafne Melo da Redação A EXPRESSIVA diferença entre a elevada taxa de juros da economia brasileira e as pequenas taxas dos países ricos está turbinando o lucro dos bancos e das transnacionais no país. Captando recurso no exterior a um custo baixo e, depois, cobrando dos consumidores brasileiros uma taxa maior, grandes empresas ampliam seu resultado financeiro às custas de um modelo que eleva a vulnerabilidade do país e, em última análise, penaliza o trabalhador. Isso tem ocorrido mesmo em um cenário teoricamente adverso para as captações externas, com a crise do setor financeiro internacional. Números do primeiro trimestre deste ano confirmam esse movimento expressivo de captações externas dos grupos privados. Segundo o Banco Central, as empresas trouxeram do exterior 4,680 bilhões de dólares. No mesmo período de 2007, foram 5,097 bilhões. Esses valores são bem superiores às necessidades de financiamento externo dos grupos privados. Também no primeiro trimestre deste ano, a dívida do setor privado estava em 1,907 bilhões de dólares, mas teve uma taxa de rolagem de 231%. Ou seja, o setor privado tomou no exterior muito mais dinheiro do que em tese precisaria.
Empréstimos pessoais Todo esse ingresso de recursos externos tem impulsionado a ampliação de oferta de crédito aos consumidores brasileiros. Como, hoje, o Brasil possui a mais alta taxa de juros real do mundo (7,25% ao ano), o montante obtido pelos bancos devido às diferenças entre as taxas garantem a eles enormes lucros. “As taxas de juros do che-
que especial e do crédito pessoal, por exemplo, na melhor das ofertas, cobra 2% ao mês de juros. Se eles captam a 2% ao ano, você imagina a diferença de que os bancos se apropriam, isso sem contar as taxas bancárias. Seja qual for o destino desse dinheiro no Brasil, os lucros que eles conseguem é enorme”, explica Leda Paulani, economista da Universidade de São Paulo (USP). O alto ritmo de crescimento dos créditos para pessoas físicas corrobora essa visão. Em 2007, a concessão de crédito a pessoas físicas cresceu 33,7%. E a expectativa do Banco Central para este ano é de que haja um aumento de cerca de 20% para o setor. Para se ter uma idéia do ritmo desse crescimento, o Grupo Itaú, que em 2007 se destacou como o maior coordenador de captações externas, trouxe 1,199 bilhões de dólares ao Brasil, contra 434 milhões de dólares que tinha captado em 2006. Já as captações feitas por empresas tanto são utilizadas para realizar movimentações no mercado financeiro – com compra de ações ou títulos da dívida pública brasileira, por exemplo –, como para investimentos e aquisições. Esse foi o caso da mineradora Vale que, no final de 2006, fez um empréstimo de 13,7 bilhões de dólares para financiar a compra da produtora de níquel canadense Inco, operação importante que ajudou a levar a empresa ao posto de segunda maior mineradora do mundo.
Rendimentos recordes Reinaldo Gonçalves explica que, a princípio, a grande oferta de créditos pelos bancos beneficia o trabalhador, que consegue realizar operações a juros mais baixos. “Por isso que, aqui, você financia carros em 72 meses com uma taxa de juros baixa
Mina de Brucutu, em São Gonçalo do Rio Abaixo (MG), onde a Vale realiza a extração de minério de ferro
para os padrões brasileiros”, explica o economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entretanto, quem sai verdadeiramente fortalecido com esse modelo econômico são os bancos e as transnacionais. Os lucros dos bancos em 2007 confirmam a visão do economista: o Itaú, segundo maior banco privado brasileiro, teve, no primeiro semestre de 2007, o maior lucro semestral já registrado por um banco brasileiro, R$ 4,016 bilhões. Já o Bradesco anunciou ganhos de R$ 4,007 bilhões no mesmo período. Quando questionado, na época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a lucratividade foi decorrente do crescimento do crédito no país. “Vocês vão perceber que o crédito cresceu, mais que quadruplicou, desde o consignado ao crédito para as empresas”, disse, em agosto de 2007.
Brasil, o exportador de capitais Remessa de lucros bate recorde em março e alcança 4,345 bilhões de dólares da Redação Os números das contas externas brasileiras mostram que o país tem ampliado cada vez mais o envio de dólares ao exterior. Tanto a remessa de lucros como o pagamento dos empréstimos intercompanhias – contabilizados no total das captações externas – têm crescido. O envio de lucros ao exterior foi recorde no Brasil em março: 4,345 bilhões de dólares, 39% a mais em relação ao recorde anterior, de dezembro de 2007. O resultado é que as transações correntes ficaram negativas em 4,429 bilhões de dólares, o maior deficit desde outubro de 1998. Entretanto, há ainda uma grande soma de dinheiro que não entra nessa contabilidade: são as transferências feitas pelas subsidiárias aos países de origem. Tudo começa com os empréstimos intercompanhias, ou seja, uma transnacional que tem sua sede na Europa, por exemplo, repassa um montante a sua subsidiária no Brasil para que sejam feitos novos investimentos – produtivos ou especulativos – aqui. De acordo com o economista da Universidade de Brasília (UnB) Adriano Benayon, esse tipo de operação quase dobrou de alguns meses para cá e um dos motivos que a torna mais atraente é a alta taxa de juros brasileira, num contexto internacional no qual países como Japão e EUA estão abaixando seus juros para enfrentar a crise financeira. “Como nossa taxa aumentou
Bancos que mais fizeram empréstimos Banco
Nacionalidade
2006*
2007*
ABN Amro
Holanda
25.430 bi
14.797 bi
UBS Pactual
Suíça
24.280 bi
9.023 bi
Credit Suisse
Suíça
23.250 bi
7.834 bi
JP Morgan
EUA
4.193 bi
6.676 bi
Santander
Espanha
23.975 bi
6.515 bi
Citigroup
EUA
5.993 bi
6.266 bi
HSBC
Inglaterra
2.000 bi
6.070 bi
Calyon
EUA
878 bi
2.961 bi
Morgan Stanley
EUA
2.013
2.115 bi
Merril Lynch
EUA
1.025 bi
1.986 bi*
Valor emprestado em dólares
ainda mais após a última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), essa captação externa deve subir”, complementa Leda Paulani, da USP. Como resultado dessas operações financeiras – empresas estrangeiras “emprestando” capital para suas subsidiárias investirem aqui – o setor privado obtém enormes taxas de lucros que são, por sua vez, repassados à matriz via uma operação financeira que ocorre à margem dessa remessa de lucros. “Um dos motivos para as transnacionais fazerem esses empréstimos a subsidiárias aqui é que os juros são contabilizados como despesas da subsidiária no Brasil, o que é pa-
ra elas mais vantajoso do que receber esse dinheiro como investimento direto, embora a remessa oficial dos lucros sobre esse investimento também venha sendo favorecida por isenções fiscais, como no Imposto de Renda (IR). Mas os juros ainda têm tratamento fiscal melhor, pois fazem abater o lucro contábil”, complementa Benayon. Isso quer dizer que, mesmo com o governo brasileiro facilitando ao máximo, com isenções fiscais, o envio de dinheiro aos países estrangeiros via remessa de lucros, muitas dessas empresas preferem deixar de lado esse mecanismo, por ele não ser financeiramente o mais vantajoso. (DM)
Modelo impõe drama aos trabalhadores da Redação “Enquanto não quebrarmos essa estrutura de poder continuaremos com uma economia extremamente frágil e vulnerável”, opina Reinaldo Gonçalves, economista da UFRJ, para quem o atual modelo econômico apenas fortalece aquele que é “o inimigo público número um do Brasil”: o setor financeiro. Do outro lado, deixa “um impacto sobre os trabalhadores que é dramático: com redução do crescimento, aumento do desemprego, queda dos rendimentos reais, aumento da pobreza e menor capacidade de gastos sociais por parte do Estado”, aponta Luiz Filgueiras, economista da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele observa que as altas taxas de juros, que garantem os lucros exorbitantes para esse setor, ainda deixam outras conseqüências muito mais danosas: “desestimula a produção, o consumo e o emprego, aumenta a dívida pública e transfere renda da produção e do trabalhador para o capital financeiro e o rentismo”, resume. De quebra, esse aumento da dívida valoriza o Real, o que traz efeitos negativos no balanço de pagamentos. “Em suma, alimenta-se a especulação financeira, endivida-se o Estado, transfere-se e concentra-se renda, desestimula-se a produção e o emprego”, completa Filgueiras.
Rombo Números do Banco Central já mostram os primeiros estragos: com aumento de 39% nas remessas de lucro e com a queda do saldo comercial, as contas externas brasileiras tiveram o pior resultado desde outubro de 1998. Até março, o deficit nas transações correntes somava 10,8 bilhões de dólares. A projeção do Banco Central para todo o ano de 2008 era que o saldo negativo ficasse em torno de 12
bilhões de dólares. Março foi o sexto mês consecutivo em que esse indicador ficou no vermelho, o que não acontecia desde 2002. De acordo com o próprio BC, o mercado financeiro já trabalha com um deficit anual, para 2008, de 16,6 bilhões de dólares. Filgueiras acrescenta que esse deficit na conta corrente ocorrerá em virtude da redução do superavit da balança comercial e do crescimento do deficit da balança de serviços. As taxas de crescimento do governo Lula, um pouco mais elevadas que as da gestão tucana de Fernando Henrique Cardoso, “juntamente com a valorização do Real – em boa parte resultante da especulação financeira na arbitragem de juros –, têm feito as importações crescerem a taxas muito superiores às das exportações. Além disso, o câmbio valorizado também estimula a remessa de lucros, pois as multinacionais podem comprar mais dólares com o mesmo montante de lucro”. Com isso, os saldos negativos na conta de transações correntes voltam, gerando maior dependência em relação à entrada de capitais estrangeiros no país, para assim tentar sanar o problema. “Desse modo, cresce a vulnerabilidade externa da economia”, avalia Filgueiras. Por sua vez, o remédio proposto pelos gestores da política econômica é o aumento da taxa de juros, conforme demonstrou a última reunião do Copom, além do aumento do superavit fiscal primário. (DM)
Para entender Segundo o Banco Central, o balanço das transações correntes é o somatório dos valores líquidos da balança comercial, balanço ou saldo de serviços, rendas e transferências unilaterais correntes. Resumidamente, seria o resultado de todas as operações do país com o exterior.
