Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 275
São Paulo, de 5 a 11 de junho de 2008
R$ 2,00 www.brasildefato.com.br
Reprodução
Renato Stockler
CONTRACULTURA
BOLÍVIA No mesmo período do referendo sobre o estatuto autonômico do Beni, indígenas lançam filme de ficção sobre atuação dos grupos econômicos locais. Pág. 10 Cortador de cana da região de Ribeirão Preto (SP)
Por mais etanol, Lula libera exploração dos cortadores
Woodstock e maio de 68 são retratos do movimento O presidente Luiz Inácio Lula da A mostra Vida Louca, Vida Intensa – Uma viagem pela Contracultura expõe um movimento social que não se reduziu ao chavão “sexo, drogas e rock n’ roll”, mas que contestou os valores morais de uma época, introduzindo a política no cotidiano das pessoas. Até hoje, Paris e Woodstock refletem o questionamento de um modo de vida repressivo. Pág. 12
Silva, mais uma vez, minimizou as precárias condições de trabalho dos cortadores de cana para defender os agrocombustíveis. Às vésperas da reunião da ONU, em Roma, o petista comparou o esforço dos canavieiros com o dos mineradores de carvão europeus, historicamente submetidos à superexploração para fornecer energia ao desenvolvimento
do capitalismo industrial. Dessa maneira, Lula ignora as mortes por esforço de ao menos 21 pessoas nos canaviais paulistas, entre 2004 e 2007. Além disso, reforça um modelo que subordina novas extensões de terra e mais trabalhadores ao mercado global de combustíveis e alimentos, setor totalmente controlado pelas transnacionais. Págs. 2, 3 e Edição Especial
Para reduzir jornada, 1 mi subscrevem abaixo-assinado As maiores centrais sindicais do país realizaram atos de rua, paralisações e panfletagens, no dia 28 de maio, reivindicando a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, sem diminuição de salário. Analistas apontam que a campanha pode significar um marco no sindicalismo, pois estaria deixando de lutar pela manutenção de direitos para vislumbrar novas conquistas. As centrais entregaram mais de 1 milhão de assinaturas na Câmara e pretendem pressionar o parlamento para votar um projeto de lei que reduz a jornada. Pág. 8
Verena Glass
MPF pede punição pelas mortes da ditadura O Ministério Público Federal deu mais um passo para responsabilizar militares por seqüestros, torturas e homicídios cometidos durante a ditadura militar. Uma ação civil pública, movida pelo órgão em maio, exige que dois ex-comandantes do Doi-Codi, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, sejam julgados pelas 64 mortes registradas no órgão repressor. Em entrevista ao Brasil de Fato, um dos proponentes da ação, o procurador Marlon Weichert, afirma que a Lei de Anistia não se aplica a agentes do Estado. “Essa interpretação é forjada, artificial. Essa Lei de 1979 foi apenas para quem agiu contra o Estado, os chamados crimes conexos e crimes com motivação política”, defende. Pág. 7
O que a mídia não mostrou do encontro dos
Kayapó
Kayapó reunidos em Altamira, sudoeste do Pará, para discutir o projeto da hidrelétrica de Belo Monte, no encontro Xingu Vivo para Sempre
Indígenas prometem defender suas terras Os participantes do encontro Xingu Vivo para Sempre reuniram-se em Altamira (PA) para discutir os impactos sociais e ambientais da construção da hidrelétrica de Belo Monte. A imprensa apenas noticiou um incidente ocorrido entre índios Kayapó e um engenheiro da Eletrobrás. O documento final do evento mostrou ao país que índios, ribeirinhos e pequenos agricultores da região vão lutar por seus direitos e seus territórios. Em outra frente, Dionito de Souza, do Conselho Indígena de Roraima, defende o direito de permanecer na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. “Está ocorrendo apenas a suspensão da retirada dos não-índios, mas a terra ali é toda dos indígenas”. Págs. 4 e 5
Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Missão no Haiti não cumpriu os seus objetivos Em visita ao Haiti, o presidente Lula disse que as tropas da ONU lideradas pelo Brasil percorreram apenas metade do caminho; no “segundo tempo”, a atuação seria diferente. Mas, segundo analistas, a missão não tem colaborado para atender aos objetivos propostos: garantir o cumprimento dos direitos humanos, manter a institucionalidade e conformar uma força de segurança pública. Pág. 9
Há quatro anos no Haiti, tropas de paz da ONU sofrem acusações de abuso sexual infantil
ESPECIAL Nesta edição, encarte traz alternativas à crise mundial dos alimentos
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editorial
A CONFERÊNCIA da FAO para discutir as causas da crise alimentar foi palco de muitas meias verdades, manipulação informativa e de uma overdose de hipocrisia por parte dos países imperialistas, que controlam a produção e o comércio mundial de alimentos. E seus preços. Não há dúvida de que estamos diante de um quadro muito grave; há uma alta generalizada no preço dos alimentos (ver edição especial). Os órgãos de informação/ desinformação capitalistas saíram a explicar que existiria uma “crise mundial de alimentos”, como disse o New York Times, ou um “tsunami silencioso”, como escreveu a revista inglesa The Economist. Mas, o que eles não explicam – escondem a verdade deliberadamente – é por que essa alta está ocorrendo. Como sabemos, a elevação dos preços dos alimentos é provocada por variados fatores, entre eles a criminosa especulação dos oligopólios . Eles não falam, por exemplo, que a maior parte dos cidadãos famintos do mundo não obtém seus alimentos no mercado mundial e que a maior parte dos que dependem do mercado global não são pobres ou vulneráveis à fome. Os países mais profundamente afogados na pobreza dependem muito pouco das importações de alimentos, em parte porque a eles
debate
Alimentos, manipulação informativa e hipocrisia faltam as divisas estrangeiras para poder comprá-los. Outros dirigentes dos países capitalistas, que impõem barreiras protecionistas e subsídios à sua produção, ou que pagam a seus produtores para que não produzam muito alimento, são responsáveis pela destruição de toneladas de leite, carne, cebola e vinho na Europa, querem que o mundo acredite nas suas “explicações” para a alta de preços. Dizem que é por causa da participação cada vez maior da China nesse mercado. No entanto, a China produz a maior parte dos alimentos que consome, sendo grande importadora apenas de soja. Ignora-se, por exemplo, que o preço do arroz explodiu porque grandes produtores asiáticos de arroz – Vietnã, Índia, Cambodja, Indonésia e China –, reduziram as exportações desse produto, temendo efeitos inflacionários, provocando uma escassez completamente artificial, pois, na verdade, a produção de arroz tem aumentado em relação ao consumo. No caso da fome na África, vale lembrar que a maioria de seus habitantes mora e trabalha em comuni-
dades rurais empobrecidas e cada vez recebem menos apoio das entidades internacionais, como Banco Mundial e outros, que vêm reduzindo drasticamente seus empréstimos à agricultura. Nesse sentido, tem razão Jean Ziegler, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, que defende que o FMI mude suas políticas sobre os subsídios agrícolas, deixando de apoiar apenas programas destinados à redução da dívida, mas que subsidie a agricultura em regiões onde se garanta a sobrevivência das populações locais. O discurso desses senhores, insinuando que países como o Brasil ou a Argentina têm responsabilidade nessa alta de preços dos alimentos, é pura hipocrisia. Eles reduzem os investimentos, pagam para que os produtores não produzam, devastam suas florestas e recursos naturais e a culpa é do Brasil? Assim como há um falso debate em torno do etanol. Essa questão vem carimbada pelos “argumentos” atirados pelos que controlam de modo oligopólico a produção de sementes, o comércio internacional de alimen-
crônica
Ana Paula Santos Souza e Jean Pierre Leroy
Xingu vivo para sempre, vida e cidadania para seus povos Gama sobre foto de Verena Glass
NO GINÁSIO de Altamira, as arquibancadas estavam lotadas de estudantes e pessoas pertencentes a movimentos e organizações da cidade, do Xingu, da Transamazônica e de outras regiões e estados da Amazônia brasileira. A quadra era ocupada por 600 índios, com pinturas e adornos de cerimônia, que representavam os 14 povos da bacia do Xingu. Lideranças dos povos do Tapajós e o Tocantins desfilavam seus cantos e suas danças e participavam dos debates. Os membros da mesa falariam de Belo Monte. Ao lado do engenheiro Paulo Fernando, estávamos nós dois, uma coordenando, outro esperando para intervir a seguir, quando desabou sobre ele a fúria contida dos Kayapó. Há consenso de que não queriam matar, mas a passagem do esfregar do terçado, em 1989, para a violência deste dia, qualquer que fossem as motivações da pessoa que feriu o engenheiro, manifestava uma escalada considerável no simbolismo que expressa a profunda insatisfação do povo Kayapó. A condenação a esse ato foi unânime, mas também os presentes que convivem com os Kayapó sublinharam a profunda situação de abandono que eles sofrem. O atendimento à saúde e à educação que recebem são uma calamidade. Beneficiam-se de projetos do governo federal, mas a falta de acompanhamento faz com que esse dinheiro seja desperdiçado sem que lhes traga benefícios efetivos. Porém, para além de uma situação específica, o episódio de Altamira traz uma grave advertência. A Constituição de 1988 e a Convenção da OIT, assinada pelo Brasil, resgataram uma dívida histórica do país com seus povos originários. Através do reconhecimento dos seus direitos, eles ascenderam, em tese, à cidadania. Em tese, pois a cidadania efetiva lhes está sendo negada, não só e nem tanto porque são maltratados pelo Estado, mas porque continuam sendo invisíveis. A Amazônia continua sendo vista como “uma terra sem homens”, como dizia o general Médici. Não se mandam mais para ela “homens sem terra”, mas sim a moto-serra, as chamas e as máquinas do “desenvolvimento”. E os seus habitantes, povos indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores, são ignorados, quando não perseguidos, expulsos e assassinados se estiverem no caminho. A vontade do Estado de construir uma ou várias hidroelétricas no rio Xingu poderia ser uma oportunidade para os sucessivos governos mostrarem que levam a sério o que foi assinado – o que exige a consulta aos povos indígenas antes de
“O II Encontro dos povos do Xingu mostrou que os habitantes tradicionais da bacia se consideram desde já atingidos e não querem barragens no seu rio” qualquer empreendimento que possa afetá-los. Do projeto de Kararaô ao de Belo Monte, passaram-se 20 anos, e empresas estatais e o governo continuam não enxergando os povos indígenas e a população do Xingu. Nem foram feitos os Estudos e relatórios de Impacto Ambiental (EIA/Rima) que vão dizer se pode ou não ser construída a obra . Mas o projeto já é apresentado como fato consumado, ao arrepio da lei.
“Dividir para reinar” Fizemos um estudo sobre como o empreendedor público levou em conta a população ao longo dessas duas décadas, e como esta, através das suas organizações, avaliou a sua participação. Constata-se que o que chega à população é propaganda que desinforma, pois somente apresenta o projeto do dia de maneira ufanista. Nas raríssimas vezes em que houve informação, esta chegou sob a forma de shows pirotécnicos, mapas, gráficos e comentários eminentemente técnicos destinados a mostrar a grandeza do projeto e a imensa sabedoria dos técnicos, e assim humilhar os assistentes e
tos, a produção e distribuição de fertilizantes e dos combustíveis fósseis (petróleo) e o transporte marítimo internacional, com seus fretes também elevados, em boa medida, pela indecorosa especulação. Não basta o investimento em novas fontes de energia, se quem permanece com os meios de produção e com os lucros é o agronegócio e as empresas transnacionais, assim como não soluciona o problema se a agroenergia continuar mantendo um sistema ambientalmente insustentável e socialmente inviável. O governo brasileiro pode esbravejar com razão ao mundo que o Brasil tem uma matriz energética formada por 47% de energia renovável e que está aumentando simultaneamente a sua produção de alimentos, hoje recordista. Mas falta demonstrar que este modelo de produção, em última instância, é dominado exatamente por aqueles poderosos atores que ele criticou em seu discurso na FAO. As sementes transgênicas avançam pelo Brasil, que produz biodiesel da soja, setor controlado por um cartel de transnacionais.
impedir que façam perguntas. Em aplicação ao ditado “dividir para reinar”, realizam-se reuniões setoriais fechadas em que a cooptação é mais fácil. Grupos indígenas já sucumbiram a esse canto da sereia, causando ainda mais desgosto a seus parentes. Quem são os atingidos potenciais? O empreendedor fala tranqüilamente dos bilhões necessários para construir uma obra de viabilidade econômica duvidosa. Se a vazão do rio durante o verão já é reduzida, o que será dentro de dez anos, com o ritmo de devastação na sua bacia? Quando se trata da população atingida, os números são minimizados, para economizar os poucos milhões que lhe serão destinados. O II Encontro dos povos do Xingu mostrou que os habitantes tradicionais da bacia se consideram desde já atingidos e não querem barragens no seu rio. Eles sentem e interpretam o Xingu, seus afluentes e a floresta da bacia, como um único ser vivo que lhes dá a vida. Disse um ribeirinho: “Considero o rio Xingu como meu pai e minha mãe. Sem o Xingu, o que será de nós?”. Apesar do infeliz acidente, o magnífico e emocionante Encontro dos Povos do Xingu convida quem pensou que pode se fazer qualquer coisa na Amazônia respeitando povos, seu rio e suas matas milenares, sem os quais o Brasil de amanhã e o mundo serão mais pobres. Ana Paula Santos Souza é coordenadora da Fundação Viver, Produzir e Preservar. Jean Pierre Leroy é assessor da Fase – Solidariedade e Educação.
O melhor e mais convincente argumento que o governo Lula teria para mostrar ao mundo era uma produção conjunta de alimentos e de agrocombustível ancorada na expansão vigorosa da agricultura familiar. Para isso, é urgente, gritantemente urgente – antes que todas as terras brasileiras sejam desnacionalizadas de maneira devastadora –, a criação de uma Empresa Público-Estatal de Bioenergia. Essa “Petrobras Verde” seria o instrumento capaz de assegurar a soberania energética renovável, mas, sobretudo, de alavancar um novo modo de produção, assentado na policultura, não na monocultura, na combinação de alimentos com energia, com zoneamento ecológico, com incorporação de milhões e milhões de desempregados ao trabalho produtivo, opção infinitamente superior às bolsas-família, por ser sustentável. Ou seja, o melhor exemplo de Lula deveria ser: milhões de famílias produzindo diversidade de alimentos, sem dependência do petróleo que polui drasticamente o ambiente, sem submeter-se à monocultura e com uma empresa estatal regulamentando toda a produção de energia renovável, inclusive levando, com o poder do Estado, a legislação trabalhista a ter plena vigência no campo.
Luiz Ricardo Leitão
Fukuyama entre Paris & Bruzundangas A GRANDE corrente da globalização neoliberal, que se espraiou com maior vigor pelos sete mares após a queda do muro de Berlim, não representou apenas a hegemonia de uma nova etapa de acumulação capitalista, ou seja, de uma nova ordem político-econômica transnacional. Ela também consagrou uma terrível ofensiva ideológica do imperialismo, visando a naturalizar a ‘supremacia’ da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concebidos pelo ser humano ao longo da história e, em especial, do socialismo científico, que ao longo dos séculos 19 e 20 se tornaria o grande adversário do liberalismo e do capitalismo em distintas regiões do globo. A expressão maior dessa investida foi, sem dúvida, o estadunidense Francis Fukuyama, que, em seu artigo “O Fim da História” (1989), e na badalada obra O fim da História e o último homem (1992), elegeu a democracia burguesa como o ponto máximo da evolução da humanidade. Com a “derrota” do socialismo, disse o fanfarrão, o regime fundado “no direito de livre atividade e troca econômica, baseado na propriedade privada e nos mercados” teria triunfado sobre os ‘totalitarismos de direita e esquerda’. Para ele, os países que ainda professavam o socialismo, como Cuba, China e Vietnã, representavam o atraso e o conservadorismo. Em oposição à proposta capitalista, haveria só resíduos de nacionalismos, incapazes de significar um projeto para o mundo, e o fundamentalismo islâmico, confinado ao Oriente e a países periféricos. Assim, com o fiasco socialista, Fukuyama concluía que a democracia liberal se firmara como a solução final do homem, significando, nesse sentido, o “fim da história” para a nossa espécie. Mais de quinze anos depois da arrogante previsão, poucos se lembram do sinistro profeta. A ebulição vermelha no planeta azul tampouco arrefeceu. Na França, pátria da Revolução Burguesa (“liberdade, igualdade, fraternidade”), os porta-vozes do fim da luta de classes devem ter ficado perplexos com as centenas de milhares de jovens e trabalhadores que tomaram as ruas para barrar a proposta de elevação em doze meses (de 40 para 41 anos) do tempo exigido para a aposentadoria. Apesar de incensado pela imprensa, Monsieur Sarkozy, o novo galã-mandatário da terra de Asterix, teve de retirar sua cínica proposta. No Brasil, não obstante os inúmeros focos de insatisfação e revolta popular, a mídia se esforça para amortecer os agudos conflitos sociais que latejam no país, mas suas refrações despontam de forma inusitada na vida pública nacional...
