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Circulação Nacional

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 6 • Número 272

São Paulo, de 15 a 21 de maio de 2008

R$ 2,00 www.brasildefato.com.br

Reprodução

Opção de Lula por agronegócio leva Marina a pedir demissão

1968

A saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi resultado da pressão ruralista liderada pelo governador Blairo Maggi (PR/MT). A informação foi confirmada por duas fontes, uma do MMA e outra do Palácio do Planalto, ouvidas pelo Brasil de Fato. Para os defensores do agronegócio, o presidente

Luiz Inácio Lula da Silva deveria optar pela preservação ambiental ou a produção agrícola. Acuado, o petista indicou, no dia 9, Roberto Mangabeira Unger para a coordenação do Plano Amazônia Sustentável. Essa teria sido a gota d’água que levou Marina a apresentar sua demissão no dia 13. Pág. 3

Roosewelt Pinheiro/ABr

Ricardo Stuckert/PR

O ano em que os EUA acordaram Nos Estados Unidos, o “maio de 68” francês começou antes. Em guerra contra o Vietnã desde 1964, foi no dia 30 de janeiro que o país começou a perder a guerra, com “A ofensiva do Tet”. Ao longo do ano, a decadência do “sonho americano” foi escancarada. Na foto, Tommy Smith, nas Olimpíadas do México, em outubro, faz o tradicional gesto dos panteras negras. Pág. 11

Agora é a vez da China e da Índia A África é, hoje, o grande espaço de “acumulação primitiva” asiática e uma das principais fronteiras de expansão econômica e política da China e da Índia, de acordo com o professor José Luís Fiori, cientista político especialista em relações internacionais. Prova disso é que existem, atualmente, cerca de 800 empresas e 80 mil trabalhadores chineses no continente. Pág. 10

Yuri Martins Fontes

ÁFRICA

A ex-ministra Marina Silva discursa durante o lançamento do Plano Amazônia Sustentável , no último dia 8; ao lado, Lula e o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi

“Supertele” reduz influência estrangeira Negociação entre BNDES, governo federal, Brasil Telecom e Oi deve criar nova empresa de telecomunicações. Economistas ouvidos pela reportagem vêem pontos positivos nesse processo, já que a empresa deve ter capital majoritariamente nacional e boa parte será controlado pelo BNDES e por fundos de pensão. Pág. 4

Raposa Serra do Sol pode ser reduzida Apesar de já estarem demarcadas, as terras da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, podem ser reduzidas. O Supremo Tribunal Federal (STF) irá decidir tanto sobre a permanência ou não dos

arrozeiros na região, quanto sobre a legitimidade do processo de demarcação da reserva. A expulsão dos arrozeiros foi suspensa pelo STF a pedido do governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB),

e desde então o clima é de tensão. Para Paulo Santilli, da Funai, desfazer o processo e revisar o modelo de demarcação “seria arbitrário e inconstitucional. Não há precedentes em relação a isso no país”. Págs. 2 e 5 Sergio Lima/Folha Imagem

Personalidades redigem carta contra as cotas Com o objetivo de “oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República”, personalidades como Caetano Veloso, José Arbex Jr., Reinaldo Azevedo e Ruth Cardoso subscreveram uma carta intitulada “Cento e treze cidadãos não-racistas contra as leis raciais”. A Educafro respondeu com um manifesto. Pág. 8

Aumenta a criminalização dos movimentos A criminalização dos movimentos sociais já não é mais exclusividade dos editoriais dos jornais da mídia corporativa. Neste ano, as organizações populares já foram tratadas como “terroristas” por transnacionais, como a Vale, pelas polícias militar e Federal e até pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Pág. 7

Acusado de mandar matar Dorothy é solto

Mulher indígena se desespera depois de ataque em que dez índios foram atingidos por arma de fogo

Divulgação

CRÔNICAS 1964 Livro resgata crônicas escritas pelo jovem Gianfrancesco Guarnieri durante os dois meses que antecederam o golpe militar. Pág. 12

Para gastar menos, Israel bloqueia Gaza Estima-se que, em 20 anos, os custos de Israel com o controle militar dos territórios palestinos – que hoje somam 13% do orçamento anual – atinjam 50%. Para racionalizar custos, Israel impõe, desde 17 de janeiro, bloqueio à entrada de combustível na Faixa de Gaza. Pág. 9

A Justiça brasileira libertou, no dia 6, Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de mandar matar a irmã Dorothy Stang. A medida provocou indignação naqueles que lutam pela reforma agrária e pelo fim da impunidade no Pará. Por outro lado, a decisão mostra a influência do latifúndio sobre as decisões do Poder Judiciário. Págs. 2 e 6


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de 15 a 21 de maio de 2008

editorial

Amazônia, região que ignora os limites da lei AO ARGUMENTAR em defesa de sua proposta de nova demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em áreas não contínuas, afirmando que “o que não pode é você criar um Estado e depois criar uma reserva que tenha 50%, 60% do seu território”, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), doutor Gilmar Mendes, passou recibo da absoluta incapacidade e/ou má-fé da instituição que preside (e suas próprias) para tratar do assunto. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol representa apenas e tão somente 7,8% da área total de Roraima. O Supremo acatou a liminar impetrada pelo governador de Roraima, o tucano José de Anchieta Júnior, contra a retirada dos não-índios das terras da reserva, conforme decisão homologada pelo presidente da República. O resultado mais imediato da desastrada (e desastrosa) decisão do STF teve lugar já no dia 5, quando um grupo de índios que construíram tendas na área de uma das fazendas de arroz, foi atacado por jagunços do senhor Paulo César Quartiero, líder da meia dúzia de “arrozeiros” que se opõem à demarcação da reserva, e que é também prefeito do Município de Paracaima, pelo DEM (exPFL). Dez índios ficaram feridos a bala. Para o governador tucano, José de Anchieta, ao construírem

debate

suas tendas naquele local, os índios agiram como “terroristas”.

Protestos Várias entidades e instituições, ao longo da semana, manifestaram seus protestos contra a decisão do STF, e pelo imediato cumprimento da lei. Entre estas, a própria Comissão Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), que publicou nota reiterando seu apoio à “demarcação em território contínuo”, e anunciando que o PT “intensificará, nas próximas semanas ações políticas de solidariedade aos povos indígenas de Roraima (...) e em defesa das conquistas inscritas na Constituição Brasileira para os povos indígenas, a serem preservadas necessariamente pelo Supremo Tribunal Federal”. Esta, aliás, é uma posição do PT inscrita em seu programa desde a sua fundação, e que vem sendo defendida pela agremiação ao longo dos anos. Talvez por isso mesmo, muitos petistas entendam que, entre as medidas de apoio aos povos originários de Roraima, o partido coloque em discussão a situação do senador Augusto Botelho (PT-RR), migrado há dois anos do Partido Democrático Trabalhista (PDT-RR). Além de suas contumazes posições anti-indigenistas que manifesta publicamente, criando amiúde situações constran-

gedoras para seus pares petistas no Senado, o senhor Botelho é autor de uma ação junto ao STF, em 2005, que questiona a demarcação da Raposa Serra do Sol, que tem servido de importante argumento para os “arrozeiros”, que hoje recusam a indenização que lhes é oferecida pelo Governo.

A presença do Ministério da Justiça Após o ataque dos capangas do prefeito Quartiero (DEM-RR) contra os índios, o ministro da Justiça, Tarso Genro, visitou a região da tocaia, onde desembarcou de helicóptero, acompanhado de uma segurança de 20 policiais. O ministro conversou com os índios, disse que entre duas semanas e um mês teriam uma decisão do STF, e se comprometeu a apurar quem foram os pistoleiros e os mandantes da agressão. De acordo com o líder indígena Martinho Macuxi Souza, além dos cem índios acampados no local, outros estão chegando para garantir a posse das terras, e que, independentemente da decisão do Supremo, eles expulsarão os “arrozeiros” daquela região. O Governo Federal protocolou no STF pedido de mandado de busca e apreensão, no qual pede que a Polícia Federal e a Força Nacional desarmem os não-índios da reserva

Raposa Serra do Sol, retirando-lhes armas, munição e explosivos. O líder dos “arrozeiros”, prefeito Quartiero (DEM-RR), porém, comentou de maneira chula a presença do ministro, e declarou que o que o Conselho Indígena de Roraima e as ONGs querem “é um cadáver igual ao de Dorothy Stang. E quase conseguiram”.

Absolvição do mandante do assassinato da irmã Dorothy Mais do que nos modos desafiadores e sublinhados pelo deboche do senhor Quartiero, o poder e a arrogância dos latifundiários do Norte ficaram mais uma vez patentes com a absolvição, pelo Tribunal do Júri de Belém (PA), no dia 6, do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura – alcunhado de Bida –, condenado em maio passado a 30 anos de prisão por haver sido mandante do assassinato, em fevereiro de 2005, da irmã Dorothy Stang, freira estadunidense naturalizada brasileira. O pistoleiro executor do crime, Rayfran das Neves – de alcunha Fogoió –, foi condenado, na mesma sessão do júri que absolveu Bida, a 28 anos de prisão em regime fechado. Comentando o fato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que espera que a decisão do Tribunal de absolver o fazendeiro Bida, seja revista, acrescentando que o

crônica

Frei Betto

gesto “mancha a imagem do Brasil no Exterior”. O presidente disse ainda que os advogados da Advocacia Geral da União analisarão medidas que possam reverter a absolvição. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), por sua vez, divulgou um estudo, segundo o qual mais de 70% dos aproximadamente 800 assassinatos regsitrados no Pará, resultantes de conflitos no campo, sequer foram investigados pela Polícia paraense.

Relatório denuncia ameaças, abusos e impunidades Enquanto isso, também no dia 6, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) entregava, durante audiência com a Comissão da Câmara Federal, um dossiê no qual cobra das autoridades posicionamento e ação na região da Amazônia. Com cerca de 80 páginas, o relatório denuncia desde a exploração sexual de crianças na Ilha de Marajó e outros município do Pará; o assassinato de mais de quatro dezenas de meninos emasculados logo após a morte no Maranhão e Altamira; a “omissão e ingovernabilidade” frente às denúncias e aos fatos; e as ameaças de morte contra três bispos (dom Erwin Kräutler, dom Luiz Azcona e dom Flavio Giovenale) e outras doze pessoas cujos nomes não foram revelados.

Janete Capiberibe

Raposa Serra do Sol: questão de justiça O risco à Amazônia Gama

EM 15 de abril de 2005, o presidente Lula assinou a homologação, em área contínua, da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Este ano, a Polícia Federal, em cumprimento da lei, mobilizou-se para retirar da reserva seis arrozeiros. Os invasores da área, convencidos de que “índio atrapalha o progresso”, reagiram com violência, inclusive bombas. Criaram o fato político capaz de induzir o STF a suspender a medida legal e reiniciar o atribulado percurso já transitado pelos três poderes da República. Roraima abriga pouco mais de 400 mil habitantes num território de 224.298 km2 (pouco menor que o Equador). Raposa Serra do Sol é uma área de 1,67 milhão de hectares situada no nordeste do Estado, nas fronteiras com a Venezuela e a Guiana. A área foi demarcada pelo Ministério da Justiça, através da Portaria 820/98, em 1998, durante o governo FHC. Da área de Roraima, 46,35% são reservadas aos indígenas. Ali eles somam 46.106, distribuídos em 152 aldeias dos povos Yanomami (15 mil), Macuxi, Wapixana, Wai-Wai, Ingaricó, Taurepang, Waimiri-Atroari e Patamona. Políticos e arrozeiros queriam a demarcação em área descontínua, “ilhas” onde pudessem permanecer com suas terras (invadidas) e propriedades (ilegais). Três municípios foram criados dentro da reserva indígena: Normandia, Uiramutã e parte de Pacaraima. Raposa Serra do Sol não é apenas uma selva salpicada de tribos. Ali atuam 251 professores indígenas em 113 escolas de ensino fundamental e três de ensino médio. Os indígenas manejam um rebanho de 27 mil cabeças de gado. Funciona dentro da reserva a Escola Agropecuária de Surumu, que profissionaliza técnicos de nível médio. Conveniados com a Funasa, há 438 Agentes Indígenas de Saúde e 100 indígenas técnicos em microscópio, trabalhando em 187 postos de saúde e 62 laboratórios. Valoriza-se a medicina tradicional indígena. Dentro do território demarcado, seis rizicultores ocupam 6 mil hectares, com lavouras irrigadas, nas margens dos rios Cotingo, Tacutu e Surumu. Todos grileiros em terras da União. Utilizam agrotóxicos, destroem a mata ciliar, soterram lagoas e igarapés, abrem valas para canalizar a água dos rios às suas lavouras. A mesma água, poluída com agrotóxico e inutilizável para o consumo retorna ao rio, matando os peixes. No verão, impedidas de fazer uso da água dos rios, as comunidades indígenas são obrigadas a cavar poços. Com a destruição das lagoas e da mata ciliar, as caças desaparecem. Os vilarejos dentro da reserva dão apoio ao garimpo ilegal e, ali, circulam bebidas alcoólicas, muitas vezes oferecidas aos jovens indígenas…

A INOCÊNCIA dada ao fazendeiro acusado de mandar matar a religiosa Dorothy Stang, cujo assassinato aconteceu em 12 de fevereiro de 2005, deixa transparecer a tendência de criminalizar, punir e eliminar aquelas populações que ainda hoje carecem dos direitos básicos e juntamente com seus defensores. O comportamento ignora os direitos do conjunto social. Da mesma maneira, a morte da Irmã Dorothy e a inocência aos mandantes de crimes contra aqueles que defendem o Estado democrático de direito mostram a disposição de se manter, na região Amazônica, – a qualquer preço – um modelo de desenvolvimento destruidor e provocador de violência e injustiça social. Irmã Dorothy Stang foi morta por defender as populações tradicionais da floresta – índios, quilombolas, coletores, ribeirinhos –, as levas de lavradores e pequenos proprietários de terra, os despossuídos, a justiça social e a democracia na ocupação das terras e no acesso às riquezas naturais, o respeito ao meio ambiente, ao povo e às peculiaridades da Amazônia. O assassino da Irmã Dorothy (cujo chefe foi considerado inocente), não deu à freira de 73 anos armada com uma Bíblia, a possibilidade de defesa, nem o direito de recurso. Executou-a a tiros. No mesmo ato, pretendeu – atendendo a uma determinação maior – condenar à morte, no Pará, na Amazônia, no Brasil, a sustentabilidade ambiental, a reforma agrária e a justiça social. Os direitos dos povos indígenas estão garantidos pelo artigo 231 da Constituição; assegura-lhes a posse permanente e o uso exclusivo de suas terras. Uma demarcação fracionada da área favorecerá a invasão de forasteiros, aumentará a incidência de conflitos e porá em risco a sobrevivência de culturas milenares. Na primeira semana de janeiro de 2004, o Jornal Nacional mostrou a mobilização de arrozeiros e latifundiários interrompendo estradas na tentativa de evitar a homologação de Raposa Serra do Sol. Com o apoio de lideranças indígenas cooptadas, seqüestraram três missionários católicos da Missão Surumu: os padres Ronildo Pinto França, brasileiro; e Cézar Avellaneda, colombiano; e o irmão espanhol Juan Carlos Martinez, todos membros do Instituto Missão Consolata. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, advertiu o governador Flamarion Portela, de Roraima, de que o governo federal tomaria providências para liberar os reféns e desmobilizar o protesto. A Policia Federal agiu e libertou os seqüestrados. Eram seis hora da manhã de 23 de novembro de 2004, quando a comunidade Jauari foi despertada por tiros, gritos, roncos de máquinas. Quarenta homens armados mataram galinhas, porcos e cães, e deram dois tiros no macuxi Jocivaldo Constantino, um deles na cabeça. De lá, marcharam para destruir as comunidades indígenas Brilho do Sol, Retiro São José e Homologação. Nas quatro aldeias derrubaram, com tratores, 37 casas e incendiaram os escombros, sem poupar a igreja, a escola e o posto de saúde; isolaram as áreas e fecharam as estradas. Ficaram desabrigadas 131 pessoas.

Retroagir a homologação de Raposa Serra do Sol para área não-contínua representa grave precedente jurídico em relação aos demais processos demarcatórios, e poderá estimular grileiros e oportunistas a realizarem invasões nos mesmos moldes das que ocorrem em Roraima. Quanto à Segurança Nacional, lembro que os povos indígenas têm, historicamente, desempenhado papel fundamental na preservação e defesa de nossos atuais limites territoriais. Não são os índios que promovem degradação ambiental, contrabando, garimpagem de minérios preciosos e derrubada de madeiras nobres. A hipótese de se criar uma faixa de 10 a 20 km de largura ao longo de nossas fronteiras abre o risco de atrair intenso movimento migratório de não-índios para a região, causando degradação ambiental e social, desmatamento e contaminação dos rios. Cabe ao STF fazer cumprir a Constituição, ou seja, confirmar a homologação em área contínua; e, ao governo, deslocar a sede do município de Uiramutã para as margens da rodovia BR-401 (que liga à Guiana); promover a regularização fundiária de Roraima e reassentar os posseiros em áreas definidas pelo Incra, com pagamento das justas indenizações. Por fim, devem preservar as atuais rodovias, como bens públicos, para uso de cidadãos indígenas ou não. Retalhar Raposa Serra do Sol é retalhar a Constituição Brasileira, reforçar a discriminação aos indígenas e premiar o faroeste dos que apóiam os interesses de apenas seis arrozeiros. Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de A Mosca Azul – reflexão sobre o poder (Rocco), entre outros livros.