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brasil Urbano Erbiste/Folha Imagem
Violência já é rotina no Rio SEGURANÇA Governador e secretário aplaudem ações policiais nas favelas e garantem que elas continuarão mesmo que inocentes morram MárioAugustoJakobskind do Rio de Janeiro (RJ) A VIOLÊNCIA no Rio de Janeiro virou rotina. Na penúltima semana do mês de abril, a Polícia Militar matou 11 pessoas em uma ação contra traficantes. Outras duas operações no mesmo mês deixaram 14 mortos. A continuar a mesma média, 25 por mês, o total deverá alcançar 300 em um ano. Em meio a esses mortos, que as autoridades da área de segurança catalogam apenas como traficantes e suspeitos, existem vítimas inocentes. Uma delas é Josélia Barros Afonso, de 70 anos, morta durante incursão na Cidade de Deus, no dia 25 de abril. Na ocasião, também foram baleadas nas nádegas mais duas outras moradoras, Maria José da Silva e Maria dos Anjos Mendes da Cruz, ambas de 75 anos. A família de Josélia acusa a Polícia Militar de ter atirado contra ela. O filho, Luís Afonso, garantiu que foram soldados da PM que fizeram os disparos. “Eu vi minha mãe ser morta por esses assassinos”, denuncia. Moradores do local chegaram a fazer um protesto contra a ação policial. A PM, no entanto, negou a acusação, afirmando que tanto a morta como as duas feridas foram baleadas pelas costas por “bandidos”. Cento e cinqüenta homens de oito batalhões, apoiados por blindados e por um helicóptero, participaram da
operação na Cidade de Deus, que além dos mortos conseguiu prender Jorge Ferreira, o Gim, que seria o chefe do tráfico no local e outras três mulheres com 2,5 mil papelotes de cocaína guardados em uma casa. Foram apreendidos ainda fuzis, pistolas e duas granadas, além de munição. Os moradores dos locais de confronto, quando protestam, como fizeram os da Cidade de Deus, geralmente são acusados de promover manifestações em conluio com os traficantes, o que nunca se comprova. Tanto o governador Sergio Cabral (PMDB) quanto o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, a cada ação policial não só elogiam a forma como foi realizada, como reafirmam que o Estado dará continuidade a essas operações, mesmo que atinjam vítimas inocentes.
Criminalização A política de segurança do Governo do Estado do Rio, que visivelmente criminaliza os moradores de áreas pobres, tem recebido o apoio de órgãos de imprensa do Rio de Janeiro e o repúdio de entidades defensoras dos direitos humanos. A recente declaração do coronel da Polícia Militar Marcus Jardim, comandante do 1º Comando de Policiamento de Área (CPA), de que “a PM é o melhor inseticida social” é a mais recente comprovação de que as autoridades estaduais responsáveis pela política de confronto, que segue os mol-
des da repressão policial na Colômbia, já não escondem o preconceito. Movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos lançaram uma nota de protesto e repúdio à declaração do coronel, que, por sinal, em outras ocasiões, se posicionou de forma preconceituosa e até mesmo comprometedora à imagem da corporação. Durante a visita do relator da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre execuções sumárias, Philip Alston, ao Brasil, Marcus Jardim o presenteou com uma miniatura do blindado usado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Caveirão. O fato foi considerado pelos movimentos que condenam o uso do blindado como uma provocação. O militar justificou o “presente” como uma lembrança para que o relator da ONU lembre da “tropa aguerrida que combate os marginais no Rio de Janeiro”. As afirmações do militar seguem a linha de declarações do mesmo porte dadas em outras ocasiões por Sergio Cabral. Ao comentar a taxa de natalidade na favela da Rocinha, a maior do Rio de Janeiro, Cabral disse: “é padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”. Já o secretário Beltrame não ficou atrás em matéria de preconceito e discriminação ao afirmar, depois de uma ação policial no Complexo do Alemão que vitimou 19 pessoas, que “tiro em Copacabana é uma coisa, e no Alemão, é outra”.
Operação do Bope no alto da favela Vila Cruzeiro, zona norte do Rio de Janeiro
Bruno Gonzalez/Folha Imagem
JUSTIÇA
Milícias faturam mais de R$ 1 milhão por mês
Sarney irá testemunhar em defesa de coronel acusado de tortura Audiência do processo movido pela família Merlino contra Carlos Brilhante Ustra está marcada para o dia 13
do Rio de Janeiro (RJ) A criminalização das favelas no Rio de Janeiro – num total de 1.820 em todo o Estado e de 725 só na capital – ganhou, nos últimos tempos, ingredientes ainda mais preocupantes e que comprovam a gravidade dos fatos. O governador Sergio Cabral e o secretário José Mariano Beltrame fazem seguidamente rasgados elogios aos métodos empregados pelas autoridades da área de segurança da Colômbia no combate à criminalidade. Ambos já visitaram aquele país sul-americano e não raramente são destacados quadros policiais para conhecerem os métodos utilizados por lá. A ação de milícias, grupos paramilitares formados por ex-policiais que ainda mantêm relacionamentos com membros das suas antigas corporações, já se estende por cerca de 120 das 725 favelas do Rio de Janeiro. Segundo analistas, eles faturam mensalmente mais de R$ 1 milhão com os serviços obrigatórios prestados à população favelada. Dentre eles estão a cobrança de pedágios de cada morador por proteção e o uso de gás e do sistema de TV a cabo, também conhecido como gatonet. Como se tudo isso não bastasse, as favelas do Rio de Janeiro sofrem sobretudo em períodos pré-eleitorais, como atualmente em função da aproximação do pleito municipal marcado para outubro, o assédio do fisiologismo político, muitas vezes com vereadores e cabos eleitorais vinculados até mesmo às milícias ilegais e mesmo com o esquema mafioso do tráfico, o que vem reforçando a tese segundo a qual as áreas pobres do Rio de Janeiro vão se tornando verdadeiros Estados sem lei. (MAJ)
da Redação
Helicóptero da polícia em ação realizada nos morros Pavão, Pavãozinho e Cantagalo
Pesquisa distorce julgamento sobre atuação do Caveirão Blindado, na verdade, foi rejeitado pela população que vive onde ele se faz presente com maior freqüência do Rio de Janeiro (RJ) Com grande destaque, foi publicada recentemente na imprensa corporativa uma pesquisa mostrando que os moradores das favelas apóiam a utilização do Caveirão durante operações policiais. Independente da contestação ao tipo de pergunta utilizada e o horizonte dos pesquisados, mesmo aceitando-se o resultado, essa pesquisa é inválida se não forem observados detalhes importantes. O estudo guarda uma distorção flagrante que, deliberadamente ou não, passou desapercebida pelos veículos de comunicação. O peso maior dado à consulta ocorreu exatamente em áreas onde a maioria não conhecia ou pouco tinha ouvido falar do Caveirão, onde ele obteve 61,4% de apoio. Já nos locais onde ele é conhecido e utilizado com freqüência, o apoio foi de 33,6%. A média em favor do Caveirão foi de 47,9%. Todos os debates que se seguiram à divulgação desses dados, inclusive na área acadêmica, partiram da premissa incor-
reta da “novidade” do posicionamento dos moradores das favelas, cuja maioria se queixava da falta de presença do Estado.
Classe média Além disso, alguns setores da classe média têm se manifestado a favor da utilização de métodos arbitrários nas ações em favelas do Rio de Janeiro. O jornalista Fritz Utzery é testemunha de exercícios diários realizados pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar no Parque Guinle, no qual mora e onde se localiza também o Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador Sergio Cabral. Utzery ouve diariamente soldados e oficiais do Bope cantando letras de apologia a ação violenta nas favelas, claramente preconceituosas e ao mais puro estilo nazista. Da mesma forma que o jornalista, o governador e sua família, quando se encontram no Palácio Laranjeiras, também ouvem os cantos, que não raramente recebem aplausos de freqüentadores do Parque Guinle, ainda segundo o jornalista. (MAJ)
O senador e ex-presidente da República, José Sarney (PMDB-AP), será uma das testemunhas do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, na audiência do processo movido contra ele pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino. A “ação meramente declaratória, de ocorrência de danos morais”, subscrita pelos advogados Fábio Konder Comparato e Anibal Castro de Sousa, não pretende nenhuma indenização pecuniária. Angela Mendes de Almeida, ex-companheira do jornalista, e Regina Merlino Dias de Almeida, sua irmã, querem apenas o reconhecimento moral de que ele foi morto em decorrência das torturas que sofreu nas dependências do Doi-Codi de São Paulo. Procurado pela reportagem do Brasil de Fato, o senador disse, por meio de sua assessoria, que não iria dar declarações à imprensa. No entanto, não desmentiu a participação no processo.
Histórico Ustra comandou o Doi-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974, quando houve 40 mortes e 502 casos de tortura. Entre os presos políticos desse período esteve Paulo Vanucchi, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da presidência, que será uma das testemunhas da família de Merlino.
Em 1985, durante o governo Sarney, quando era adido militar no Uruguai, Ustra foi reconhecido pela então deputada Bete Mendes (PT-SP), que fazia parte da comitiva da Presidência numa viagem àquele país, como seu torturador. A deputada enviou uma carta a Sarney protestando contra a presença de Ustra como adido militar e pronunciou um discurso de desagravo no Congresso. A reação do Exército foi imediata: em nota distribuída a todo o contingente militar, o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, declarava que o coronel Ustra permaneceria no posto e merecia total confiança de seus superiores. O então presidente Sarney não se pronunciou sobre o caso. A audiência do processo da família do jornalista Merlino foi marcada para o dia 13 e será na 42ª Vara Cível de São Paulo, no Fórum João Mendes. Ustra é réu em outra ação, também acusado de tortura. A ação declaratória, em tramitação, foi movida pela família Teles (o casal Maria Amélia de Almeida Teles e Cesar Teles, Criméia de Almeida, irmã de Maria Amélia, e os filhos do casal, Janaína e Edson Teles). A família inteira foi presa e torturada nas dependências do Doi-Codi em 1972; as crianças, então com 6 e 5 anos, permaneceram nas dependências do centro de torturas por vários dias.
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Em meio à crise do sindicalismo, centrais tentam reduzir a jornada TRABALHO Fim das grandes plantas, descentralização e rotatividade são os principais problemas enfrentados pelos sindicatos Renato Godoy de Toledo da Redação É INEGÁVEL que, do 1º de maio de 1886 até o de 2008, a classe trabalhadora mundial teve ganhos significativos em termos de condições de trabalho e conquistou uma representatividade política maior. No entanto, as bandeiras continuam sendo as mesmas, bem como o sistema econômico e social no qual ela está inserida, o capitalismo. No histórico maio de 1886, milhares de operários do maior centro industrial dos EUA, a cidade de Chicago, foram às ruas para exigir a redução da jornada de trabalho, de 13 para 8 horas diárias. À época, oito dirigentes do movimento foram julgados e condenados, cinco à forca, dois à prisão perpétua e um a 15 anos de reclusão. Num congresso de trabalhadores em 1889, em Paris, os participantes definiram o 1º de maio como o Dia Internacional do Trabalhador, para homenagear os mártires de Chicago. Mais de um século depois, passadas diversas reestruturações do sistema produtivo, os trabalhadores brasileiros têm como ponto central de sua pauta de reivindicações a diminuição da jornada de trabalho. No 1º de maio, uma aliança entre as maiores centrais sindicais do país vai exigir a redução, sem diminuição do salário. Segundo Artur Henrique, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a maior do país, os trabalhadores querem ter jornadas menores para que as riquezas geradas por eles sejam melhor distribuídas, já que os setores financeiros, de serviços e agrícolas vêm de lucro sobre lucro. Outro fator que trouxe o tema como pauta principal das organizações dos trabalhadores é o aniversário de 20 anos da última redução de horas trabalhadas, estabelecida pela Constituição de 1988. Atualmente, a jornada máxima é de 44 horas semanais.