Ocupações, marchas, espetáculos artísticos: tudo que possa surtir efeito em prol de uma causa passou a ser utilizado pelos velhos militantes do futuro É óbvio que o colapso do chamado “socialismo real” no Leste europeu representou um duro golpe para os trabalhadores daqui e de acolá. No entanto, como diria um ditado espanhol, “no hay mal que por bien no venga”: os reveses também nos ensinam bastante e, se o mundo girou um pouco mais na era pós-moderna de consumo hipertrofiado, o movimento social também aprendeu a incorporar à sua estratégia de luta novas táticas e inusitadas formas de ação cujo êxito, o mais das vezes, surpreende o mais cético dos militantes. Ocupações, marchas, espetáculos artísticos: tudo que possa surtir efeito em prol de uma causa passou a ser utilizado pelos velhos militantes do futuro. Foi assim, aliás, que os alunos da UnB, frustrados pela omissão dos docentes, lograram destituir seu Reitor, aquele da magnífica lixeira ‘inteligente’ (!) de R$ 1.000,00. Parafraseando, pois, um certo compositor, ouso dizer que toda maneira de lutar vale a pena – ainda mais em Bruzundangas, onde os milionários não cansam de erigir seus templos de consumo, enquanto a turba ignara trata de sobreviver com as sobras da grande festa. Embora a palavra luxo seja quase um termo proibido no jargão da burguesia nativa, este é o ícone que seduz o imaginário dos novos-ricos e de inúmeras tribos do capitalismo periférico, como os transformistas que se exibiam na Parada Gay de São Paulo e reclamavam do evento porque “perdeu o glamour e ficou popular demais”... Os pobres e famintos destas plagas, como sempre, continuam sem ‘ibope’ – mas eles tendem cada vez mais a rebelar-se e a tornar-se, conforme previra um certo Manifesto do século XIX, um espectro a rondar – e transformar – velhos e novos mundos. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Po pular).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil Ricardo Stuckert/PR
Rosa Malmstron
A situação precária a que os cortadores da cana são submetidos parece ser ignorada pelo presidente Lula, que recentemente comparou o trabalho do corte da cana ao de um balconista
Expansão da cana aumenta a exploração CAMPO Enquanto Lula defende a produção de etanol, crescem os casos de trabalhadores submetidos a condições desumanas Tatiana Merlino da Redação NO DIA 19 de maio, o trabalhador rural Mariano Baader, de 53 anos, morreu em um canavial da Usina Alvorada, em Santo Anastácio (SP). O óbito, que pode ter ocorrido em decorrência do excesso de trabalho, está sendo investigado pelo Ministério Público do Trabalho. Assim, o caso pode engrossar as estatísticas de trabalhadores do setor que faleceram em decorrência do excesso de esforço físico. De acordo com dados da Pastoral do Migrante, entre 2004 e 2007, pelo menos 21 cortadores de cana morreram em São Paulo por esse motivo. O último registro de morte por excesso de esforço físico foi o de Edilson de Andrade, de 28 anos, residente na re-
gião de Ribeirão Preto (SP), em setembro de 2007.
Defesa do etanol Porém, a situação precária a que os cortadores de cana são submetidos parece ser ignorada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Recentemente, ele comparou o corte da cana ao trabalho de um balconista, “que fica atendendo a gente atrás do balcãozinho das seis da manhã à meia-noite”. Dias antes do início da cúpula das Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) sobre segurança alimentar, que aconteceu entre os dias 2 e 5, em Roma (Itália), Lula também comparou o corte da cana com a indústria européia da mineração do começo da era industrial: “Não é mais duro do que o trabalho em uma mina de carvão, que foi a base do
desenvolvimento da Europa. Pegue um facãozinho e passe um dia cortando cana e desça numa mina a noventa metros de profundidade para explodir dinamite, para você ver o que é melhor”. O etanol tem sido um dos expoentes da política externa do governo Lula, que tem defendido em foros internacionais a ampliação do uso de agrocombustível feito de cana como uma das formas de amenizar os efeitos do aquecimento global.
Memória fraca De acordo com a professora Maria Aparecida de Moraes Silva, do departamento de sociologia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) de Araraquara, a fala do presidente é “mais uma das infelizes frases pronunciadas por essa pessoa, que deveria ter mais respeito pelos cortadores de cana”.
Para ela, a afirmação é “insustentável”. “Digo isso com pesar, porque ele, que nasceu numa região canavieira – a zona da mata de Pernambuco – deve ter perdido a memória e não se lembra mais da situação em que viviam os trabalhadores da cana na região onde nasceu”, afirma. Segundo a professora, a exploração da força de trabalho dos cortadores vem aumentando conforme se verifica a expansão da área canavieira para a produção de etanol. “Junto com a expansão da cana, aumenta-se a média de produtividade exigida aos trabalhadores, que são obrigados a ir além dos seus limites físicos”. Maria Aparecida explica que, enquanto na década de 1980 os cortadores eram obrigados a cortar por dia uma média de 5 a 8 toneladas de cana, na década de 1990, aumentou para 8 a 10, e hoje está entre 11 e 12.
Mortes por desgaste De acordo com estudo realizado – durante dois anos com um grupo de trabalhadores no corte de cana da região de Piracicaba (SP) –, pelos pesquisadores Rodolfo Vilela, do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest), e Erivelton Fontana de Laat, da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), o setor canavieiro tem alto índice de acidentes e até mortes por desgaste no trabalho do corte manual da cana. A pequisa aponta que, em 10 minutos, o trabalhador derruba 400 quilos de cana, desfere 131 golpes de podão, faz 138 flexões de coluna, num ciclo médio de 5,6 segundos cada ação. O trabalho é realizado em temperaturas acima de 27ºC e com muita fuligem no ar. Ao final do dia, o cortador terá ingerido uma média de 7,8 litros de água e desferido 3.792 golpes.
Trabalho escravo Apesar do etanol ser o centro da agenda do presidente em suas viagens internacionais, o número de trabalhadores escravizados no setor sucroalcooleiro é alarmante. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 52% das pessoas libertadas de condição análoga à escravidão pelo Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, foram de usinas desse setor: 3.131 do total de 5.974. As condições de trabalho na indústria da cana também foram criticadas recentemente pela Anistia Internacional e pelo relator especial da ONU sobre o Direito ao Alimento, Olivier De Schutter. A Anistia destacou em relatório a libertação de trabalhadores que estavam em situações “análogas à escravidão” em plantações no Pará.
Rosa Malmstron
VIOLÊNCIA
Capital do agronegócio tem mais presos que trabalhadores rurais Vendida pelos ruralistas como símbolo da modernidade no campo, Ribeirão Preto se distancia da prosperidade social com o avanço do agronegócio Dafne Melo da Redação “Antes a gente vivia no trabalho forçado, tinha que sair de casa 4 horas da manhã para chegar às 9 da noite. Até no domingo a gente tinha que trabalhar para ter uma produção maior. O desgaste físico era triplicado”. As palavras do ex-cortador de cana-de-açúcar Marinho Luz de Oliveira, 45 anos, evidenciam que a alta no preço dos alimentos não é o único problema trazido pela ação do agronegócio. Problemas sociais e ambientais também entram nessa lista. Oliveira vive na região de Ribeirão Preto, interior paulista. A cidade, chamada de a “Califórnia brasileira”, ou ainda, de “a capital do agronegócio”, é um bom exemplo de que o agronegócio não traz – ao contrário do que costumam afirmar – desenvolvimento e emprego. Desde a década de 1980, a região passou a receber grandes investimentos para o plantio e processamento da cana, tornandose uma referência mundial do setor sucroalcooleiro. A produção cresceu 65% entre 1983 e 2006, passando de 15 milhões de toneladas para quase 25 milhões, se-
Quanto
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pessoas é a população carcerária de Ribeirão Preto, quase o dobro de toda população rural gundo o Instituto de Economia Agrícola (IEA). Já a área plantada, nesse mesmo período, cresceu cerca de 50%, de 200 mil para 300 mil hectares. Desigualdade social Esse avanço do agronegócio na região se deu com o aumento da exploração da mão-de-obra e sem distribuição de renda. O número de favelas, por exemplo, registrou aumento de 31 (18 mil moradores) para 34 favelas (20 mil habitantes), de 2005 para 2006. Outro dado é que a população carcerária soma 3.813 pessoas, segundo a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SAP), quase o dobro de toda população rural, que fica em torno de 2 mil habitantes. Aparentemente uma contradição para uma cidade que se apóia na atividade agrícola. Entretanto, o número revela que a monocultura dificulta a permanência dos trabalhadores no campo. (Com informações da Agência Brasil de Fato)
Brigada Militar destrói acampamento sem-terra Policiais humilharam os trabalhadores, apreendendo suas ferramentas e jogando o seu alimento no chão Plantação de cana em Ribeirão Preto
Agrocombustível pode expulsar lavradores de suas terras Relatório da ONU alerta que elevação da demanda por etanol pode elevar a concentração fundiária da Redação Além de ser responsável pelo aumento da exploração do trabalho dos cortadores de cana, o etanol também tem sido alvo de críticas no exterior, porque a sua expansão a nível global colabora para a alta no preço dos alimentos e do desmatamento do Brasil. De acordo com um estudo intitulado Alimentando a exclusão? O ‘boom’ dos biocombustíveis e o acesso dos pobres à terra, realizado pela FAO (agência da ONU para agricultura e alimentos) e pelo Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a expansão dos agrocombustíveis agrava a crise alimentar global e representa uma grave ameaça a milhões de lavradores, que podem ser expulsos de suas terras com a demanda por cultivos intensivos para fins energéticos. Segundo o relatório, divulgado na véspera do início da cúpula da ONU sobre alimentos, “grupos sociais específicos, como pastores, cultivadores nômades e mulheres, estão especialmente suscetíveis a
sofrer a exclusão da terra, provocada pelo crescente valor das terras, enquanto as pessoas que já são sem-terra devem ver as barreiras para o acesso crescerem ainda mais”.
Debate O documento recomenda a adoção de novos padrões para garantir o direito à terra para pessoas pobres, incluindo esquemas de certificação de agrocombustíveis que garantam que eles sejam produzidos sem danos ao meio ambiente ou abusos aos direitos da população local. Em abril, o relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, também criticou a produção em massa de agrocombustíveis, que, segundo ele, representam um “crime contra a humanidade” por seu impacto nos preços mundiais dos alimentos. Durante a abertura da cúpula, o presidente Lula defendeu o uso dos agrocombustíveis frente aos que culpam essa fonte de energia pela alta do preço dos alimentos, e responsabilizou o petróleo e o protecionismo pela atual crise alimentar. (TM)
Paula Cassandra de Porto Alegre (RS ) Na tarde do dia 3, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul invadiu e destruiu o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), próximo à rodovia RS040, em Viamão (RS). Cerca de 60 famílias organizavam um novo acampamento no local, que, segundo o MST, foi cedido por um apoiador. No entanto, o subcomandante da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes, afirma que a força policial foi chamada pelo proprietário da área, mas não soube informar o seu nome. “Isso é conversa do MST, não tem papel nenhum aqui, o proprietário está aqui, não cedeu nada, registrou na polícia, não tem nada disso aí. Isso é uma invasão, o MST sempre diz isso. Então não tem também, já tiramos todos eles daqui e estamos fazendo termo circunstancial contra eles, e tá encerrado o assunto”, afirmou. O integrante do MST, Gilson Rodrigo de Almeida, mostra espanto com a ação da Brigada Militar, que chegou na área cedida às famílias que trabalhavam temporariamente nas lavouras de arroz, na região de Viamão, sem ordem judicial. Gilson conta que os brigadianos revistaram, iden-
tificaram e despejaram as famílias que estavam no acampamento. Ele afirma que a Brigada Militar humilhou os trabalhadores, apreendendo suas ferramentas, como foices e facões, e jogando o seu alimento no chão. Para Gilson, o comportamento da Brigada Militar é resultado de um governo que não está preocupado em resolver as deficiências que o trabalhador do campo encontra. “Nem a governadora Yeda [Crusius, PSDB], nem o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] apresentam alternativas para os sem-terra. Por isso a polícia age com tanta truculência”, diz. Gilson chega a comparar o governo de Yeda com a ditadura militar. Ele afirma que a Brigada Militar chegou no acampamento avançando contra os trabalhadores. “Enquanto o Estado estiver dessa maneira, as ações da Brigada estão sendo piores do que a ditadura militar. Não é só contra o movimento sem-terra e os movimentos do campo, é contra todos os trabalhadores, tanto urbano, quanto do campo”, analisa. Para denunciar a violência da Brigada Militar, integrantes do MST bloquearam durante a tarde do dia 3 a BR-386, na altura de Nova Santa Rita (RS). (Agência Chasque)
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“Nós não vamos mais sair”, promete líder indígena da Raposa Serra do Sol PALAVRA DE ÍNDIO Macuxi Dionito de Souza denuncia a violência de latifundiários e reclama da incompetência do governo Roosewelt Pinheiro/ABr
Jonathan Constantino e Vanessa Ramos de São Paulo (SP) AFIRMAÇÕES COMO “as terras indígenas representam um risco à soberania nacional”, “é muita terra para pouco índio” ou, ainda, “as terras indígenas tornam inviável o desenvolvimento do Estado de Roraima!” são, na verdade, falácias. Essa foi a tônica dos seminários “A questão indígena no Brasil a partir da Serra do Sol – Roraima”, realizado no dia 29 de maio, e “Raposa Serra do Sol: um desafio à teologia”, ocorrido um dia depois, também em São Paulo (SP). O primeiro evento contou com a presença de Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), de dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, Lúcia Helena Rangel, antropóloga da PUC-SP, e do padre Lírio Girardi, do Instituto Missões Consolata. Com exceção de dom Odilo, os demais participaram do seminário do dia 30, que teve ainda a participação do teólogo Paulo Suess. Na tarde do dia 30, após o evento, o macuxi Dionito de Souza concedeu ao Brasil de Fato a entrevista que segue. Brasil de Fato – O que aconteceu exatamente no dia 5 de maio na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS)? Dionito José de Souza – A base da Polícia Federal (PF) se encontrava lá na Vila Surumu, em Pacaraima (RR), e também na reserva São Marcos. O pessoal da aldeia saiu cedo para começar a fazer as casas, porque nós entendemos que está ocorrendo apenas a suspensão da retirada dos não-índios, mas a terra ali é toda dos indígenas. Então, fomos para lá, porque não tinha revogado nada de decreto. E quando todos chegaram para fazer esse trabalho foram surpreendidos pelos pistoleiros do Paulo César Quartiero (presidente da Associação dos Rizicultores de Roraima e prefeito de Pacaraima-DEM), que atiraram nas pessoas, com bombas caseiras e tiros de espingarda. Não sei se a polícia estava passando por ali ou se estava na base deles, a uns 6 quilômetros. O que aconteceu foi que a polícia chegou depois e socorreu as pessoas atingidas (ao todo, dez indígenas foram baleados).