A sobrevivência da Amazônia e dos seus habitantes depende de tornar soberanos os direitos da maioria da sociedade, e não os interesses de poucos criminosos que se sobrepõem ao coletivo ao afrontarem impunemente a lei Lembrarei do 06 de maio passado como símbolo do desequilíbrio e da injustiça promovidos pelo modelo de desenvolvimento predatório da Amazônia. Na mesma data em que se ratificou, no Pará, a pena de morte à irmã Dorothy e suas bandeiras de luta, debatíamos, na Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, em Brasília, a absoluta urgência de um novo modelo de desenvolvimento para a região. O atual modelo faz a Amazônia, a Oriental, especialmente, penar com a criminalidade (contrabando, biopirataria, tráfico, grilagem, exploração sexual de crianças e adolescentes, empobrecimento das populações tradicionais, eliminação da floresta...), com o patrocínio de uma organização criminosa forte e rica – no Pará, a extração de madeira rendeu cerca de 800 milhões de dólares, ano passado –, paralela ao Estado e, em muitos casos, com a conivência de quem deveria reprimí-los. Três bispos do Pará ouvidos pela Comissão estão ameaçados de morte por denunciar crimes que todo mundo vê, todo mundo conhece, mas ninguém combate. Dom José Luís Azcona, de Marajó, Dom Flávio Giovenale, de Abaetetuba, e Dom Erwin Kräutler, do Xingu, estão na mesma mira em que estava Irmã Dorothy e em que estão outros 300 sindicalistas, religiosos, advogados, militantes dos direitos humanos. Confio. Nem a sociedade do Pará, nem a do Brasil podemos aceitar a fragilidade do Estado, a omissão, a tolerância e a conivência que apenas servem para agravar a confusão, a desordem e a anarquia, o desenvolvimento apoiado na criminalidade e o enriquecimento de poucos com a injustiça. O Estado democrático de direito está sendo sistematicamente confrontado. A sobrevivência da Amazônia e dos seus habitantes depende de tornar soberanos os direitos da maioria da sociedade e não os interesses de poucos criminosos que se sobrepõem ao coletivo ao afrontarem impunemente a lei. Janete Capiberibe foi exilada política durante a ditadura militar, é deputada federal eleita pelo PSB/AP e presidenta da Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815


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brasil

Marina Silva pede demissão após pressões de Maggi e de ruralistas MEIO AMBIENTE Nomeação de Mangabeira Unger para coordenar Plano Amazônia Sustentável teria forçado saída da ministra Roosewelt Pinheiro/ABr

Eduardo Sales da Redação A SAÍDA de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi resultado da pressão do governador Blairo Maggi (PR), do Mato Grosso, principal representante do agronegócio no Brasil. A informação foi passada por duas fontes ouvidas pelo Brasil de Fato, uma no Palácio do Planalto e outra no MMA. Sérgio Leitão, diretor de políticas do Greenpeace, faz a mesma leitura. “Houve uma chantagem; Maggi acuou o presidente Lula a fazer uma escolha entre a produção agrícola ou a preservação ambiental”, analisa. Marina já vinha sofrendo pressões desse tipo há algum tempo, envolvendo também as obras do Programa de Aceleração do Crescimento e os agrocombustíveis. Em sua carta demissionária, entregue a Lula no dia 13, ela escreve: “V. Exa. é testemunha das crescentes resistências encontradas por nossa equipe junto a setores importantes do governo e da sociedade”. A gota d’água, na expressão da fonte do MMA, veio com a nomeação, no dia 9, do ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, para a coordenação do Conselho Gestor do Plano Amazônia Sustentável (PAS). “Depois de cinco anos de trabalho firme do MMA, ele (Lula) entregou a chefia a Mangabeira”, constata a fonte.

Para Greenpeace, PAS não passa de carta de boas intenções

Marina Silva e Lula: aproximação do presidente com o agronegócio motivou pedido de demissão

De acordo com ela, as paralisações das unidades de conservação (UCs) e a constante falta de apoio à ministra em relação à pressão de Maggi e de outros representantes do agronegócio também foram pontos essenciais para sua saída. Além de Marina, pediram demissão o secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco, e o presidente do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Bazileu Margarido.

Arapuca De acordo com Sérgio Leitão, do Greenpeace, o dia 7 pode ter sido decisivo para a queda de Marina. Nesta data, Maggi viajou a Brasília e teve um encontro com Mangabei-

Modelo inviabilizou defesa do meio-ambiente Isolada por uma clara política de defesa do agronegócio e conseqüente destruição da natureza, Marina opta pela saída da Redação Em seus quase cinco anos e meio à frente do Ministério do Meio Ambiente, Marina Silva assistiu a uma série de episódios que, paulatinamente, foram confirmando a escolha do governo Lula pela manutenção do modelo de desenvolvimento primário-exportador. Inevitavelmente, a prioridade em acumular divisas para equilibrar a balança comercial foi relegando a proteção do meio ambiente a segundo plano, muitas vezes gerando conflitos. Nestas ocasiões, a natureza sempre saía prejudicada. “A última derrota de Marina Silva” foi, inclusive, o título de nota do Psol para comentar sua saída. O texto destaca que a ex-ministra cansou de ser vencida por um governo “politicamente transgênico”. Já o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) elencou (veja texto nesta página) posições pessoais contrárias de Marina a determinadas posições do governo e ponderou que “não cabe ao Movimento julgar pessoas, mas analisar com profundidade as medidas tomadas nos últimos anos. Nesse sentido, o governo Lula está em dívida com o povo brasileiro em relação à sua política ambiental”.

Balanço Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo da Universidade Federal de Rondônia (Unir), avalia que, “no interior de um governo refém de um modelo exportador de natureza, a ministra calada já estava sem razão”. De acordo com ele,

Marina só vinha sendo admitida “enquanto facilitadora de seguidos estupros contra a sociedade e o meio-ambiente, como a liberação dos transgênicos, a licença prévia das usinas no Madeira e a privatização das florestas públicas”. Ainda assim, Novoa entende que a saída de Marina significa outra derrota dentro da nova ofensiva do agronegócio e das transnacionais para enquadrar todo

o país nas cadeias globais de fornecimento de matériasprimas e, assim, coloca em questão a própria existência de um Ministério do Meio Ambiente no Brasil. “A demissão da ministra significa, na prática, a impossibilidade de implementação da política nacional de meio ambiente, e quem for defender a natureza, as populações tradicionais e seus territórios, terá que fazê-lo fora da lei”, alerta. (ES)

MST destaca os principais pontos negativos da gestão Lula em relação ao meio ambiente 1. Aprovação de variedades de milho transgênico. 2. Liberação de obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), especialmente usinas hidrelétricas, sem levar em consideração os impactos ambientais e sociais. 3. Aprovação da MP-422 que legaliza a grilagem de terras na Amazônia em propriedades controladas de forma irregular até 1.500 hectares, quando a Constituição determinava apenas até 100 hectares. 4. O projeto de transposição do rio São Francisco, que desconsidera as precauções com a preservação e ignora os impactos ambientais no leito do rio e nos canais. 5. As empresas de papel e celulose implementam projetos para a expansão da monocultura do eucalipto em imensas áreas, desde o Espírito Santo até o Rio Grande do Sul. 6. Expansão da monocultura da cana-de-açúcar para a produção e exportação do etanol, que trará enormes prejuízos ao meio ambiente. 7. Não há posição clara do governo contra o projeto do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que reduz a área de floresta mínima por imóvel para 50% na região da Amazônia. 8. Falta de empenho na fiscalização para garantir a aplicação da lei que determina que todos os alimentos transgênicos sejam rotulados. 9. As linhas da política para as florestas brasileiras não são claras, gerando receio sobre a possibilidade de desnacionalização e privatização de um patrimônio do povo brasileiro.

O Plano Amazônia Sustentável (PAS), lançado no dia 9, vem sendo discutido e preparado desde 2003. Trata-se de um conjunto de medidas, com linha de crédito liberada de R$ 1 bilhão, para controlar e combater o desmatamento, focado nos 36 municípios campeões na derrubada da Floresta Amazônica. O Greenpeace, contudo, questiona a execução do plano. “Tem mais característica de uma carta de boas intenções do que um programa oficial que define claramente metas, cronograma e origem dos recursos. Os pacotes anunciados pelo presidente Lula [em relação ao programa] batem de frente com a postura desse mesmo governo, que, em recentes ações, tem fortalecido e descriminalizado grileiros e outros destruidores da floresta”, aponta nota da organização. (ES)

Nacional (CNM) que vincula o crédito agropecuário à comprovação da regularidade ambiental e fundiária da propriedade. Esse é maior motivo da demissão”, destaca Leitão. No mesmo dia 13, Mangabeira Unger, antes do anúncio de Marina, já havia mostrado propensão a aceitar os projetos de desenvolvimento das plantações de soja na

Amazônia. Em reunião com o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, Unger discutiu uma política para estimular a produção de grãos a longo prazo. De acordo com a Agência Estado, ao sair do encontro, ele revelou estar “discutindo com outros ministros uma política para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”.

Madeireiras do Peru invadem áreas indígenas no Acre

cadas e destruídas e doenças, introduzidas, causando grande número de mortes. As lideranças também contam que as ações das madeireiras estão afetando diretamente os índios isolados que vivem do lado peruano. Esses grupos de indígenas estão fugindo para as cabeceiras dos rios Envira, Humaitá e Tarauacá, no lado brasileiro, em busca de um lugar para viver em paz.

ra Unger. O governador mato-grossense expôs ao ministro os problemas que o Estado vem enfrentando em relação ao desmatamento, e que existiria muito preconceito contra o setor produtivo. “Ele queria que a ministra revogasse o decreto que cria instrumentos contra o desmantamento ilegal e a resolução do Conselho Monetário

DENÚNCIA

Empresas de capital chinês, coreano e estadunidense invadem terras, estimulando conflito entre comunidades Fernando Alves de Cruzeiro do Sul (AC) A invasão de terras indígenas brasileiras por madeireiras peruanas, narcotraficantes e caçadores está estimulando comunidades isoladas a entrarem em conflito com outros povos tradicionais que vivem no Brasil. A denúncia é feita por lideranças indígenas Kaxinawá, Apolima-Arara, Ashaninka e Nukiní, que vivem em áreas nas regiões do alto rio Juruá, Amônia, Breu, Moa e rio Envira. As terras que habitam essas populações compreendem uma área superior a 225 mil hectares de florestas, ou seja, quase 1,5% do Estado do Acre. Luiz Nukiní, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), relata que as madeireiras estão atuando em território brasileiro desde que governo do Peru liberou o corte de madeira na Amazônia Ocidental Peruana, há cinco anos. Apesar dessas empresas se dizerem peruanas, a maioria tem capital chinês, coreano ou estadunidense e estão instaladas clandestinamente. Sua atuação está ligada diretamente à mão-de-obra indígena e ribeirinha, populações estas que moram nas margens dos rios.

Narcotráfico Nukiní denuncia também que as madeireiras fazem parcerias com narcotraficantes, sendo que são estes que contratam a mão-de-obra ribeirinha e indígena, colocando seus interesses acima da vida dessas pessoas. Os trabalhadores muitas vezes são obriga-

dos a entrar em território brasileiro para localizar árvores nobres e marcar trilhas dentro das áreas indígenas, para que as árvores, mais tarde, sejam derrubadas, cortadas em toras e levadas aos pátios das madeireiras instaladas na fronteira entre os dois países para serem serradas. O trabalho de retirada da madeira é realizado na época das cheias dos rios. É quando as toras serão conduzidas por meio de passadeiras feitas com outras madeiras. Elas são roladas ou arrastadas por trilhas até chegarem aos rios para, posteriormente, serem levadas para o lado peruano.

Isolamento Nukiní afirma que indígenas isolados, ou seja, de povos que escolheram viver separadamente, estão sendo ameaçados e pressionados em suas terras, devido ao avanço desenfreado da ação das madeireiras em seus territórios no Peru. Assim, esses povos estão perdendo cada vez mais seu espaço de neutralidade e isolamento, ficando obrigados a se deslocarem para outras terras. Outro problema é que os madeireiros e narcotraficantes sabem que são indígenas isolados e, por isso, autoridades brasileiras e etnias indígenas que vivem na região não entram em seu território, por respeito ao isolamento. Neste momento, as madeireiras utilizam esse fator e invadem a área onde habitam. Existem relatos confirmados por lideranças Ashaninka que, nessa região, a exploração madeireira não está destruindo só seu povo, mas também os indígenas isolados. Suas malocas são ata-

Conflitos O problema maior é que essas terras já são demarcadas para outros povos viverem, como é caso dos Kaxinawá, Kulina (Madijá) e Ashaninka. Esse aspecto foi denunciado e tem sido divulgado constantemente pelo sertanista José Carlos dos Reis Meirelles, da Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira, da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele tem alertado para a possibilidade de graves conflitos entre os isolados e os índios Kaxinawá, Kulina (Madijá) e Ashaninka. Um exemplo disso foi que, em junho de 2003, o próprio povo Ashaninka vivenciou um conflito nas cabeceiras do rio Juruá. Na ocasião, morreram Ashaninka e vários indígenas isolados. Lideranças dos povos que estão diretamente envolvidos disseram que, devido ao agravamento da situação na fronteira internacional, as autoridades brasileiras vêm lutando contra essas invasões através de operações de fiscalização e de combate à exploração ilegal de madeira na fronteira Brasil-Peru. Mas os invasores burlam e desrespeitam os limites que dividem os países, vindo dessa maneira a afetar a vida e a cultura dos povos que lá vivem, destruindo seu ambiente e os recursos naturais que lutam para recuperar e preservar. O clima na região é tenso e preocupante, porque um confronto entre índios isolados com outras etnias que vivem no Brasil e madeireiros pode ocorrer a qualquer momento.


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brasil

Governo articula “supertele” para que brasileiros controlem o setor TELEFONIA Economistas consideram positiva a compra da Brasil Telecom pela Oi, já que reduz influência de estrangeiros no setor Valter Campanato/ABr

Renato Godoy de Toledo da Redação UMA OPERADORA de celular e uma empresa de telecomunicações acertaram uma fusão e devem tornar-se uma forte concorrente no mercado de telefonia fixa e celular no Brasil. A Oi, antiga Telemar, deve desembolsar cerca R$ 8,3 bilhões para incorporar a Brasil Telecom, valor que superou as expectativas do mercado. Essa compra será facilitada pelo dinheiro público, já que o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deve oferecer um empréstimo de R$ 2,5 bilhões para a realização da aquisição. A “supertele”, apelidada de BrOi, deve atender 22 milhões de clientes em telefonia fixa e 20 milhões na móvel. Hoje, a Oi é a quarta maior operadora de celular no país. Apesar de acordado entre as partes e o BNDES, o negócio ainda depende de uma mudança na legislação do setor de telefonia, o chamado Plano Geral de Outorgas (PGO). A estimativa é que o processo seja concluído até o fim deste ano. A fusão foi realizada a partir de uma articulação entre as empresas, governo e o banco estatal. O BNDES acredita que com a criação da BrOi será retomado o controle nacional do setor de telecomunicações, privatizado e dividido em áreas, em 1997, com o fim da Telebrás. O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, afirmou que o controle nacional da “supertele” está garantido por salvaguardas inclusas no contrato de empréstimo. Mas, à revista Carta Capital, ressaltou que, “se a população brasileira quiser eleger no futuro um presidente liberal, que deseje desnacionalizar a economia, nenhuma empresa estará garantida”. Inicialmente, o BNDES e o governo reivindicavam a posição de golden share na empresa, para liberar o emprésti-

Para Luciano Coutinho, presidente do BNDES, controle está garantido

mo para a Brasil Telecom comprar a Oi. O golden share é uma parcela minoritária das ações mas em que o acionista tem poder de veto sobre alguns temas. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirmou que essa contrapartida do governo foi “superada”, já que a Brasil Telecom/Oi demonstrou que tem interesse em manter o capital nacional da empresa. Segundo fonte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a composição acionária da nova empresa deve conter quase 50% de capital do BNDES e de fundos de pensão de trabalhadores, como a Previ (Banco do Brasil), a Funcef (Caixa Econômica Federal) e a Petros (Petrobras). Essa composição traria boas condições para evitar a debandada de ações para o exterior.