Entraves As jornadas longas, os baixos salários e a constante reposição de força de trabalho mais barata, em termos econômicos, são os principais
problemas apontados pelos dirigentes sindicais. No entanto, uma série de outros empecilhos são enfrentados pelos sindicatos, no que se refere à capacidade de organização da classe. A maior parte desses entraves tem sido colocada pela maneira de se gerenciar a produção e pelo individualismo, característica marcante do neoliberalismo inaugurado nos anos de 1980. Desde essa década, o sindicalismo passa por uma crise. Diminuição das mobilizações, perda do protagonismo e redução da taxa de sindicalização são sinais visíveis do descenso do movimento dos trabalhadores. De 2005 para cá, estudos revelam que há uma reação da sindicalização, ainda que num cenário de crise. Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que o número de trabalhadores sindicalizados retomou o crescimento entre 1999 e 2006. Em 1989, cerca de um terço dos trabalhadores eram sindicalizados. A partir desse ano, iniciou-se a queda brusca da taxa, atingindo 15% em meados da década de 1990. Dados recentes mostram que 18% dos trabalhadores são filiados a entidades de classe. “Há uma recuperação, ainda que lenta, da taxa de sindicalização do país. Mas essa recuperação é marcada por características diferentes. O que tem crescido é a sindicalização no meio rural e no setor de serviços, entre trabalhadores com menor grau de escolaridade e menor remuneração. É um perfil muito diferente dos anos de 1980”, relata. No caso dos serviços, Pochmann constata que esse tipo de sindicalismo age mais como parceiro de pequenas empresas, oferecendo capacitação técnica e assessoria jurídica, do que como um instrumento de defesa dos trabalhadores perante os interesses patronais. Esse processo faz com que a alta na taxa de sindicalização não reflita numa maior participação da renda do trabalhador no produto interno bruto (PIB). “A trajetória da renda do trabalhador no PIB tem sido de prejuízo. Em 1980, essa parcela representava 50% e hoje é de 39,1% do PIB”, informa.
Quanto
8 Mártires de Chicago.
Adolph Fischer, Albert Parsons, August Spies, Georg Engel, Louis Lingg foram condenados à forca; Sam Fieldem e Michel Shwab, à prisão perpétua; e Oscar Neeb, a 15 anos de cadeia.
O grosso do aumento da taxa de sindicalização, portanto, não está acontecendo entre operários de grandes plantas industriais, como nos anos de 1980. A CUT, principal representante do sindicalismo daquela década, busca encontrar espaço para disputar esses sindicatos, mas diz encontrar barreiras. “Temos muitas dificuldades para disputar eleições nesses sindicatos, que muitas vezes possuem estatutos anti-democráticos. O grande problema está na construção política destes”, revela Artur Henrique.
Rotatividade Aliás, o fim das grandes plantas, a descentralização e a rotatividade são apontados como os principais problemas enfrentados no cotidiano do sindicalismo. Diante da interconcorrência capitalista, as empresas buscam a reestruturação produtiva para evitar quedas na taxa de lucro, de acordo com Milton Viário, presidente da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul. Frente a essas necessidades das companhias, aplica-se a constante substituição de força de trabalho – para diminuir a folha salarial –, a terceirização e a descentralização da produção. Um estudo da Federação apontou que um terço do quadro de funcionários é substituído anualmente no Rio Grande do Sul. Entre 2006 e 2007, 50 mil metalúrgicos foram demitidos e 56 mil, admitidos. Com isso, as empresas diminuíram sua folha de pagamento em R$ 5 milhões. Para Viário, a alta rotatividade gera um clima de estranheza, que diminui a sociabilidade no ambiente de trabalho. “Esse processo de rotatividade rebaixa salário e desorganiza o ambiente de trabalho”, afirma.
Para CUT, união entre as centrais não põe uma “pedra na história” Para Artur Henrique, unidade em torno da redução da jornada é sinal de maturidade do movimento sindical da Redação Aqueles que acompanham de perto o movimento sindical sabem o que motivou o nascimento da Força Sindical, no início dos anos de 1990. A central foi criada a partir de uma articulação entre empresários e o governo Fernando Collor, representado pela figura do então ministro do Trabalho, Rogério Magri. Um dos principais objetivos da criação dessa central era combater a hegemonia da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no movimento operário e criar a cultura de conciliação com os empresários e prestação de serviços aos filiados, características do “sindicalismo de resultados”. Nas celebrações do 1º de maio, CUT e Força Sindical, além de outras centrais, estarão juntas defendendo a diminuição da jornada de trabalho, sem redução de salário. Artur Henrique, presidente da CUT, afirma que a união em torno do tema é sinal de maturidade das centrais, assim co-
mo ocorreu na defesa da revisão das tabelas do Imposto de Renda e na luta por reajustes reais do salário mínimo. Questionado sobre as mudanças que levaram à aproximação das duas maiores centrais, nesses pontos, o sindicalista afirma que as diferenças de concepção continuam grandes e que nada vai apagar a história da construção da Força Sindical. “Não adianta colocar uma pedra na história. A Força Sindical continua sendo a mesma: uma central fundada com a ajuda de empresários e do governo Collor. Continuam existindo as diferenças de antes, mas há uma maturidade do movimento sindical. Quando temos algo de interesse do conjunto da classe trabalhadora, não há porquê atuar de forma desunida”, argumenta. Artur afirma que a redução da jornada é um dos instrumentos para diminuir a maisvalia dos empresários, sobretudo dos setores que têm lucrado mais no país, com o crescimento da economia. “Estamos num momento mui-
to favorável. O setor financeiro, o de serviços e a metalurgia têm aumentado a produtividade e os lucros. Isso tem que ser repassado para os trabalhadores”. O sindicalista crê que, com uma jornada menor, os trabalhadores poderão se dedicar à família e ao lazer, além da qualificação profissional tão exigida pelos empregadores. “Com uma jornada de 44 horas, mais horas extras, com o trabalhador morando cada vez mais longe dos grandes centros e às vezes plugado 24 horas à empresa, por meio de rádio e celular, como ele vai ter tempo para buscar a qualificação?”, questiona. Sindicatos da CUT, como os químicos de São Paulo, já conquistaram a redução da jornada de trabalho. “Algumas categorias já conseguiram isso, com processo de negociação. Mas são categorias muito organizadas. A grande maioria não tem essa organização e encontra dificuldades para discutir uma agenda mais concreta em torno do tema”, analisa. (RGT)
Especialista vê quadro paradoxal Para Altamiro Borges, momento é de avanços dentro da crise da Redação Se a reestruturação produtiva e o neoliberalismo geraram confusão e a retração do movimento sindical, por outro lado, o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, diferentemente do primeiro, apresenta alguns avanços para as organizações dos trabalhadores. Essa é a análise de Altamiro Borges, membro do Comitê Central do PCdoB e editor da revista Debate Sindical. Miro vê um cenário de avanços, mas dentro de uma crise do sindicalismo. Entre os principais avanços do atual mandato, Altamiro aponta a legalização das centrais, o veto à emenda 3 e o envio ao Congresso das convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A emenda 3 proibiria os fiscais do trabalho de autuar empresas que obrigam seus funcionários a tornarem-se pessoas jurídicas, a fim de burlar a legislação trabalhista. Já as convenções 151 e 158 regulamentam a negociação coletiva para o funcionalismo público e protegem os trabalhadores da iniciativa privada contra a demissão imotivada, respectivamente.
Com o crescimento da economia, considerado “tímido” por Miro, a renda média do trabalhador tem crescido e há um aumento da sindicalização em todas as categorias, ainda que o setor de serviços e o agrícola apresentem as maiores altas. Nesse cenário, o jornalista considera que o movimento sindical tem a oportunidade e a necessidade de ousar. “Depois daquela crise violenta (dos anos de 1990), temos sinais de uma inflexão. Acho que é um momento de atrevimento, o movimento sindical tem que ir para as cabeças, exigir mais. Nunca a bola esteve ‘quicando na área’ desse jeito”, ilustra.
Sem fórmula mágica Como resposta às mudanças no mundo do trabalho implementadas pelo capital, Miro afirma não existir uma fórmula mágica, sobretudo em momentos de mudanças de padrão tecnológico em base gerencial. “Em todas as revoluções industriais, a classe trabalhadora demorou muito tempo para encontrar o caminho das pedras. Ainda vamos apanhar um bocado”, prevê. A principal sugestão de Miro para o sindicalismo é a união com os demais mo-
vimentos sociais, mas com uma postura mais humilde, sem a concepção vanguardista de outrora. “Não dá para pensar o movimento sindical como estruturante da classe, como no passado. Ele tem que falar com o movimento social de igual para igual. Se não fizer isso, pode ficar inativo”, sustenta. Uma mudança de postura também seria necessária no tratamento com setores mais escolarizados, sem tradição de luta sindical. “Esses setores sem tradição sindical, mais individualistas, precisam ser abordados de outra forma. Para isso, é preciso mudar a linguagem do movimento sindical para atingir esses trabalhadores”, conclui Miro. (RGT)
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Por que o caso Isabella tem tanto destaque? Raimundo Pacco/Folha Imagem
MÍDIA A cada 10 horas, uma criança é assassinada no Brasil, mas imprensa corporativa não cobre
Causa de morte A violência doméstica é uma das principais causas da morte de crianças, de acordo com o Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a pesquisa “A ponta do iceberg”, realizada pelo laboratório com dados de 1996 a 2007, apenas 10% dos casos de abusos físicos e psicológicos contra as crianças são denunciados. Nesse período, foram notificados 159.754 casos. A maioria deles – 65.699 – é por negligência, seguida de violência física, com 49.481 ocorrências. A psicológica, 26.590, vem em terceiro lugar, e depois a sexual, com 17.482 casos. Cobertura da mídia Que os números da violência são graves, não há dúvida. O que se coloca em discussão é o motivo pelo qual a imprensa corporativa resolveu cobrir detalhadamente um caso isolado, o de Isabella. Para Verbena Córdula, professora de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, da Bahia, e doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, de acordo com o modo que a mídia está cobrindo o caso, “é como se a violência do país estivesse restrita a casos como esse – que, de fato, são chocantes, hediondos”. No entanto, explica ela, “mesmo considerando o tipo de atrocidade da qual foi vítima a menina Isabella, vamos encontrar exemplos similares cotidianos, sobretudo ocorridos entre populações marginalizadas”. Mas há uma diferença, explica: “a mídia de massa não se empenha tanto em acompanhar, como faz agora, e como fez quando da igual tragédia sofrida pelo garoto carioca João Hélio. E nos perguntamos por que isso acontece”. Clã hegemônico Segundo Verbena, a explicação para as escolhas de cobertura dos meios de comunicação é que, em sua maioria, eles “são controlados por gru-
Teoria dos choques A jornalista canadense Naomi Klein apresentou, em uma Feira de Livros em Buenos Aires, um vídeo sobre a pesquisa que originou seu livro A doutrina do choque: O auge do capitalismo do desastre, com link disponível na Agência Brasil de Fato. A jornalista e militante da corrente contra a globalização neoliberal é uma das teóricas do movimento surgido em Seattle, em 1999. OEA apóia diálogo
A Organização dos Estados Americanos (OEA) sinalizou, no dia 26 de abril, apoio à democracia boliviana. A entidade destacou a importância do diálogo entre o governo de Evo Morales e os governadores de oposição para solucionar a crise política que vive o país. De forma extraordinária, a sessão foi convocada devido à iminência da realização do referendo sobre o estatuto autonômico do departamento de Santa Cruz, marcado para o dia 4. A entidade teme a possibilidade de ocorrer “graves enfrentamentos” entre setores políticos bolivianos favoráveis e contrários à consulta.