Entendemos que está ocorrendo apenas a suspensão da retirada dos não-índios, mas a terra ali é toda dos indígenas Fale da PF e dos homens do Paulo César. A PF sabia que os homens do Paulo César andavam armados antes do que ocorreu no dia 5 de maio. Nossos próprios parentes viam os pistoleiros armados. Andavam com espingarda nas costas; na assembléia-geral dos tuxauas (caciques); eles soltaram uma bomba caseira. Mas a PF não conseguiu ter autorização do juiz para fazer o desarmamento. Eles queriam flagrar, mas quando os capangas viam a polícia, não mostravam as armas, ficavam escondidos. Foi quando aconteceu isso, no dia 5 de maio. Segundo a polícia, quando ela chegou lá, eles foram embora. Se fosse um indígena, eles tinham ido atrás. Do local do incidente, há livre acesso de carro até a fazenda. Poderiam pegar os sujeitos, desarmá-los e prendê-los. Mas, “não, vamos esperar a lei, a justiça que manda”, “eu não posso fazer isso”, alegam. Mas aconteceu tudo isso, não flagraram nem nada, esperando a decisão da justiça. Depois prenderam, mas já estão todos soltos (Quartiero foi para a cadeia no dia 6 e libertado no dia 15), então não adiantou nada. Não adianta ter uma lei e uma polícia aqui que não reage. Assim não funciona. E como vocês conseguiram registrar o ocorrido? A polícia já estava na área, não no momento exato, mas nós temos câmeras fotográficas e filmadoras, e existe entre nós quem já esteja aprendendo a fazer esses registros (filhos, primos e irmãos). Esses materiais nós continuamos tendo, compramos câmeras e também ganhamos em prêmios e no projeto da PDPI (Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas, do Ministério do Meio Ambiente). E agora nós estamos registrando diariamente os acontecimentos e o nosso trabalho. Temos nossas assembléias, encontros, reuniões de mulheres e de professores e a gente grava tudo. Possuímos cinco câmeras que são digitais e, nesse momento, pelo menos, seis meninos aprendendo a trabalhar com isso. Claro que ainda não são profissionais, estão começando. A extensão da Raposa Serra do Sol é de 1,67 milhões de
casa. Estamos aí para ajudar até na fiscalização, na vigilância da nossa terra, porque, como nós sabemos, no passado, foram os indígenas quem seguraram Roraima como território brasileiro. E a respeito dos argumentos que dizem que a Raposa Serra do Sol afetará a economia de Roraima? Pois é, nós temos um Estado que é muito rico em terra. Se você plantar, todas as terras ali são produtivas, e nessa parte de economia do Estado, não vamos interferir, não vamos atrasá-lo e nem empobrecê-lo. Agora, o que está acontecendo é que ele [invasor] está perdendo tempo, Já poderia estar se instalando e montando uma equipe de trabalho para dar continuidade em sua produção de arroz. Quais as outras agressões que vocês têm sofrido na TIRSS? Falando nisso, foram soterrados os lagos que dão muito peixe ali. Lá é um “baixão” muito bom e, no inverno, no tempo de chuva, ele enche de água e forma lagos que dão muito peixe. Só que destruíram as matas ciliares, ficou ruim, não tem peixe, os lagos foram todos soterrados. Há as comunidades do Javali e toda essa região é banhada pelos rios Cotingo e Surumu, e existem várias comunidades ao longo, mesmo perto desses rios, que sofrem na pesca, sofrem nos igarapés, pois quando jogam agrotóxicos, as crianças ficam tudo com dermatite. E ainda vem o arrozeiro e joga veneno com avião por cima das aldeias, sacaneando mesmo.
Dionito conta que fazendeiro chegou a distribuir bombons envenenados para indígenas
hectares, determinados em 1993 e homologados em 2005. Quando os arrozeiros iniciaram as ofensivas contra a população indígena da TIRSS com agressões e outras manifestações de violência? A partir de 2002. Primeiramente, quando você se baseia na lei, acaba, como eu vi numa entrevista hoje, falando a verdade e seguindo a verdade. Só que eu acho que essas coisas aconteceram porque toda a conversa do governo, da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da própria Polícia Federal (PF) pedia “vamos nos manter calmos”, enquanto as coisas estavam crescendo lá dentro. E os arrozeiros foram trabalhando. Ninguém entendia, pois o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) não fazia nada em relação à degradação do meio ambiente. Todos esgotaram sua paciência, pois eles [arrozeiros] foram crescendo com suas criações, e nós aguardando com paciência. Mas eles cresceram porque a justiça falhou. Então, quando começamos a reagir, há dois ou três anos, após terem se passado o primeiro ano em que os arrozeiros deveriam sair voluntariamente, de acordo com o decreto da homologação, iniciaram-se as reações por parte deles. Como vocês começaram a reivindicação pela retirada dos arrozeiros? Quando eu cheguei na coordenação do CIR, comecei a dizer o seguinte: “Olha, ou nós temos lei, e essa lei funciona, ou então agora nós teremos que fazer alguma coisa para que eles respeitem a lei!”. Então, começamos a trabalhar aos poucos, conversando com as comunidades e nos mobilizando. Começamos a cobrar, indo para Brasília, e o governo federal determinou que eles (arrozeiros) deveriam se retirar. Agora, quando a polícia veio para retirá-los, teve a suspensão da operação. E eles continuam lá. O problema que vem acontecendo, essa violência, não é de agora, por causa da homologação, mas por causa das terras indígenas. Desde que entraram os invasores na TIRSS, vieram para matar os indígenas, seja com bombons envenenados, com bombas e outras formas. Nunca mais tivemos sossego. Então a violência sofrida por vocês não é de hoje? Não. No passado, nós tivemos problemas graves com um fazendeiro chamado Jair. Ele possuía mais de 75 km de terra e ocupava a TIRSS com a fazenda dele. Ele prendia muita gente, tocava fogo nas nossas casas e nós sofríamos com isso. O jagunço dele matava as pessoas. Mas ele saiu da Raposa Serra do Sol e já morreu. Depois, chegou o Paulo César, que tem dado continuidade a esse massacre aos povos indígenas. Então, não é de agora que sofremos com isso, pois, no passado, até a própria Funai ateava fogo nas casas de palha dos índios. Nós reagimos e começamos a trabalhar sério contra essas ações, denunciando, inclusive, internacionalmente. Eles [Funai] não gostavam, “porque vocês não denunciam para o go-
Nós reagimos e começamos a trabalhar sério contra essas ações, denunciando, inclusive, internacionalmente. Eles (Funai) não gostavam, “porque vocês não denunciam para o governo brasileiro?”, perguntavam verno brasileiro?”, perguntavam. Nós temos denúncias em vários lugares do Brasil, nas organizações indígenas que existem para tomar providências em relação a essas coisas que acontecem nas terras indígenas, mas como não eram ouvidas, nós denunciamos lá fora, na ONU [Organização das Nações Unidas], na OEA [Organização dos Estados Americanos], e eles ficaram com medo. O que a mídia deveria divulgar, verdadeiramente, para a população brasileira? O mais importante é reconhecer que há pessoas de má vontade ou que têm o plano de matar os índios. Isso é muito complicado aqui no Brasil. Por exemplo, você vê o Paulo César. Um cara que joga bombas, destrói as pontes, espalha mentira na mídia, leva pistoleiros e desafia a própria polícia, na cara dela, esculhamba. A polícia vê as bombas e não consegue prender, não consegue dominar uma pessoa. Quer dizer, onde está nossa justiça? Sobre essa questão da soberania, a mídia tem falado bastante sobre o argumento de que a demarcação em área contínua é um risco. Como você vê isso? Bom, não existe risco de soberania. Tem muitas terras indígenas registradas e homologadas em faixa de fronteira, por exemplo, a terra ianomâmi é logo aqui em São Marcos, no Amazonas. Não acaba o Brasil, não diminuiu o país. Continuou como terra brasileira e vai continuar assim. É terra indígena, com reconhecimento do governo federal. Essas terras são da União e a União somos nós. Além disso, a PF falou para mim que eles [arrozeiros] pretendiam decretar o Estado de Roraima autônomo. Aí sim eu vejo um risco para soberania nacional, aí sim vai chover de estrangeiros. Como seria garantida a segurança da fronteira? Nós somos “povo brasileiro” e não nos sentimos isolados ou que o país vá correr algum risco. A questão é que tem de se manter a ordem e, nesse caso, nós temos o exército, a polícia, nós temos a lei, a nossa Constituição Federal, temos um governo que tem que tomar conta. Não se pode dizer que a TIRSS representa um grande risco. Mas, se o exército não tem plano para isso, é claro que há um risco. Agora, é claro, tem que botar ordem na
E como você vê essas situações? São situações em que, além do sujeito usar e abusar, quer fazer mais. A gente não consegue conviver com uma coisa dessas, não aceita e temos que ter respeito à nossa Constituição. Se há uma lei dando garantia de defendermos os nossos costumes, os nossos direitos, acho que tem que ser defendido, não deixar que qualquer pessoa venha fazer coisas erradas ou desafiar uma lei, afrontar a todo nosso país. A mídia corporativa faz estardalhaços e tem divulgado que há grupos indígenas a favor dos arrozeiros e contra a demarcação em área contínua, que eles vão passar fome sem o arroz dos arrozeiros. É verdade? Bem, eu ainda não pensei como é que eu vou processar os mentirosos e as pessoas que ficam manipulando os indígenas a falar essas coisas, porque não existe nenhum indígena que, como os arrozeiros, tenha grandes estoques de arroz. Que possa dizer, por exemplo, “está aqui meu arroz, consegui através do invasor aqui, por isso que eu quero que eles fiquem”. Não tem isso. Eles são usados, comprados com churrasquinho, R$ 10... Não tem como dizer que os indígenas defendem os arrozeiros, eles são pagos, manipulados para falar isso e acabam dizendo com se fosse verdade. Depois que aconteceu o incidente do dia 5, quais são as expectativas da população indígena da Raposa Serra do Sol em relação à homologação? Vocês estão organizando alguma mobilização interna? Nossa mobilização existe desde que eles suspenderam a operação de retirada dos não-índios. Não parou mais. Nós estamos fazendo uma nova aldeia no lugar do incidente e colocamos o nome dela de “Dez Irmãos”. Eles vão continuar morando ali, fazendo a aldeia para ficar permanentemente. Nós temos chegado até com mil pessoas lá e revezamos. Uns vão embora e outros vêm, porque são 19 mil indígenas e, portanto, não tem como nos cansar. Estamos trabalhando nas roças, plantando nossas coisas nas aldeias, mas paramos e vamos dar apoio, em solidariedades aos que foram baleados. Existe todo esse movimento que nós estamos acompanhando e que vai ser acompanhado até o final, até o dia do julgamento que, sendo a favor ou não, nós não vamos mais sair.
Quem é Do povo macuxi, pertencente à aldeia Maturuca e residente da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Dionito José de Souza é coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ele já atuou como segundo tuxaua (semelhante a cacique), coordenador regional dos agentes de saúde, membro da Comissão Pós-Conferência Nacional dos Povos Indígenas, membro do Conselho do Distrito Sanitário Leste de Saúde e, atualmente, colabora também como agente de saúde.
de 5 a 11 de junho de 2008
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O que o Brasil não viu em Altamira BELO MONTE Mais de 2 mil pessoas se reuniram no Pará para discutir a hidrelétrica no encontro Xingu Vivo para Sempre. Um incidente entre índios Kayapó e um engenheiro da Eletrobrás foi amplamente noticiado pela imprensa; nada além disso
A imprensa Quinta-feira, 22 de maio. No Ginásio Poliesportivo de Altamira (PA), uma moça de terninho azul claro, muito alinhada, está sentada em uma cadeira de plástico ao pé da arquibancada; ao seu lado, um rapaz bonito, só de calção, o torso pintado de genipapo. Ela escova seus longos cabelos negros; ele, um índio da etnia gavião, observa com olhos brilhantes. Os dois conversam entre sorrisos. A moça é Cristiane Prado, repórter local da TV Liberal, retransmissora da TV Globo. Chegou antes de todo mundo, ainda no domingo, 18, ao ginásio. No mesmo local, de 19 a 23 de maio, aconteceu o encontro Xingu Vivo para Sempre, que reuniu mais de 2 mil indígenas, ribeirinhos, agricultores, estudantes e ambientalistas para discutir os projetos de aproveitamento hidrelétrico da Bacia do Xingu. Ficou até o último dia. Quando não estava gravando, Cristiane circulava entre os participantes, conversava e tirava foto com os índios. Infelizmente, não se sabe o que Cristiane achou do encontro. Depois de um primeiro relato, transmitido no dia 20, quando apresentou o evento, as demais reportagens que foram ao ar na TV Globo acabaram produzidas pelo colega de Belém, Roberto Paiva.
O que os caciques de diversos povos indígenas tentaram deixar claro em Altamira é que se consideram cidadãos brasileiros, com todos os direitos que lhes são garantidos pela Constituição Federal Assim como Paiva, praticamente nenhum jornalista da imprensa nacional, principalmente a escrita, esteve no encontro. O interesse cresceu apenas após o incidente entre os Kayapó e o engenheiro da Eletrobrás Paulo Resende, agredido pelos índios no final de sua fala. Os jornalistas queriam entrevistar a índia Tuíra com seu facão, símbolo da luta contra Belo Monte desde o memorável encontro de 1989 – que, à época, motivou a paralisação do projeto da hidrelétrica –, e se indignavam com o fato de que ela não fala português. Nos dias que se seguiram, pipocavam por todo o país matérias deploráveis. A Folha de São Paulo afirmou que a organização do encontro comprou 100 facões para armar os índios. Editoriais destilavam racismo e ignorâncias; autoridades, que talvez nem soubessem da ocorrência do encontro, proferiam suas opiniões indignadas. O Brasil viveu novamente um carnaval do mau jornalismo.
As crianças Enquanto a imprensa contou o que não viu, nós, os que estivemos no encontro de Altamira, vivemos uma experiência marcante. As crianças e os jovens das escolas locais, que diariamente lotaram o evento, pareciam extasiados. De manhã, quando os vários grupos indígenas traziam à quadra suas danças e seus cânticos, uma massa de meninas e meninos se levantava nas arquibancadas com aplausos, assobios e gritos que faziam estremecer o ginásio. Os índios acenavam, como estrelas do futebol em dia de jogo.
Os ribeirinhos Os índios foram o grande destaque do encontro, mas, na quinta-feira (22), quem entrou em cortejo na quadra do ginásio foi um grupo de ribeirinhos. À frente, seis homens carregavam nos ombros uma frágil canoa, e dentro dela, um senhor miudinho com um remo na mão e um menino magro com um copo de plástico levado à boca. Seguiam um grupo de homens e mulheres com ramalhetes de flores amarelas, cantando palavras de ordem com refrão “o Xingu é nosso”. A cena calou a platéia. Depois, estourou um estrondoso aplauso, puxado pelos índios. Homenagem aos caboclos que, sem leis específicas que os protejam, são as principais vítimas do projeto de Belo Monte. Cerca de 16 mil pessoas serão deslocadas, pela previsão inicial dos empreendedores. Sem o título da terra, sem área demarcada e sem direitos, poderão se dissolver nas enchentes do Xingu ou secar às margens dos 100 quilômetros do rio cujo acesso perderão em função do barramento. Os caciques “Perigo, perigo, a soberania nacional está ameaçada”, ecoaram os meios de comunicação empresariais. Ignoram que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece aos povos tribais em países independentes “o direito de assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida, seu desenvolvimento econômico e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”. O que os caciques de diversos povos indígenas tentaram deixar claro em Altamira é que se consideram cidadãos brasileiros com todos os direitos que lhes são
Guerreiras Kayapó no encontro Xingu Vivo para Sempre
Quanto
16 mil
pessoas serão atingidas pelo megaempreendimento da usina de Belo Monte garantidos pela Constituição Federal. Porém, se consideram também líderes de seus povos e zeladores do legado de seus ancestrais e do futuro de seus descendentes. Na quarta, 21, cerca de 50 caciques e guerreiros apresentaram ao juiz federal Antonio Carlos Campelo um documento com um veemente apelo. “Gostaríamos muito que a Justiça Federal seja sensível ao pedido das comunidades indígenas, pois não aceitamos a construção de barragens no nosso rio. (...) não vamos mais perder nenhuma parte da nossa terra, pois sabemos que estas construções de barragens nunca trouxeram e nunca irão trazer benefício algum para nossas comunidades”, diz o texto. E continua: “Caso os senhores não consigam parar essa obra, (...) entraremos até os canteiros de obras desses empreendimentos e vamos acabar de nosso modo. (...) morreremos defendendo as nossas vidas, nossos patrimônios e nossas terras. Dizemos a vocês ainda que haverá conflito entre o empreendedor e os povos indígenas, caso os senhores não parem com essas obras. Já estamos cansados de ouvir e não sermos ouvidos”. Nem declaração de guerra – como os jornais quiseram fazer parecer – nem desobediência civil. O que Campelo ouviu dos caciques foi um pedido de socorro. E prometeu levar o documento e os apelos ao presidente da República, ao vice-presidente e ao presidente do Tribunal Regional Federal.
Futuros O encontro Xingu Vivo para Sempre selou a união dos povos da Bacia do Xingu. O documento final do evento comunicou ao país que índios, ribeirinhos e pequenos agricultores da região vão lutar por seus direitos, seus territórios e suas formas de vida. Sobre o incidente com o engenheiro da Eletrobrás, o procurador Felício Pontes, do Ministério Público Federal no Pará, comentou: “há anos, o MPF vem alertando o governo federal de que a região vive um conflito latente, em função das irregularidades e do não cumprimento da obrigação constitucional do poder público de ouvir os indígenas no projeto da hidrelétrica de Belo Monte”. Em Altamira, a hidrelétrica tem posto, de um lado, comerciantes e fazendeiros e, de outro, movimentos sociais e a Igreja Católica, principal voz de defesa dos povos indígenas na região. Por sua participação no encontro, o bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Käutler, que já conta com proteção policial em função de ameaças de morte, foi acusado pela imprensa de ter armado e incitado os índios contra o engenheiro. No submundo da florescente pistolagem da região, corre solto que “represálias” estão “liberadas”, segundo relatos que chegaram aos organizadores do evento. O que aguarda a Bacia do Xingu agora? Uma repetição do crime contra Dorothy Stang, vitimando o bispo? Conflitos entre índios e empreiteiros, com possível (ou provável) derramamento de sangue? O que acontecerá daqui para frente será responsabilidade do governo. E também da imprensa, cuja cobertura do evento, na maioria dos casos, oscilou entre obtusa e mau-caráter.