Ressalvas A economista Ceci Juruá, membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro

(Corecon), vê com bons olhos a fusão por trazer de volta ao Brasil parte desse setor estratégico, mas tem dúvidas sobre o caráter nacional da empresa. Um dos principais motivos para sua inquietação é que a Oi é controlada pela empreiteira Andrade Gutierrez, uma sociedade anônima com presença em outros países e com capital aberto em plena fase de internacionalização. Por isso, Ceci aponta como essencial o golden share que o governo abriu mão. “Vejo a fusão de uma maneira muito positiva. Telecomunicação é segurança nacional, por essas redes passam todos os segredos de Estado e informações estratégicas. O problema existe e não poderíamos ficar sem uma operadora nacional. Ela é importante para resguardar o sigilo e a presença brasileira na geração de tecnologias e para minimizar a remessa de lucros para o exterior. Mas não tenho certeza se a fusão vai garantir a realização desses objeti-

vos, ainda sabemos muito pouco”, explica. Para evitar que a nova empresa seja controlada por acionistas estrangeiros, Ceci sugere mudanças na legislação das telecomunicações, seguindo os moldes de sistemas de países europeus, em que apenas 5% das ações no setor podem ser de estrangeiros.

Reparar equívocos José Carlo de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, também apóia a fusão, já que ela repara, parcialmente, os danos causados pela privatização. “A privatização da Telebrás foi um equívoco gigantesco. Num momento em que grandes empresas de telecomunicações estavam se integrando, o Brasil resolveu dividir a sua e acabar com o monopólio estatal de uma empresa de grande acúmulo tecnológico e que foi dividida e vendida para estrangeiros”, lembra Assis. Para ele, a Telebrás apresentava algumas ineficiências que eram frutos das próprias barreiras que o governo impunha à atividade de todas as estatais. Mercado Assis acredita que a fusão não irá gerar uma concentração nas telecomunicações, ao contrário, aperfeiçoará a concorrência. “A fusão é uma tentativa de recuperar um grande grupo sob controle brasileiro na área, com capacidade de desenvolver tecnologia e geração de emprego interno. Espero que [a fusão] seja aprovada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), já que não se trata de obstáculo à concorrência”, avalia. Ceci Juruá também faz críticas à onda privatizante que caracterizou os governos de Fernando Henrique Cardoso, que vendeu a “bem sucedida Telebrás”. “Ela que implementou a telefonia celular no Brasil e muitas vezes se esquecem disso”, ressalta.

Alteração de lei pode ocasionar concentração, diz membro da Anatel Acordo pode ter sido realizado para livrar o banqueiro Daniel Dantas de acusações na Justiça da Redação A alteração do Plano Geral de Outorgas (PGO) visa permitir que a Brasil Telecom atue em mais de uma das três áreas definidas pela privatização da Telebrás. Atualmente, a empresa controla a região Centro-Oeste e parte da Norte. Uma fonte da Anatel afirmou que essa alteração, num cenário ideal, deveria ser feita para criar contrapartidas que melhorem o atendimento ao usuário, como a implementação de tarifas sociais para os mais pobres. Porém, o PGO não pode alterar isso. Para tanto, seriam necessárias alterações no marco regulatório, atitude que o governo federal não deve tomar, caso mantenha a mesma postura omissa diante das teles, segundo a fonte. Pelo contrário, a alteração do PGO pode gerar uma busca por novas fusões. A transnacional espanhola Telefônica já teria demonstrado à Anatel que pretende tirar proveito das mudanças, promovendo fusões e passando a explorar a telefonia para além de seus territórios estabelecidos. “Nada impede que a Telefônica se funda com a Embratel, no futuro”, afirmou o membro da Anatel.

Dantas Um dos efeitos da compra da Brasil Telecom pela Oi é que o acionista majoritário do Banco Oportunitty, Daniel Dantas, livra-se de acusações na Justiça brasileira e dos EUA. No acordo, a Oi pagará R$ 315 milhões para eliminar todas as pendências judiciais oriundas de disputas acionárias no interior da empresa, assim, Dantas, também acionista da Brasil Telecom, sai do ramo de telecomunicações sem ter que responder na Justiça sobre supostos desvios de verbas, denunciado por outros acionistas da empresa. A fonte da Anatel afirma que a tese de que foi feita uma grande articulação para livrar Dantas é corrente entre aqueles que acompanham a atuação do banqueiro no setor de telecomunicações. “Esse é um campo muito nebuloso, mas acho muito provável que tudo tenha sido feito para livrar Dantas”, opina. (RGT)

ENERGIA

Etanol ultrapassa hidrelétricas em produção de energia Para pesquisador, matriz energética brasileira é definida pelas demandas do mercado financeiro Dafne Melo da Redação Duas notícias circularam de forma aparentemente desconexa no início deste mês. A primeira é a de que os produtos derivados da cana-de-açúcar (etanol e bagaço) já são a segunda fonte primária de energia no país, atrás apenas do petróleo e derivados. Atingindo 16% na divisão dos energéticos, a cana ultrapassou a energia hidráulica, responsável por 14,7%. Os dados foram divulgados, no dia 8, pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra notícia, divulgada um dia depois pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi de que, pela primeira vez desde março de 2006, o indicador oficial de inflação no país superou 5% em um período de 12 meses. O aumento no preço dos alimentos em 1,29% foi o que mais contribuiu para aumento da inflação em abril. Só o pão francês subiu 7,33%. Embora seja simplista estabelecer uma relação de causa e conseqüência entre as duas notícias, elas não dei-

Ricardo Stuckert/ABr

Evolução da Matriz Energética Brasileira (em %) 2007

2006

Energia Não-renovável

53,6 %

55,1 %

Petróleo e Derivados Gás Natural Carvão Mineral e Derivados Urânio (U3O8) e Derivados

36,7 % 9,3 % 6,2 % 1,4 %

37,8 % 9,6 % 6,0 % 1,6 %

Energia Renovável

46,4 %

44,9 %

Energia Hidráulica e Eletricidade Lenha e Carvão Vegetal Produtos de Cana-de-açúcar Outras Renováveis

14,7 % 12,5 % 16,0 % 3,1 %

14,8 % 12,7 % 14,5 % 2,9 %

xam de estar relacionadas. Como mostrou a reportagem do Brasil de Fato na edição 271, a valorização dos alimentos no mercado internacional está intimamente ligada com o aumento da produção e dos investimentos em produtos agrícolas que servem de base para a produção dos agrocombustíveis.

Opção política De acordo com a Companhia Brasileira de Abastecimento (Conab), a produção nacional de álcool neste ano ficará entre 26,45 bilhões de litros e 27,49 bilhões de litros, aumento de 14,97% a 19,46% sobre os 23 bilhões de litros de 2007. Em 2007, a produção de álcool hidratado – o chamado álcool puro, usado para abastecer automóveis – aumentou 45,2%, totalizando 14,3 bilhões de litros. Já o consumo de álcool hidratado teve incremento de 46,1%, somando 10,4 bilhões de litros. Com esses números, era de se

esperar o crescimento da participação dos produtos derivados da cana – majoritariamente o etanol – nas energias utilizadas no Brasil. Na avaliação de Dorival Gonçalves Jr., professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), esses aumentos são resultado de uma nova configuração que se dá hoje no setor, em que o etanol passa a ser uma commodity internacional. “Os países centrais do capitalismo estão usando o etanol, adicionando-o à gasolina. Nos EUA, há uma transformação na agricultura, com diminuição do plantio de soja e aumento da produção do milho, para atender a expansão da produção do etanol naquele país”, exemplifica. O professor salienta que o aumento da produção não está relacionado com questões puramente tecnológicas e ambientais, mas é uma opção política que satisfaz os interesses

Lula e o etanol: aumento de 1,29% no preço dos alimentos

do mercado financeiro internacional. “Como esse é o setor mais forte do capitalismo, hoje, ele atua junto aos Estados, mundialmente, para que se criem políticas que sustentem as condições de liquidez, para que o capital possa continuar se reproduzindo. E a indústria de energia é um lugar estratégico para isso”, analisa. Por isso diversos países europeus, além dos Estados Unidos, estariam fixando me-

tas para o consumo de agrocombustíveis. A União Européia, por exemplo, quer que até 2020, 10% do combustível usado pelo bloco seja derivado da biomassa.

Altos lucros Como a crise estadunidense tem imposto uma diminuição das áreas disponíveis para os investimentos feitos no mercado financeiro, a criação de novos circuitos de reprodu-

ção do capital se tornam extremamente interessantes e necessárias. “Daí que os grandes grupos internacionais e nacionais que estão entrando na produção do etanol estejam associados a grupos financeiros”, exemplifica o pesquisador da UFMT. Uma amostra de que há uma imensa procura por investimentos nesse setor é que os pedidos de financiamento feitos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de usinas de álcool cresceram 565,13% de janeiro a abril, em comparação com igual período de 2007. Dorival aponta que o Brasil possui características – recursos naturais e mão-de-obra barata – que possibilitam a produção de etanol com uma margem de lucro que muito provavelmente não se repete em nenhum lugar do mundo. O etanol produzido pelos Estados Unidos a partir do milho, por exemplo, tem um custo de produção que fica na faixa de 0,3 dólares por litro, enquanto o etanol brasileiro, da cana, é produzido a 0,2 dólares por litro. Mas como os preços das commodities energéticas são balizados pelo petróleo – que está cada vez mais caro – esse produto é vendido no mercado internacional a um preço muito superior, o que garante lucros astronômicos. “O que se procura é explorar um produto com custo de produção baixo, mas que pode ser vendido com o preço da energia mundial, baseada no preço do petróleo”, afirma Dorival.


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brasil

Crônica de um conflito anunciado Marlene Bergamo/Folha Imagem

RAPOSA SERRA DO SOL Arrozeiros entraram ilegalmente na área indígena, depois da homologação, mas têm apoio político Tatiana Merlino da Redação OS 29 MIL indígenas que vivem na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, acreditavam que, finalmente, poderiam viver em paz na terra que lutam para reconquistar há mais de 30 anos. Estavam errados. Demarcada em 1998, e homologada por um decreto presidencial em abril de 2005, em 27 de março deste ano, o governo federal anunciou uma operação da Polícia Federal para retirar os últimos invasores que se encontravam na área: seis produtores de arroz. No entanto, no início de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão da retirada dos não-índios. Os ministros deferiram liminar solicitada pelo governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), em uma ação protocolada junto ao órgão. O argumento utilizado é o de que a demarcação provocaria, entre outros problemas, a diminuição em 6% da economia do Estado.

Disputa acirrada A suspensão da operação determinada pelo STF aumentou o clima de tensão na região. No dia 5, 10 indígenas foram atacados por jagunços do rizicultor Paulo César Quartiero, deixando dez feridos. Os índios construíam suas malocas em terras da reserva Raposa Serra do Sol, quando seus ocupantes começaram a atirar por todos os lados, tentando impedir que se fixassem no local. Quartiero é um dos seis arrozeiros que invadiram a área indígena e hoje é prefeito de Pacaraima pelos Democratas (DEM, ex-PFL). De acordo com Julio Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, a situação é “absurda”. “Os indígenas foram baleados dentro de sua própria terra, demarcada e homologada”, observa. “Nós achávamos que a retirada dos rizicultores fosse trazer a paz e a dignidade aos povos indígenas da reserva, mas o governo demorou a agir, e em seguida veio a suspensão do STF”, lembra.

“Agora foi feito um lobby político, com repercussão desproporcional à sua composição demográfica”, avalia antropólogo da Funai Para ele, a retirada dos rizicultores ainda não aconteceu, porque “temos um governador racista que opta por defender o interesse de seis rizicultores, e não o de 29 mil índios”, ressalta.

Repercussão Na opinião do antropólogo Paulo Santilli, da Fundação Nacional do Índio (Funai), caso o STF não tivesse suspendido a operação da Polícia Federal, o conflito poderia ter sido evitado. “Essa decisão é, no mínimo, curiosa. O processo de retirada dos nãoindígenas já estava no final. Caso não tivesse essa suspensão, hoje estaria tudo resolvido na região”, acredita. Para ele, ao impedir a conclusão final de um processo que demorou mais de 30 anos, está se abrindo possibilidade para a “crônica de um conflito anunciado”, diz. Santilli explica que havia 309 ocupantes não-indígenas na região. “Depois de um longo processo de retirada, restou apenas meia dúzia, exatamente aqueles que têm influência junto a depu-

tados e governadores. E agora foi feito um lobby político, com repercussão desproporcional à sua composição demográfica”, avalia.

Demarcação Além disso, o antropólogo da Funai lembra que os seis arrozeiros que se negam a sair da Raposa Serra do Sol ocuparam a área indígena em 1992, depois que ela já havia sido delimitada. Já o antropólogo Luiz Cardoso de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professor da Unb, recorda que os produtores invadiram a área depois do processo demarcatório. “Isso ninguém fala e, agora, eles são defendidos pelo governador do Estado”, critica. A alegação do governador de Roraima é que 40% do território do Estado é ocupado por terras indígenas. No entanto, Oliveira lembra que a extensão dos 60% que restam é maior do que a soma dos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas juntos. “Isso para uma população de 400 mil habitantes. Comparando com a maior parte do território brasileiro, os habitantes de Roraima têm direito a um território per capita substancialmente superior à grande maioria dos seus concidadãos brasileiros”, destaca. Assim, o antropólogo avalia que “não há motivos para que não possa haver um bom desenvolvimento das atividades econômicas nesses 60% de extensão”. O que está por trás desse conflito, acredita o presidente da ABA, “é uma dimensão de ganância e interesses econômicos. E o governo de Roraima está dando suporte a esses interesses escusos”. Medida arbitrária Apesar de, no decreto presidencial de 2005, já estar previsto que a demarcação da área de 1,7 milhão de hectares seria contínua, ao julgarem a ação movida pelo governador de Roraima, os ministros do STF vão decidir também sobre o tamanho e o formato da reserva. A previsão, segundo o ministro Gilmar Mendes, é que a matéria seja apreciada ainda neste mês. Paulo Santilli, responsável pelo laudo de demarcação da Raposa Serra do Sol, em 1992, e que levou à identificação e à posterior demarcação (em 1998) da área, acredita que desfazer o processo e revisar o modelo de demarcação “seria arbitrário e inconstitucional. Não há precedentes em relação a isso no país”. Ou seja, caso o modelo de demarcação contínua da Raposa Serra do Sol seja revisto, todas as terras já demarcadas e homologadas podem ser questionadas judicialmente também. “O procedimento de demarcação pressupõe estudos etnológicos e antropológicos”, acrescenta. Ilhas de preservação O presidente do STF Gilmar Mendes, propôs a discussão de uma solução alternativa à demarcação contínua de 1,7 milhão de hectares, por um modelo de ilhas de preservação. “Fiz uma ponderação de que se deve discutir o modelo em ilhas de preservação. O modelo [defendido pelo governo] é muito conflitivo. Precisamos discutir opções minimamente viáveis. O que não pode é você criar um Estado e depois criar uma reserva que tenha 50%, 60% do seu tamanho. Esse processo será um aprendizado para o país”, defende. Para a liderança indígena Julio Macuxi, a possível alteração é arbitrária, “as comunidades já sofreram muito, 21 lideranças morreram, 10 foram baleadas e ainda querem reduzir a área da reserva. Estão é querendo dizimar o povo da Raposa Serra do Sol”, desabafa.

Força Nacional de Segurança em operação; conflitos podiam ter sido evitados

Demarcação dividida ameaça indígenas da Raposa Serra do Sol Terras contínuas dão a indígenas maior autonomia para administrar seus recursos Tatiana Merlino da Redação Caso o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue que a demarcação contínua deve ser revisada e transformada de contínua em dividida, haverá graves conseqüências para as comunidades indígenas da reserva Raposa Serra do Sol, afirmam lideranças e antropólogos. Esses especialistas sustentam a tese de que a demarcação em área contínua dá aos indígenas uma garantia para desenvolverem suas terras da maneira que quiserem, explicam. Para Julio

Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, caso a demarcação seja descontínua, “não sei para onde as comunidades serão removidas. A área já está toda ocupada, assim as terras ficariam fragmentadas e as comunidades, divididas”. Para o antropólogo Luiz Cardoso de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professor da Universidade de Brasília (UnB), é difícil calcular a extensão do prejuízos para os indígenas, “mas pode se dizer que nas reservas onde há situações similares, onde se resolve fazer a demarcação em ilhas, as po-

pulações ficam mais sujeitas a agressões, além de terem mais dificuldades para a reprodução do seu modo de vida, de sua cultura”, explica. Se a decisão do STF for nessa direção, Oliveira afirma que “será mais uma agressão dos brasileiros contra os indígenas”.