Tatiana Merlino da Redação A MORTE de Isabella Oliveira Nardoni, de cinco anos, ocorrida em São Paulo no dia 29 de março, trouxe à tona a discussão sobre a violência cometida contra crianças no Brasil. As estatísticas revelam que o número de casos de violência doméstica com crianças é maior do que se divulga. Inúmeros casos de abusos acontecem diariamente, mas não são tão conhecidos pelo público como o de Isabella. De acordo com um levantamento feito pelo Ministério da Saúde, em média, uma criança é assassinada a cada dez horas no país. Isso significa que, no fim de semana em que Isabella foi morta, outras quatro crianças foram assassinadas. Entre 2000 e 2005, o Ministério da Saúde registrou 5.049 homicídios de meninos e meninas com idades até 14 anos. As principais causas das mortes são espancamento, afogamento, queimaduras e tiros de armas de fogo. A faixa etária mais atingida é entre 5 e 14 anos. Só em 2005, houve 662 assassinatos de crianças nessa faixa.
saiu na agência
Negras sem carteira
No Brasil, a situação das mulheres negras é considerada a pior de todas no campo do trabalho. Dados de uma nota técnica da Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgados no dia 27 de abril mostraram que, entre as mulheres negras que são trabalhadoras domésticas, 75,6% não têm carteira assinada. A pesquisa mostrou também que, em 2006, apenas 27,8% do total de trabalhadores domésticos tinham carteira assinada.
Raposa Serra do Sol
Perito realiza teste com boneca durante a reconstituição do assassinato de Isabella Nardoni
Ibope sobe até 46% com cobertura da Redação A audiência dos telejornais do país cresceu até 46% com a cobertura do caso da morte de Isabella Nardoni. A primeira quinzena de abril, em relação ao mesmo período de 2007, registrou aumento de 25% do programa “Balanço Geral”, da Rede Record. A audiência do “Brasil Urgente”, da Band, cresceu 46%. Já no “Jornal Nacional”, da Rede Globo, a cobertura do caso chegou a ocupar 15 minutos e 20 segundos do tempo do telejornal, no dia 15 de abril, o que corresponde a 37% do espaço do jornalístico. A emissora carioca mobilizou 18 repórteres, oito produpos formados pela elite política e econômica que reproduzem a lógica de pensar desses grupos”, para quem violência só é tratada como tal quando atinge os membros desse “clã” hegemônico e daqueles que se “diferenciam” sobremaneira da maioria da população brasileira habitante das favelas. Já a coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Leila Paiva, acredita que além do fator “posição social”, a cobertura excessiva da mídia na morte de Isabella pode ser atri-
tores e 20 cinegrafistas para cobrir o caso. Na Record, foram 30 repórteres e produtores e 20 cinegrafistas; já o SBT conta com 4 repórteres e 7 cinegrafistas. A morte da menina tem sido tão noticiada que, de acordo com pesquisa CNT/Sensus divulgada no dia 28 de abril, 98,2% da população brasileira tem conhecimento do assassinato da menina Isabella. Apenas 1,2% afirmaram desconhecer o episódio, contra 0,7% que não soube ou não quis responder. Ao jornal O Globo, Ricardo Guedes, pesquisador do Instituto Sensus, revelou que esse foi o maior índice de conhecimento sobre algum assunto já registrado na série de pesquisas CNT/Sensus, iniciada em 1998. (TM)
buída ao fato do assassinato ter acontecido no eixo RioSão Paulo. De acordo com ela, “o que ocorre nessa região acaba tendo dimensão nacional. Quando falamos de São Paulo, estamos tratando de 30% da população do país”. Para Leila, “precisamos aproveitar esse momento para mostrar que esse tipo de violência ocorre e que há necessidade de se denunciar, porque podemos até salvar vidas”, avalia. (ver matéria abaixo)
Jornalismo ou novela? Na opinião do coordenador do curso de especialização em
Crescem as denúncias de abusos contra crianças da Redação O número de registros de violência contra crianças aumentou de 2007 para este ano, de acordo com registros do Disque 100, um sistema da Secretaria Especial de Direitos Humanos que recebe denúncias sobre agressões contras crianças e adolescentes. Até março, em média, 93 ligações com relatos de maus-tratos, agressões, espancamentos e violência sexual são recebidos diariamente. A média de utilização do Disque 100, desde que foi implantado em 2003 até hoje, é crescente. Começou com 12 relatos por dia, passou para 38 em 2006 e chegou a 69 em 2007. Em números absolutos, os casos de agressão por negligência ou agressão física e psicológica são 54.889 dos 111.807 registros. Isso representa 67,4% do total. Entre os registros, 242 são denúncias de violência com morte da criança ou do adolescente. Segundo a coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos, Leila Paiva, apesar do número de denúncias sobre violência contra crianças ter crescido, o indicador ainda é muito pequeno diante do real número de agressões sofridas pelas crianças. “A situação é mais comum do que a população imagina ou vê com os próprios olhos”, alerta. Para ela, o que contribui para o número elevado de agressões que não são denunciadas é a falta de iniciativa de quem observa a violência, mas não denuncia. (TM)
Mídia, Informação e Cultura da USP, Dennis de Oliveira, a cobertura da morte da menina deu início a uma “novelização” do caso. De acordo com ele, independente de haver uma novidade em relação ao desfecho, os jornais se “impuseram a dar todo dia uma ‘notícia’ sobre o fato, mesmo que não houvesse novidade”. Assim, explica, o episódio se assemelha a uma novela ou minissérie, quando, a cada dia, há um novo capítulo. O professor lembra o caso da Escola Base, quando a precipitação e o sensacionalismo da imprensa comercial levaram à condenação de pessoas que depois foram inocentadas pela Justiça. Para ele, “na ânsia de buscar novidades, declarações ganham destaque e passam a fazer parte do noticiário, levando o público a tomar conclusões precipitadas. Depois de feito o estrago, não adianta os jornalistas tentarem se defender como fazem no caso da Escola Base”.
Esquecendo mazelas Para a professora Verbena, a maioria da audiência dos meios de comunicação tende a “esquecer outras mazelas sociais existentes no país, inclusive a violência a que está submetida cotidianamente, e interiorizar discursos que transformam um fato isolado em um caso de comoção nacional, minimizando episódios semelhantes ocorridos no universo social”. Nesse sentido, explica ela, o fato de que “em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil, sete são negros, é menos importante aos ‘olhos’ dos meios de comunicação do que um homicídio praticado no seio de uma família de classe média alta”, conclui.
O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Mato Grosso do Sul, Egon Heck, alerta, em entrevista, para a violência praticada por empresas donas de grandes propriedades contra os povos indígenas. Para ele, os arrozeiros da região da reserva indígena Raposa Serra do Sol não estão preocupados em colaborar com a economia da região, e sim com interesses econômicos privados. Heck ratifica que os índios têm total e histórico direito à terra reivindicada e que sua luta serve de exemplo para todo o povo brasileiro.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Acordo inédito A Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas do Estado de São Paulo acaba de aprovar convenção coletiva com a entidade patronal para reduzir a jornada oficial de trabalho de 44 para 40 horas semanais. Atualmente o setor trabalha com 42 horas semanais, e a nova redução será feita em janeiro e dezembro de 2009. A conquista não reduz salário e pode representar aumento de postos de trabalho no setor. Atraso neoliberal Em compensação, o Ministério da Fazenda deve concluir proposta para regular a situação fiscal dos trabalhadores que prestam serviços rotineiros às empresas na condição de pessoa jurídica (PJ), o que contraria o vínculo determinado pela consolidação das leis do trabalho (CLT). Esse ponto faz parte da “flexibilização” trabalhista exigida pelo neoliberalismo. As centrais sindicais vão aceitar?
Terror estatal O documentário Condor, do diretor Roberto Mader, entra agora neste mês nos cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro. Trata do terrorismo praticado pelas ditaduras que se instalaram no Cone Sul nos anos de 1960 e 1970, que seqüestraram, torturaram e mataram barbaramente os adversários políticos. É mais um filme para lembrar o que o sistema capitalista autoritário é capaz de fazer. Vale a pena ver.
Política Nefasta Levantamento do Datafolha concluiu que o processo de privatização da saúde continua acelerado: em 1995, o Estado investia mais de 61% dos gastos do setor, mas agora, em 2008, o investimento público não passa de 49% do total. Os planos privados de saúde já representam 51% do montante do setor. Enquanto o sistema público fica mais reduzido, o lucro aumenta na outra ponta.
Espoliação total No mês de março, o investimento estrangeiro no Brasil bateu em 3 bilhões de dólares, mas, no mesmo período, a remessa de lucros para o exterior chegou a 4,3 bilhões. Ou seja, a internacionalização da economia brasileira foi tão grande nos últimos 20 anos que o país está sendo sugado sem o menor escrúpulo. A não ser que se decida mudar a lei para taxar e segurar a debandada de capital.
Novela cotidiana A Polícia Federal acaba de revelar novo escândalo de corrupção envolvendo empresários privados, lobistas, políticos e empresa estatal – tudo muito democrático e multipartidário. Agora a quadrilha cobrava comissões em projetos financiados pelo BNDES. O caso certamente receberá o mesmo encaminhamento dos demais ocorridos nas últimas décadas: entram no acordo geral da impunidade. Cinismo midiático Evento organizado pela TV Câmara, no dia 30 de abril, para comemorar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, contava com os convidados Julio César de Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo; João Roberto Marinho, de O Globo; Luís Frias, da Folha de S. Paulo; e Roberto Civita, da Editora Abril. Tratar de liberdade de imprensa com esse grupo só pode ser uma piada com o povo brasileiro.
Sistema suíço Dois cidadãos suíços que ficaram presos recentemente – um lá na Suíça e outro aqui, no Brasil –, funcionários de bancos, guardam segredos suficientes para desmontar boa parte dos crimes milionários protegidos pelo sigilo bancário. O funcionário de lá sabe quais são as contas mais sujas nos bancos suíços; e o funcionário daqui sabe quais doleiros operaram os depósitos no exterior. O silêncio deles vale ouro. Sem noção Na semana em que vários fóruns internacionais, inclusive a ONU, debateram o aumento do preço dos alimentos e o aumento da fome mundial com dezenas de países afetados, a maior revista comercial brasileira, a Veja, da Editora Abril, colocou na capa uma matéria sobre a preocupação individual das pessoas de classe média em fazer uma nutrição balanceada e saudável. Só pode ser gozação!