Belo Monte, um “novo elefante branco” Estudos apontam que usina vai gerar apenas 20% de sua capacidade total; impactos sociais e ambientais para a região serão irreversíveis de Altamira (PA) Uma das obras prioritárias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a usina hidrelétrica de Belo Monte teve seu leilão marcado para 2009, sem que sua viabilidade tenha sido estudada ou comprovada. O projeto não tem licenciamento ambiental e os estudos de impactos iniciados estão sendo questionados na Justiça. Orçada pela Eletronorte em R$ 10,8 bilhões, a usina prevê uma transposição do rio Xingu na chamada Volta Grande, um pouco abaixo da cidade de Altamira – um trecho onde o curso do rio forma como que um meio laço –, desviando as águas para a parte central e aproveitando o declive geográfico para acionar as turbinas. Segundo um estudo da Conservation Strategy Fund, o orçamento não inclui os gastos com linhas de transmissão e a construção do porto fluvial e das eclusas. Também estariam fora os custos “indiretos” para a região, como os gerados pela perda nas atividades pesqueira, agropecuária e de turismo, perda da ictiofauna migratória, perda da qualidade da água e de seu aproveitamento para abastecimento da população local, indenizações etc. Outros estudos questionam a viabilidade econômica do projeto. Cálculos dos próprios empreendedores apontam que será possível uma utilização média de apenas 40% da capacidade instalada da hidrelétrica – e não a operação em plena potência, de 11,1 mil MW. O motivo é a variação da vazão do rio Xingu. O percentual pode ser menor. Simulações realizadas por um sistema desenvolvido pela Universidade
Impactos do projeto da hidrelétrica de Belo Monte - Inundação constante, hoje sazonal, dos igarapés Altamira e Ambé, que cortam a cidade de Altamira, e parte da área rural de Vitória do Xingu. - Redução da vazão da água à jusante do barramento do rio na Volta Grande do Xingu, secando o rio, interrompendo o transporte fluvial até o Rio Bacajá, único acesso para comunidades ribeirinhas e indígenas, impossibilitando a pesca, reduzindo o acesso à água potável e aumentando os focos de proliferação de doenças como malária, febre amarela e outras. - Remanejamento de cerca de 2 mil famílias que vivem hoje em condições precárias na periferia de Altamira, de 800 famílias da área rural de Vitória do Xingu e de 400 famílias ribeirinhas (mais de 16 mil pessoas). - Inundação permanente da maior parte das praias do Xingu na região. - Inchaço dos municípios da região com trabalhadores imigrantes em busca de emprego, falta de estrutura de atendimento social (moradia, saneamento, educação, saúde etc.) e posterior problema de desemprego massificado, com o final da fase de construção. - Alteração do regime do rio sobre os
meios biótico e socioeconômico, com redução do fluxo da água. - Ictiofauna: com a cheia permanente, árvores que servem de dieta para muitos peixes vão morrer com o afogamento das raízes, o que gera impacto sobre a fauna e, conseqüentemente, para todo o ciclo ecológico da área. Além disso, muitos peixes sincronizam a desova com a cheia e, portanto, na parte que vai ficar muito seca, é possível que haja diminuição de diversas espécies. Esses impactos deverão provocar uma busca por novas áreas de pesca comercial e ornamental, que provavelmente se estenderão pelo trecho a montante da cidade e poderão atingir o Médio/Alto Xingu e Iriri. - Comunidades indígenas: além dos Juruna da Terra Indígena Paquiçamba, localizados mais próximos à usina, a área de influência de Belo Monte, segundo definição da Eletronorte, envolve e deve impactar outros nove povos indígenas: os Assurini do Xingu, os Araweté, os Parakanã, os Kararaô, os Xikrin do Bacajá, os Arara, os Xipaia e os Kuruaia. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) inclui ainda vários povos Kayapó na região e mais de mil índios que vivem em Altamira.
Estadual de Campinas (Unicamp), o HydroSim, no entanto, resultaram em uma taxa de utilização inferior a 20%. Estudos independentes, feitos por especialistas que questionam a viabilidade econômica do projeto atual de Belo Monte, que não tem reservatório nem outras barragens rio acima para segurar a água, apontam para outro dado relevante: embora Belo Monte seja inviável sozinha, ela passaria a ser interessante com a construção de pelo menos uma usina rio acima: a UHE Altamira (antiga Babaquara). Nessa hipótese, um reservatório 15 vezes maior que o de Belo Monte (6.500 km2) seria construído, criando o terceiro maior lago artificial do mundo. Essa represa, sozinha, inundaria diretamente pelo menos seis terras indígenas, desalojaria centenas de famílias, “afogaria” milhares de hectares de florestas e geraria uma grande quantidade de gases de efeito estufa. Mesmo que o inventário do potencial hidrelétrico do Xingu aponte a construção de uma única barragem no rio (Belo Monte), estudos técnicos e econômicos afirmam que seria necessária a construção de pelo menos mais uma barragem rio acima (Altamira), para que a obra seja viável do ponto de vista financeiro. O receio, portanto, é que a construção de Belo Monte crie uma “crise planejada”: constrói-se a usina, investindo bilhões de reais, para depois “dar-se conta” de que ela gera muito menos energia do que o prometido; surge então a necessidade de “salvar” o investimento já feito e construir pelo menos mais uma usina rio acima. * Com informações do ISA e da Carta Maior
Verena Glass
Verena Glass de Altamira (PA)
Verena Glass
Nos corredores, onde estavam afixados cartazes e mapas sobre o projeto da hidrelétrica de Belo Monte, dezenas de pequenos altamirenses passavam horas anotando em seus cadernos. Munidos com suas máquinas fotográficas, paravam em paredões na frente das mesas de debate, atrapalhando a visão dos participantes, até que fossem enxotados pelos organizadores. Faziam fila diante de pequenos potes de genipapo para terem seus braços pintados pelas índias, do jeito dos guerreiros Kayapó. Certo fim de tarde, quando todos já tinham ido embora, Dona Fátima, que levava a filinha Julia, de seis anos, pela mão, encostou cansada do meu lado e comentou: “não consigo tirar ela daqui. Ela está fascinada. Nunca vi tanto amor”.
A cachoeira de Jericoá perderá grande volume de água
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São Paulo fora dos trilhos Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem
QUESTÃO URBANA A cidade em colapso é a pura expressão da sociedade em crise, o que se expressa em fatos como a pane dos trens Tiaraju Pablo D´Andrea UM ACONTECIMENTO recente expôs as veias abertas da desigualdade na cidade de São Paulo. No dia 21 de maio, um problema mecânico ocorrido num trem da linha Guaianazes-Brás bloqueou todo o sistema ferroviário na Zona Leste. Desesperados, milhares de passageiros que viajavam nas composições rumo ao trabalho desceram das mesmas, fazendo o trajeto dos trens a pé. A cena da multidão humana tomando os trilhos foi chocante, materializando, como poucas, a humilhação cotidiana a que é submetida a classe trabalhadora, moradora dos bairros pobres da cidade. No total, cerca de 10 mil pessoas fizeram a referida peregrinação. Expressão trágica e evidente da falta de investimentos em transporte público para as classes populares, o acontecimento foi simplesmente a contraface de um outro evento ocorrido na cidade alguns dias antes: a inauguração da ponte Estaiada, no dia 10 de maio. Para a referida inauguração, foram dedicados centenas de minutos nos telejornais, milhares de fotos na internet e muita badalação da mídia impressa. Para a peregrinação dos pobres, exatos quatro segundos no Jornal Nacional. Cabe ressaltar que a ponte tem como nome oficial Otávio Frias de Oliveira, um dos fundadores do Grupo Folha, e liga a marginal Pinheiros à avenida Roberto Marinho, falecido dono das organizações Globo, cuja sede foi valorizada pela construção da mesma ponte em questão, que hoje serve de pano de fundo ao telejornal diário SPTV. Como cereja do bolo da premiação simbólica, o túnel milionário que unirá a avenida Roberto Marinho à rodovia dos Imigrantes (que leva ao litoral) homenageará o jornal O Estado de S.Paulo. Lisonjeada com tais homenagens prestadas pelo poder público, fundamentalmente em sua face tucana, a imprensa corporativa não dá visibilidade às relações promíscuas existentes entre a direita no governo e a elite paulistana, principal beneficiada pela concepção de cidade exclusivista e segregadora desses dois grupos, que no fundo são a mesma coisa. Moradores de bairros nobres, grandes empresários do ramo imobiliário e políticos encrustados no aparato estatal fazem da edificação do urbano uma máquina de favorecimentos pessoais.
Público e/ou privado? Tomemos como exemplo a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), tema da principal matéria de capa da edição 273 do Brasil de Fato. Na reportagem, aponta-se a propina paga pela empresa francesa Alstom ao Governo do Estado para ser beneficiada em licitações públicas que envolvem a compra de equipamentos para os trens do Metrô. Pura promiscuidade entre o poder público e o capital internacional, o fato é realmente a ponta do iceberg do que escondem as relações entre a direita brasileira no aparato estatal e o capital privado nacional e internacional. Nesse ponto, o caso da Linha 4 do Metrô é vergonhoso e nos dá a dimensão das tramas existentes. Em primeiro plano, é no mínimo suspeito que a referida obra seja efetuada por cinco empreiteiras que, formando um consórcio, venceram a licitação. São elas a Norberto Odebrecht, a Andrade Gutierrez, a Queiroz Galvão, a Camargo Corrêa e a OAS. Nesse caso, é realmente difícil saber qual era a força dos concorrentes da licitação, dado que as cinco
empreiteiras são as maiores do Brasil, e, acordadas entre elas, levaram a licitação e o dinheiro público, sem prejuízo para nenhuma. Para quem ainda acreditava na implantação de um capitalismo puro no Brasil, aquele da concorrência, vigente nos manuais do liberalismo clássico, é melhor mudar os pressupostos e passar a enxergar esses arranjos como a face mais plena do capitalismo monopolista, cada vez mais em voga nos tempos neoliberais. Dito capitalismo sem risco, e sem concorrência, é ainda mais claro quando observamos que 70% do total do custo da obra sairá dos cofres públicos. Como se não bastasse, há grupos que participam, simultaneamente, como gestores responsáveis pela fiscalização do projeto e como executores contratados para a construção. O resultado é um desprezo absurdo em relação à cidade, aos seus moradores e aos trabalhadores empregados na obra, cuja principal expressão, mas não a única, foi o buraco aberto nas obras da Estação Pinheiros, e que resultou em sete mortes em janeiro de 2007. Desde que começada a sua construção, a tônica da Linha 4 têm sido mortes, obras embargadas, laudos que apontam falhas técnicas, esquema ilegal de contratações, favorecimentos, acordos mal explicados, dentre outros fatos que demonstram como as parcerias público-privadas gerem a questão urbana.
Especulação imobiliária Outro elemento que evidencia a quem serve o projeto da Linha 4 é o seu trajeto. Ao ligar o Centro antigo ao bairro do Morumbi, cruzando a avenida Paulista, o caminho é um traço por sobre o sentido de expansão histórica das elites paulistanas, começando no Centro, em direção à zona sudoeste do município.
Tão absurdo quanto as tramóias realizadas entre o Estado e agentes privados é a população peregrinar passivamente pelos trilhos da cidade Como é longamente sabido, a localização das linhas de Metrô e de suas estações valoriza o entorno. Não por acaso, a Linha 4 liga uma Operação Urbana, a da Vila Sônia, a outra Operação Urbana, a da Luz. As Operações Urbanas implementadas nos últimos anos na cidade têm servido para atender aos interesses do mercado imobiliário, valorizando regiões por meio da expulsão dos pobres e da implantação de grandes obras. No caso da Linha 4, numa ponta, a Operação Urbana Vila Sônia valorizará de tal forma a região que até a classe média baixa ali residente é contra sua implantação. Já na outra ponta da Linha 4, temos o bairro da Luz, que passa por um processo de gentrificação (enobrecimento do espaço urbano) encabeçado pelos governos PSDB (estadual) DEM (municipal). Nesse caso, a impressa também faz sua parte. Ao insistentemente nomear a região como Cracolândia, prepara ideologicamente a intervenção no local, que ocorrerá com a destruição total de 103 mil metros quadrados de casarões e a construção de edifícios de escritórios e residenciais para a classe média. Empresas do ramo imobiliário como Odebrecht, Gafisa e Company S.A. já estão interessadas na
Pane nos trens da CPTM obrigou pessoas a caminharem até o trabalho. Dias antes, prefeitura inaugurou uma ponte exclusiva para carros
região que, além de fornecer infra-estrutura urbana às empreiteiras e construtoras, oferecerá abatimentos nos impostos das empresas que se instalarem na região. Cabe lembrar que o capitalismo é um sistema econômico que vive necessariamente da guerra ou da destruição de mercadorias para a circulação de outras em seu lugar, até o capital se realizar enquanto tal. Logo, nessa lógica, é necessário derrubar um bairro inteiro para construir outro. Nota-se claramente nesse caso como a confecção da cidade acontece por interesses econômicos, visando o favorecimento de meia dúzia de empresas e tendo por decorrência a expulsão dos pobres da região. Esperamos que o bairro da Luz não se transforme numa nova Berrini, um espaço privatizado, sem comércio e sem pessoas. Simplesmente o pior estilo de vida que São Paulo já produziu.
Mão-de-obra barata Ainda no que se refere à Linha 4, cabe ressaltar novamente seu trajeto. Ao passar por bairros com um número considerável de ofertas de empregos, como a região da Paulista, de Pinheiros e dos escritórios e residências da Marginal Pinheiros e do Morumbi, viabiliza o deslocamento até esses bairros de mão-de-obra de todas as partes da cidade, sobretudo mão-de-obra barata das regiões mais pobres e longínquas. O percurso planejado para a Linha 4 a conecta com a Linha 3 (Leste-Oeste), a Linha 2 (Vila Madalena-Imigrantes), a Linha 1 (Norte-Sul) e os trajetos de trem Luz-Francisco Morato e Osasco-Jurubatuba. Dessa forma, a Linha 4 é, de todas as do Metrô, aquela que mais facilmente ativa populações de todas as zonas da cidade, diminuindo o tempo de deslocamento e oferecendo uma vasta quantidade de mão-de-obra para essa nova centralidade da cidade expressa pela avenida Luis Carlos Berrini e arredores. Com toda a oferta de trabalhadores possíveis de serem ativados em qualquer ponto da cidade, e estando estes a menos de quarenta minutos no pólo de emprego, justifica-se a campanha impiedosa de remoção das favelas da região sudoeste. Hoje, os trabalhadores moradores das favelas Jardim Panorama, Real Parque, Jardim Edite, Beira-Rio, Coliseu, dentre outras, já não são funcionais. Mais importante que esses trabalhadores são os terrenos onde localizam-se suas casas e barracos, prontos para servirem à expansão do capital imobiliário que se dá sob a forma de construção de novos empreendimentos.
Os trabalhadores que antes eram oferecidos pelas favelas da região serão no futuro deslocados pelo Metrô, o que impede também a proximidade entre ricos e pobres. Para terminar, é da Estação da Luz que partirá a nova linha de trem que atenderá o Aeroporto de Cumbica. O trecho, orçado em R$ 200 milhões, já é visto como mais uma oportunidade de investimentos para a iniciativa privada e atenderá escassos 20 mil passageiros por dia, não servindo a população do município de Guarulhos. Espécie de trem expresso, a linha se conectará com a já comentada Linha 4, beneficiando moradores das regiões nobres da cidade de São Paulo, em seu deslocamento para o Aeroporto Internacional. Na outra ponta, o governo municipal torrou R$ 275 milhões na obra da faustosa ponte Estaiada, proibida para ônibus e ciclistas. A sua construção, o investimento no túnel que liga a avenida Roberto Marinho à rodovia dos Imigrantes e a remoção de todas as favelas do eixo nada mais é do que a implementação da rota Morumbi-Guarujá, servindo ao rápido deslocamento da elite de suas residências ao litoral, e sem favelas por perto.