Conseqüências A demarcação contínua permite que grupos não-indígenas habitem parte do território contínuo, explica o professor da Unb. “A área deixa de ser totalmente indígena e eles passam a conviver com outros grupos. Isso aumenta a exposição das popu-

lações indígenas e dificulta o padrão de organização social, que envolve redes de deslocamento para atividades como caça, por exemplo”. Já Paulo Santilli, da Funai, acredita que, apesar de imprevisíveis, as conseqüências de uma mudança na demarcação das terras da reserva irão “comprometer a continuidade da vida desses povos e fere totalmente o direito dos povos indígenas”. De acordo com ele, até o STF julgar o recurso, o impasse permanece, “com muitos agravantes, porque não há precedentes no país de situação semelhante a essa”, garante. (TM)

Soberania é argumento de ocasião Roosewelt Pinheiro/ABr

Em 1904, o Brasil usou a presença de indígenas para manter o Estado de Roraima em disputa com a Inglaterra Tatiana Merlino da Redação Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato rechaçam a tese de que as terras em área de fronteira de Roraima com a Guiana e a Venezuela sejam uma ameaça à soberania nacional, como alegou o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno. O comandante também havia dito que a política indigenista do Brasil era “caótica”. O antropólogo Luiz Cardoso de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Antropologia e professor da Universidade de Brasília, recorda que boa parte do Estado de Roraima foi mantida como território brasileiro numa disputa ocorrida em 1904 com a Inglaterra, quando o diplomata Joaquim Nabuco usou como argumento a presença de população indígena que se identificava como brasileira na região. “Temos um quadro em

Agentes da Polícia Federal se reúnem com índios para negociar desbloqueio de estrada

que, num primeiro momento, essa população é utilizada como evidência do caráter nacional e da extensão do nosso território. Agora, quando ela não interessa mais para os grupos poderosos locais, a população passa a ser identificada como inimiga da nação. É um caso complicado e perverso”, denuncia Oliveira.

Fronteiras nacionais Para Paulo Santilli, antropólogo da Fundação Nacional do Índio (Funai), as afirmações do general Augusto Heleno são absolutamente improcedentes. “A presença

dos indígenas na região foi a responsável pelo estabelecimento das fronteiras nacionais. Na hora de reconhecer os direitos indígenas, surgem esses argumentos infundados”, critica Santilli. “A demarcação das terras é um ato soberano, e não o contrário”, define. Na região onde a reserva está localizada, há três pelotões do Exército, nas cidades de Normandia, Uiramutã e Pacaraima, localizadas a cerca de 60 quilômetros uma da outra. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também rebateu as alegações do ge-

neral. Ele afirmou que a tese dos que vêem riscos de ocupação estrangeira é uma “bravata”. “Quem fala isso não fala com muita convicção”, opinou. “Acho que quem quer as coisas de verdade não tem de ficar fazendo bravata”, disse. O ministro da Justiça, Tarso Genro, também criticou o general. Para ele, terra indígena na fronteira “não afeta a soberania nacional coisa nenhuma. Uns estão desinformados e outros acham que a única forma de ocupação é deixar fazendeiros trabalharem. Isso é um preconceito”, afirmou. (TM)


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Absolvição de fazendeiro mostra força do latifúndio Arquivo Brasil de Fato

IMPUNIDADE Justiça liberta Vitalmiro Bastos de Moura, acusado de mandar matar a irmã Dorothy Dafne Melo da Redação A DECISÃO da Justiça de absolver o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, provocou muita indignação naqueles que lutam pela reforma agrária e pelo fim da impunidade no Pará; mas, infelizmente, não surpreendeu. “Condenar mandante de crime nesse Estado é uma tarefa extremamente difícil; mais difícil ainda é mantê-los atrás das grades”, lamenta o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Afonso. Bida é acusado de mandar matar a missionária Dorothy Stang, morta com seis tiros na cidade de Anapu (PA), em fevereiro de 2005. No dia 6, o júri votou pela absolvição de Bida por cinco votos a dois, pelo crime de homicídio doloso duplamente qualificado; ele cumpria pena desde março de 2005. Num primeiro julgamento, em maio de 2007, Bida foi condenado a 30 anos de prisão. Entretanto, de acordo com o Código do Processo Penal, se uma pena excede 20 anos, o condenado tem direito a um segundo julgamento. A libertação de Bida foi motivada por um novo depoimento dado por Amair Feijoli da Cunha, o Tato, condenado por intermediar o crime. Ele afirmou que não foi contratado por Bida, e confirmou a veracidade de um vídeo apresentado pela defesa no Tribunal do Júri. A gravação, feita em outubro de 2006, mostra Tato dizendo que Bida não havia ordenado a morte de Dorothy. Rayfran das Neves, o Fogoió, identificado como o executor do crime, também foi julgado novamente, mas considerado culpado e sentenciado a 28 anos de prisão em regime fechado.

Recurso O Ministério Público do Estado do Pará, por meio do

A missionária Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005

promotor de Justiça Edson Cardoso de Souza, protocolou na 2ª Vara Penal um recurso de apelação por novo julgamento de Bida. Para Cardoso, a decisão contraria as provas dos autos. O MP também está reunindo informações que põem em dúvida a veracidade do vídeo apresentado ao júri, que seria uma encenação. O MP acredita que esse depoimento possa ter sido vendido. Um dos indícios é de que, também em 2006, a mulher de Tato, Elizabete Coutinho, afirmou em juízo ter recebido cerca de R$ 100 mil de Bida. Souza também contesta o julgamento de Rayfran, uma vez que o Conselho de Sentença não reconheceu que o crime é, na verdade, triplamente qualificado: premeditação, impossibilidade de defesa da vítima e – o que ainda não foi aceito – promessa de recompensa. Durante o julgamento, o promotor Edson Cardoso de Souza denunciou que sua família está recebendo ameaças para que ele desista do processo. “Essas ameaças, feitas por telefonemas anônimos, estão ocorrendo há cerca de um ano”, disse. Infelizmente, ele não é o único. Segundo levantamento do próprio governo paraense, há 99 pessoas ameaçadas de morte no Estado, entre religiosos,

sindicalistas e integrantes de movimentos sociais. Dessas, apenas nove estão hoje com proteção policial.

Impunidade e violência Para José Batista Afonso, a decisão da Justiça só vem a colaborar para o clima de impunidade e, por conseguinte, para a manutenção dos altos índices de violência no campo. “Na medida em que não há punição dos responsáveis pelos crimes, a tendência é o agravamento da situação. Se não há punição, os que praticam esses crimes acabam incentivados a continuar adotando esses métodos”, avalia. Afonso conta que a CPT contabiliza 819 assassinatos no Estado, motivados pelo conflito agrário, desde 1971 até 2007. “Só conseguimos condenar os mandantes de crimes com grande repercussão nacional e internacional, como o massacre de Eldorado dos Carajás, os assassinatos do sindicalista João Canuto e Expedito Ribeiro em Rio Maria, e o caso da Dorothy, por exemplo”, revela. Ao todo, seriam apenas sete o número de condenados em todos esses anos. “Com a absolvição do Bida, nenhum mandante está cumprindo pena”, afirma. Para o advogado, esses números revelam o poder dos

latifundiários na região. “No Pará, os setores que geralmente estão por trás dos crimes são os madeireiros, grileiros de terras públicas e grandes agricultores. São setores que têm poder econômico muito forte e, portanto, relações políticas fortes também, com influência no Executivo, Legislativo e Judiciário”, aponta. Uma amostra dessa interferência é a demora na tramitação de casos desse tipo na Justiça. A CPT analisou 92 processos de crimes no campo e verificou que o tempo médio de tramitação está acima de 10 anos. “O Judiciário paraense não consegue dar resposta à impunidade e à violência no campo”, finaliza.

Repercussão O irmão da missionária estadunidense, David Stang, que veio ao Brasil para acompanhar o julgamento, declarou-se profundamente “chocado” com a decisão. À imprensa, afirmou que os advogados de acusação foram “excelentes, até mesmo melhores do que no último julgamento. Por isso tínhamos grande esperança e expectativa”. David, que vive nos EUA, demonstrou não entender a lógica da Justiça brasileira: “Como podemos, em um ano, sair de um placar pela condenação para exatamente o contrário, ele ser libertado? Por favor, me diga”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Paulo de Tarso Vannuchi, manifestaram suas discordâncias em relação à decisão. “Obviamente que vão ter os recursos e vamos ver o que vai acontecer. Acho que depõe um pouco contra a imagem do Brasil no exterior. E uma parte da sociedade começa a ter dúvida sobre o julgamento”, opinou Lula, que afirmou ainda respeitar a decisão da Justiça. Já Vannuchi, em nota oficial, afirmou que a SEDH se soma às diversas entidades que declararam “publicamente seu inconformismo com uma decisão que reforça ainda mais o sentimento de impunidade já tão disseminado em nosso país, como vetor de estímulo à criminalidade e à violência”.

Leonardo Melgarejo

Brigada Militar oprime famílias sem-terra no RS BRUTALIDADE “Fizeram processo de revista, humilharam todos. Cortaram todos os barracos, jogaram nossa comida fora, botaram terra dentro das nossas coisas”, diz integrante do MST Paula Cassandra de Porto Alegre (RS) No dia 8, cerca de 750 policiais da Brigada Militar entraram no acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Fazenda São Paulo II, no município de São Gabriel (RS). Os policiais cumpriam um mandado de busca e apreensão pedido pela própria polícia e concedido pelo juizado da cidade. De acordo com o subcomandante, coronel Paulo Mendes, o mandado foi solicitado à Brigada pela comunidade, que se sentia insegura com a presença do MST na região. Emissoras de rádio de São Gabriel noticiavam durante o dia que os fazendeiros haviam pedido a revista dos sem-terra. “Eu estou preocupado com a população or-

deira aqui, que se sente ameaçada pelo MST. Foi através da população que nós pedimos o mandado e estamos executando, essa é a maior preocupação da Brigada”, diz. A ação dos policiais iniciou-se por volta das 9 horas da manhã. No entanto, a Brigada estava cercando o local desde às 6 horas. Na revista policial, foram apreendidos foices, facões, facas de cozinha e artefatos caseiros. A integrante do MST, Luciana da Rosa conta que as famílias foram humilhadas pelos policiais. “Foram cercando até renderem todas as famílias, fizeram processo de revista, de identificação, de humilhação de todos, separaram homens, mulheres e adolescentes, e fizeram a revista em todo o acampamento, cortaram todos os barracos, jogaram nossa comida fora, botaram terra den-

Brigada militar em ação contra famílias acampadas

tro das nossas coisas, misturaram tudo”, diz. O coronel Mendes afirmou que a advogada do MST, Cláudia Ávila, esteve presente desde o início da ação policial. No entanto, integrantes do movimento afirmam que a advogada não pôde falar com as famílias do acampamento e ficou afastada no momento em que as famílias eram revistadas. Luciana questiona a ação policial, uma vez que a área em São Gabriel já foi negociada pelo Incra para assentamento da reforma agrária. Ela afirma que não existe nada para ser apreendido no acampamento, a não ser as ferramentas do agricultor que vive no campo. Para Luciana, os ruralistas da região não aceitam que o MST tenha ocupado um grande latifúndio de mais de 13 mil hectares que não produz e está endividado.

“O MST entrou em São Gabriel para ficar dessa vez, tanto que uma área já está conquistada e já é um assentamento da reforma agrária. Nós não vamos sair daqui. Dessa vez, viemos pra ficar, e os grandes latifúndios de São Gabriel vão virar grandes assentamentos da reforma agrária para produzir, e não disputar a terra com a celulose, nem entregar para os estrangeiros a terra brasileira”, explica. Em protesto à repressão policial na Fazenda São Paulo II, o MST bloqueou 13 rodovias durante todo o dia 8, nas localidades de Piratini, Nova Santa Rita, Santana do Livramento, São Luiz Gonzaga, Arroio Grande, Julio de Castilhos, Lagoa Vermelha, Charqueadas, Hulha Negra, Pontão, Gramado dos Loureiros, Encruzilhada do Sul e Viamão. (Agência Chasque)

saiu na agência Oligarquia argentina retoma bloqueios

Os produtores rurais da Argentina retomaram os bloqueios em protesto contra o governo da presidente Cristina Kirchner. Estradas estratégicas do país foram paralisadas por tratores, máquinas agrícolas e caminhões, além de panelaços e retirada de dinheiro dos bancos. O motivo dos bloqueios é a medida decretada por Cristina para elevar os impostos sobre as exportações de grãos. Apesar de ter obtido lucros crescentes com a valorização dos produtos agrícolas no mercado internacional, a oligarquia rural se nega a pagar mais impostos. As primeiras manifestações dos produtores ocorreu em março e durou 21 dias. Como conseqüência, houve desgaste da gestão de Cristina e risco de desabastecimento na capital Buenos Aires e em cidades do interior, decorrente de panelaços protagonizados por setores dos segmentos mais ricos da população.

Campanha contra homofobia

O governo cubano irá promover uma campanha contra a homofobia, que está sendo encabeçada por Mariela Castro Espín, filha do presidente Raul Castro e da desaparecida Vilma Espín. “Vimos que chegou o momento de fazer algo muito mais forte”, disse Mariela. A iniciativa conta com apoio do Partido Comunista, do setor juvenil, ministérios, autoridades, provinciais e até da Polícia Nacional, e representa um forte sinal de retificação da política de discriminação sexual imperante na ilha até duas décadas atrás e que incluiu, entre outras conseqüências, a reclusão de homossexuais em campos agrícolas e penalizações “ostensivas” contra essa conduta.

“Conduta de risco”

O filme, Conduta de risco, suspense indicado a sete Oscar, conta a história vivida por Michael Clayton (George Clooney), advogado de um grande escritório em Nova Iork responsável pelos casos da fictícia – porém nem tanto – megacompanhia de herbicidas “United Northfield”. A trama é tecida em torno de um processo sofrido pela transnacional do agronegócio, responsável pelo envenenamento de 450 famílias de camponeses. Nessa teia de relações, os advogados são chamados de “faxineiros”: os responsáveis por limpar a sujeira deixada pela lógica bárbara do grande negócio. Diante de lucros monstruosos, a vida e a natureza se mostram meros objetos. E todos os envolvidos têm um preço a ser pago por esse montante volumoso de lucros, proporcionalmente ao grau de envolvimento de cada componente dessa estrutura.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Ação unilateral A falta de reciprocidade com a Espanha não se dá apenas na migração. Os capitalistas espanhóis deitam e rolam no Brasil, onde atuam com quase 300 empresas, com livre remessa de lucros, inclusive nos serviços públicos de telefonia e concessão de rodovias. Mas as empresas brasileiras não encontram a mesma facilidade de atuação na Espanha, que protege as companhias locais nos contratos de serviços públicos. O que vale para a Espanha não vale para o Brasil. Desindustrialização Em 1998, a participação das importações no consumo de produtos industrializados chegou a 16,4% do total. Agora em 2008, segundo estudo do BNDES, essa participação bateu em 20,3%. Perguntas obrigatórias: Quantos empregos foram tirados dos trabalhadores brasileiros com o aumento das importações? Em quais setores industriais o Brasil perdeu o controle da tecnologia? Bloqueio político As organizações e partidos de esquerda continuam com muita dificuldade para lidar com os casos de corrupção e de desmandos administrativos envolvendo políticos de esquerda. O silêncio diante de tais casos, corriqueiros nas “democracias” liberais burguesas, acaba fragilizando as posições políticas das esquerdas e fortalecendo o discurso moralista e hipócrita das forças de direita. É preciso virar o jogo! Injustiça mesmo O Tribunal Federal Regional do Rio de Janeiro precisou determinar expressamente ao juiz Lafredo Lisboa, da 3ª Vara Criminal daquele Estado, o prazo de 90 dias para dar a sentença no caso do Propinoduto 4, que envolve auditores da Receita Federal no desfalque de R$ 3 bilhões. É que o magistrado guardou o processo na gaveta desde dezembro de 2005. Só falta a sentença. Isso é que é empurrar com a barriga! Nova inflação A explosão no preço dos alimentos revela a falta de planejamento e a precariedade das políticas governamentais em relação à produção, armazenamento e distribuição de alimentos no país; revela que falta apoio efetivo à agricultura familiar, aos pequenos produtores rurais e às cooperativas dos assentamentos da reforma agrária. Falta uma política de segurança alimentar voltada para o povo brasileiro.

Jogo maléfico Nascido com a perspectiva de se tornar uma alternativa forte na disputa da Prefeitura de São Paulo, o “bloquinho” integrado por PSB, PDT e PCdoB está vivendo o mais terrível inferno astral. Paulinho da Força, do PDT, foi acusado no escândalo do BNDES; Luiza Erundina, do PSB, se rendeu ao assédio do PT para compor chapa com Marta Suplicy; e Aldo Rabelo, do PCdoB, ficou solitário na proposta inicial. Mudança sindical Ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Djalma Bom, desabafou em entrevista para a Folha do dia 11: “Sempre fomos contra o imposto sindical porque achávamos que o sindicato deveria ser mantido pela contribuição voluntária dos associados. Agora, até a CUT, que era contra o imposto sindical, usa argumentos sem pé nem cabeça para defender que ele seja mantido”. Omissão total Por mais que a CNBB, bispos e ONGs de defesa dos direitos humanos denunciem a exploração sexual de crianças e adolescentes na Amazônia, principalmente no Pará, as autoridades estaduais continuam indiferentes e inertes. Desde 2006, o bispo José Luiz Azcona, da Prelazia do Marajó, acusa a rede de aliciamento de menores formada por políticos, mas ninguém foi preso e condenado até agora. É o fim da picada! Estatização já Professores e estudantes do Centro Universitário Fundação Santo André iniciam no dia 17, com ato público, das 9 às 18 horas, a campanha pela federalização da instituição privada. Eles não agüentam mais as bandalheiras dos dirigentes do Centro Universitário, que merece uma intervenção direta do MEC para garantir o mínimo de moralidade e credibilidade. Em defesa da educação pública!