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brasil
CPI denuncia mau uso de verba da saúde em SP DENÚNCIA Governo Serra repassa controle do sistema de saúde a entidades privadas e tenta minar a participação popular no SUS
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Eduardo Sales de Lima da Redação O GOVERNO do Estado de São Paulo, pouco a pouco, vem alterando o modelo de saúde paulista. Essa é uma das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Remuneração dos Serviços Médico-Hospitalares, instalada na Assembléia Legislativa para apurar a forma como o poder público tem remunerado os serviços prestados por entidades de direito público e privado e por hospitais universitários. Um dos papéis centrais nessa política implementada pela gestão tucana é exercido pelas organizações sociais (OS’s), entidades privadas que recebem do Estado a concessão para administrar hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Dados do orçamento paulista mostram que o governo tucano prioriza o repasse a essas entidades, em detrimento do investimento com o setor público. Entre 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OS’s cresceram 114,14%, saltando de 9,76% para 20,90% dos recursos da saúde. Já as verbas para “pessoal e encargos sociais” caíram, proporcionalmente, 26,08%, saindo do patamar, em 2000, de 53,58% para 39,6% em 2007. Os dados constam do Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária (Sigeo), da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. “Os números mostram uma intenção clara do governo do Estado em diminuir seu gasto e sua responsabilidade com o funcionalismo público”, afirma Ciro Matsui Júnior, um dos assessores para a elaboração do sub-relatório do deputado estadual Raul Marcelo (Psol), incluído na CPI. A previsão é de que a entrega do relatório final da comissão, elaborado pelo deputado estadual Hamilton Pereira (PT), ocorra no dia 8.
Idéia tucana Atualmente, sete OS’s administram treze hospitais em São Paulo. Segundo a médica sanitarista Virgínia Junqueira, esse modelo de gestão da saúde pública parte do pressuposto de que tudo que é estatal é atrasado – o oposto do que apregoa o Sistema Único
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de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988 e tido como um modelo de referência mundial. As OS’s surgiram em 1998, com a aprovação do Plano Nacional de Publicização. “A idéia das OS’s foi personificada no programa neoliberal de Bresser-Pereira, então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995”, relata. À época, Bresser-Pereira lançou mão de uma concepção que transita entre o público e o estatal, a “publicização”. Mas “publicizar”, grosso modo, é privatizar áreas sociais chamadas de não-exclusivas – como saúde, educação e cultura.
Equipe da Assembléia Legislativa que visitou hospitais em São Paulo constatou irregularidades, como OS’s que subcontratam empresas para prestação de serviço ligadas a pessoas da própria entidade privada Virgínia conta que o termo “publicizar” não é original da gestão de FHC. “Esse ‘tucanês’ foi inspirado nos Quangos (organizações quase não-governamentais, traduzido do inglês para o português), que surgiram na Inglaterra”, conta.
Estado mínimo A médica sanitarista compara a relação das OS’s e o
poder público com a do Banco Central e o Ministério da Fazenda. Segundo ela, o Ministério “paga o dinheiro, mas não controla nada”. No caso da saúde, a administração pública firma contratos de gestão com as OS’s. Neles, estabelece metas de produção como, por exemplo, a taxa de ocupação de leitos que precisa ser alcançada. E termina aí sua ingerência sobre as entidades privadas, que passam a administrar a infra-estrutura e o dinheiro públicos. “É um problema muito grave a interação das OS’s com o SUS, porque ao terceirizar esse processo de gestão dos hospitais, o Governo do Estado passa a não ter mais controle, mais autonomia ou gerência sobre o que vai ser executado por um determinado hospital”, diz o assessor do relatório de Raul Marcelo, Ciro Matsui Júnior.
Ilegalidades As investigações conduzidas pela CPI comprovaram o mau uso de verbas do Estado. Uma equipe visitou os hospitais de Carapicuíba, Francisco Morato, Grajaú, Itaim Paulista, Itaquaquecetuba, Santo André e Vila Alpina. Constatou irregularidades como OS’s que subcontratam empresas para prestação de serviço ligadas a pessoas da própria entidade privada ou a professores das instituições de ensino mantidas pelas mesmas OS’s. “Não há transparência. E essas organizações não estão submetidas a leis de licitações”, salienta o deputado estadual Raul Marcelo. “As OS’s roubam dinheiro público”, dispara o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaúde), Benedito Augusto de Oliveira.
A ofensiva contra o SUS A experiência com as organizações sociais (OS’s) também está incentivando o governo tucano a abrir outra frente de batalha: minar a participação popular no Sistema Único de Saúde (SUS) – um preceito definido pela Constituição, de 1988. Em dezembro de 2007, o governador José Serra ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), para derrubar a lei estadual que criou os Conselhos Gestores de Saúde no SUS. Uma das premissas do Sistema é a participação dos cidadãos na implementação das diretrizes organizativas específicas de cada hospital público. Os conselhos gestores têm a função de avaliar e fiscalizar os serviços de saúde prestados à população. Sua composição contempla a participação de usuários e funcionários. Segundo a CPI da Remuneração dos Serviços Médico-Hospitalares, da Assembléia Legislativa paulista, nenhuma das unida-
des geridas por OS’s visitadas durante investigação de deputados possui um Conselho Gestor que siga as diretrizes da lei 8142, de 1990. Com a ação no STF, Serra tenta padronizar esse descumprimento da norma. “É uma tragédia para o serviço público e rompe com os princípios do SUS”, salienta o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaúde), Benedito Augusto de Oliveira. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também afirma que as OS’s e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip’s) descumprem a legislação sobre a administração pública e os princípios e diretrizes do SUS. Um parecer da entidade enfatiza que “é flagrante a inconstitucionalidade e a ilegalidade” de ambas. No entanto, ainda com base na política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, Estados como Bahia, Rio de Janeiro, Roraima e Tocantins também passaram a transferir serviços de saúde a entidades terceirizadas. (ES)
Marcello Casal Jr/ABr
Antônio Cruz/ABr
A CPI investiga o mau uso de verbas públicas em várias instituições, como no Hospital Geral do Grajaú (no alto) e no Hospital Santa Marcelina, do Itaim Paulista (logo acima); as OS´s foram personificadas no programa de Bresser-Pereira e adotadas pelas gestões tucanas de Alckmin e Serra
“Metas são absurdas e não dialogam com o SUS”, denuncia enfermeira Profissional narra o cotidiano árduo das OS’s; segundo Sindsaúde, lógica da cadeia produtiva desqualifica o serviço público da Redação O modelo adotado pelo Governo de São Paulo para a administração da saúde tem fomentado um debate no setor. O discurso da gestão tucana é que, com as Organizações Sociais (OS’s), o sistema de saúde ganhou em produtividade e reduziu custos. Já os críticos argumentam que esse modelo é sustentado a partir da exploração do trabalhador da saúde e que a “produção de números” não significa um melhor atendimento. A produtividade, de fato, aumentou minimamente, mas isso não significa que o hospital é melhor. “Essa elevação da produção dos hospitais OS’s é baseada na superexploração do trabalhador, principalmente os da área da saúde”, afirma Ciro Matsui Júnior, assessor do deputado estadual Raul Marcelo (Psol-SP), que auxilou na elaboração de um relatório que faz parte da CPI da Remuneração dos Serviços Médico-Hospitalares. Outro argumento dos críticos das OS’s é que os parâmetros utilizados para a comparação de desempenho atendem, majoritariamente, às lógicas empresarial e de produtividade. A remuneração a cada hospital administrado pelas OS’s se dá pelo percentual dessas metas cumpridas. Se a entidade privada cumpre de 50% a 70% das metas realizadas, por exemplo, vai receber 70% da verba pública relacionada. O percentual aumenta conforme a apresentação de mais números. A questão é que esse desempenho nem sempre dialoga com as necessidades da população. “São índices que medem produtividade do hospital, mas cada hospital tem um perfil diferente, pois atende a populações diferentes; essa
padronização é muito complicada”, afirma Júnior.
Caçar a demanda Um dado propagandeado pelo Governo de São Paulo para justificar o modelo das OS’s é o de que todas as metas estabelecidas pelo poder público estão sendo cumpridas, o que de fato ocorre. No entanto, esse desempenho é obtido às custas de uma constante pressão sobre o trabalhador da área de saúde. Sindicalistas afirmam que as OS’s exigem os “números”, mas não oferecem as condições compatíveis – como remuneração ou infra-estrutura de trabalho adequadas. O Brasil de Fato conversou com Cláudia Vianna (nome fictício), enfermeira que trabalha em uma unidade de saúde da família. Segundo ela, são exigidos dos profissionais números “surreais” de consultas, de produção. “Eles querem que a gente busque as pessoas na rua para atendermos, gerar produtividade. Nas reuniões, por exemplo, é dito para irmos a salões de manicure, cabeleireiros e convidarmos as mulheres a fazerem papanicolau. A questão é que a mulher faz o exame, mas não tem acesso ao tratamento se realmente estiver com algo mais complexo, como câncer de útero. Não há a integralidade apregoada pelo SUS”, explica a enfermeira. Para ela, o atendimento é feito na lógica que “todo mundo é tratado como se fosse uma massa de números que geram produtividade. É muito equivalente à produção de banco, que tem que vender produtos”, denuncia. Quarteirizados As OS’s também usam uma outra estratégia para ampliar o cumprimento das metas estabelecidas pelo Estado: a contratação de trabalhadores ter-
ceirizados. Em São Paulo, tanto serviços mais simples (como segurança e limpeza) quanto mais complexos (a radiologia e atendimento médico) estão sendo prestados por empresas contratadas nos hospitais, em um processo batizado de “quarteirização”. Segundo Ciro, esses trabalhadores têm remuneração menor do que os das OS’s que, em contrapartida, economiza custos e obtêm maior lucratividade. Para o usuário do sistema de saúde, a conseqüência é a piora na qualidade do serviço. Essa “quarteirização” está mais que presente em São Paulo. Dos 374 médicos que trabalham no hospital Estadual Vila Alpina, apenas 50 integram o quadro de funcionários do próprio hospital, segundo investigação de um grupo de parlamentares que participam da CPI. Em todos os hospitais visitados, pelo menos um dos setores da assistência médica é prestado por empresas contratadas. Os setores que geralmente são contratados são anestesiologia, neurocirurgia, cardiologia, ortopedia e oftalmologia. “São duas lógicas, a do funcionalismo público, que dialoga com a população; e do funcionalismo precário, que danifica o trabalho. As OS’s excluem o funcionário concursado e colocam o da cadeia produtiva, desqualificando o serviço público”, enfatiza o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaúde), Benedito Augusto de Oliveira. Em determinado hospital, também visitado por uma comissão da CPI, Ciro Matsui Júnior revelou: “Eu perguntei ao superintendente se não era mais caro terceirizar e ele falou que não, que seria até mais barato para ele porque teria que gastar com férias”. (ES)
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cultura Raquel Júnia do Rio de Janeiro (RJ) A ESCOLA de Samba Estação Primeira de Mangueira fez 80 anos no dia 28 de abril. Os festejos do aniversário começaram cedo, com a alvorada. Em seguida, foi inaugurada a segunda parte da escola infantil Tia Neuma, um dos projetos sociais organizados pela escola de samba. No final da manhã, uma missa em ação de graças foi celebrada na Igreja da Candelária, no centro da cidade. A admiração pela Mangueira não é só carioca. Na inauguração da escolinha, o paulista Vanderlei da Silva trajava camisa rosa, calça clara e sapatos verde e rosa. Veio de São Paulo para acompanhar o aniversário. O colecionador de vinis disse que o interesse surgiu primeiro pelos compositores Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento, todos ligados à Escola, e depois quis conhecer a fundo a história da Mangueira, o que o fez ser um grande admirador. Vanderlei estava próximo a um dos sambistas citados por ele, Nelson Sargento. E é ele quem define o que significa os 80 anos da Mangueira: “Essa festa é realmente a coroação do que o samba é capaz, porque tudo que está acontecendo é por causa da palavra samba. Se o samba fosse um personagem, ele seria a coisa mais importante do universo do Brasil. O samba gera comunidade, união, vila olímpica, uma porção de coisas. Eu acho que o samba é que está de parabéns”. O compositor brinca que certa vez foi ao médico e este levou um susto, porque o sangue do paciente era verde e rosa.