“Senhores feudais” Todos esses fatos demonstram como o Estado se expressa, na confecção da cidade, como um grande benfeitor das elites, distribuindo concessões e obras de infraestrutura viária para poucos. Montantes imensos de recursos concentrados em poucas construções, com o intuito de favorecer uma pequena parcela da população, nos fazem lembrar as estradas construídas pelos velhos coronéis para atenderem melhor suas fazendas, enquanto o resto era mato. Na verdade, o pensamento pseudo-moderno de nossas elites nada mais é do que um medievalismo bruto e ignorante. Contudo, a referida forma de gestão das cidades – que prioriza o transporte privado, a segregação sócio-espacial e os interesses econômicos –, tem seus dias contados. A cidade que se colapsa é a mais pura expressão da sociedade em crise, que se colapsa também, e que se expressa em fatos como a pane generalizada dos trens da CPTM no dia 21 de maio. Tão absurdo quanto as tramóias realizadas entre o Estado e agentes privados é a população peregrinar passivamente pelos trilhos da cidade. Tiaraju Pablo D’Andrea é sociólogo, mestrando em Sociologia Urbana pela USP e técnico social da Assessoria Técnica Usina
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Visão nacional Manchete da Gazeta Mercantil do dia 28 de maio: “Indústrias trocam produção nacional pela importada”. A matéria esclarece que pesquisa feita com empresários revelou que 20% das indústrias nacionais substituíram, no último ano, produtos próprios por importados, tais como brinquedos, confecções e calçados. O jornal não cita os postos de trabalho cortados nem a remessa de dólares para o exterior. Pequenos detalhes! Cor equivocada Depois de comercializar, durantes anos, um lápis colorido no tom rosa claro, identificado com a “cor pele”, a indústria Faber-Castell reconheceu o equívoco com a denominação escolhida e retirou o produto do mercado. Quem acionou a empresa e ganhou a parada foi o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, localizado no bairro de Santana, em São Paulo. Destruição premiada O novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, já deixou claro a que veio: anunciou a verba de R$ 1 bilhão para reflorestamento das áreas desmatadas da Amazônia. Ou seja, primeiro o proprietário ou grileiro das terras derruba a floresta ilegalmente, ganha dinheiro com as madeiras nobres e, depois, recebe mais dinheiro para repor o que destruiu. Premiar o predador era só o que faltava. Crimes oficiais Relatório da ONU divulgado em Genebra, Suíça, denuncia que a maior parte das 1.330 pessoas assassinadas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em 2007, foi vítima de “execução extrajudicial”. A conclusão decorre do alto número de casos de mortes registradas como sendo “em confronto com a polícia”. As autoridades brasileiras continuam omissas em relação aos crimes praticados pelo Estado. Sub-imperialismo A sócio-economista Sandra Quintela escreveu no Correio Braziliense: “A Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti foi criada em 30 de abril de 2004, segundo resolução 1542 do Conselho de Segurança, e tem mandato até 15 de outubro de 2008. É urgente e necessário que seja feito um esforço no Brasil, no sentido de pressionar/ constranger os governos nacionais a retirarem suas tropas a partir de um plano discutido com setores representativos do povo haitiano”.
Democracia real O Brasil tem corrupção para todos os gostos e partidos: o PSDB de São Paulo está no caso da Alstom; o PSDB do Rio Grande do Sul está no caso Detran; o PMDB de Garotinho, do Rio de Janeiro, está no caso da extorsão das delegacias; o PDT do Paulinho da Força está no caso do BNDES, junto com prefeituras de vários partidos. Todos os casos tendem a acabar na pizzaria. Como sempre! Tortura privada O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro divulgou, no dia 31 de maio, nota de protesto contra o seqüestro e tortura de dois jornalistas do jornal O Dia, que produziam material investigativo sobre as milícias que atuam na comunidade do Batan, em Realengo. A nota pede ao governo estadual a punição das milícias – grupos mercenários armados que aterrorizam a população. Vitória trabalhista O trabalhador que se aposenta e continua trabalhando na mesma empresa, se for demitido posteriormente, terá direito a receber a multa dos 40% do FGTS calculada sobre todo o período trabalhado, antes e depois da aposentadoria. Essa é a nova orientação aprovada pelo Tribunal Superior do Trabalho e que beneficia milhares de trabalhadores que se aposentam todos os anos. Predador poderoso O maior defensor da destruição da floresta amazônica, o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, tem usado sua “aliança política” com o governo federal para fazer o que bem entende no campo da devastação. Não só detonou a ex-ministra Marina Silva, mas está dando todas as cartas na política de “desproteção” ambiental e ameaça a extinção de vários povos indígenas em seu Estado. A direita deita e rola.
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brasil Reprodução
A Lei de Anistia não pode acobertar os crimes de Estado, diz procurador JUSTIÇA Ao contrário do que defende o ministro Marco Aurélio Mello, Marlon Weichert, do Ministério Público Federal, afirma que crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar não prescrevem e devem ser julgados Tatiana Merlino da Redação “VIRAR A PÁGINA”. Essa deve ser a atitude da sociedade brasileira diante dos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar, segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello. A declaração dada à imprensa se contrapõe aos recentes posicionamentos do ministro da Justiça Tarso Genro, para quem crimes de tortura não deveriam ser anistiados por não serem crimes políticos. A fala do ministro do STF também se contrapõe a de uma série de juristas e procuradores que acreditam que a Lei de Anistia é mal interpretada. “Quando fazemos uma análise técnico-jurídica da lei, percebe-se que não houve anistia para os agentes do Estado. Essa interpretação é forjada, artificial”. A afirmação é do procurador da República, Marlon Weichert, a respeito da Lei de Anistia, de 1979, que, em sua opinião, não pode ser aplicada para crimes praticados pela repressão à dissidência política. Weichert é um dos seis procuradores da Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo, que ajuizaram ação cível contra os ex-comandantes do Doi-Codi de São Paulo, Audir Santos Maciel e Carlos Alberto Brilhante Ustra. No processo, pedem que os dois sejam responsabilizados financeiramente pelas indenizações pagas pela União às vítimas da ditadura militar mortas, desaparecidas ou torturadas no Doi, além de que sejam proibidos de exercer qualquer função pública.
A defesa se vale dessa idéia que foi disseminada, vendida no âmbito nacional, de que teria havido uma reconciliação, de que esse passado teria sido apagado. Mas isso não existe, porque os direitos fundamentais não podem ser esquecidos Em entrevista, Weichert afirma que novas ações poderão ser propostas contra outros agentes da ditadura. “Primeiro, iniciou-se pela parte dos que foram comandantes, e aí o MP vai analisar caso a caso para ver se há outros envolvidos que possam ser demandados passíveis de identificação”, explica. Para o procurador, os crimes cometidos durante a ditadura militar são imprescritíveis e, “a partir do momento em que se reconhecem como crimes contra a humanidade, o ordenamento jurídico relacionado aos direitos humanos não aceita que possa haver anistia de crimes desse tipo”. Brasil de Fato – Como surgiu a iniciativa do MPF de entrar com ação contra os ex-comandantes do Doi-Codi, Brilhante Ustra e Audir Maciel? Marlon Weichert – São três réus, na verdade. Além dos dois ex-comandantes tem também a União Federal. A ação é fruto de um trabalho que vem sendo desenvolvido pelo MPF desde 1999, quando o foco inicial foi em relação à localização de restos mortais de desaparecidos políticos, inicialmente do cemitério de Perus, em função da reabertura daquela vala. A partir daí veio o trabalho do Araguaia, feito em conjunto com o MPF, a procuradoria da República de São Paulo, do Pará e de Brasília na localização e identificação de ossadas. Aos poucos, o projeto foi amadurecendo, especialmente a partir de uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2006, que apreciou os crimes cometidos pela repressão chilena e os classificou como crimes contra a humanidade, não-passíveis de anistia e
prescrição, e tornou imperativo que fosse feita uma investigação e apuração de responsabilidade. Aquele foi um momento decisivo. Assim, o MPF começou uma nova linha de estudos em cima desse precedente. Em acréscimo, tivemos a publicação do livro Direito à Memória e à Verdade, da Presidência da República, que finalmente compilou de uma forma organizada diversos casos de violência, tortura e morte realizados no Doi-Codi em São Paulo. A soma desses elementos é que demonstrou que era o momento para essa ação. O que a ação requer? Primeiro, que eles sejam reconhecidos judicialmente como comandantes do centro de terror que foi o Doi-Codi, que eles eram responsáveis pelo comando de um centro de prisões ilegais, torturas, homicídios e desaparecimento de cidadãos brasileiros, e que nesse local ocorreram pelo menos 64 mortes (as que conseguimos rastrear com base nesse relatório da Presidência da República). Em conseqüência disso, pede-se que eles sejam obrigados a suportar as despesas que o Tesouro Nacional teve com o pagamento de indenização às famílias desses mortos e desaparecidos, que é uma questão técnica do direito constitucional brasileiro já de muito tempo. Quando um agente público provoca um dano a um particular, o particular pode exigir do Estado que este lhe indenize, mas o Poder Público tem o dever de depois cobrar a conta de quem deu causa àquele dano. É aquilo que nós chamamos de uma ação regressiva, de direito regressivo. Estamos dizendo que, se eles são responsáveis, ainda que indiretamente, por essas 64 mortes, e o Tesouro teve que pagar essas indenizações, então eles precisam reembolsar de alguma forma o Estado. E o que mais? Também pede-se que eles sejam impedidos de exercer qualquer nova função pública, o que no âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas) se chama de veto. Isso porque eles não têm a condição moral de fazê-lo. Ora, convém ainda lembrar que o Brasil firmou e ratificou [em 1989] a convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Esta define o crime de tortura e afirma [artigo 2, número 2] que “em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificava”. Outros agentes que foram responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos podem ser motivo de ação? Com certeza. Outras ações serão propostas. Primeiro, iniciou-se pela parte dos que foram comandantes, e aí o MP vai, com base no relatório da Presidência, analisar caso a caso para ver se há outros envolvidos que possam ser demandados passíveis de identificação. Nas ações cíveis movidas por duas famílias contra o coronel reformado Brilhante Ustra, seu advogado baseia a defesa dizendo que ele está protegido pela Lei de Anistia. Como o senhor responderia a esse tipo de argumentação? Em primeiro lugar, a Lei de Anistia é do âmbito criminal do direito penal, e essas são ações na área cível. Já por aí pode se dizer que esse argumento é impertinente. Além disso, há dois aspectos que precisam ser apontados. A partir do momento em que se reconhecem como crimes contra a humanidade aqueles praticados pela repressão à dissidência política, o ordenamento jurídico relacionado aos direitos humanos não aceita que possa haver anis-
tia. Isso se baseia num fenômeno chamado de auto-anistia, que é quando o próprio perpetrador das violações de direitos humanos concede a si anistia. Foi isso que teria acontecido aqui no Brasil. A defesa se vale dessa idéia que foi disseminada, vendida no âmbito nacional, de que teria havido uma reconciliação, de que esse passado teria sido apagado. Mas isso não existe, porque os direitos fundamentais não podem ser esquecidos, a verdade precisa ser depurada. Mas o que aconteceu com a Lei de Anistia? Ela foi mal interpretada? Ela foi editada ainda no governo militar, quando o Congresso Nacional não gozava de legitimidade democrática, num processo legislativo quase impositivo da vontade do Executivo. Se essa lei editada pelo governo militar dava anistia aos próprios militares que praticavam as violações aos direitos humanos por decisão da Presidência da República e dos ministros do exército, não existe esse direito, num regime democrático, de se auto-anistiar, auto-perdoar. Essa figura é inválida, não tem nenhum efeito. Quando fazemos uma análise técnicojurídica da lei, percebe-se que não houve anistia para os agentes do Estado. Essa interpretação é forjada, artificial. Essa Lei de 1979 foi apenas para quem agiu contra o Estado, os chamados crimes conexos e crimes com motivação política. Já os crimes praticados pelos agentes estatais não podem ser reputados como crimes conexos, porque não existe essa figura de conexidade entre crimes de opositores. A conexão é uma questão do processo penal e tem algumas hipóteses, mas nenhuma delas preenche essa figura de que os crimes conexos seriam crimes em que uma parte teria impingido à outra que praticasse um crime de motivação política. Isso é um artifício que foi divulgado à época para tentar justificar essa suposta bilateralidade. A lei foi artificialmente interpretada e mal interpretada qualitativamente. A partir dessa constatação, o que pode ser feito? É possível revogar a Lei de Anistia, como foi feito no Chile, e julgar criminalmente esses ex-chefes do Doi-Codi e outros acusados de tortura? Nós entendemos que sim. Inclusive elaboramos um estudo, que chamamos de representação, e apresentamos para a área criminal da procuradoria. Nós, que assinamos essa petição inicial, atuamos na área cível, não temos atribuição para processos criminais, mas apresentamos uma representação à área criminal num primeiro caso, que é o do assassinato do jornalista Vladmir Herzog. Apresentamos justamente essa tese de que a Lei de Anistia não teve nenhum efeito em relação a esses crimes, e também que eles não estariam prescritos, porque a prescrição é um instrumento de política criminal, é uma previsão legislativa do código penal brasileiro, mas que não seria aplicável aos crimes contra a humanidade. Estes são imprescritíveis por disposições várias e pelo entendimento reiterado de cortes internacionais. A ação cível não sofre nenhum impacto da Lei de Anistia, mas mesmo que sofresse, ela não seria aplicável, e isso também vale para a seara criminal. Como foi essa proposta de representação apresentada à área criminal do MPF? O MPF em São Paulo é dividido em duas grandes áreas, uma delas criminal e outra cível. Não temos atribuição na primeira, só na segunda, mas quando tem um assunto que uma está estudando e é de atribuição da outra, temos um expediente interno que se chama de representação. É uma forma de distribuição do trabalho, e é isso que nós apresentamos à área criminal: a tese de que achamos que criminal-
mente ainda pode ser intentada a responsabilização dos envolvidos no homicídio de Vladmir Herzog, e é isso que está sendo apreciado por um procurador da área criminal, o Fábio Gaspar. Para que isso fosse feito seria necessário revogar a Lei de Anistia? Não, em absoluto, porque acreditamos que a Lei de Anistia não se aplica, ela está caduca. Eu acho que o governo e o Congresso poderiam pensar nessa revogação do ponto de vista simbólico, seria interessante, mas para fins jurídicos não é necessário. Essa lei é incompatível com a convenção americana de direitos humanos, com o costume internacional e com a Constituição de 1988. Como o senhor compara o Brasil com a Argentina e Chile, onde, no primeiro caso, os torturadores estão sendo julgados e condenados, e, no segundo, a lei de anistia foi revogada? A Argentina tem milhares de agentes da repressão presos e outros tantos sendo processados. No Chile não, lá a lei de anistia foi revogada por pressão da corte interamericana de direitos humanos, mas eu não tenho notícia de que muitos processos estejam sendo movidos. Em relação à Argentina, o Brasil está em profundo atraso na adoção das providências necessárias a fazer essa consolidação do regime democrático. A Argentina teve leis de anistia disfarçadas, enfrentou tentativas de impunidade, mas a própria corte constitucional reverteu essa situação, o governo revogou essas leis de impunidade e está bem avançado na produção da verdade e da justiça. O Chile é mais avançado do que o Brasil na questão de produzir verdade, porque instituiu uma comissão real, e o Brasil nunca fez isso. Eu diria que o Chile está mais avançado na questão da verdade, a Argentina, na verdade e na responsabilização e o Brasil, nas indenizações. De todos os Estados do Cone Sul, a Argentina é o que mais está avançado. E o Brasil ficou apenas nas indenizações... O Brasil parece que, de certo modo, tentou comprar, mediante indenizações bastante polpudas, a implementação dos outros dois objetivos. Esquecer não significa reconciliar. Essa prática do Brasil de fingir que com esquecimento vai se resolver tudo não vai adiante, tanto que cotidianamente temos problemas em relação a isso, são versões, fatos, corpos que vão surgindo. Um processo de reconciliação demanda que você cumpra com três missões: apurar a verdade, responsabilizar os responsáveis e indenizar as vítimas. O Brasil só fez a indenização das vítimas, estão faltando as duas outras obrigações. Qual é a opinião que o senhor tem a respeito dessas ações movidas por duas famílias contra o Brilhate Ustra? São ações importantíssimas, e inclusive nós nos subsidiamos de alguns elementos que ali foram apresentados pelo advogado Fábio Comparato. A nossa ação é coletiva, o que não impede que haja a propositura dessas ações individuais, que, nesse caso, são até anteriores à ação do MP. Elas nos parecem absolutamente pertinentes.
Quem é Marlon Weichert, procurador do Ministério Público Federal desde 1995, graduou-se em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1991, e concluiu o mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), no ano 2000. Desde 2002, também é da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC), em São Paulo (SP).
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brasil Antonio Cruz/ABr
Redução da jornada une sindicalismo brasileiro TRABALHO As seis maiores centrais sindicais defendem jornada de 40 horas semanais; Conlutas e Intersindical querem 36 horas Renato Godoy de Toledo da Redação TODOS OS segmentos do movimento sindical brasileiro, da Força Sindical à Conlutas, realizaram uma jornada de lutas pela redução da jornada de trabalho, no dia 28 de maio. As seis maiores centrais brasileiras – CUT, Força Sindical, UGT, CTB, CGTB e Nova Central –, apresentaram uma pauta unificada, tal como fizeram no 1º de maio, exigindo a redução da jornada para, no máximo, 40 horas semanais, sem redução de salários. Conlutas e Intersindical promoveram atos em separado, com reivindicação de jornada máxima de 36 horas por semana, e reafirmaram sua disposição em barrar prováveis reformas, como a da Previdência. A Conlutas também protestou contra a presença de tropas da ONU no Haiti, comandadas pelo Exército brasileiro (leia reportagem na página 9). As centrais realizaram atos de rua, assembléias e paralisações nas capitais e nas principais cidades do país. O movimento prosseguiu no dia 3 de junho, quando dirigentes sindicais foram ao Congresso participar de uma audiência pública e entregar um abaixo-assinado, com mais de 1 milhão de assinaturas, solicitando a redução da jornada. Agora, os sindicalistas pretendem realizar pressão sobre os congressistas para colocar na agenda do parlamento um projeto de lei que prevê a redução da jornada.