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brasil Leonardo Melgarejo

A expansão das fronteiras da criminalização OFENSIVA Movimentos sociais estão em confronto com o discurso – e as ações – que parte da mídia empresarial e da Justiça Pedro Carrano de Curitiba (PR) POUCO ANTES de conceder uma entrevista a uma rádio local, em Marabá (Pará), para divulgar a situação dos conflitos no campo no Brasil, o coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista Afonso, deparou-se com a advertência do radialista: o entrevistado não podia mencionar o nome da Vale (ex-Vale do Rio Doce), mineradora que opera na região. O incidente, aparentemente corriqueiro, é sintomático e soma-se às recentes declarações do novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, afinadas com o discurso de criminalização da mídia empresarial contra os movimentos sociais. Só que não fica só na retórica; a repressão de fato vem acompanhada. De acordo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cerca de 300 bispos e agentes pastorais têm a vida em risco em todo o país. Somente no Pará, chega a 75 o número de lutadores sociais ameaçados de morte. Em um editorial do jornal O Globo, no dia 21 de março, podemos ler o seguinte sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: “Faz tempo que o MST se descolou da questão da reforma agrária e se converteu em uma organização política radical, semiclandestina, (...) com uma face operacional, patrocinadora de ações que começam a ganhar roupagem de terrorismo”. No mesmo sentido, até pou-

co tempo, a página na internet da Vale exibia o vídeo de uma coletiva de imprensa, com seu diretor-executivo, Tito Martins, à época das manifestações da Via Campesina ocorrida em 8 de março. O posicionamento dos próprios jornalistas, ao longo da entrevista, era de condenação à postura dos movimentos sociais. Uma jornalista presente na coletiva reforçava a questão do terrorismo. A Vale, que até então havia se mantido em silêncio quanto à ação dos movimentos, passou a pedir punição.

Um grau acima Em reportagem da revista Exame, publicada neste mês, fica claro o posicionamento de transnacionais em relação aos movimentos de reivindicação. A Vale, por exemplo, contaria com o que apelida de “grupo de crise”, espécie de central de inteligência que troca informações com a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um dos principais ideólogos da direita liberal, o gaúcho Denis Rosenfield, percorre o país lecionando sobre a estratégia e a tática do MST. Um de seus mais recentes recorridos foi pelo Pará, região ímpar no que tange a conflitos pela posse da terra e expansão da produção de commodities. De acordo com representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Rio Grande do Sul, o monitoramento das organizações sociais pode ser constatado por meio da presença de agentes em audiências públicas realizadas pelo movimento. Ademais, membros

Quanto

300 agricultores foram expulsos pela Vale de uma área de 5 mil hectares. O objetivo é fazer um cordão de isolamento em torno de duas jazidas

do MAB têm sido fichados no caminho até as manifestações. “A criminalização é forte, isso varia conforme o comando político de cada Estado, mas a Polícia Federal está atuando acima dos governos locais. Na nossa avaliação, é isso que está se montando, todo um dossiê dos movimentos sociais”, comenta um integrante do MAB.

Desmandos A política cotidiana das empresas, no entanto, não tem sido noticiada, na mídia local ou internacional, de acordo com José Batista Afonso, da CPT. Recentemente, foram expulsos cerca de 300 assentados rurais instalados nas localidades da mina de Onça Puma, na região de Parauapebas (PR), onde duas novas jazidas estavam sendo abertas. Ali funciona um dos novos empreendimentos da Vale, que, ainda em 2006, havia comprado, por 17,5 bilhões de dólares, a Inco, empresa canadense especializada na extração de níquel. “As pessoas foram retiradas de uma área de 5 mil hectares ao redor da mina, criando um cordão em volta da empresa. No entanto, a Vale tem o direito de exploração do subsolo, e não daquilo que está sobre o solo”, expõe Batista.

A mando de Yeda Crusius, cerca de mil policiais ameaçaram invadir o assentamento Novo Sarandi (RS)

Violência acompanha crescimento econômico notícias Repórter Brasil. Os municípios ao de Curitiba (PR) redor dos projetos econômicos contam com um grande inchaço populacional. Atualmente, os interesses econômicos, de Uma das regiões de maior conflito entre acordo com José Batista Afonso, da CPT, eso capital, movimentos sociais e povos origitão no crescimento do negócio da pecuánários é a faixa de expansão do agronegócio ria, do minério de ferro e da soja no mercado que abarca os Estados de Mato Grosso, Pamundial (o Brasil tornou-se o maior exporrá e Rondônia. De acordo com dados da entidade, 54% do total dos conflitos de terra no tador mundial do grão), expandindo a proBrasil aconteceram nessa faixa da Amazônia. dução sobre a floresta amazônica e causando a repressão dos trabalhadores assentados Esse modelo foi implantado na região desna região. de a expansão da fronteira agrícola, realiza“Com o aquecimento do valor de commodida durante a ditadura militar, nas décadas de ties internacionais e créditos, a violência con1970 e 1980. Também é a área com maior índice de tra- tra pessoas e florestas aumenta”, argumenta Batista. Segundo dados da própria entidade, balho escravo. “A incidência de trabalho escravo está concentrada nas regiões de expan- em 2007, foram registrados 905 manifestasão agropecuária da Amazônia e do Cerrado”, ções contra as arbitrariedades das empresas e descreve Leonardo Sakamoto, da agência de departamentos governamentais. (PC)

Repressão no campo sindical

Oligopólio dos fertilizantes, ataque aos trabalhadores

Multiplicam-se os casos de demissões de trabalhadores que fazem greves

Jorge Luís Martins, do Sindicato dos Químicos Unificados (São Paulo), avalia que a repressão no setor sindical vem sendo favorecida pelo processo de reestruturação produtiva e a flexibilização das normas do trabalho, que ocasiona situações como o processo de terceirização, banco de horas etc. “Em regra, quem se contrapõe a esse processo sente na pele uma repressão muito dura. O movimento sindical vive um descenso da luta política e uma conjuntura altamente desfavorável”, analisa. Tal repressão, de acordo com ele,

está expressa no Projeto de Regulamentação do Direito de Greve no serviço público, em trâmite desde 2007, que regulamenta a greve para 17 setores considerados essenciais e que, de acordo com Martins, retira dos trabalhadores esse instrumento de pressão. Como um dos sintomas do atual momento, Martins cita a greve dos metroviários de São Paulo, no final de 2007, que ocasionou a demissão de 63 funcionários, entre vários dirigentes sindicais que negociavam a participação nos resultados e lucros com o governo de José Serra (PSDB). De acordo com Martins, essas demissões de dirigentes sindicais têm

sido constantes. Ele lembra também o exemplo de Dirceu Travesso, dirigente do Sindicato dos Bancários e da Conlutas, demitido, neste mês, num momento em que o banco Nossa Caixa passa por um processo de privatização. Outra caso é o da fábrica Cosipa, sinal da repressão do Estado sobre os trabalhadores. Em agosto de 2007, trabalhadores da empresa foram duramente reprimidos pela Polícia Militar quando faziam uma assembléia na portaria da empresa, que pertence ao grupo Usiminas. Os trabalhadores recusaramse a assinar um acordo que previa banco de horas e turno fixo de oito horas. (PC)

MOBILIZAÇÃO

Cerca de 1.700 pessoas marcharam pelas ruas de Araçatuba, interior de São Paulo, no dia 13, contra 17 processos emperrados na Justiça Federal de Araçatuba e Jales. Aproximadamente, 1.600 famílias que já deveriam estar assentadas na região.aguardam embaixo de barracos de lona. O protesto foi organizado por 19 entidades. Entre elas, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), MST, CPT, Cáritas, Terra de Direitos, Apeoesp e Renap.

Bunge controla seis das oito empresas do ramo no Brasil; mesmo assim, por 70 horas, empresa não deixou funcionários abandonarem fábrica durante greve de Curitiba (PR)

Douglas Mansur

de Curitiba (PR)

Os outdoors espalhados na cidade de Araucária, na região metropolitana de Curitiba, anunciando os 50 anos de atuação da empresa Fosfértil/Ultrafértil no ramo de agroquímicos, não impediu que fosse realizada uma audiência pública, no dia 12, na Assembléia Legislativa de Curitiba, para colocar em debate os 15 anos de privatização da produtora de fertilizantes, que hoje está sob o controle da transnacional estadunidense Bunge. A empresa detém o oligopólio da produção (junto a Yara e Mosaic) e da circulação dos fertilizantes no Brasil. Das oito empresas do ramo, a Bunge controla seis. As outras duas são da Petrobras. Em pauta, além da questão do controle do preço dos fertilizantes, estava colocada também a denúncia de práticas anti-sindicais por parte da direção da empresa. No começo deste ano, os trabalhadores e o sindicato entraram em greve para denunciar as condições precárias do maquinário – fator que coloca em risco a própria cidade onde a fábrica está instalada. A Fosfértil apresentou aumento de 95% de lucro anual, mas ainda assim a direção não aceitou suspender a produção, mesmo após a solicitação do Instituto Brasileiro de Pe-

tróleo. Ao longo da greve, helicópteros foram utilizados para furar o piquete em frente à fábrica. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) havia sido acionado para apurar as condições das instalações da indústria, mas acabou deparando-se com os trabalhadores obrigados a ficar 70 horas no interior da fábrica.

Precedente Os sindicalistas atualmente sequer podem entrar na planta da fábrica. As horas excessivas de trabalho aplicadas aos que não aderiram à greve e ficaram retidos dentro dela estão entre as pendências da transnacional. Demissões imotivadas e pressão sobre os trabalhadores próximos do sindicato foram relatadas à Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Petroquímicas. Uma vez aceito pela organização internacional, na Suíça, o documento abriu um precedente considerado importante. “Por estar toda documentada a denúncia, com provas concretas, os representantes da OIT em Brasília deram uma sinalização positiva. Isso cria um desgaste concreto na imagem da Bunge, frente ao governo brasileiro, que pode ser cobrado por não vistoriar a empresa”, avisa Gladstone Leonel Júnior, advogado da organização Terra de Direitos, que elaborou a denúncia ao lado do sindicato. Na opinião dele, a denúncia pode acumular para o movimento popular, sobretudo o sindical, no combate às transnacionais e às práticas anti-sindicais. “A denúncia apresenta dois panoramas: as transnacionais estão afetando os trabalhadores e pequenos agricultores no Brasil. E, para o próprio movimento sindical, aponta que os sindicatos têm que se mexer, as empresas não estão respeitando os direitos mínimos dos trabalhadores”, comenta. (PC)


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nacional

Personalidades entregam ao STF “Carta dos 113” contra as cotas ILIBADOS Entre os que assinam estão Caetano Veloso, José Arbex Jr., Reinaldo Azevedo e Ruth Cardoso; Educafro responde Reprodução

Vanessa Ramos e Jonathan Constantino de São Paulo (SP) NO ÚLTIMO 28 de abril, o movimento negro e os demais movimentos sociais que lutam pela conquista do Estatuto da Igualdade Social e pela Lei de Cotas foram surpreendidos pela manifestação de um grupo de “intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais” por meio da carta intitulada “Centro e treze cidadãos nãoracistas contra as leis raciais”, entregue ao Superior Tribunal Federal (STF). A carta, abaixo-assinada por personalidades como Caetano Veloso (cantor), José Arbex Jr. (jornalista), Gerald Thomas (dramaturgo), Ferreira Gullar (poeta), João Ubaldo Ribeiro (escritor), César Benjamin (editor), Demétrio Magnoli (articulista do Estado de S.Paulo), Nelson Motta (produtor musical, jornalista e escritor), Reinaldo Azevedo (jornalista articulista da Veja), Ruth Correa Leite Cardoso (antropóloga), José de Souza Martins (sociólogo), Aguinaldo Silva (telenovelista), entre outros, teve como objetivo “oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República”. Segundo a “Carta dos Cento e Treze”, existem “desafios imensos e urgências sociais e educacionais” que o Brasil enfrenta e “as cotas não contribuem para isso”. A linha de pensamento do texto faz eco às posições defendidas por Ali Kamel, chefe de jornalismo da Rede Globo, autor do livro Nós não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Porém, para Kabengele Munanga, doutor em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo, as cotas raciais não ocultam a realidade e os problemas existentes, ao contrário, o debate não se pauta apenas quanto à questão das cotas, mas sim no acesso e na estabilida-

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Cristiano Caniche/CC

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Reprodução

A partir do canto superior esquerdo, em sentido horário: João Ubaldo Ribeiro, Gerald Thomas, Ruth Cardoso, Nelson Motta, Aguinaldo Silva e Caetano Veloso

de dos negros nas universidades públicas. Dessa forma, as cotas existem como instrumento de ingresso e servem como medida emergencial enquanto não são encontrados outros caminhos. Munanga afirma ainda, no livro Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica, que se o país, em sua genialidade racista, encontrar meios que não passem pelas cotas, para não cometer injustiças contra brancos pobres, será ótimo, mas dizer com facilidade que implantar cotas é injustiça, sem propor outras medidas a curto, mé-

dio e longo prazos, é uma forma de escapar de uma questão essencial para milhões de brasileiros que sofreram danos causados por séculos de discriminação.

“Todos são iguais” O ato dos acadêmicos ditos intelectuais é, na verdade, a repetição do que o mesmo grupo realizou no dia 30 de maio de 2006, quando entregou o manifesto “Todos são Iguais na República Democrática” ao Congresso Nacional. A respeito do ocorrido àquela época, Teresinha Bernardo, professora livre-do-

cente de Antropologia e Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, declarou, em artigo publicado na revista eletrônica Ponto-e-Vírgula, em 2007, que a existência de pensamentos como os explícitos no Manifesto Contra as Cotas “no meio acadêmico faz com que se pense que o relativismo [racial] marca como o ferro em brasa o modo de pensar de alguns intelectuais brasileiros. Ou será que há um certo temor por parte dos acadêmicos que os negros transformem as suas origens, nas origens de suas pesquisas?”.

Na carta, desconsiderase a falsa democracia racial existente no país, fato mais do que justificado pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Observa-se na Síntese dos Indicadores Sociais 2007 – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira que as taxas de analfabetismo, analfabetismo funcional e freqüência escolar apresentam diferenças significativas. Em 2006, dos cerca de 14,4 milhões de analfabetos brasileiros, mais de 10 milhões eram pretos e pardos. Quanto às taxas de analfabetismo, para a popu-

Divulgação

Educafro realiza debate sobre acesso à universidade e transformação social Jorge Américo de São Paulo (SP) Com o objetivo de refletir se o acesso à universidade garante ou não a transformação social, a Educafro realizou, no último dia 26 de abril, o debate “Mulheres, pobres e negros em universidades: o acesso garante a transformação social?” entre estudantes, professores e militantes de movimentos sociais. O encontro aconteceu na Zona Leste de São Paulo e teve como convidados especiais o professor Waldemar Milanez, da Universidade São Francisco, Tatiana Oliveira, do MST e a cantora Leci Brandão. “A transformação social só será possível se o cidadão, ao entrar na universidade, não se esquecer de que é pobre, mulher ou negro. Caso contrário, continuaremos a reproduzir o sistema de exclusão criado por aqueles que não conhecem na prática os problemas do povo”, disse em sua fala, o professor Waldemar Milanez, mestre em

Filosofia e Pedagogia. Para a estudante bolsista de Direito Denise Martins, os entraves para a transformação social não estão apenas na academia. O maior obstáculo está dentro de casa. “Pelo fato de eu me enquadrar na tríade ‘mulher-pobre-negra’, a minha família acha que não vale a pena apoiar, pois as portas do mercado de trabalho estarão sempre fechadas para mim, mesmo que eu consiga um diploma de nível superior. Precisamos, antes de tudo, eliminar essa visão preconceituosa e pessimista”.

Luta e repressão Tatiana Oliveira, da Coordenação Pedagógica da Escola de Formação Florestan Fernandes, dirigida pelo MST, defendeu durante o debate que a união entre as forças populares pode ser uma arma poderosa para garantir que a luta pelo acesso à universidade traga resultados concretos. “O ato realizado em agosto de 2007, na Faculdade de Direito do Largo São Francis-

A cantora Leci Brandão, Tatiana Oliveira, do MST, e frei Valnei Brunetto

co, reuniu diversas vertentes dos movimentos sociais e ainda contou com o apoio da torcida organizada Gaviões da Fiel. O simples fato de todas aquelas pessoas estarem reunidas ali, reivindicando seus direitos, foi suficiente para desencadear uma ação da Polícia. Isso prova que a transformação social por meio da educação depende da participação ativa de todos.” O ato referido fazia parte da jornada de luta pela educação pú-

blica. Embora fosse pacífica, a manifestação foi duramente reprimida pela Tropa de Choque da Polícia Militar.