Memória O samba no morro da Mangueira é anterior ao surgimento da escola, de acordo com a história contada pelos próprios mangueirenses. A Estação Primeira foi fundada no dia 28 de abril de 1928, mas antes disso já havia blocos carnavalescos na comunidade, inclusive o Bloco dos Arengueiros, do qual Cartola fazia parte.
No início do século 20, a prática do samba era tida como crime, e os sambistas, moradores das favelas e negros, eram perseguidos pela polícia. Nelson Sargento disse que não participou dessa época, pois nasceu em 1924, mas lembra de um episódio que exemplifica a perseguição aos sambistas: “Inclusive João da Baiana [um dos sambistas do Morro da Mangueira] tinha um documento do prefeito da cidade permitindo a ele usar pandeiro. De lá para cá melhorou muito, o sambista hoje é internacional, entra em qualquer palácio, em qualquer país”. Para Peres Modesto, morador da comunidade e participante de um dos projetos da Mangueira, a criminalização não existe mais em relação ao samba, mas continua de outra forma. “Hoje a gente ainda é visto como bandido. Só porque moramos na comunidade já dizem logo que somos traficantes”, diz.
Carnaval profissional A Mangueira já conquistou 18 títulos no Carnaval do Rio de Janeiro. Hegio Laurindo da Silva, de 86 anos, se orgulha em dizer que foi mestre-sala da escola por 36 anos, conquistando sempre a nota dez dos jurados. Para ele, o carnaval de antigamente era melhor. “Antes tinha diversão em todo lugar, agora o pessoal acaba de desfilar e não tem mais nada. E quem tem três ou quatro filhos, como vai pagar para entrar na Sapucaí? Antes ninguém pagava nada. Eu desfilava e minha família podia ir toda me ver”, recorda. Ao contrário de Hegio, Evandro, conhecido como Dido do Cavaco, cavaquista da Escola, avalia positivamente as mudanças no Carnaval. Para ele, a cobrança de ingressos, por exemplo, tem a ver com a profissionalização do carnaval, o que valorizou os artistas. “Até o carro, que antes se empurrava, agora tem um motor. Então, não dá mais para ser tudo como antigamente. Antes as pessoas trabalhavam apenas por amor, hoje a Mangueira mantém cerca de três mil funcionários o ano inteiro, então precisa de financiamento”, explica.
80 HISTÓRIA Verde e rosa mantém vivos o samba e o orgulho popular Cora Rónai/CC
Jovens reclamam da polícia. Governador fala em “stress”
Jovens do Morro da Mangueira, presentes na inauguração da escola infantil Tia Neuma 2, e participantes de um dos projetos sociais da Escola de Samba, reclamaram da violência policial na comunidade. “Hoje, o governador está aqui, então a polícia não vai fazer nada conosco, mas no morro eles já nos abordam com a arma em nossa cabeça, não perguntam se somos menor, se trabalhamos, nada disso, já acham que somos todos traficantes e bandidos”, desabafa um dos jovens posicionado há menos de cem metros de dois policiais militares que participavam da segurança do governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral (PMDB). Mas, para Cabral, a comunidade sofre muito mais com a presença dos criminosos do que com as ações da polícia. “A ação da polícia não é fácil, porque evidentemente tudo o que as comunidades gostariam é que os criminosos fossem embora sem precisar dela. Não só as comunidades, co-
mo eu também. Mas, infelizmente, esses criminosos têm armas poderosas e presença física nas comunidades, e nós não vamos admitir isso. Estamos enfrentando-os e, no enfrentamento, evidente que o stress é muito grande, agora eu não conheço nenhum caso de resultado positivo que não tenha tido esse tipo de enfrentamento”, responde. Uma menina de 12 anos, outra participante dos projetos da Mangueira, também reclama da atuação policial. “O morro é bom de morar. Eu só não gosto quando a polícia entra aqui, porque eles invadem nossas casas sem pedir licença, jogam as roupas todas para fora. Eles têm é que dar exemplo para a gente, não poderiam fazer isso”, fala. O deputado estadual Alessandro Molon (PT/RJ), também presente na cerimônia, considera que a preocupação exposta pelos jovens é uma situação que precisa ser enfrentada. “O papel principal da polícia é trazer segurança para a população, proteger a população e não aumentar a insegurança”, conclui. (RJ)
do Rio de Janeiro (RJ)
Mangueira
Dona Zica e Cartola, ilustre casal mangueirense
do Rio de Janeiro (RJ)
Mais que uma escola de samba, para as crianças, Mangueira encarna a possibilidade de concretizar sonhos
anos de
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Sergio Cabral justifica a violência policial como algo inevitável; não haveria resultado positivo sem enfrentamento
Projetos sociais na Estação Primeira
A quadra da Mangueira, também conhecida como Palácio do Samba, é como se fosse a porta de entrada na comunidade. Como quase todas as casas do morro não são pintadas, o verde e rosa se sobressaem. Perto do Palácio, reinam também as mesmas cores nas paredes e portas do comércio da região. Para Juliane Costa, Stefanny Medeiros e Hellen da Silva, todas de 12 anos, a Mangueira não é só uma escola de samba, é também a possibilidade de concretização de um sonho. Elas vêm de outras comunidades para treinar basquete na Vila Olímpica da Mangueira e têm um desejo em comum: participar da seleção brasileira de basquete. A Vila Olímpica fica próxima do Palácio do Samba. É lá que, através de parcerias com empresas públicas e privadas, a Mangueira desenvolve alguns dos projetos sociais. Um exemplo é a escola infantil Tia Neuma, mantida por uma parceria com o colégio privado Santa Mônica. Nos uniformes, as crianças trazem na parte de trás o dizer: “mantida por Santa Mônica”. A escolinha tem o nome de Aparecida Neuma, mãe da hoje diretora da escola Eli Gonçalves da Silva. Tia Neuma, como era conhecida, foi neta de Saturnino Gonçalves, primeiro presidente da Mangueira. Ela é lembrada com carinho pelos mangueirenses pela preocupação social que tinha. Além da Vila Olímpica, a Mangueira coordena a Mangueira do Amanhã, uma escola de samba mirim, e também outros projetos como cursos de idioma, pré-vestibular e de inclusão digital, em parceira com empresas. “Os 80 anos da Mangueira significam uma sustentação de vida para muita gente. Eu vivo com o que eu ganho aqui, não só falando do aspecto financeiro, mas também do profissional e do emocional, que é a alegria. Cada um que participa aqui tem uma realização”, finaliza Dido do Cavaco, cavaquista da Escola. (RJ)
DOCUMENTÁRIO
As verdades sobre o Velho Chico Fabiana Nogueira Chaves de São Paulo (SP) “Os usineiros e esse governo do agronegócio alcoolizado. Esse governo pretende irrigar 150 mil hectares nesta região, com a transposição do rio São Francisco. Etanol enchendo tanques à custa de barrigas vazias”. A afirmação feita pelo padre Tiago Thorby a Carlos Pronzato, no documentário Além do jejum... As verdades do Velho Chico, ilustra muito bem a intenção do filme: mostrar à sociedade o porquê da transposição, sua verdadeira intenção e seu impacto sobre as populações que vivem à beira do rio São Francisco. Tendo como o pano de fundo os dois jejuns de frei Luiz Flávio Cappio e com a transposição do rio São Francisco como elemento principal do documentário, Pronzato e Stéfano Barbi Cinti, diretores do filme, mostram, em 60 minutos, o que a mídia corporativa pouco mostra: a voz das populações que serão afetadas pela obra. Frei Luiz fez dois jejuns contra a transposição do rio. O primeiro foi em 2005 e durou onze dias, tendo sido interrompido com a promessa do governo de suspender as obras e abrir o diálogo. Porém, após a reeleição do presidente Lula, em 2006, o governo retomou a
obra. O bispo da diocese de Barra (BA), vendo esgotadas as perspectivas de diálogo, reiniciou seu jejum que, dessa vez, foi de 24 dias, e que só acabou devido ao seu estado de saúde ter se agravado. “Termino aqui meu jejum, mas não a minha luta”, afirmou frei Luiz no dia 20 de dezembro de 2007.
Outro modelo O documentário utiliza os números de forma palpável, mostrando as pessoas que compõem a realidade do rio, e não vem apenas criticar o projeto de transposição, mas também apresenta alternativas muito mais palpáveis para os problemas do Semi-Árido. Durante o filme, são apontadas as 530 obras do Atlas Nordeste da Agência Nacional das Águas (ANA), mais de 140 tecnologias da Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA) para o meio rural e projetos da Embrapa: alternativas mais baratas para trazer água ao povo do Semi-Árido. Com os investimentos nesses projetos, 44 milhões de pessoas dos nove Estados do Nordeste seriam beneficiados, mais o norte de Minas Gerais, enquanto o governo fala em beneficiar somente 12 milhões de pessoas em quatro Estados nordestinos. Esse documentário, alternativo à mídia grande, tanto em produção como em conteúdo, difere também por seu intuito: conscientizar e, por is-
so, a pirataria é de muita importância. “A distribuição se dá de maneira muito espontânea; quem tem uma cópia faz outra, passa, e o outro faz outra, e assim vai. Agora temos gente no nosso entorno que faz milhares de cópias para distribuição praticamente gratuita, com nossa autorização. A pirataria no campo do documentário de mobilização sociopolítica é uma arma poderosa”, revela Pronzato. Quem se interessar em adquirir uma cópia do documentário, pode pedi-lo através do telefone (71) 9214.4402 ou do e-mail: pronzato@bol.com.br
Quem é Stéfano Barbi Cinti é italiano e vive no Brasil desde 1978. Por essas terras, tornou-se professor de italiano e jornalista, depois de um tempo passou a escrever, e a paixão pela fotografia deu lugar à produção de vídeos e documentários. Carlos Pronzato é escritor, diretor teatral e de cinema. Nasceu na Argentina e veio para o Brasil no final da década de 1980 estudar direção teatral na Universidade Federal da Bahia. Ele vive há 20 anos na Bahia.