Conjuntura Dirigentes sindicais e analistas do movimento operário apontam este momento como um divisor de águas no sindicalismo brasileiro. Segundo essa análise, o movimento sindical estaria superando o cenário da década de 1990 e do início dos anos 2000, em que o poder de mobilização caiu e as pautas do movimento eram defensivas, exigindo
apenas a manutenção de direitos. Na maioria das vezes, as mobilizações não conseguiram barrar a retirada, vide as duas reformas da previdência e as privatizações implementadas pelo governo FHC. A unidade em torno da redução da jornada, mesmo levando em consideração as profundas divergências de concepções internas do sindicalismo, é a primeira pauta propositiva apresentada pelas centrais no segundo mandato do presidente Lula.
“Para o capital, a situação está muito positiva. Setores como a agricultura, metalurgia e os bancos estão tendo grandes lucros. A redução da jornada, sem diminuição salarial, garante que os ganhos da produtividade sejam divididos com os trabalhadores”, defende Artur Henrique, da CUT Para Artur Henrique, presidente da CUT, essa nova postura reflete alterações na conjuntura do país. “Estamos vivendo um momento de ampliação da pauta dos trabalhadores. Isso começou com a marcha pelo salário mínimo, há 4 anos. Na década de 1990, havia um processo de privatização e desemprego, era uma conjuntura de resistência em que fazíamos muito esforço para manter o que havia sido conquistado”, lembra Artur. Na visão do cutista, as conquistas de diversas categorias também têm dado fôlego para as pautas gerais da classe trabalhadora. “Estamos em ou-
tro momento. No ano passado, 94% das categorias obtiveram aumentos reais, acima da inflação”. Artur acredita que o sindicalismo atua de maneira independente do governo e da situação econômica. Como prova disso, cita que os sindicatos da CUT, frequentemente associados a uma posição mais alinhada ao Planalto, foram os que mais realizaram paralisações em 2007.
Crescimento econômico Wagner Gomes, presidente da CTB, associa a construção da unidade em torno de pautas propositivas, que avançam na conquista de direitos, ao momento econômico do país. “O movimento sindical cresce em épocas em que o país tem algum crescimento econômico. Apesar desse crescimento estar abaixo da necessidade real do país, atende o movimento sindical. Em épocas de crise na economia, o movimento fica na defensiva”, avalia. O crescimento econômico e a alta lucratividade de todos os setores da economia brasileira são os principais argumentos utilizados para a redução da jornada de trabalho, sem redução salarial. “Para o capital, a situação está muito positiva. Setores como a agricultura, metalurgia e os bancos estão tendo grandes lucros. A redução da jornada, sem diminuição salarial, garante que os ganhos da produtividade sejam divididos com os trabalhadores”, defende Artur Henrique. Para Luís Carlos Prates, o Mancha, dirigente da Conlutas, a bandeira dos trabalhadores deveria ser pela redução da jornada para 36 horas semanais, pois algumas categorias já têm teto de 40 horas. A Conlutas teme que as reivindicações realizadas pelas centrais sejam atendidas em troca de outros direitos. “A redução da jornada não pode implicar em redução salarial e de direitos, como a instituição do banco de horas”, enfatiza.
No dia 3, dirigentes levaram ao Congresso abaixo-assinado com 1 milhão de assinaturas pró-redução
Centrais planejam greve geral no segundo semestre “Sem grandes pressões, o projeto de lei não passa na Câmara, devido à expressiva bancada do patronato”, afirma Wagner da Redação As centrais sindicais começam a discutir a possibilidade de uma greve geral para pressionar o Congresso a votar o projeto de lei (PL) que reduz a jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, sem redução salarial. Na coordenação dos atos, algumas centrais já sugerem a construção de um movimento nacional de paralisação para o segundo semestre. Para Artur Henrique,
FUTEBOL
presidente da CUT, o tema deve ser discutido com prudência. “Nós sempre discutimos a possibilidade de greve geral. Para a CUT, a greve geral não pode ser uma manifestação sem sentido. Há setores que defendem greve geral toda semana, como se isso fosse mobilizar os trabalhadores. Não podemos queimar o conceito de greve geral com um movimento em três ou quatro Estados e com a paralisação de algumas fábricas. Temos que construir um movimento,
Arquivo Pessoal
coronel Marcos Marinho, diretor de segurança e de arbitragem da FPF. Segundo André, o oficial lhe pediu desculpas e prometeu providências. Marinho e um representante do Ministério Público reuniram-se para discutir o acesso de torcedores com deficiência. Foi determinado que os torcedores uniformizados com deficiência poderão assistir jogos em outros setores. Segundo Marinho, faltou bom-senso para o policiamento. O responsável, coronel Carlos Botelho, considerou “normal” a postura de seu subordinado. “Apresentei denúncia na corregedoria da Polícia Militar e fiz um Boletim de Ocorrência contra o soldado Lara. Vou processar o Estado por danos morais, eles têm que pagar pelo que fizeram. Espero que isso não aconteça com mais ninguém”, revela.
PM paulista barra torcedor com deficiência O corinthiano André Luís Vedovati foi impedido de entrar no estádio por estar com trajes de torcida organizada Renato Godoy de Toledo da Redação O auditor médico André Luís Vedovati, de 32 anos, foi impedido de acompanhar o primeiro tempo da semifinal da Copa do Brasil entre Corinthians e Botafogo, no estádio do Morumbi, no dia 28 de maio. André só pôde entrar no segundo tempo, quando viu seu time garantir, nos pênaltis, a vaga na final do campeonato. Há 18 anos, Vedovati é membro da torcida organizada do Corinthians, Gaviões da Fiel, e desde 2004 se locomove em cadeira de rodas, em função de um acidente automobilístico. Após sua rotineira batalha para chegar ao portão 17 do estádio do Morumbi, André ouviu do policial militar Roberto de Lara Campos que não poderia entrar no está-
acumular forças, para fazer uma greve geral, que possa ser chamada de ‘greve’ e de ‘geral’”, assinala. Wagner Gomes, presidente da CTB, aponta que, para pressionar o Congresso a aprovar o PL, o movimento sindical precisa construir ações contundentes, como a greve geral. “Sem grandes pressões, esse PL não passa na Câmara, devido à expressiva bancada do patronato. Por isso, no futuro, pensamos em fazer uma greve geral”, revela. (RGT)
dio, pois vestia trajes da torcida organizada. Desde o início do ano, a Federação Paulista de Futebol (FPF) tem destinado um setor específico do estádio, a arquibancada amarela, aos torcedores organizados com cadastro na federação – André possui o cadastro. No entanto, o setor destinado às organizadas não possui estrutura para receber torcedores em cadeiras de rodas e com outras deficiências. Após diversas negativas do soldado Lara, que, de forma ríspida, repetia a André que não era permitido entrar naquele setor com trajes de organizadas, o torcedor resolveu adotar uma medida mais contundente. “Eu disse que tiraria o boné e a camiseta e colocaria a calça do avesso. Mesmo assim ele não permitiu minha entrada, então tirei a calça e fiquei 40 minutos, de fralda, esperando pelo superior dele”, conta André, que só pô-
Corinthiano reclama do acesso nos estádios: “tem oito vagas para deficientes. Para diretores, umas 300”
de entrar após a chegada do tenente. André vai a quase todos os jogos do Corinthians e é reconhecido por muitos funcionários dos estádios e pe-
los próprios policiais. “Alguns soldados me reconheceram e pediram para eu colocar a roupa. Disse que não ia colocar enquanto o tenente não chegasse. Todos que
viram a cena acharam um absurdo”, lembra.
Providências No dia seguinte ao jogo, o torcedor enviou uma carta ao
Estatuto A medida da PM feriu um artigo do Estatuto do Torcedor. “Será assegurado acessibilidade ao torcedor portador de deficiência ou com mobilidade reduzida”, afirma a carta. Mas essa não foi a primeira vez que André presenciou o descumprimento desse artigo. Ele conta o quão difícil é o acesso de torcedores com deficiência ao estádio. “No Morumbi, dentro do estádio, só tem oito vagas de carro para deficientes. Já para os diretores, tem umas trezentas”, reclama.
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Lula anuncia “segundo tempo” no Haiti Exército Brasileiro
TROPAS DE PAZ Em visita ao Haiti, Lula diz que tropas só percorreram metade do caminho; sentimento entre a população é de que a Minustah deveria deixar o país Claudia Jardim de Porto Príncipe e Caracas UM TANQUE de guerra das Nações Unidas abre o caminho em meio ao movimentado mercado de Cité Soleil (Cidade do Sol), a maior favela de capital haitiana Porto Príncipe. “Há quatro anos convivemos com isso, o que não sei é quando isso vai acabar”, comenta um morador, enquanto afastava seu carrinho de mão do caminho do tanque. No dia 28, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse imaginar quando, durante sua visita ao país. De acordo com Lula, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) – cuja atuação iniciada em 2004 tem sido questionada devido às acusações de abuso sexual e uso excessivo de repressão – está apenas na metade do caminho. “Agora, estamos começando o segundo tempo do jogo. O primeiro tempo foi uma etapa complicada, de ir conhecendo aos poucos as manhas do adversário, fechar uma defesa segura e não deixar passar nenhum gol”, afirmou Lula. Para os haitianos, também fanáticos por futebol, a intervenção das tropas da ONU não tem tido apenas o impacto de uma partida, e para muitos, já marcaram, sim, gols contra.
Mudança de nome
Analistas afirmam que a Minustah pouco tem colaborado para atender aos objetivos atribuídos à missão, que são os de garantir o cumprimento e preservação dos direitos humanos, manter a institucionalidade e conformar uma força de segurança pública, desmantelada desde a dissolução do Exército haitiano em 1994, por determinação do então presidente Jean Bertrand-Aristide. No que se refere à segurança pública, há dois objetivos principais que, por enquanto, não foram cumpridos. Um deles era promover uma campanha de desarmamento no país e o outro era colaborar para a reestruturação da Polícia Nacional do Haiti. O primeiro objetivo fracassou, admite o general brasileiro Carlos Alberto Santos Cruz, comandante das tropas da Minustah. Santos Cruz afirma que o programa de Desarmamento, Desmo-
bilização e Reinserção (DDR) aplicado pelas Nações Unidas em outros países teve que ter seu nome modificado no Haiti para Programa de Redução da Violência na Comunidade, diante do baixo número de armas recolhidas. “O número de armas recolhidas voluntariamente foi muito pequeno (...). Aqui [o que existe], é gangue de bandido e criminoso que não quer entregar sua arma porque no crime é importante para manter o poder”, afirma o general em entrevista ao Brasil de Fato.
30 mortos
Além de ineficiente, as permanentes operações realizadas para desarmar as supostas quadrilhas de narcotraficantes das favelas de Porto Príncipe teriam cobrado dezenas de vidas inocentes, de acordo com organizações sociais. Em dezembro de 2006, uma operação realizada pelas tropas brasileiras em Cité Soleil teria resultado em pelo menos 30 mortos. “Um menino de 4 anos morreu na própria cama durante os tiroteios”, afirma Camille Chalmers, diretor da Plataforma de Organizações Sociais Papda. “Os alvos sempre são os bairros populares, que pagam um custo muito alto”, acrescenta. Entre os moradores de Cité Soleil, é comum escutar críticas associadas à repressão. “Muita gente inocente está morrendo, por isso que as pessoas não querem as tropas aqui. Antes, tinham mais simpatia por elas”, relata o jovem Jefre Maurice, que diz ter aprendido o português conversando com os soldados brasileiros, nos pontos de controle da Minustah em Cité Soleil. Num país em que 80% da população sobrevive com menos de dois dólares diários, Maurice explica que seu apoio às tropas está condicionado a seu novo trabalho. “Às vezes, faço tradução para os soldados, e eles me pagam”, conta. “Mas se não fosse por isso, eu também não estaria de acordo com a presença deles aqui”. Maurice foi interrompido por um vendedor ambulante que se irritou ao ouvir falar da Minustah. “Eles estão matando o povo, não há mais segurança nada. O que os estrangeiros precisam entender é que o nosso problema é falta de trabalho, é fo-
“Nosso problema é falta de trabalho, é fome, não é falta de soldado”, protesta Eric Gené, vendedor ambulante das ruas de Porto Príncipe
me, não é falta de soldado”, afirma Eric Gené, argumentando que as tropas não entendem a realidade haitiana. “Não nos entendem, podem ir embora, isso nunca vai dar certo. Porque não deixam a polícia fazer patrulhamento?”, questiona.
Polícia Nacional
Outro objetivo da Minustah é colaborar para reestruturar a Polícia Nacional. Acreditase que quando estiverem alistados entre 18 e 20 mil efetivos – no momento são 8 mil –, o braço armado da missão das nações Unidas poderia deixar o país. Em 4 anos, a Minustah formou apenas 630 policiais, de acordo com o general Santos Cruz. “O que acontece é que não há um projeto claro de formação da polícia, com prazo fixo e metas determinadas. A Minustah não está trabalhando de fato para preparar a polícia haitiana, para que ela possa gradualmente assumir a tarefa das tropas”, critica Vilés Alizar, diretor da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti. A seu ver, a população está relacionando cada vez mais a Minustah com a política econômica adotada no país e, sendo assim, a tarefa das Nações Unidas se limitaria a apenas proteger o governo, e não a população.
Cai a máscara
“Pouco a pouco, a máscara da Minustah vai caindo porque a população se dá conta de que estão aqui para proteger o governo, e não a eles [a população], ou para melhorar suas condições de vida. Nessa nova etapa da crise, se a política neoliberal não for amenizada, a Minustah entrará em uma situação bastante difícil aqui”, argumenta Alizar. O diretor da RDHH assim como Camile Chalmers, ob-
servam com desconfiança a modificação no comportamento social do país às vésperas da renovação anual do mandato da Minustah no Haiti. “Não se sabe quem tem o controle das manobras, mas coincidentemente sempre quando há que renovar o mandato das tropas, um pouco antes disso, a violência aumenta. Justo quando se questiona se a Minustah deve deixar ou não o país”, afirma Vilés Alizar. No entanto, Alizar avalia que o círculo de dependência com as Nações Unidas está longe de terminar. “Se a Minustah deixar o país hoje, a situação poderia ser muito difícil, a dependência ainda não está resolvida”, pondera. Para Chalmers, as tropas deveriam deixar o país para permitir que os haitianos exerçam seu “direito à autodeterminação e à soberania”. “A Minustah responde a uma estratégia dos Estados Unidos para responder a possíveis cenários de crises em que se utilizariam tropas da região para exercer um maior controle e aumentar a militarização. Não é dessa solidariedade que o Haiti necessita”, afirma Chalmers. A promessa do governo brasileiro, que comanda a missão, é que, no “segundo tempo do jogo”, a atuação da Minustah será diferente. “É hora de tomarmos uma iniciativa, e a tática do jogo aqui é o fortalecimento cada vez maior da nossa presença solidária”, afirmou Lula. Não há prazo definido pelas Nações Unidas para que a Minustah se retire do Haiti. O mandato atual vencerá em outubro. O general Santos Cruz sugere uma consulta com os orixás para resolver o probelma político haitiano. “É preciso ter bola de cristal para responder este tipo de pergunta”.