Desafio e superação “Há uma necessidade de, junto com o aprendizado acadêmico, termos uma formação crítica que seja suficiente para questionarmos tudo aquilo que parece natural. Desconfiai do mais trivial”, reflete Flávio de Paula, citando o poeta e filósofo alemão Bertold Brecht.

O estudante de Direito, bolsista na Universidade São Francisco, deixou sete anos de estabilidade no serviço público para trabalhar na Coordenação Política da Sede Nacional da Educafro. A cantora, compositora e militante do Movimento Negro Leci Brandão chamou à atenção em sua fala para a questão de as mulheres enfrentarem um desafio triplo diante do preconceito de cor, gênero e classe social. “A mu-

lação de 15 anos ou mais anos de idade, 6,5% eram brancos e 14%, pretos e pardos.

Seqüelas Para Douglas Belchior, coordenador de Políticas Públicas da Sede Nacional da Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), após 120 anos da “abolição”, as seqüelas são ainda brutais e fazem parte do nosso cotidiano. “As divisões perigosas impostas pelo racismo institucional, que desqualifica os negros no mercado de trabalho, na universidade pública e no acesso à Justiça é uma realidade inquestionável. Os elementos fundamentais do debate teórico, acerca da necessidade de reparações dirigidas a população negra, há muito se esgotou. A questão agora é política, não teórica.” Em uma sociedade racista, construída sob um modelo de exploração, qualquer que seja a proposta de mudança em defesa dos excluídos, não receberia um apoio universal – fato corroborado pela “Carta dos Cento e Treze”, que tenta defender a idéia de que as leis de cotas e as ações como a do PROUNI são inconstitucionais. Em contraponto, no dia 13 de maio, a Educafro, integrantes da UERJ, bolsistas do PROUNI, intelectuais e integrantes de diversos movimentos sociais foram à Brasília entregar o manifesto “120 Anos de Abolição Inconclusa: Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Políticas de Inclusão”, com o intuito de mostrar ao STF que o posicionamento dos ministros está diretamente relacionado à continuidade ou não das medidas que permitirão ao Brasil corrigir as seqüelas de “seu passado escravista e seu presente discriminatório” em busca de um futuro justo e verdadeiramente democrático. O manifesto pode ser lido em www.pvnc.org, enquanto a “Carta dos Cento e Treze” e a lista completa dos nomes de quem a assina podem ser acessadas em http://entr ejovens.blog.terra.com.br

lher negra e pobre não pode se curvar aos desmandos do patrão. É preciso coragem para estudar e mudar a realidade social. A batalha é difícil, mas a conscientização de que é possível promover a mudança já é um grande passo.” A professora Regina Fabrício Martins, que se formou em História no ano de 2006 – quando acabara de completar 60 anos de idade, e atualmente é candidata a um curso de pós-graduação na área de Direitos Humanos – conhece bem a realidade mencionada por Leci Brandão. “Na época de estudante, muitas vezes eu cheguei a ir a pé e com fome para a faculdade. Caminhava do bairro da Penha (Zona Leste da capital) até a cidade de Guarulhos. Era muito sofrimento, mas eu fiz isso para garantir que meus netinhos nunca precisem passar pelas humilhações que eu passei.” Kizzi, Quézia e Luisa, netas da professora Regina, quando questionadas sobre o que esperam do futuro, responderam em coro: “Estamos de malas prontas para estudar Medicina em Cuba”. Frei Valnei Brunetto, diretor-executivo da Educafro, lembra que “a possibilidade de as mulheres, negros e pobres cursarem uma faculdade, inclusive Medicina, nasceu de um sonho que só se tornou realidade porque houve o apoio coletivo de todos aqueles que assumiram a luta pelos direitos dos marginalizados”.


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internacional

A economia macabra da ocupação GAZA Para racionalizar custos com o controle militar da Palestina, Israel impõe bloqueio à entrada de combustível no território João Alexandre Peschanski de São Paulo (SP) O governo israelense iniciou, em setembro de 2005, uma nova etapa na ocupação dos territórios palestinos. Esta começou com a retirada das colônias – conjuntos residenciais, localizados para além das fronteiras de Israel, determinados pela Organização das Nações Unidas – de Gaza e tem seu desdobramento mais recente no bloqueio à entrada de combustível nessa mesma região, em curso desde 17 de janeiro. Na macabra lógica sionista, o objetivo da mudança na ocupação é encontrar uma forma economicamente sustentável de manter a Palestina sob controle. De acordo com dados de 2007 do Ministério das Finanças de Israel, 13% do orçamento anual do governo é gasto com a ocupação – algo como 9,3 bilhões de dólares por ano, aos quais se somam os 2,2 bilhões de dólares enviados anualmente por Washington. Enquanto o crescimento médio do orçamento israelense é de 1,7% por ano, nesse mesmo período o aumento dos custos da ocupação atinge 8%. Mantido esse ritmo, em cerca de 20 anos os gastos totais com o controle militar dos territórios palestinos equivalerá a 50% do total orçamentário. “Não há Estado moderno que possa se manter com esse tipo de gastos. Na medida em que o governo israelense não está disposto a acabar com a ocupação, está desenvolvendo uma forma de ‘racionalizar’ a economia da violência”,

explica o economista israelense Shir Hever, da organização não-governamental israelo-palestina Alternative Information Center (AIC – Centro de Informações Alternativas), uma das principais entidades de denúncia das mazelas da política belicista israelense. A economia da ocupação se insere dentro de um plano governamental mais amplo, revela Hever, segundo quem há uma mentalidade hegemônica nos líderes de que “o ônus do controle sobre os territórios palestinos tem de ser garantido pela população israelense”, como o aumento de impostos e a redução de investimentos em políticas sociais – 9% em 2007, principalmente em saúde, assistência social e educação. Influenciado por órgãos financeiros multilaterais, o governo iniciou um processo de privatização das maiores estatais, principal-

mente das refinarias de petróleo. Em 2006, de acordo com um relatório do AIC, o governo vendeu bens que somam 1 bilhão de dólares. “É um cálculo demente, pois, por mais que postergue um pouco a crise, logo os bens públicos à disposição de compradores vão acabar e o colapso será ainda mais profundo”, afirma o economista israelense.

Retirada das colônias

Desde 1967, o governo de Israel promoveu a construção de colônias em Gaza, geralmente habitadas por judeus radicais. A iniciativa contrariava acordos internacionais, como a Convenção de Genebra. Mas não importava para os governantes israelenses: com seu apoio financeiro, a população das colônias de Gaza passou de menos de 10 mil, em 1972, a quase 100 mil, em 2005. Organizados pelo Exér-

cito, os conjuntos residenciais foram construídos em locais estratégicos, para garantir o controle sobre a maior área possível, além de confiscar terras aráveis e recursos hídricos. Em 2005, quando da retirada, os israelenses das colônias representavam 0,5% dos 1,5 milhão de habitantes de Gaza, mas controlavam 20% de todo o território e das fontes de água. A retirada das colônias de Gaza, aplaudida pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, como uma iniciativa de paz, se caracterizou por uma intensificação do controle israelense sobre a população palestina, a custo inferior do que a manutenção da segurança dos colonos. Um quarto dos israelenses que saíram de Gaza foi diretamente deslocado para conjuntos residenciais na Cisjordânia. De acordo com dados

do AIC, o governo gastou 144 milhões de dólares em 2004 com a segurança dos colonos, montante que crescia mais de 10% a cada ano. A retirada foi acompanhada de uma intensificação militar da ocupação, com repetidas investidas militares nas principais cidades de Gaza. Os ataques agravaram o desastre social que os israelenses deixaram para trás: informações do Banco Mundial revelam que, sem ajuda internacional, o nível de miséria na região passaria de 16% para 41%. “A situação em Gaza é emergencial. Não há indústria, não há agricultura, não há bases para uma economia sólida”, diz Hever.

Dependência coagida

Assim como o governo israelense não considera os representantes palestinos, especialmente os do Hamas,

interlocutores razoáveis para negociar a paz da região, também não toma Gaza como um potencial parceiro comercial. “Os economistas israelenses que assessoram o governo estipulam que o controle sobre os territórios palestinos é uma forma de arrecadar dinheiro para custear a ocupação”, afirma Hever, para quem o que ocorre em Gaza “é uma pilhagem”. Os recursos que entram em Gaza passam todos por Israel – já que não há portos e aeroportos na região. Há cobranças de taxas de transporte – e a maioria dos bens comprados é produção israelense. O bloqueio à entrada de combustíveis, segundo o economista israelense, é uma forma de acentuar a dependência, impedindo o desenvolvimento de infra-estruturas. A economia macabra da ocupação israelense, com o bloqueio da entrada de recursos fundamentais para o funcionamento de serviços básicos, leva a um colapso humanitário em Gaza. Hever fala em “holocausto palestino”. Um abaixo-assinado de entidades israelenses, divulgado na mídia em 29 de abril, descreve a situação em Gaza: “Expressamos nossa preocupação em relação à sistemática destruição de construções essenciais para a vida em Gaza, um território sob ocupação de Israel, que impede que haja combustível para gerar eletricidade, que funcionem os hospitais e as bombas de água. Essa situação é inaceitável, pois marca uma represália e uma punição coletiva contra civis, injustificáveis e passíveis de serem consideradas crimes de guerra”.


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áfrica Fotos: Yuri Martins Fontes

Provavelmente, Deus não é africano CONTINENTE-MÃE A África é hoje o grande espaço de “acumulação primitiva” asiática e uma das principais fronteiras de expansão econômica José Luis Fiori A ÁFRICA ocupou mais da metade do tempo da última reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ocorrida na terceira semana de abril. Na pauta: o impasse nas eleições presidenciais do Zimbábue e as crises políticas da República Democrática do Congo e do Quênia, além dos conflitos armados na Somália e em Darfur, Sudão. Isso trouxe de volta a imagem de um continente aparentemente inviável, com “Estados falidos”, “guerras civis” e “genocídios tribais”, com apenas 1% do PIB mundial, 2% das transações comerciais globais e menos de 2% do investimento direto estrangeiro dos últimos anos. Mas a África não é tão simples nem homogênea, com seus quase 800 milhões de habitantes e seus 53 Estados nacionais, que foram criados pelas potências coloniais européias e foram mantidos juntos graças à Guerra Fria, que chegou à África Setentrional, com a crise do Canal de Suez, em 1956; à África Central, com a guerra do Congo, nos anos de 1960; e, finalmente, à África Austral, com a independência de Angola e Moçambique, e a sua guerra com a África do Sul nos anos de 1980. A independência africana, depois da Segunda Guerra Mundial, despertou grandes expectativas com relação aos seus novos governos de “libertação nacional” e seus projetos de desenvolvimento, que foram muito bem-sucedidos – em alguns casos – durante os primeiros tempos de vida independente. Este desempenho inicial, entretanto, foi atropelado por sucessivos golpes e regimes militares e pela crise econômica mundial da década de 1970, que atingiu todas as economias periféricas e provocou um prolongado declínio da economia africana até o início do século 21. Mesmo na década de 1990, depois do fim do mundo socialista e da Guerra Fria e no auge da globalização financeira, o continente africano ficou praticamente à margem dos novos fluxos de comércio e de investimento globais.

Novo ciclo Depois de 2001, entretanto, a economia africana ressurgiu, acompanhando o novo ciclo de expansão da economia mundial. O crescimento médio, que era de 2,4% em 1990, passou para 4,5%, entre 2000 e 2005, e alcançou as taxas de 5,3%

e 5,5% de 2007 a 2008. E, no caso de alguns países produtores de petróleo e outros minérios estratégicos, estas cifras alcançaram níveis ainda mais expressivos, como em Angola, Sudão e Mauritânia. Esta mudança da economia africana – como no resto do mundo – deveu-se ao impacto do crescimento vertiginoso da China e da Índia, que consumiam 14 % das exportações africanas no ano 2000 e hoje consomem 27%, igual à Europa e aos Estados Unidos, que são velhos parceiros comerciais do continente africano. Na direção inversa, as exportações asiáticas para a África vêm crescendo a uma taxa média de 18% ao ano, junto com os investimentos diretos chineses e indianos, sobretudo em energia, minérios e infraestrutura. Neste momento, existem cerca de 800 empresas e 80 mil trabalhadores chineses na África, com uma estratégia conjunta de “desembarque econômico” no continente, como acontece também, em menor escala, com o governo e os capitais privados indianos. Neste sentido, não cabe mais dúvida, devido ao volume e à velocidade dos acontecimentos: a África é hoje o grande espaço de “acumulação primitiva” asiática e uma das principais fronteiras de expansão econômica e política da China e da Índia. Mas, ao mesmo tempo, não há o menor sinal de que os Estados Unidos e a União Européia estejam dispostos a abandonar suas posições estratégicas, conquistadas e controladas dentro deste mesmo território econômico africano.

Petróleo para os EUA Depois da frustrada “intervenção humanitária” dos Estados Unidos na Somália, em 1993, o presidente Bill Clinton visitou o continente e definiu uma estratégia de “baixo teor” para a África: democracia e crescimento econômico, através da globalização dos seus mercados nacionais. Mas, depois de 2001, os Estados Unidos mudaram radicalmente sua política africana em nome do combate ao terrorismo e da proteção dos seus interesses energéticos, sobretudo na região do “Chifre da África” e do Golfo da Guiné, que até 2015 deverá fornecer 25% das importações estadunidenses de petróleo. Faz pouco tempo os Estados Unidos criaram um novo comando estratégico regional no Nordeste africano e, neste momento, estão instalando as bases de apoio de sua mais recente iniciativa militar

Quanto Existem cerca de 800 empresas e 80 mil trabalhadores chineses na África neste momento no continente: a criação do África Comand (Africom) – que, segundo o jornal inglês Financial Times, “marca o início de uma nova era de engajamento, sem precedente, da Marinha estadunidense na costa Oeste da África.” (15/04/2008).

Interesse europeu Este aumento da presença militar estadunidense, entretanto, não é um fenômeno isolado porque a União Européia e a Grã-Bretanha, em particular, têm dedicado uma atenção cada vez maior à África. E a Rússia acaba de assinar um acordo econômico e militar com a Líbia e, logo em seguida, assinará um outro, com a Nigéria, envolvendo o comércio de armas e dois projetos bilionários de suprimento de gás para a Europa, através da Itália e do deserto do Saara. Num jogo de xadrez que se complicou ainda mais nos últimos dias, com a descoberta de um carregamento de armas chinesas enviadas para o governo de Robert Mugabe, no Zimbábue, através da África do Sul, e com o apoio do governo sulafricano de Thabo Mbeki, segundo denúncia do líder da oposição, no Zimbábue, Morgan Tsvangirai. Este quadro fica ainda mais complicado quando se percebe que tudo isso está acontecendo no momento em que o sistema mundial ingressa numa nova “corrida imperialista” entre as suas “grandes potências”; ainda como aconteceu com o primeiro colonialismo europeu, que começou com a conquista da cidade de Ceuta, no norte da África, em 1415, estendendo-se, em seguida, pela costa africana e transformando a sua população negra na principal commodity da economia mundial, no início da globalização capitalista. Depois, de novo, na “Era dos Impérios”, no final do século 19, as potências européias conquistaram e submeteram – em poucos anos – todo o continente africano, com exceção da Etiópia. E agora, neste início do século 21, tudo indica que a África será – pela terceira vez – o espaço privilegiado da competição imperialista que está recém-começando. A menos que exista um outro Deus, que seja africano. José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ

Cenas do cotidiano do povo sudanês

Sudão, misterioso gigante da África O Brasil de Fato publica texto e fotos, que ilustram a página, do viajante Yuri Martins Fontes, editor do jornal A Palavra Latina, sobre a sua passagem pelo Sudão. No total, Yuri percorreu 42 países em duas etapas. Ambas por meio de transportes públicos locais, por via terrestre e fluvial. A primeira, no período de 2001 a 2002, da Bolívia ao México. E a segunda, terminada em 2007, com duração de pouco mais de um ano, de Portugal à Índia, cruzando o sul europeu, o norte africano e o Oriente Médio. Yuri Martins Fontes Galinhas, caixotes empilhados, sacolas, malas, bebês chorando e muita gente disputando seu lugar ao chão para dormir. Assim foi a noite na segunda classe, mais especificamente no porão do barco semanal que fazia o transporte pelo Nilo, entre Assuan, no extremo sul do Egito, e Wadi-Halfa, extremo norte do Sudão. Ele partira às 15h, embora os passageiros fôssemos obrigados a estar lá desde às 9h da manhã, desfrutando de filas sob o verão saariano, a cumprir burocracias e desordem. A paisagem foi a mesma por todo o percurso: sempre o deserto infindável, e sempre o largo rio azul a dividi-lo, acalmando com umidade a cólera do Sol. Sem chão para deitar, subi ao topo da embarcação, também

repleto de malas, gentes, mercadorias e, segundo me informaram, muitos contrabandos vindos desde o Cairo – o grande centro comercial e produtor da região. Aí, em meio a dois caixotes de aparelhos eletrônicos, consegui dormir seguro de que não seria atirado ao rio na madrugada por entre as duas tímidas cordas de proteção. Wadi-Halfa não tinha nada. Era uma vila alfandegária com cerca de dez ruas que se traçavam em meio a alguns morros com algumas dezenas de metros de areia calcificada. Havia o grande rio, a rua central do comércio, a estação de trem e um grande lago cujas praias ostentavam o símbolo da civilização – na forma de um colorido cemitério de garrafas plásticas de refrigerante.