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américa latina
ONU acusa FMI e Banco Mundial Ruthette
HAITI Diretor da FAO reconhece que políticas aplicadas pelas instituições desmontaram sistemas implementados para proteger agricultores do Terceiro Mundo
Novas privatizações, apesar dos efeitos negativos de Fondowa e Porto Príncipe (Haiti)
Claudia Jardim de Fondowa e Porto Príncipe (Haiti) “CAMPONESES, camponeses, as coisas não eram assim, não eram assim”, diz o refrão de uma canção entoada por dezenas de trabalhadores rurais durante missa realizada em Fondowa, sul do Haiti. A missa era parte das atividades de um Congresso de camponeses. No país do Vodu, as igrejas, católicas e evangélicas estão permanentemente lotadas. No sermão, o padre trata de explicar a crise enfrentada pelo país há anos. “O campo é o espelho do governo; aqui vemos quando um governo vai bem ou não.” O espelho reflete pobreza e abandono. “Nunca foi bom, nunca tivemos apoio, mas agora está muito pior. Aquele que tem um pedaço de terra come o que dá, o que não tem, não tem nada para comer, é fome mesmo”, desabafa o camponês Felix Herold, pai de quatro filhos. Todos fora da escola. “Se não temos nem para comer, como vamos pagar escola?”, acrescenta. A crise do aumento dos preços dos alimentos foi o pivô das manifestações do início do mês que resultaram na queda do governo do primeiro-ministro Jacques Edouard Alexis, mas revelaram um problema que se arrasta desde o início da década de 1980 e está relacionada com a política econômica que viria a ser adotada nos anos seguintes.
Invasão de alimentos
A partir de 1986, com a queda do regime do ditador Claude Duvalier, as políticas de liberalização da economia assumem uma nova fase. A primeira medida foi a eliminação das taxas de importações para os produtos agrícolas. Arroz, milho, açúcar e café importados – principais produtos da produção nacional que nos anos 1970 garantiam ao país a sua auto-suficiência – passaram a ser vendidos a preços inferiores aos produtos nacionais. “Neste período é que se aplica a bíblia das políticas econômicas de ajuste estrutural”, lembra o economista Camille Chalmers. “ Se pretendia armar novas políticas para inserir a economia dos países do [chamado] Terceiro Mundo na economia mundial, mas seria uma inserção subalterna aos interesses das transnacionais e das grandes potências”, diz. As conseqüências diretas, de acordo com Chalmers, foram desestabilização da economia camponesa, a desconexão da relação produção e consumo e a concentração de capitais para comprar comida importada em detrimento da inversão em insumos produtivos. Estima-se que nos últimos anos, 800 mil postos de trabalho ligados aos setores do arroz, açúcar, frango e ovos foram eliminados. O representante do Fundo Monetário Internacional (FMI) no Haiti, Ugo Fasano, admite que apesar do organismo recomendar a redução dos subsídios agrícolas a todos os países, as grandes potências produtivas, como os Estados Unidos e países da Uniao Européia, mantiveram o protecionismo aos seu respectivo setor agropecuário, enquanto que os países subdesenvolvidos cumpriam a recomendação do FMI. “Ao diminuir as tarifas, houve um problema negativo no final sobre a produção nacional, mas houve um efeito positivo sobre o consumo. O arroz
Capacetes azuis vigiam ruas que levam a Cité Soleil, em Porto Príncipe
era muito pouco consumido no Haiti, e hoje é o principal alimento porque o país conseguiu importá-lo a um preço muito mais baixo do que o da produção nacional”, defende Fasano. Só que na vida real, a conta não fecha. O impacto sobre a produção agrícola também afetou o consumo. Hoje, 1 kg de arroz custa US$ 2,50 dólares e o salário mínimo não supera os US$ 1,75 dólares diários. “Às vezes, não conseguimos ganhar nem o mínimo. Volto para casa de mãos vazias e minha família fica sem comer, não tem arroz, não tem feijão, nada” conta um vendedor ambulante. À sua frente, se via o que chamam de Boulevard La Saline, um córrego com esgoto à ceu aberto que divide o espaço de trabalho e moradia. De um lado, barracos de madeira, de telhas de zinco, alguns forrados com plástico. Do outro lado do córrego, centenas de mulheres e homens, apinhados, no meio do lixo, organizavam seus postos de venda. Roupa, geralmente usadas, e manga, muita manga. A maioria dos moradores de La Saline emigraram do cam-
po. De acordo com a organização estadunidense Cristian Aid, entre 1986-1987, 71.9% da população vivia no campo. Em 1999-2000 o índice havia diminuído para 65%. Hoje, estima-se que 60% da população permanece no meio rural e 40% nas cidades.
Nações Unidas x FMI
O diretor-geral Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) Jacques Diouf, reconheceu, dia 25, as conseqüências das políticas aplicadas pelas instituições multilaterais nos últimos anos. “É verdade que o Banco Mundial e o FMI [Fundo Monetário Internacional] apresentaram, ao longo das duas últimas décadas, políticas que desmontaram sistemas implementados para proteger agricultores em países do[chamado] Terceiro Mundo”, afirmou Diouf. Para Ugo Fasano do FMI, pretende-se buscar um bode expiatório, ao criticar o Fundo pela crise dos preços dos alimentos. “É muito fácil encontrar um bode expiatório olhando para atrás. As políticas de liberali-
zação tinham o objetivo de fazer com que os países procurassem crescer de uma maneira muito mais rápida e sustentável, com políticas que ajudassem não só o produtor como o consumidor”, argumentou. A seu ver, a responsabilidade da crise reside na alta do preços do petróleo, da produção de biocombustíveis e do aumento da demanda dos países asiáticos. Os camponeses prometem reagir caso a situação continue igual. “É essa política neoliberal que está destruindo o país, mas o governo só escuta eles, e não escuta o povo. Essa será sua sentença de morte. Os camponeses chegam a uma encruzilhada que dizem que já não podem esperar mais”, adverte o padre da igreja em Fondowa, Joshep Filipi, ao final da missa. Na cidade, a situação não é diferente. Quando vêem um estrangeiro, alguns vendedores ambulantes gritam “Clorox, Clorox”, o nome da marca de um cloro. Dizem que a fome dói como se tivessem tomado cloro. Esse era um dos coros nas manifestações do início do mes. A situação permanece igual.
Não foi apenas o setor agrícola que foi afetado pela liberalização da economia. Duas estatais foram privatizadas, a indússtria de cimento e de produção de farinha, e outras mais estão na lista, de acordo com Camille Chalmers. “As telecomunicações, os portos, o aeroporto e a eletricidade poderão ser privatizados”. Chalmers adverte que a ausência do Estado em setores como a educação e a saúde pública está abrindo o caminho para o que chama de “privatizacao ilegal” – já que o fato permite a ocupação dos espaços por parte do setor privado, diante do crescimento da demanda. Hoje, 82% das escolas são privadas e apenas 18% são públicas. “Nos anos 70, a proporção era exatamente a inversa, 82% estava nas mãos do Estado”, afirma.
Dívida crescente
Do total do orçamento do Estado, 394 milhões de dólares foram destinados a despesas – dos quais 315 milhões são provenientes da ajuda internacional. Hoje, a dívida é de 1,6 bilhão de dólares e o pagamento de juros anuais é de 70 milhões de dólares. O dobro do orçamento dedicado à educação, comenta Chalmers. “Há um processo de perda da soberania e cada vez mais as decisões do governo haitiano têm menos peso nas decisões estratégicas do país. Essa é uma das raízes da crise política”, avalia. Após as manifestações, o debate sobre a necessidade
de reativar a produção nacional saiu à luz. Ao mesmo tempo, o FMI orienta que o governo não poderá praticar uma política de incentivos agrícolas. O presidente da República, René Préval, prometeu destinar recursos à produção nacional, abandonada há anos. O presidente do Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA), Bernard Etheart, adverte que a reforma agrária e a produção nunca foram e não são uma prioridade do governo. “Não é a primeira vez que Préval fala da produção nacional e até agora não se fez nada. Ele diz que está ocupado com a insegurança. Quer segurança para que investimentos estrangeiros venham ao país, mas até agora os investimentos não chegaram”, critica Ethart.
FMI
Para o FMI, o governo de René Préval está tomando as decisões corretas para solucionar o problema a curto prazo e indicou que a política de apoio à produção agrícola, com subsídios diretos nos preços do arroz, não durará muito. “O governo tem um orçamento pequeno e o setor agropecuário não poderá receber subsídios a médio e longo prazo, porque alguém tem que pagar por isso e o orçamento do país e muito pequeno. Se um país como o Haiti tem que fazer uma escolha entre subsídios e crescimento econômico, a escolha é clara: crescimento”, diz Fasano. A entrevista foi concedida na sede do FMI em Porto Príncipe, instalada no prédio do Banco Central haitiano. (CJ)
12 de 1º a 7 de maio de 2008
américa latina
O Paraguai e a agenda de Lugo DAQUI PARA FRENTE Desafios do novo presidente serão libertar economia do país do tripé – monocultura da soja, criação de gado para exportação e importação de produtos sem impostos; e renegociar acordo de Itaipu, reduzindo a dependência por dólares Antonio Cruz/ABr
Pedro Carrano de Curitiba (PR) “SOMOS COMO um Kuwait com energia elétrica, um país com excedente elétrico, e nos proíbem de comercializá-la de forma livre”, denuncia o engenheiro Ricardo Canese, do movimento Tekojoja, em uma das várias comparações usadas para explicar a produção hidroelétrica de Itaipu, dividida entre Paraguai e Brasil. Após a vitória de Lugo, no dia 20 de abril, o tema colocou-se na ordem do dia, com a pressão desde setores representados pelos principais jornais do país (ABC Color, por exemplo), até representantes dos movimentos populares. Em meio ao cabo de guerra das declarações, Frei Betto esteve em Assunção e teria sinalizado a disposição brasileira para negociar. O presidente Lula, de início, negou alteração nos acordos. Mas os paraguaios preferem apostar no compromisso deixado após a reunião do dia 3 de abril, com Fernando Lugo e sua assessoria. O ex-bispo eleito presidente no último dia 20 aglutinou diversos grupos políticos, exigindo em primeiro lugar a venda de hidroeletricidade pelo preço de mercado. Quando os Tratados de Itaipu foram firmados, em 1973, a cotação do petróleo era de apenas 3 dólares por barril. Hoje, já ultrapassa a marca dos 100 dólares. Enquanto isso, o preço do MW vendido ao Brasil se manteve nos mesmos patamares. Detalhe: o Paraguai importa 100% de todo o petróleo que utiliza. Segundo cálculos do engenheiro Ricardo Canese, essa distorção (o preço do petróleo em alta e a manutenção do valor do MW vendido em Itaipu) provoca uma sangria anual no cofre do país da ordem de US$ 700 milhões (veja entrevista). A outra reivindicação de Fernando Lugo é a possibilidade de o Paraguai negociar os excedentes de Itaipu com outros países, por um preço de mercado.