UNASUL
General admite que abusos sexuais “podem acontecer” de Porto Príncipe e Caracas A acusação de que crianças no Haiti continuam sofrendo abusos sexuais por parte de funcionários da ONU voltou a ser denunciada. Desta vez, em um relatório recente divulgado pela organização não-governamental britânica Save the Children. O relatório analisa casos de abusos cometidos no Haiti, Costa do Marfim e no sul do Sudão. Entitulado Ninguém a quem recorrer – A pouco denunciada exploração sexual infantil por funcionários de ONGs e tropas de paz, diz que as vítimas têm idade a partir dos seis anos, e são de ambos os sexos. Entre os abusos relatados pelas crianças entrevistadas encontram-se estupro, prostituição infantil, escravidão sexual, pornografia, troca de sexo por comida, entre outros. O relatório destaca que as tropas de paz da ONU “são uma fonte particular do abuso” especialmente no Haiti e na Costa do Marfim. Em dezembro do ano passado, as Nações Unidas decidiram extraditar 108 soldados do Sri Lanka que atuaram na Minustah após terem sido acusados de violações de mulheres e menores haitianos. As acusações estão sendo investigadas pelo governo do Sri Lanka, sob auspício das Nações Unidas. As vítimas no Haiti estão sendo ignoradas do processo. O general brasileiro Carlos Alberto Santos Cruz, comandante das tropas da Minustah, disse desconhecer o re-
Antônio Cruz/ABr
A integração possível da América do Sul Raúl Zibechi Não é a Alba, nem o Mercosul ampliado, nem a integração energética que vinha trabalhando a Venezuela. A Unasul, impulsionada pelo Brasil, tem vantagens e desvantagens: entre as primeiras, potencia a autonomia regional a despeito dos Estados Unidos; mas é um tipo de integração à medida das grandes empresas brasileiras. Em 23 de maio, em Brasília, onze presidentes e um vice-presidente, em representação a doze países da América do Sul, firmaram o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-americanas (Unasul). O tempo dirá, mas tudo indica que se trata de um acontecimento que fará história no largo e complexo processo de integração dos países da região
e, muito em particular, da afirmação de um projeto próprio que necessariamente se distancia de Washington. O processo em curso apresenta duas novidades em relação às anteriores. Um: é nítido o protagonismo do Brasil, que se tem convertido na locomotiva regional, depois de tecer uma aliança estratégica com a Argentina. O resto dos países podem eleger entre seguir a corrente do país que representa a metade do PIB regional e de sua população e é, junto com Rússia, China e Índia, um dos principais emergentes do mundo. Mas, além disso, o único em condições de liderar um processo que colocará a região como um dos cinco ou seis pólos de poder global. Dois: a segurança regional tem sido substituída pela energia como disparador da integração. Luiz Inácio Lu-
Presidentes se reúnem durante União de Nações Sul-Americanas (Unasul)
la da Silva apresentou a proposta de criar um Conselho de Defesa Sul-americano, de que só a Colômbia de Álvaro Uribe tomou distância. Não obstante, se tem criado um grupo de trabalho que, em 90 dias, apresentará um informe técnico com o objetivo de eliminar as divergências existentes. Lula se mostrou confiante de que Uribe aceitará a integração em matéria de segurança depois de sua viagem a Bogotá, no próximo dia 20 de julho.
Quatro instâncias
Deste modo, a diplomacia do Itamaraty despreza as expectativas do Pentágono de
abrir uma frente militar, depois do ataque ao acampamento das FARC, em solo equatoriano, no último dia 1 de março. Esta é apenas a fase final de uma estratégia que começou com manobras conjuntas entre o Brasil e a Argentina, cujas hipóteses de conflito consistiam na defesa dos recursos naturais ante uma potência extracontinental. Em novembro de 2006, o coronel Oliva Neto, que dirige o Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência do Brasil, havia feito a proposta de criar algumas forças armadas regionais como parte do projeto Brasil em Três Tempos, que busca
converter a nação em um “país desenvolvido” até 2022. Para horror de Washington e das direitas venáculas, a região contará, pode agora em diante, com quatro poderosas instâncias de integração: a Unasul, o Conselho de Defesa e, segundo o anúncio de Lula, “um banco central e uma moeda única”. Não está claro que papel desempenhará o Banco do Sul, ainda que seja provável que Brasília opte por outro formato em linha com seu poderoso Banco Nacional de Desenvolvimento, que conta com mais fundos para investir na região que o FMI e o próprio Banco Mundial.
latório que detalha as acusações de abuso. O escândalo, que à época foi condenado pela ONU, foi amenizado pelo general Santos Cruz, ao indicar que a responsabilidade não é exclusiva de seus soldados. “Isso é um caso possível de acontecer e não tenho conhecimento do relatório para saber qual é a extensão desse acontecimento. Neste tipo de ambiente, pode acontecer este tipo de relacionamento problemático e ter um caso semelhante. Não sei quem é responsável pelo quê”, disse Santos Cruz em entrevista ao Brasil de Fato. “No preto no branco, no final das contas, você tem homens e mulheres”, acrescentou. A reação de Santos Cruz foi criticada pela plataforma de defesa dos direitos da mulher (SOFA). “Como costuma acontecer em casos de violações, tentam culpar a mulher, que é vítima de quem detêm o uso da força. É inacreditável que essa seja a avaliação deste general”, critica Marie Frantz Joachim, da direção da SOFA. “As agressões sexuais das quais são vítimas as mulheres e menores haitianos são conseqüência direta da ocupação do país pelas tropas estrangeiras”, diz um documento que foi entregue ao Ministério da Condição Feminina e Direitos da Mulher e ao Ministério de Justiça, no qual solicitam a constituição de uma comissão haitiana para acompanhar o julgamento que está sendo realizado pelo governo do Sri Lanka.
Sem dúvida, esta integração à medida do “Brasil potência” não é a que houvera preferido Hugo Chávez, mas as dificuldades pelas quais atravessa o processo bolivariano e os ressentimentos que levanta na região fortaleceram a opção brasileira. Que as grandes empresas desse país (Petrobras, Embraer, Odebrecht, Camargo Côrrea, Itaú...) serão as grandes beneficiadas, está fora de dúvida. Seguramente, será o preço a pagar por romper dependências mais onerosas. Analistas conservadores, como o argentino Rosendo Fraga, esperam que “a heterogeneidade dos doze países da região” (Nova Maioria, 20 de maio) seja a pedra no sapato do processo de integração. Washington tem as mesmas expectativas e, além disso, trabalha com afinco para. Chama a atenção, em vista das escassas perspectivas de futuro que têm os pequenos países em um mundo globalizado, que o único presidente que faltou ao encontro tenha sido Tabaré Vázquez. Raúl Zibechi, jornalista uruguaio, é docente e investigador na Multiversidade Franciscana da América Latina, e assessor de vários grupos sociais.
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A análise política nas lentes de uma câmera indígena
Divulgação
BOLÍVIA No mesmo período do referendo sobre o estatuto autonômico do departamento boliviano do Beni – convocado em fevereiro e realizado em 1º de junho –, comunidades indígenas locais lançam filme de ficção sobre atuação dos grupos econômicos locais Igor Ojeda Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia) NO MEIO da selva, um fio grosso de sangue escorre por uma árvore. Embaixo, as gotas vermelhas tingem as folhas que forram o solo. A câmera se aproxima, e já se pode ver uma enorme “ferida” aberta no tronco da planta. Na sua casa de parede de barro e teto de palha, uma senhora indígena, de uns 60 anos, acorda. Conta o sonho ao marido. Explica que viu uma árvore sangrando e proclama: “Algo vai acontecer na comunidade”. É 1996. O povoado chama-se Nueva Esperanza, localizado no departamento de Beni, na Amazônia boliviana. Algumas horas mais tarde, a visão começa a se confirmar. Dois moradores, que haviam saído para caçar, voltam contando que viram uma empresa madeireira se instalando numa área não longe dali. A partir daí, aparecem, pouco a pouco, os problemas. As grandes promessas da empresa aos indígenas, como a construção de estradas e repartição dos lucros, não são cumpridas. Dirigentes comunitários são subornados. Os habitantes da comunidade indígena são impedidos de circular livremente por certas áreas. O lixo e os peixes mortos se acumulam na margem do lago local. As árvores vão sendo, uma a uma, derrubadas.
Realidade O filme El Grito de la Selva estreou em março, mas vem sendo pensado há muito mais tempo. No entanto, difícil é não fazer a vinculação com o referendo sobre o estatuto autonômico do Beni, realizado no dia 1º de junho (leia matéria nesta página). “ [O filme mostra] uma realidade que tem a ver com o controle de poder, dos recursos naturais da região. Mostra como se mantêm os latifúndios, e a concentração de poder nas mãos de poucas famílias, que controlam o governo departamental e as prefeituras”, explica o cineasta Iván Sanjinés, dire-
tor do Centro de Formação e Realização Cinematográfica (Cefrec) e membro da equipe de realização do longa. A madeireira, que atua como se fosse dona das terras indígenas, destrói o meio ambiente e usa o poder econômico para corromper líderes comunitários e para ter políticos poderosos e a polícia ao seu lado. Esta seria a representação dos redatores do estatuto autonômico – não só do Beni, como também de Santa Cruz, Pando e Tarija. “É uma história que faz referência ao passado, mas a situação hoje continua a mesma”, lamenta o cineasta. E, para contar essa realidade, ninguém melhor que os que mais sofrem com ela. O argumento, o roteiro e a direção de El Grito de la Selva são de autoria dos próprios indígenas, e trabalhados de forma coletiva – com o apoio da equipe do Cefrec.
O argumento, o roteiro e a direção de El Grito de la Selva são de autoria dos próprios indígenas, e trabalhados de forma coletiva Desconhecimento “Foi um processo muito participativo, feito com muito ânimo e, sobretudo, com o compromisso de fazer conhecer sua realidade”, diz Iván. “A possibilidade de afirmar sua história é muito importante para eles, do que é um povoado indígena, de como isso pode projetar-se para fora, porque é uma situação desconhecida.” Tudo começou há cerca de dez anos, quando teve início, através do Cefrec, um trabalho de capacitação de comunicadores oriundos (e eleitos para tal) de comunidades da Amazônia boliviana. Registros da comunidade, das organizações, em vídeo e rádio, eram produzidos. Até que Silvia González, uma das participantes, trouxe a idéia, baseada em fatos
reais, para um filme. “A história de uma líder de sua região que enfrentou as empresas madeireiras, e que recuperava e difundia o conhecimento tradicional indígena”, conta Iván. A partir daí, outras idéias vindas de outras regiões foram sendo incorporadas, e decidiu-se que o filme seria uma ficção. Uma oficina de roteiro foi realizada, e a idéia inicial começou a ganhar forma em cenas. “Logo, o filme começou a ficar mais longo. Tinha muitas histórias, tocava-se em muitos assuntos”. O curta virou longa-metragem.
Machismo O elenco, em sua maior parte, é formado também pelos indígenas, sobretudo de duas comunidades: uma de guarayos, outra de mojeños. “Havia pessoas que não tinham atuado nunca. Então, foi feito um treinamento. Uns têm maior capacidade dramática, e outros fazem o melhor que podem, mas todos estavam com vontade de pôr seu maior esforço, porque era a primeira vez que se fazia um filme na Amazônia boliviana com atores indígenas”, esclarece Iván. Mas não são apenas os problemas das comunidades indígenas do Beni com os grupos econômicos da região retratados no filme. Em meio aos confrontos com a empresa madeireira, percebe-se o machismo fortemente presente na comunidade, retratado por meio da violência doméstica e na pouca força que a voz das mulheres tem nas assembléias locais. “Não é um tema simples. Porque, quando se fala dos indígenas, se pensa que todos são bons, protegem a natureza etc. Mas, na verdade, dentro dessas comunidades, também existem situações que permeiam a sociedade em geral. O machismo, a corrupção de dirigentes. Nem tudo é de uma cor ou de outra. É interessante como uma comunidade pode ter a capacidade de refletir isso e dizer: ‘bem, isso não é só para mostrar, mas também para analisar’. A preocupação de mostrar para poder refletir e fazer algo a respeito”, analisa Iván.
A história se repete em Beni e Pando de La Paz (Bolívia) Os referendos sobre os estatutos autonômicos dos departamentos bolivianos de Beni e Pando, localizados na região amazônica, seguiram praticamente o mesmo roteiro da consulta em Santa Cruz, no dia 4 de maio: enfrentamentos, alta abstenção e denúncias de fraudes. Durante todo o período do pleito, realizado em 1º de junho, apoiadores do processo entraram em conflito com seus opositores, que queimaram urnas em protesto. Em Pando, denunciou-se que votos pelo “sim” ao estatuto estavam sendo comprados a 300 bolivianos (moeda local), o que equivale a pouco mais da metade do salário mínimo do país. Já o índice de abstenções, a exemplo de Santa Cruz, foi alto. Em Beni, com 41% dos votos contados, o número de ausentes estava em 35% (enquanto 79,78% dos votos válidos eram pelo “sim”). Em Pando, as abstenções, com 69% de apuração, atingia 41,8% (83,1% de votos no “sim”). Tais dados fizeram o governo do presidente Evo Morales, que considera os referendos ilegais, afirmar que o re-
chaço aos estatutos nos dois departamentos é grande.
Estatutos O estatuto autonômico de Pando, assim como o de Tarija (cujo referendo será em 22 de junho), é considerado pelo governo o de menor viés separatista. Já o de Beni é posicionado entre estes e o de Santa Cruz. De acordo com o estatuto beniano, o Executivo e o Legislativo departamental serão responsáveis pela administração, distribuição e redistribuição das terras do departamento, assim como pela definição dos tipos e extensões das propriedades rurais. Além disso, estarão a cargo também da legislação, administração, regulamentação, planificação e execução de políticas, planos, programas e projetos relacionados aos recursos naturais do departamento. Já segundo o de Pando, a competência sobre a terra e os recursos naturais seria compartilhada entre o governo central, o departamental e os municipais. No entanto, assim como o de Beni, o estatuto de Pando prevê a faculdade exclusiva sobre a política tributária e a promoção de acordos internacionais. (IO)
Imagens do filme El Grito de La Selva; acima, gravação de uma cena
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Uribe: bombas, glifosato e manipulação COLÔMBIA Sob pressão dos EUA, governos colombianos sabotaram, desde 2000, todas as tentativas de firmar acordos de paz Antitezo/Guido_CC
Reprodução
Yosmary de Rausseo
Achille Lollo
Guerra psicológica O principal objetivo da guerra psicológica desenhada pelos Estados Unidos, a partir do ano 2000, para interferir na guerra contra as Farc (fundadas por Manuel Marulanda – falecido no mês de maio – como grupo de autodefesa dos camponeses) e o ELN (que, por um certo período e até sua morte em combate, foi liderado por Camilo Torres e, depois, pelo padre Manuel Perez) era ganhar a confiança de amplos setores populares das grandes cidades. Para isso, os estrategistas da contra-insurgência decidiram que era prioritário acabar com a guerra de gangues pelo controle dos postos de venda de cocaína nas favelas. A seguir, as campanhas começaram a apresentar nas TVs as gangues de narcotraficantes das favelas como aliados das Farc e do ELN em luta contra os grupos paramilitares – Auto-Defesas Unidas da Colômbia (AUC) – empenhados, ao lado do exército, nas operações de contra-insurgência no interior do país. Esse projeto midiático foi determinante para a reeleição
Manuel Marulanda entre marchas a favor das Farc, no Chile (primeira foto) e na Venezuela
O recémfalecido líder das Farc, Manuel Marulanda, acreditava que a vantagem operacional da guerrilha (mobilidade na selva e facilidade de comunicações) sobre o Exército colombiano poderia ser reduzida quando as novas divisões de luta antiinsurgentes entrassem em ação do presidente Álvaro Uribe e para impor a emenda constitucional que permite o terceiro mandato a partir de 2010. Na verdade, os diferentes planos de Uribe, financiados pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, previam não só a repressão, mas a transformação dos sobreviventes das gangues de narcos em “vigilantes” dos pontos nevrálgicos das favelas, com salários pagos pelo Ministério do Interior.