Terceira classe Após duas noites numa cama de dormitório, finalmen-

te chegaria o trem que uma vez por semana cruzava o deserto rumo à capital Cartum, no centro deste que é o maior país africano. Entre egípcios e sudaneses, quase não se encontrava quem soubesse o inglês, mas a sorte grande fez com que eu conhecesse um cartunense, estudante de filosofia na Universidade do Cairo, que visitava a família. Não fora por ele, eu não teria imaginado possibilidades físicas para ingressar sem bilhete à terceira classe – a única em que as autoridades, por total falta de estrutura, permitiam a ousadia popular. A solução, disse-me o rapaz, é passar por cima: vai, vai! – mas eu não fui, ao menos não antes que ele mesmo agarrasse as barras do teto do vagão e se metesse qual trapezista por cima das bagagens, donos de bagagens e gritos, num gesto artístico. Atirei-lhe então minha mochila de 30 quilos e segui-lhe os métodos. Ao fim de momentos de tensão e xingamentos árabes, consegui um espaço para ao menos pisar o chão comodamente. A madrugada avançava e eu já não me podia em pé, quando um senhor muçulmano me propôs que sentasse no canto de seu banco. Ofereceu-me cigarros e contou-me muitas histórias em árabe enquanto fumávamos ao vento do Saara – que soprava através dos tantos vãos

que um dia devem ter sido as janelas do vagão.

Centenas de pirâmides Amanhecemos com uma poeira irrespirável, que somente seria pior aliada ao calor do meio-dia. Rendi-me ao cansaço e saltei do trem na cidade de Adbara, após 12 horas, postergando às dez horas faltantes à capital. No outro dia, tomei ônibus rumo às vizinhas pirâmides de Méroe, que remontam as civilizações faraônicas do então chamado Alto Egito, donde desce o Nilo que banha também Gizé. As pirâmides embora menores, fascinam pela quantidade – são centenas. Além do mais não há um turismo predador como no Egito, e então pode-se sentir algo. E como não há nem polícia nem ninguém do gênero para atormentar, pode-se mesmo subir nelas. À saída, avistei uma picape com turistas e consegui carona. Era um grupo da Missão de Observação da ONU – talvez devido aos problemas sérios com a minoria étnica de Darfur, no sudoeste. Eram três alemães e iam a Cartum. Um deles era um pesquisador mais velho que conversou algo comigo. Os demais não se dirigiram a mim. O que dirigia falava em seu idioma com o colega sentado ao lado e ria espalhafatosamente. Às vezes ajeitava o ar-condicionado e blasfemava perante a insolên-

cia de antigos veículos locais que tardavam alguns instantes para lhe dar passagem. Chegávamos à capital, e o motorista me perguntou onde eu desceria. Como sempre costumo fazer em casos de completa ausência de informação, disse que ia ao centro. “Mas Cartum tem centro? Onde é o centro de Cartum?” – perguntava e ria pro comparsa, que emendou: “Cartum é isso!” – e apontou casebres de comércio popular à margem da estrada. Eles, de fato, moravam há muitos meses na cidade, mas nunca haviam saído da Alemanha. Viviam num bairro nobre nos arredores urbanos, onde chegavam possantes pela auto-estrada que liga ao bairro nobre das embaixadas. Jamais tiveram a curiosidade sequer de conhecer o encontro do Nilo Azul com o Nilo Branco a formar o grande Nilo, debaixo de uma antiga ponte de ferro vermelha e em meio a arrozais, vista muito recomendável aos fins-detarde; e nem mesmo os modernos edifícios-hotéis de 40 pisos, que reúnem interessados internacionais no petróleo sudanês, a cerca de cinco quadras do centro caótico da verdadeira Cartum – que não só existe, mas tem um comércio labiríntico e generalizado, que inicia em pequeninas lojas enfileiradas, continua pelas calçadas e avança mesmo às ruas de terra, onde, no fim de tar-

de, disputam espaço camelôs, pedestres, carros, micro-ônibus – tudo harmonicamente ao som dos cantos das mesquitas – e ao aroma das pizzas de raízes verdes com molho de frango e legumes. E como já não se pode contar muito – em épocas de tecnologias e dinamismo devoradores de tempo – corro apenas a ressaltar a beleza deste povo nilótico, que assim como seus irmãos egípcios tem o nariz afilado e reto, como se diz do de Cleópatra, que conquistou Roma com seu exemplar – com a diferença de que o povo do Egito é moreno, e os sudaneses, bem negros. Creio que vi inclusive a própria encarnação muçulmana da legendária rainha egípcia, a sair de uma agência bancária, em véus displicentes dourados e um justo vestido prata que apagou mesmo a manhã ensolarada. Tinha cílios longos intermináveis e uma boca desenhada com cuidado, em vermelho. Mas esta imagem não pude contrabandear aos conterrâneos, pois estávamos numa rua principal e asfaltada do centro da Capital policiada deste país misterioso e de regime duro, onde é proibido fotografar sem autorização. E por lá dizem que as leis são poucas e claras. Yuri Martins Fontes é correspondente do Brasil de Fato e Editor do Jornal A Palavra Latina]


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internacional

Maio de 68: a perda da virgindade ESTADOS UNIDOS O ano em que, impulsionados por protestos contra a Guerra do Vietnã, Panteras Negras, hippies e estudantes escancararam a decadência do “sonho americano” Memélia Moreira de Orlando (EUA) AH!...1968! Qualquer estadunidense com mais de 55 anos, republicano ou democrata, negro ou anglo-saxônico, liberal ou direitista, indiferente ou não aos acontecimentos políticos, pára por um momento e ouve as notícias daquele que foi o ano em que os Estados Unidos perderam sua virgindade. De heróis do mundo livre depois do desembarque da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, poucos mais de 20 anos antes, quando foram fundamentais para a vitória dos países que se opunham ao nazismo, eles passaram a ser os matadores de camponeses pobres num distante país do Sudeste Asiático. E a sociedade estadunidense, que até então se julgava a defensora máxima das liberdades democráticas e acreditava religiosamente que o bom cidadão deve, acima de tudo, servir à pátria, passou a questionar suas instituições. As primeiras notícias do terror do Vietnã liquidaram os resquícios de inocência. E eles ainda nem sabiam dos horrores de My Lai. Os precursores de 1968 foram, sem dúvida, os hippies. Mesmo com a bandeira de “paz e amor”, foram eles os responsáveis pela primeira grande manifestação contra a Guerra do Vietnã – a chamada “Marcha do Pentágono”, que reuniu quase 100 mil jovens e marcou o primeiro confronto entre estudantes e forças militares. Ainda que não tenham havido registros de mortes, centenas de jovens, carregando nas mãos e nos cabelos apenas flores, ficaram feridos. A marcha aconteceu em novembro de 1967, anunciando de costa a costa que 1968 não seria um ano igual aos outros.

O ano não começou exatamente no dia 1º de janeiro nos Estados Unidos. Em guerra contra o Vietnã desde 1964, foi no dia 30 de janeiro de 1968 que o maior Exército do mundo começou a perder a guerra contra um povo que até então era majoritariamente camponês E finalmente chega 1968! Mas o ano não começou exatamente no dia 1º de janeiro nos Estados Unidos. Em guerra contra o Vietnã desde 1964, foi no dia 30 de janeiro de 1968 que o maior Exército do mundo começou a perder a guerra contra um povo que até então era majoritariamente camponês. Naquele dia, quando os vietnamitas comemoravam seu Ano Novo lunar (Ano Tet), os guerrilheiros, sob o comando do general Giap, um dos maiores estrategistas do século 20, ocuparam 36 cidades sul-vietanmitas (a região Sul do país era aliada dos estadunidenses) e, ousadia das ousadias, ocuparam também a embaixada dos Estados Unidos em Saigon. Trinta e três mil guerrilheiros morreram, mas o comandante das tropas dos Estados Unidos, general Westmoreland, foi destituído. Começava naquele dia a vitória dos vietminh (vietcong é o pejorativo usado pelos estadunidenses contra os guerrilheiros), e de seu líder máximo, Ho Chi Min, que evitou ver seu país dividido em

dois, tal como aconteceu com a Coréia, no início dos anos de 1950. O episódio passou à história sob o título de “A ofensiva do Tet”.

My Lai Em 1968, Cassius Clay, várias vezes campeão de boxe, ainda não se chamava Muhammed Ali, e no dia 4 de março, já integrado à onda de protestos contra a guerra e à busca da identidade negra que agitava os Estados Unidos, perde seu cinturão de ouro. Tudo por causa do Vietnã. Cassius Clay, ao contrário de tantas celebridades dos anos de 1940 que se engajaram nas Forças Armadas estadunidenses da Segunda Guerra Mundial, recusou a carta de convocação para a guerra do Sudeste Asiático. Doze dias depois, o capitão William Calley, da 11ª Brigada de Infantaria, comandante da “Companhia Charley”, invade uma pequena aldeia chamada My Lai. O dia mal amanhecera. Os homens tinham saído para trabalhar nos campos de arroz. Na aldeia, ficaram apenas os velhos, as mulheres e as crianças. As mulheres, de todas as idades, foram torturadas e estupradas, em seguida, mortas. Naquela manhã, 504 civis foram assassinados. O povo estadunidense só veio saber desse fato um ano depois e passou a exigir julgamento para os soldados da “Companhia Charley”. O capitão Calley foi condenado à prisão perpétua e, dois dias depois do julgamento, anistiado pelo então presidente Richard Nixon, que transformou a prisão em pena alternativa de três anos. Mesmo em fogo baixo, o caldeirão começava a esquentar. Os negros, discriminados, hostilizados, caçados como feras, já não aceitavam mais o tratamento que recebiam da sociedade branca. E exigiam respeito. Exigiam, principalmente, seus direitos civis. O líder pacifista desse movimento era um pastor protestante, Martin Luther King Junior. Seu pacifismo não o favoreceu. E, 19 dias depois do massacre de My Lai, Luther King foi assassinado na cidade de Memphis, no Tennesse. Era a gota que faltava para impulsionar um outro movimento negro que fora criado em 1966, na cidade de Oakland, Califórnia e não tinha nada de pacifista. Com a morte de Martin Luther King, o Partido Pantera Negra para Auto-Defesa (Black Panter Party of Self-Defense, no original), ou simplesmente, Panteras Negras, se transforma na expressão máxima das reivindicações dos negros dos Estados Unidos. Eles pregavam abertamente a luta armada contra as instituições do país e chegaram a confrontos armados em Nova York, Chicago – onde foi preso o líder Huey Newton, acusado pelo assassinato de um policial –, e algumas cidades da Califórnia, notadamente em Los Angeles. Muitos de seus líderes foram presos e assassinados. Bela, culta... e negra Bela, com seus cabelos que demonstravam o protesto, porque não eram alisados, e sim mantidos naturalmente crespos; culta, com seu profundo conhecimento de História e Filosofia; altiva, com seu braço esquerdo levantado e a mão dobrada sobre o punho, símbolo dos “Panteras”. A face mais conhecida dos Panteras Negras foi a ativista negra, e hoje professora de Filosofia, Angela Ivonne Davis ou, simplesmente, Angela Davis. Perseguida, ela chegou a integrar a lista dos dez fugitivos mais procurados pelo FBI, e sua prisão, decretada pelo Estado da Califórnia, ocorreu depois de uma verdadeira caçada humana. Presa já nos anos de 1970, Ange-

Com a morte de Martin Luther King, o Partido Pantera Negra para Auto-Defesa, ou simplesmente, Panteras Negras, se transforma na expressão máxima das reivindicações dos negros dos Estados Unidos. Eles pregavam abertamente a luta armada contra as instituições do país e chegaram a confrontos armados la Davis fez o governo dos Estados Unidos amargar protestos de intelectuais de todo o mundo ocidental pedindo pela sua liberdade. O julgamento da líder negra durou 18 meses e ela foi considerada inocente de todas as acusações (a pior delas era “atentar contra o Estado”). De sua prisão, Angela se transformou em musa de duas das mais famosas bandas de rock and roll dos anos 60: pelo lado dos Beatles, John Lennon, em parceria com Yoko Ono, escreveu “Angela”, e pelos Rolling Stones, ela foi homenageada com a música “Sweet Black Angel”. Dos Panteras Negras, ainda continuam na militância a própria Angela Davis, que por duas vezes foi candidata à vice presidente dos Estados Unidos, na chapa de Gues Hall, presidente do Partido Comunista Americano, e Mumia Abu-Jamal, jornalista, que foi condenado à morte no início dos anos de 1980 por ter supostamente assassinado um policial. No dia 27 de março passado, Abu-Jamal teve a pena de morte transformada em prisão perpétua, ao contrário do capitão William Calley, que, condenado à prisão perpétua pelo massacre de My Lai, foi perdoado pela morte de 504 pessoas absolutamente indefesas.

As batalhas dos campi Maio ainda nem chegara quando os campi universitários explodiram. Na Universidade de Columbia, em Nova York, vizinha do explosivo Harlem, o bairro negro, numa demonstração de agressividade interna até então desconhecida pela sociedade estadunidense, os estudantes, muitos deles da classe média alta, se manifestam. Eles protestavam contra a guerra que já matara muitos de seus colegas. A polícia foi chamada e deu-se a primeira batalha que, em muitos momentos, foi comandada pelos veteranos da Segunda Guerra Mundial, totalmente contrários à “aventura do Vietnã”, como passaram a chamar a guerra. Da Universidade de Columbia, foi um passo para Berke-

ley, uma das mais conceituadas universidades estadunidenses, e também a mais rebelde. De Harvard, os protestos vinham em forma de grandes artigos nos principais jornais do país, mas as batalhas nos gramados universitários se estenderam, e os estudantes, que já eram vistos com suspeitas porque muitos deles engrossaram o movimento hippie, passaram a ser considerados a grande ameaça, principalmente porque surgiu o movimento de deserção. E o Canadá passou a ser a rota principal dos desertores, que depois buscaram outros caminhos, embrenhando-se pelo Nepal, Índia e os Andes.

“Billary” e Bush Entre os desertores, um deles se tornou famoso. Chama-se William. Ele fumou (mas não tragou) maconha, enquanto sua namorada, hippie explícita, saia indiana e sandália rasteira, abandonava a casa dos pais para viver numa comunidade. Os dois, freqüentando o mesmo campus universitário, correram da polícia, ficaram com olhos vermelhos com a bomba de gás lacrimogêneo, tudo para protestar contra a guerra. Mais tarde, já nos anos de 1990, William, que já se tornara Bill, mesmo sem guerra declarada, despejou 10 mil toneladas de bombas sobre o Iraque. Sua namorada, hoje esposa, pré-candidata à presidência dos Estados Unidos, prometeu, há uma semana, que, se o Irã olhar de cara feia para Israel, ela vai “liquidar” aquele país. Bill e Hillary Clinton, ou apenas “Billary”, não guardam sequer o espectro de 1968, quando militavam por um mundo melhor. Outro que fugiu do Vietnã, embora fosse plenamente favorável à guerra, não tragou ou sequer fumou maconha, gosta mesmo é de um destilado e usou os poderes de “papai” para escapar do recrutamento. Também virou presidente e, 40 anos depois de ter visto os protestos contra a guerra do Vietnã, não sabe como escapar da guerra que ele

próprio começou quando, há cinco anos, invadiu o Iraque. Paletó, gravata, cabelos cortados à moda militar, quando ao seu redor os jovens andavam cabeludos, George W. Bush não participou de nenhum dos movimentos que marcaram sua geração. E hoje engole em seco 62% de rejeição do povo que o elegeu. As férias de verão começaram, como manda o calendário, em junho. As universidades viveram então uma pequena trégua. Mas, dois dias depois de iniciadas as férias, uma outra notícia sacudiu os Estados Unidos. No dia 7 de junho de 1968, quando disputava as eleições primárias da Califórnia pelo Partido Democrata, Robert Kennedy sofre um atentado e morre dois dias depois. Ele cumpria o estigma da família Kennedy, que já perdera seu mais legendário representante, o presidente Kennedy. E os estudantes então voltaram à carga. Dessa vez, o campo de batalha escolhido não foi a universidade, mas sim as ruas da cidade de Chicago. Enquanto os Democratas, já refeitos da perda de mais um Kennedy – candidato que estava disparado nas intenções de voto da corrida presidencial – escolhiam outro candidato, os estudantes iniciaram uma marcha que parecia pacífica no começo, mas foi se tornando agressiva à medida que se aproximava do local da convenção. Era mais um protesto contra a guerra e, principalmente contra o partido que começara a guerra. Mais exatamente contra Lyndon Johnson, sucessor de John Kennedy e principal responsável pelo início das hostilidades dos Estados Unidos contra o Vietnã, que terminou com um saldo de 1 milhão de vietnamitas mortos, contra pouco mais de 50 mil estadunidenses. O prefeito de Chicago não titubeou: botou a polícia na rua e Chicago, lembrando os áureos tempos de Al Capone, se transformou num palco de guerra, com saldo de 500 feridos e um morto.