Imperialismo Bolívia e Paraguai são os únicos países com excedentes energéticos no Cone Sul. Estreitar relações com a Bolívia (cuja Agenda de Outubro luta pelo controle dos hidrocarbonetos) é um dos objetivos do movimento popular. Estar no Paraguai é olhar o imperialismo por outro ângulo. O mercado de distribuição do petróleo, por exemplo, está concentrado em transnacionais como Texaco, Esso e, sobretudo, a Petrobras, que pode vir a ser a maior distribuidora do mercado interno. O que se soma ao imperialismo brasileiro na cultura, no cotidiano e inclusive no idioma. Sem a energia do Paraguai, o Estado brasileiro teria que incrementar a produção de petróleo. “O Brasil carece de alternativas energéticas de baixo custo para substituir a
Na busca por soberania
Paraguaios festejam nas ruas a eleição do novo presidente, Fernando Lugo
barata energia paraguaia de Itaipu, razão pela qual carece de sentido lhe presentearmos com nossa energia a um valor muito abaixo de seu valor de mercado”, descreve Canese no livro La recuperación de la soberania hidroeléctrica del Paraguay. O Paraguai importa 800 milhões de dólares anuais com a compra de petróleo, o que representa 50% das suas importações. “É a relação que existia entre a metrópole e a colônia, obrigada a vender a quem havia capturado sua soberania, sobretudo o que produzia, sem poder vendê-lo a outro comprador, nem a preço de mercado. Neste sentido, os tratados de Itaipu e Yacyretá (hidrelétrica binacional com a Argentina) são claramente colonialistas”, escreve Canese.
Enfrentamento? Os cem primeiros dias de governo são considerados essenciais pela base de apoio de Fernando Lugo, da Alianza Patriotica para el Cambio (APC). O programa de governo prevê medidas de transição urgentes, a partir do dia 15 de agosto, quando tomar posse. Entre as medidas, estão o combate à pobreza, geração de emprego, segurança e saúde. Em cada área, uma equipe técnico/política está sendo formada para dar conta da tarefa. No entanto, como pensa o economista Raúl Monte-Domecq, a contradição se encontra em medidas de longo prazo que questionem a estrutura econômica do Para-
guai, que deverão tocar nas questões trabalhista, energética e de reforma agrária. A economia paraguaia, atualmente, está baseada no tripé: monocultura da soja, criação de gado para exportação e importação de produtos sem impostos, na zona franca de Ciudad del Leste (a principal do mundo, ao lado da cidade de Colón, no Panamá). “São três grandes rumos que não geram riqueza real, não geram industrialização”, analisa. Do ponto de vista da classe trabalhadora, a luta por melhores condições de trabalho também está colocada na agenda. “O salário mínimo é o salário máximo por aqui. Os trabalhadores não têm seguro social. Temos que aglutinar vários setores, com planteamentos concretos, para articular com o governo”, comenta Alda Robles, do Sindicato de Funcionários de Hospitais de Clínicas. Apesar da relevância, o tema de Itaipu não é contraditório para setores como o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), base de sustentação parlamentar do futuro governo, pois pode inclusive acelerar o avanço do capitalismo neste país. Por sua vez, a questão da reforma agrária ampla, passada a vitória de Lugo, ganha tom preventivo no discurso da mídia e dos liberais, contrários à desapropriação de terras. E os movimentos populares entendem que é necessário pressionar o novo governo pelas reformas prometidas. APC/CC
Lugo é recebido no Palácio de López por Nicanor Duarte
Usina Hidrelétrica de Itaipu Os tratados de Itaipu binacional foram firmados no primeiro ano da alta do petróleo – quando o mundo vivia, até então, 30 anos de acumulação capitalista ininterrupta. O tratado foi assinado em abril de 1973, por ambos regimes ditatoriais, Stroessner, no Paraguai, e Médici, no Brasil. A potência instalada da usina é de 14.000 MW (megawatts). Entrou em funcionamento no ano de 1984, respondendo por 20% da energia consumida no país. O processo anterior à assinatura dos tratados aponta para uma discussão em torno
do território fronteiriço entre Brasil e Paraguai. O projeto de Itaipu, de início, seria realizado apenas no Brasil, mas houve a pressão do país vizinho para que os dois dividissem o projeto, exigindo os direitos sobre território e as águas a serem utilizadas. As barragens de Itaipu encobrem ainda uma pendência de uma área de 20 quilômetros de fronteira que acabou inundada pelo reservatório, em 1982. As águas cobriram praticamente todo o território em disputa, junto com as cataratas das Sete Quedas (cataratas que o Brasil, de início, considera-
va apenas sua) – como informa o jornal Folha de São Paulo (28/04). Ambos os países consideram a área de 20 quilômetros “território em litígio”. Itaipu surge no contexto de geração de energia em grandes barragens nos anos de 1970, como é o caso da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no Rio São Francisco, que causou o deslocamento de 70 mil pessoas, ou então a UHE de Tucuruí, ao norte do país, o que deixou um rastro de resistência popular, pelas pessoas que foram atingidas e seguiram se organizando. (PC)
Panamá. Apenas em 1999, o Canal do Panamá voltou a render divisas para o Panamá, com a entrada em vigor dos acordos Torrijos-Carter, firmados em 1979. Apesar do controle econômico, há uma cláusula do acordo que garante aos Estados Unidos a possibilidade de intervenção militar quando julgue necessário. Bolívia. No dia 1º de maio de 2006, Evo Morales ocupou a Petrobras em solo boliviano, buscando uma maior participação do estado no recebimento de royalties. De 18%, naquele momento, passou-se receber 82% pela extração de gás natural. Apesar do discurso de justiça do governo brasileiro, Morales teve que recuar e, hoje, a Bolívia fica com cerca de 40% da exploração do gás.
Tratado de Itaipu prejudica os povos do Brasil e do Paraguai Especialista do movimento Tekojoja afirma que, embora o Brasil compre energia barata, o povo paga mais do que no Paraguai de Curitiba Ricardo Canese, do movimento Tekojoja, foi eleito, no dia 20 de abril, deputado para o parlamento do Mercosul (Parlasur), uma das poucas vitórias do movimento popular no parlamento. Assessor do presidente recém-eleito Fernando Lugo, o engenheiro aponta que o Estado paraguaio sofre uma sangria anual de 700 milhões de dólares, por conta do desequilíbrio entre a importação de petróleo e a venda de hidroeletricidade a preços ínfimos. Para ele, ambos os povos, brasileiro e paraguaio, estão sendo prejudicados na lógica que prevalece hoje no comércio da energia elétrica. “Não é sequer o povo brasileiro que se beneficia da nossa energia barata. Isto vai ao mercado maiorista, em que estão as transnacionais. Dois terços das empresas no ramo de eletricidade são controladas por empresas transnacionais”, comenta. Brasil de Fato – Por que o tema de Itaipu garante unidade política entre diferentes forças políticas no Paraguai, e qual a sua importância? Ricardo Canese – Havia esta cúpula mafiosa [Partido Colorado] que não tentou fazer nada porque estava interessada em enriquecer-se, então não tinha como finalidade encarar uma negociação para recuperar a soberania hidroelétrica, porque, ademais, não tinha autoridade moral para fazê-lo. Então, não ia ter possibilidades ante o governo do Brasil. Com Fernando Lugo, temos o respaldo da opinião pública. Creio que o presidente Lula percebe isso. Em geral, toda a condução da administração de Itaipu vai ser encarada com credibilidade, porque é o que administra a principal riqueza em exploração do nosso país. É como um poço de petróleo que nos permite exportar 80 milhões de barris de petróleo anualmente apenas ao Brasil. Este número seria a quantidade de petróleo que se tem que queimar para substituir nossa energia elétrica. Isto está baseado em um cálculo informado por um brasileiro, Jorge Luiz Samek (presidente da Itaipu binacional), ou seja, não é o nosso cálculo precisamente. O sistema elétrico brasileiro ganha pelo preço, ademais é uma energia limpa. Nós exportamos 80 milhões de barris ao ano, o que seria 9 bilhões de dólares ao preço atual, e nosso país recebe apenas 360 milhões de dóla-
res ao ano, ou seja, menos de 5%. Tem que haver um preço justo. Quais as expectativas em relação ao governo brasileiro? Frei Betto esteve em Assunção acenando para o diálogo. Lula, porém, afirmou que não vai haver mudança nos acordos. Lula se comprometeu a negociar com a gente. As declarações de imprensa são declarações. Creio que Lula tem palavra, nós cremos no compromisso dele e de seus principais assessores. Ele não disse que tem a postura do Paraguai. Ele disse que o Brasil tem a sua postura, o Paraguai tem a sua postura, e vamos negociar, buscar uma postura de consenso. Para te dar mais um exemplo, o Paraguai importa 10 milhões de barris de petróleo ao ano, o que, na atual cota, nos custa 1 bilhão de dólares. Então por exportar o equivalente a 80 milhões de barris ao ano, o Paraguai recebe 360 milhões de dólares, e por importar a oitava parte; quer dizer, apenas 10 milhões, pagamos 1 bilhão de dólares, ou seja, empobrecemos anualmente em 700 milhões de dólares.
Lula disse que o Brasil tem a sua postura, o Paraguai tem a sua postura, e vamos negociar, buscar uma postura de consenso Do ponto de vista do estudo da equipe montada por Lugo, em que pode resultar, na economia paraguaia, um aumento nas divisas de Itaipu? Estamos tendo uma sangria, como eu te expliquei, de 700 milhões de dólares ao ano. Não podemos seguir com ela. Então temos que ter uma soma que não só elimine a sangria, porque nós exportamos a energia, então algo tem que ficar aqui. No caso do Brasil, não é sequer o povo brasileiro que se beneficia da nossa energia barata. Isto vai ao mercado maiorista, no qual estão as transnacionais. Dois terços das empresas no ramo de eletricidade são controladas por empresas transnacionais. Isto é o que nós estudamos na página da web da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). E, dentre estas empresas transnacionais, muitas delas
têm sede nas Ilhas Caymann. São empresas que praticam evasão de impostos, ademais. Sabemos que ao consumidor brasileiro lhe vende uma energia mais cara que no Paraguai. Ou seja, o Brasil recebe uma energia muito barata e a vende a uma tarifa excessivamente cara. Então os povos do Paraguai e Brasil estão sendo prejudicados. E, pontualmente, quais seriam as principais demandas em relação à Itaipu? A questão dos custos seria a primeira delas? Hoje, podemos comprar sete vezes menos petróleo que em 1973, e o Paraguai compra 100% de petróleo. Então, não tem sentido um tratado que nos empobreça cada vez mais, há uma causa objetiva para rever estes termos. Em 1973, o preço do petróleo estava a 2 dólares e agora está a mais de 100, mais de 50 vezes. Então, é ridiculamente menos o que recebemos. Hoje falta energia na região, na Argentina e no Brasil, podemos auxiliar. Ao Brasil, lhe falta energia elétrica (é como os EUA, que importam petróleo), e o Paraguai é quem tem excedentes hidroelétricos. Vão ocorrer mudanças nos artigos dos acordos? A questão fundamental é o preço e a disponibilidade de energia para vender que, por sinal, já estava presente na ata de Foz de Iguaçu, que foi a ata da Constituição (dos Tratados de Itaipu). (PC) O áudio desta entrevista, na íntegra, está no site do Movimento Tekojoja: www.tekojoja.org.py/v1/ index.php Reprodução
Quem é Engenheiro industrial e professor universitário, Ricardo Canese é autor do livro La recuperación de la soberania hidroeléctrica del Paraguay, traduzido para o português e publicado no livro O direito do Paraguai à soberania, organizado por Gustavo Codas e publicado pela editora Expressão Popular.