Guerra de novo tipo Na Colômbia, os bombardeios aéreos são iguais aos que os generais estadunidenses planejam no Iraque, para “limpar o terreno de insurgentes”. E, na linguagem militar, “limpar o terreno” significa bombardear um retângulo virtual onde os satélites interceptaram uma certa quantidade de ondas magnéticas, a partir das quais os especialistas identificam as aéreas de emissão/recepção de sinais
para celulares ou de modem wireless dos laptops. Por isso, desde o início do Plano Colômbia, a presença de militares e civis ligados ao controle aéreo e, sobretudo, aos serviços de “interceptação das telecomunicações”, foi sempre executado em pleno Top Secret e com o monitoramento dos oficiais estadunidenses especializados em lutas contra-insurgentes. Desde o ano 2000, os centros de interceptação sempre foram operados pelos especialistas das “empresas civis estadunidenses” que, como a MPRI e a DynCorp., dão “assessoria para questões logísticas e de comunicações” ao Ministério da Defesa da Colômbia. A guerra psicológica que os Estados Unidos começaram contra as Farc e o ELN foi associada à guerra tecnológica. Esse novo produto da “arte militar” é a conseqüência de uma recente estratégia coerente com a intervenção de baixa intensidade, na América Latina, por parte dos Estados Unidos. Contexto que integra um processo de militarização constante das áreas de interesses estratégicos com o programa de expansão do neoliberalismo, articulado com as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
Contra-insurgência Não foi por acaso que o Plano Colômbia necessitou de quase dois anos de organização para entrar em ação, e da supervisão de dois especialistas em planejamento da luta
cações que, ao longo dos primeiros cinco anos, permitiu ao Exército colombiano desenhar o mapa operativo e logístico da guerrilha, e contra a qual foram lançadas impiedosas operações de bombardeios que, de fato, desarticularam vários comandos regionais das Farc e do ELN.
de contra-insurgência, como o brigadeiro Keith M. Huber e o general Peter Pace, ambos do Comando Sul estadunidense. De fato, o brigadeiro Huber – que já serviu em 1987 em El Salvador, para depois dirigir, no Oriente Médio, o aparato “de ação cívica para ganhar toda a mente e o coração das populações civis” –, chegou na Colômbia assessorado por 97 instrutores estadunidenses, e em 2001, acabou o treinamento dos primeiros três batalhões contra-insurgentes (6 mil homens). Depois passou a treinar três divisões com aproximadamente 36 mil homens (incluindo as unidades complementares e de apoio logístico), equipadas com 100 helicópteros, entre os quais 74 do tipo UH-1H Huey e 30 modernos Blackhawks. Por sua parte, o general Pace foi responsável pela construção da base aérea de combate “anti-narcóticos” de Larandia, no departamento de Caquetá, onde operam os aviões de reconhecimento e espionagem utilizados pelos “especialistas” estadunidenses, o “centro de inteligência” das telecomunicações e o armazém das bombas mais sofisticadas (cluster, fragmentação e fósforo). Essa poderosa máquina de guerra criada com o Plano Colômbia concentrou seus efetivos em “operações de limpeza” nas regiões ocupadas pela guerrilha: Putumayo e Caquetá (Farc), Arauca e Madalena (ELN) e Bolívar (Farc e ELN). Para isso, foi montada uma permanente operação de interceptação das telecomuniReprodução
OS CONTÍNUOS bombardeios que a Força Aérea da Colômbia realiza para destruir os acampamentos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e do Exército de Libertação Nacional (ELN) já não são mais notícia de destaque para a grande imprensa. Diferentemente do que aconteceu durante a Guerra do Vietnã, hoje, a maioria das reportagens sobre o conflito colombiano são extremamente genéricas, evitando falar se o exército está usando as famigeradas bombas cluster ou as de fragmentação ou os novos artefatos químicos “inteligentes”. Nada dizem sobre as fumigações de glifosato. Quando o assunto são os bombardeios efetuados pela Força Aérea colombiana, o silêncio da mídia é praticamente absoluto. De tempos em tempos, alguns destemidos defensores dos direitos humanos conseguem quebrar o status quo apresentando as provas mortíferas dos bombardeios. Porém, são raras as vezes que a televisão veicula tais conteúdos. A verdade é que as TVs colombianas conseguiram promover, nos habitantes de Bogotá e de cidades importantes como Medellin, Cali, Bucaramanga, Barranquilla, Monteira e Palmira, um sentimento de saturação com todas as questões relacionadas à guerra. Quando a mídia divulga o assassinato ou o seqüestro de um parlamentar, um sindicalista ou um líder de entidade popular, a maioria das pessoas entrevistadas responde de forma aleatória, ou se torna indiretamente cúmplice, ao dizer: “Se os paramilitares fizeram aquilo, é porque ele devia estar ligado aos terroristas das Farc! Se ele foi seqüestrado, é por que devia ser um potencial terrorista! Se o mataram, é porque era um informante da narcoguerrilha!”.
Alfonso Cano foi escolhido para o lugar de Marulanda
ELN e FARC O falecido comandante do ELN, Milton Hernandez (falecido em 2007, em Cuba, por insuficiência renal), responsável pelas relações internacionais do grupo, foi o principal quadro da guerrilha colombiana a entender, em 2000, que os meios tecnológicos usados pelos Estados Unidos para promover uma guerra de contra-insurgência de novo tipo iriam provocar um grande desgaste de homens e materiais, sobretudo nas regiões onde a guerrilha – em particular, as FARC – exercita um controle permanente sob forma de território libertado. O recém-falecido líder das Farc, Manuel Marulanda, acreditava que a vantagem operacional da guerrilha (mobilidade na selva e facilidade de comunicações) sobre o Exército colombiano poderia ser reduzida quando as novas divisões de luta antiinsurgentes entrassem em ação com todo seu potencial aéreo, seus soldados profissionalizados e o uso de poderosos dos meios de telecomunicação. Por isso, mesmo quando o então presidente da Colômbia, André Pastrana, entregava a Brian Sheridan, secretário adjunto de Defesa dos EUA, a mais alta condecoração do poder executivo colombiano – a Ordem de Boyocá –, em 9 de fevereiro de 2001, os comandantes das Farc, Manuel Marulanda, Raul Reyes e Ivan Reis (todos falecidos neste ano), já elaboravam um “acordo com 13 pontos para o reinício das negociações de paz e a previsão de realizar conversações três vezes por semana”. Oficialmente, Pastrana aceitou esse segundo acordo de negociação pela paz, mas logo depois fez de tudo para o inviabilizar, querendo que as Farc aceitassem na mesa de negociações o di-
rigente paramilitar das AUC, o narcotraficante Carlos Castaño. É evidente que a guerrilha preferia voltar a combater na selva. É necessário lembrar que, a partir de 1997 – altura em que as Farc e o ELN fizeram um grande ataque conjunto em nível nacional sem, porém, conseguir promover a insurreição nas principais cidades –, a guerrilha manifestou abertamente querer negociar a paz. Porém, sem a rendição unilateral, com o reconhecimento internacional do estado de beligerância e a simultânea libertação dos prisioneiros. Condições justas para o fim de uma guerra civil e preventiva, visto que a história do executivo colombiano é repleta de traições e de massacres de guerrilheiros (União Patriótica e o M-19, por exemplo), que entregaram as armas acreditando na “pacífica inserção no sistema político”.
Manipulação O ELN, em 2006, com o apoio de Cuba e de alguns países da Comunidade Européia, tentou levar o governo Uribe à mesa de negociações na capital cubana, Havana. Porém, Uribe e a imprensa estadunidenses manipularam a proposta de negociação para lançar uma campanha internacional contra as Farc, dando a entender que o ELN teria aceitado o desarmamento e rompido com as Farc, que continuavam na narcoguerrilha. É evidente que somente alguns jornais e sites de esquerda publicaram o desmentido do ELN. O que prevaleceu foram as declarações de Uribe, que se aproveitou da cumplicidade da mídia colombiana e estadunidense para manipular a opinião pública e continuar uma guerra cada vez mais atroz e sanguinária. De fato, o comandante das Farc, Raul Reyes, em sua última entrevista gravada no dia 28 de fevereiro, em seu acampamento ao sul do rio Putumayo, poucos dias antes de morrer durante um bombardeio, assim declarava a Aníbal Garzon e Ingrid Storgen: “Não me acredito que o ELN tenha aceitado o desarmamento (...). Estamos em vias de efetuar uma entrevista entre as duas chefias para fortalecer a unidade de ação, tendo em vista consolidar a luta contra o imperialismo e a oligarquia, pela nova Colômbia e a Pátria Grande (...). A unidade da esquerda revolucionária, na qual estão as guerrilhas do EPL (Exército Popular de Libertação), do ELN e das Farc, é uma necessidade de ordem estratégica (...). O nome da coordenadora Guerrilheira Simon Bolívar insere-se exatamente dentro de nossa convicção bolivariana (...). O caminho está no fortalecimento da unidade antiimperialista, progressista e da esquerda revolucionária. Impõe-se incrementar o internacionalismo, como expressão de solidariedade de classe”. Achille Lollo, jornalista italiano, é diretor do documentário América Latina: Desenvolvimento ou Mercado, disponível em DVD no www.portalpopular.org.br.
12 de 5 a 11 de junho de 2008
cultura
A politização do cotidiano Há 40 anos, o movimento da contracultura propunha uma nova estética e um novo sentido para a vida Eduardo Sales de Lima da Redação NUM CONTEXTO social amplo, a contracultura significou a contestação dos padrões institucionais de uma época. As pessoas anunciavam uma nova idéia de família, de sexo, de convívio; uma outra atitude com a natureza, com o próprio corpo e com Deus – entre os deístas. A contracultura significou, por isso, um embate contra a ordem capitalista, consumista e conservadora da época. Esse espírito de contestação inspira a mostra Vida Louca, Vida Intensa – Uma viagem pela Contracultura, no Sesc Pompéia, na cidade de São Paulo. Com a apresentação de filmes produzidos entre 1963 e 1975, as instalações também contam com debates entre artistas e intelectuais, além de leituras de poemas da “geração beatnik”. Segundo Eduardo Beu, curador da Mostra, todas as manifestações artísticas da contracultura surgiram para sair de padrões. “O importante era ter a liberdade para expor a individualidade”, conclui. E isso pode ser constatado diante da diversidade de cores e formas das excêntricas capas de discos e mesmo pôsteres de shows de Jimi Hendrix ou Janis Joplin, por exemplo, que estão na exposição. Na área mais restrita das artes, a contracultura é considerada uma fusão entre o movimento beatnik dos anos de 1950 e o advento do rock. Os principais expoentes entre os beatniks, que também serviram de base para o movimento hippie, foram Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Em relação à música, a cantora Janis Joplin,
Jim Morrison e Jimi Rendrix também se encaixam no âmbito contracultural. O resultado é que questões inusitadas emergiram desse contexto. Como conceber que uma pessoa da classe dominante também poderia ser oprimida? A resposta foi dada em coro, sobretudo pelos jovens da época. “A ação contracultural tem sua origem na liberdade humana que, como diz [Jean-Paul] Sartre, é absoluta, infinita”, afirma o jornalista Luiz Carlos Maciel. Maciel é um dos principais expoentes da chamada “Contracultura” no Brasil, mantinha a coluna Underground no extinto Pasquim, é autor do livro A Nova Consciência e fundador do jornal A Flor do Mal (veja retranca).
Marxismo crítico E se até a classe dominante poderia ser oprimida, segundo a Contracultura, isso geraria polêmicas, sobretudo nas correntes de esquerda. Por isso, a partir da festa de Música e Arte de Woodstock, em agosto de 1969, a ação política da contracultura foi colocada em xeque por alguns setores. O chavão “sexo, drogas e rock n’ roll” se relacionava
Segundo os princípios da contracultura, a individualidade e o direito de fazer com o próprio corpo o que bem lhe convier são direitos fundamentais de todo ser humano. Por isso, a questão das drogas também se insere neste contexto. De acordo com Eduardo Beu, curador da Mostra, sem o LSD (ácido lisérgico), principalmente, “as coisas seriam diferentes”. “O LSD foi usado quase que por todos, já que no período era liberado, e muitos escritores, artistas, músicos, políticos usavam para se expressar. Certamente isso influenciou suas obras e pensamentos”, atesta. Jack Kerouac, ícone do movimento beatnick, é um
Trechos de Pé na Estrada “(...) porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos ‘aaaaaaah!’. Como é mesmo que eles chamavam esses garotos na Alemanha de Goethe?” dos muitos exemplos da influência das drogas para auxiliar na elaboração de suas obras. Em apenas três semanas, ele escreveu On The Road (Pé na estrada) – 1957, livro que seria consagrado mais tarde como uma espécie de “bíblia hippie”. Kerouac usava uma máquina de escrever e uma série de grandes folhas de papel
Woodstook e Maio de 1968 são dois eventos igualmente importantes que se referem a aspectos diferentes da contracultura “Creio que os temas ligados à vida cotidiana e à busca de formas de vida alternativas não são despolitizadas, mas remetem a uma politização do cotidiano. As questões ligadas à sexualidade (direitos femininos, dos homosse-
Exposição Vida Louca, Vida Intensa
Kerouac e as drogas Da redação
com o ideário hippie estadunidense e era utilizado por muitos de forma pejorativa, remetendo a uma concepção de um movimento que estaria associado ao descompromisso e à despolitização. “Essas algumas pessoas se baseiam em seus próprios preconceitos sobre o que acreditam ser compromisso e politização. É um viés equivocado”, enfatiza Maciel, que culpa a mídia estadunidense por ter propagado tal deturpação.
Divulgação
Uma viagem pela contracultura
Reprodução
manteiga, que cortou para servirem na máquina e juntou com fita para não ter de trocar de folha a todo momento. Redigia de forma ininterrupta, sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com parágrafos. Era comum entre Jack e seus amigos o uso de benzedrina e anestésicos, entre outras drogas. (ESL)
xuais, busca de vida comunitária), assim como às drogas, refletem o questionamento de um modo de vida repressivo existente tanto nos países capitalistas como nos países do bloco soviético, onde o modelo totalitário existente era extremamente puritano e repressor”, explica o historiador da Universidade de São Paulo (USP), Henrique Carneiro. Ele critica uma visão marxista limitada acerca da ação política, dogmatizada, na qual “a definição dos fenômenos da esfera cultural ficaram reduzidos a uma mera refração imediata da vida econômica; sendo que a liberdade de crítica, tanto no terreno político, como no cultural, ficou subordinada às determinações do partido único e de sua burocracia dirigente”. O historiador cita Cuba como exemplo, apontando que o regime da época, além de ter perseguido homossexuais, proibiu cabelos compridos, o rock e quaisquer formas de estilo de vida consideradas “extravagantes”, expulsando figuras como o poeta Allen Ginsberg. Já o marxismo crítico, “do próprio Marx”, de acordo com Carneiro, “assim como de seus seguidores antidogmáticos, como autores ligados à Escola de Frankfurt, sempre buscou levar em conta os fenômenos da opressão e da formação da consciência a partir de determinações múltiplas em que os elementos da formação da vida cultural assumem extrema relevância e só podem ser compreendidos em sua conexão com os processos de exploração econômica”.
Woodstock e Paris As referências globais da contracultura foram dois marcos no século passado: as da-
tas de maio de 1968, em Paris, e agosto de 1969, em uma fazenda da pequena cidade estadunidense de Bethel, próxima à Nova York. Se Woodstock gerou polêmica em 1969, sobretudo entre os setores mais conservadores, até mesmo da esquerda, com sua nudez libertária e sua aproximação com a natureza; maio de 1968 contou com a ação política, não somente de estudantes, mas também dos operários, contra o sistema autoritário da França, em Paris, o que legitimou o pragmatismo de suas manifestações junto a amplos setores da esquerda. Luiz Carlos Maciel sugere a complementaridade entre os jovens politizados de 1968 e os hippies libertários de 1969. “Woodstook e Maio de 1968 são dois eventos igualmente importantes que se referem a aspectos diferentes da contracultura”. E completa: “a nossa responsabilidade principal, a de cada um de nós, é conquistar o que você chama de completude individual. A harmonia com o coletivo vem depois, se for possível, se esse coletivo tiver encontrado também o caminho da liberdade”. O curador da mostra, no entanto, não vê perspectivas neste caminho na contemporaneidade. Para ele, o contexto atual se difere bastante do auge da contracultura. “Não faz sentido para eles [jovens hoje] expor as entranhas para gerar alguma rebelião artística ou sócio-política”, afirma, concluindo que “estamos, hoje, num estágio de letargia”. (ESL)
Serviço Vida Louca, Vida Intensa – Uma Viagem pela Contracultura. Sesc Pompéia. Rua Clélia, 93, tel. 3871-7700. 3ª a sáb., 10 às 21h (dom. até 20h). Até 22/6.
O alternativo sufocado A ditadura e a visão dogmática da esquerda cercearam o florescimento da contracultura no Brasil da Redação As ações contraculturais no mundo irradiaram no Brasil diversos núcleos e manifestações ligadas à poesia, música, teatro, e mesmo ao jornalismo. O tropicalismo foi a corrente artística que obteve maior destaque. Gilberto Gil e Caetano Veloso foram um dos poucos que conseguiram se sobressair como os representantes dessa onda em território nacional. Nomes como Jorge Mautner e Tom Zé seriam ignorados pelos meios de comunicação; “ignorados pela ignorância da mídia”, pondera Maciel. No jornalismo brasileiro também existiu a expres-
são contracultural. Em 1971, junto com outros escritores, Maciel fundou A Flor do Mal (1971), um dos primeiros jornais contraculturais brasileiros. Antes, participou do Pasquim, com a coluna Underground, entre os anos de 1969 e 1971. O conteúdo de A Flor do Mal contemplava poesias em versos, poemas em prosa e alguns textos considerados por muitos como absurdos. Para ele, a notícia foi e continua sendo “uma mera falsificação dos fatos”. “A poesia, que é o verdadeiro mergulho no significado da realidade, é invariavelmente desprezada”, defende. O jornal acabou no mesmo ano. Mautner, Tom Zé e Maciel são exemplos de uma vasta
corrente de artistas, intelectuais e militantes sufocados pela ditadura brasileira e por vários setores da sociedade. “A ditadura sufocou parte desse florescimento cultural rebelde, por meio da repressão, mas também houve uma atitude repressiva e puritana por parte de setores da própria esquerda que, formados na tradição stalinista, não davam espaço para direitos feministas, homossexuais ou de questionamento cultural”, afirma o historiador da USP Henrique Carneiro. Apesar de tudo, ao olhar para trás e notar a resistência da época, Maciel conclui que “ela [a contracultura] pode ser constrangida pelos condicionamentos, mas nunca totalmente destruída”. (ESL)