Paz, amor e muito ácido Mas todas as explosões não foram suficientes para alterar alguns programas típicos dos Estados Unidos. Hollywood, por exemplo, mesmo com o mundo de cabeça para baixo, manteve a cerimônia de entrega do Oscar. E para a apresentação do show, o convidado foi o veterano Bob Hope, ator sempre disposto a animar os soldados dos Estados Unidos em qualquer campo de guerra.

Coincidênia ou não, naquele ano, No calor da noite (In the Heat of the Night) foi escolhido o melhor filme. E o prêmio para o melhor filme estrangeiro foi para Trens estreitamente vigiados, de um país que se chamava Tchecoslováquia. Hollywood, apesar do engajamento de muitos de seus atores e diretores nos protestos contra a guerra, ignorou completamente o filme Ice, de Robert Kramer. Proibido em todo o território estadunidense, o filme fala de uma guerra hipotética e impopular dos Estados Unidos contra o México (clara analogia ao Vietnã), durante a qual, internamente, enfrentava grupos guerrilheiros (numa alusão aos Panteras Negras). O filme se tornou marginal e, até mesmo na França, país conhecido por acolher movimentos libertários, Ice ficou em cartaz por duas semanas e depois desapareceu para sempre. Mas 1968 não foi só protesto e perda de inocência. Os mesmos jovens que se autodenominavam “Flower Children” (Filhos da Flor), que pregavam paz, volta à vida simples do campo e mais tarde passaram a ser conhecidos pelo título de hippies, decidiram também experimentar outras “viagens” além dos caminhos da marijuana. Animados por um professor da Califórnia, Timothy Leary, eles passaram a usar o ácido lisérgico, que, entre outros efeitos, causa distorção dos sentidos e confusão mental. O LSD, descoberto casualmente pelo químico Albert Hoffmann (que morreu dia 30 de abril passado, aos 102 anos) foi a droga estadunidense de 1968. Além de ser conhecida como a droga dos hippies, o LSD embalou os bombardeios de napalm no Vietnã. O uso do ácido lisérgico entre os soldados era estimulado até pelos comandantes que ainda hoje juram que não conheciam bem os efeitos dessa droga. A música também conheceu sons até então inimagináveis com Pink Floyd e, principalmente, Jimmy Hendrix e Janis Joplin. Janis, texana que começou a carreira no Salão Avalon, templo do rock dos anos 60, terminou morrendo sob efeito do LSD, final semelhante ao de Jimmy Hendrix. Representantes máximos dos protestos da contracultura, eles não sobreviveram aos anos de 1970.

Entre os desertores, um deles se tornou famoso. Chama-se William. Ele fumou (mas não tragou) maconha, enquanto sua namorada, hippie explícita, saia indiana e sandália rasteira, abandonava a casa dos pais para viver numa comunidade. Nos anos de 1990, William, que já se tornara Bill, mesmo sem guerra declarada, despejou 10 mil toneladas de bombas sobre o Iraque E então, 1968 acabou. Exatamente no dia 5 de novembro. Naquele dia, Richard Nixon, candidato republicano que já perdera várias indicações para ser candidato oficial à presidência e que, durante a campanha, prometera “trazer os meninos de volta para casa” – ou seja, bater em retirada da guerra do Vietnã –, foi eleito presidente dos EUA. Cumpriu a promessa, mas não sem deixar sua marca no Sudeste Asiático, do qual fora obrigado a sair porque o maior potencial bélico do mundo perdera a guerra contra uns pobres camponeses de olhos amendoados.


12 de 15 a 21 de maio de 2008

cultura Acervo Idart-Centro Cultural São Paulo

Retrato do cronista quando jovem LIVRO Durante os dois meses que antecederam o golpe militar, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri escreveu textos diários para o Última Hora; histórias traziam pela primeira vez personagens do povo para um jornal de grande circulação Reprodução

NO DIA 31 de março de 1964, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri participava de um debate com alunos do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) quando um estudante entrou na sala gritando. Os militares haviam dado o golpe. Além de desmantelar a esquerda no país, a derrubada de Jango fez com que Guarnieri, militante do Partido Comunista (PCB), buscasse refúgio temporário na Bolívia, interrompendo as apresentações da peça O Filho do Cão e a publicação das crônicas diárias que escrevia para o jornal Última Hora de São Paulo. Publicada em 1º de abril de 1964, a crônica Um Pai contava a história de um estudante que voltava doído após levar uma surra da polícia durante uma manifestação. A coincidência histórica permaneceria esquecida não fosse o trabalho do jornalista Worney Almeida de Souza. Durante uma pesquisa sobre a tira em quadrinhos Gatinha Paulista, de José Delbó, publicadas no UH Revista, suplemento de cultura do Última Hora de São Paulo, Worney deparou-se com as crônicas de Guarnieri e duas coisas despertaram seu interesse: o desconhecimento desses textos e o período em que eles foram escritos. “A família sabia da existência dessas crônicas, mas não tinham o material em mãos”, conta Worney. “Elas foram reproduzidas a partir da coleção do Arquivo do Estado de São Paulo, onde a pesquisa foi realizada”, afirma. Desse acaso nasce Crônicas 1964, compilação que apresenta para um novo público uma parte pouco conhecida da obra de um dos maiores nomes do teatro, cinema e televisão do país.

Privilegiado No início de 1964, Jorge da Cunha Lima, então diretor do Última Hora, de São Paulo, convidou Guarnieri para escrever crônicas diárias destinadas à página 2 do caderno UH Revista. A iniciativa fazia parte dos planos de Samuel Wainer, que buscava para seu jornal um formato editorial que o tornasse a “publicação mais representativa da inteligência paulista”, segundo o próprio Cunha Lima. Para compor o quadro de colaboradores do novo caderno, que era novidade na época, também foram con-

Guarnieri mostrava a luta de classes pelo olhar do trabalhador. Ele não discute muito a moral, mas mostra a realidade das pessoas Em conversa reproduzida no livro, o próprio Guarnieri relembra a motivação para escrever para o Última Hora. Para ele, “a luta popular, como ela se colocava e da forma que estava acontecendo, tinha muito de humano, na forma de mostrar os dramas. Eu situava a maioria das crônicas na cidade de São Paulo, falava da Praça Clóvis, da Praça da Sé, do bairro do Jabaquara...”

Worney lembra que, em 64, Guarnieri era um nome conhecido do público. “Ele já havia feito Eles não usam Black-Tie, Gimba (ambas em 1958) e A Semente (1961), que foi proibida por contar a história da formação de uma célula do Partido Comunista”, conta. “Mas ele não fazia distinção entre as crônicas e as peças, por exemplo. Tudo era instrumento de militância. Ele era uma figura pública, que usava sua criatividade, como autor ou ator de teatro, para esse fim”, recorda.

O olhar do trabalhador Serviço

“O teatro, para ele, foi uma forma de militância que repercutiu até mais do que a militância partidária”, avalia Worney. “Ele é o primeiro a mostrar os trabalhadores urbanos em uma peça teatral profissional. No começo do século, isso havia sido feito pelos anarquistas, mas profissionalmente ele é o primeiro. Não dá nem para imaginar o impacto causado em 1958, nos anos JK, alguém falando sobre trabalhador e greve”, compara. O momento vivido pelo país, ou pelo menos a intensidade com que Guarnieri o sentia e interpretava, era refletido diretamente em seu trabalho. O contato com as lideranças das Ligas Camponesas no começo dos anos de 1960, quando conheceu (Francisco) Julião, lhe deu a idéia de levar ao teatro o trabalhador do campo, o que resultou na peça O Filho do Cão, que ele en-

1964 por Guarnieri Em janeiro de 2006, mesmo abatido por problemas de saúde, Guarnieri concordou em receber Worney para conversar sobre o período em que escrevera as crônicas. No livro, Worney reproduz os principais temas abordados, sendo que alguns são reproduzidos a seguir:

O processo de produção das crônicas “Era uma loucura! Eu escrevia todo dia, em cinco minutos, e um rapaz vinha retirar o texto para levar para a redação; por isso tive pouco contato com o Otávio, o ilustrador da coluna, mas a gente se divertia.” A criação das personagens “Criar as personagens era um sentimento de solidariedade com a vida, com as crianças e sua condição de sobrevivência. Na verdade, eu trabalhei sempre com eles no teatro, com outros nomes, mas com o mesmo universo, eram crônicas da vida operária.” O espírito político da época “Nesse período, a consciência da garotada era muito grande. O espírito era: ‘queremos fazer a revolução’, mas como fazer é que era complicado, não era tão simples. O pessoal camponês era meio apartadão, com a influência das Ligas Camponesas. Já o movimento estudantil era nossa casa, o pessoal tinha uma energia muito grande, eram muito ardorosos.”

Crônicas 1964 Gianfrancesco Guarnieri 207 págs. Xamã Editora - 2007 www.xamaeditora.com.br Worney Almeida de Souza é jornalista, produtor editorial e pesquisador especializado na área de histórias em quadrinhos.

cena no período em que escrevia as crônicas. E esse cuidado em dar voz à classe trabalhadora é, segundo Worney, uma das principais características de suas histórias. “Em comparação com outros cronistas, como Nelson Rodrigues, por exemplo, que buscava descortinar a hipocrisia burguesa, Guarnieri mostrava a luta de classes pelo olhar do trabalhador. Ele não discute muito a moral, mas mostra a realidade das pessoas”, pondera.

Nunca aos domingos Foram 46 crônicas escritas – desde a primeira, Primeiro Filho, de 4 de fevereiro, até a última, Um Pai, de 1º de abril de 1964 – e publicadas de segunda-feira à sábado, já que o jornal não saía aos domingos. Nesse período, o engraxate Cem Gramas, a vó Zuleica, a noiva Julieta, o jovem Zorro e o homemsanduíche Casimiro tiveram sua voz reproduzida na grande imprensa. Segundo o prefácio de Jorge da Cunha Lima, idealizador da colaboração para o Última Hora, eram “crônicas apaixonadas de um jovem comunista engajado no sonho da revolução” e “incomodavam uns e encantavam outros”. Fato é que, depois do golpe, o Última Hora voltaria a circular uma semana depois, no dia 8 de abril. No lugar dos trabalhadores de Guarnieri, o mesmo espaço estampava a coluna “Folhinha de Miss Luzes”, escrita por Milena Melli, e que trazia notícias sociais.

Trechos das crônicas “Cedinho, passou o Zé, pastinha debaixo do braço, a caminho da metalúrgica, cruzando com dois barbas ralas que acabavam de deixar o bar, o mesmo bar, de todos os dias. Zé fechou a cara e apertou o passo. O mais alto cantarolava uma canção medieval francesa, enquanto o outro, mais baixo, misturava versos de Rimbaud com citações bíblicas. Trôpegos, quase que esbarram em Zé. O mais alto fez uma mesura e o mais baixo, atirando-se de joelhos, bradou heróico: – Proletários do mundo inteiro, uni-vos! A responsta de Zé foi censurável, mas, na situação, perfeitamente aceitável. E eles calaram e meditaram e reconheceram que a coisa estava preta, pois Zé estava parado de punhos cerrados, esperando reação. E não reagiram e dormiram até de tardezinha e voltaram para o bar, o mesmo bar, com o mesmo tédio e os mesmos problemas de existência para falar um pouquinho mais sobre a revolução.” No Ritmo Manso, página 77, publicada no dia 8 de fevereiro de 1964. “E, lentamente, insinuante comentou tudo o que sabia a seu respeito: família, parentes, vida particular... Por sorte era homem de princípios e nada fizera que pudesse indispôlo com a moral vigente. Por fim, ela começou a falar dos negócios. Sabia tudo. Terrivelmente bem informada. E sorrindo, revelou saber cifra por cifra sua conta bancária e o andamento dos demais negócios. E diante de um homem perple-

xo ela falou sobre a concorrência pública que ele vencera de modo não muito aceitável, razoável negociata que envolvia gente de gabarito. E sempre sorrindo Joana o abraçou, levoulhe o copo aos lábios, e fê-lo beber contra a vontade.” Joana da Caridade, página 133, publicada no dia 3 de março de 1964. “Ficaram alguns instantes em silêncio. O pai voltou ao assunto: – E a polícia espancou vocês? – Como é fácil de constatar, meu pai... – Mas escuta aqui, de que lado você estava? – Ora, pai, tá me achando com cara de gorila? – Não, não... Mas é que nunca se sabe, não é? – Essa me ofendeu! – Deixa disso... Se você parasse um pouco mais em casa a gente poderia conversar um pouco mais... – Olhe que está me dando vontade mesmo... – Vocês precisam garantir a palavra do homem, de qualquer jeito! – Boa, velho... Claro que vamos conseguir... – Agora fica quieto e fecha os olhos que sua mãe vem aí... Não houve nada, ouviu? Um carro esbarrou em você no Largo de São Francisco. Nada de grave, tá? – Tá, companheiro. - Fechou os olhos e conseguiu dormir. Um Pai, página 202, última crônica publicada, no dia 1º de abril de 1964, dia do golpe.

Guarnieri em cena de Arena Conta Tiradentes

Carreira foi marcada por intensa atividade e visão humanista Ator e dramaturgo começou a escrever aos 14 anos para jornal carioca da Juventude Comunista da Redação Nascido em Milão, na Itália, em 6 de agosto de 1934, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri veio para o Rio de Janeiro em 1936 com a família, fugindo do fascismo. Sendo o pai maestro e a mãe concertista de harpa, teve como uma de suas primeiras influências artísticas a ópera, assim como o cinema neo-realista italiano. Aos 14 anos já colaborava com o jornal Novos Rumos, da Juventude Comunista e, aos 15, assumia a presidência da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários e a vice-presidência da União Nacional dos Estudantes Secundários. Em 1953, muda-se para São Paulo, assumindo a secretariageral da União Paulista dos Estudantes Secundaristas. Em 1955, com Oduvaldo Vianna Filho, funda o Teatro Paulista do Estudante (TPE), que realizou trabalhos em parceria com o Teatro de Arena até se fundirem, em 1956. Em 1958, o grupo apresenta

seu texto de estréia, Eles não usam Black-Tie, um de seus trabalhos mais conhecidos, ganhando uma versão cinematográfica em 1981. Ainda no teatro, escreveu ou participou de produções importantes, como Gimba (1959), A Semente (1961), O Filho do Cão (1964), Arena Conta Zumbi (1965), Marta Saré (1968), Don Juan (1970), Castro Alves Pede Passagem (1971), Um Grito Parado no Ar (1973), Ponto de Partida (1976), Pegue e Não Pague (1981), Pegando Fogo... Lá Fora (1988), Ardente Paciência (1990) e Anjo na Contramão (2001). No cinema, atuou como ator em uma série de filmes, como A Hora e a Vez de Augusto Matraga; Gaijin, Caminhos da Liberdade; Asa Branca, Beijo 2.348/72 e O Quatrilho. Na TV, seja como ator ou autor, esteve envolvido com minisséries e novelas, como Mulheres de Areia, Carga Pesada, Rainha da Sucata, Anos Rebeldes, Terra Nostra e Belíssima, entre outras. Faleceu em 22 de julho de 2006, aos 71 anos, de insuficiência renal crônica. (AG)

O traço boêmio de Otávio

Otávio

Aldo Gama da Redação

vidados Ignácio de Loyola, Sérgio Porto e Jô Soares, entre outros. Militante do Partido Comunista (PCB), Guarnieri viu ali a oportunidade de atingir um público maior, ocupar o espaço para expor idéias. Era a oportunidade de usar o jornal, como um instrumento privilegiado, para o debate político. “Ele veio para São Paulo por conta da militância”, observa Worney. “Era do movimento estudantil do Rio e foi colocado aqui na União Paulista dos Estudantes Secundaristas, onde foi nomeado secretário-geral”, acrescenta.

Ilustrador das crônicas de Guarnieri não se considerava jornalista; “usava jornal como desculpa” da Redação Otávio Câmara de Oliveira, ou simplesmente Otávio, era o responsável por ilustrar as crônicas de Gianfrancesco Guarnieri no UH Revista. Segundo Worney, ele “não se considerava um jornalista, mas um boêmio que usava o jornal como desculpa”. Além do Última Hora, colaborou com uma série de publicações, como Gazeta Esportiva, Folha da Tarde e Placar. Através de seu traço marcante, caracterizado pelo uso do bico de pena, personagens como Zebrinha, Doris e Cachorréu contracenaram com amigos

Ilustração para Primeiro Filho

pessoais. “Ele sempre incuía os amigos nas charges, como o cantor Agostinho dos Santos, que sempre entrava nos desenhos”, destaca Worney. Otávio nunca se interessou em reunir seu trabalho em um livro, mas seu filho, Otávio Novaes, seguiu seus passos como desenhista e hoje colabora com a Gazeta Mercantil. (AG)


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