Circulação Nacional
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Ano 6 • Número 276
São Paulo, de 12 a 18 de junho de 2008
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Reprodução
Jonathanrdunbar
O AQUECIMENTO GLOBAL E O ETANOL
ELEIÇÕES NOS EUA
Obama chega à disputa pela
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presidência dos EUA, com o carisma que marcou Kennedy e inspirado por Abraham Lincoln. Pág. 9
Movimentos denunciam ação do agronegócio e das transnacionais Organizações sociais, articuladas pela Via Campesina e pela Assembléia Popular, realizaram protestos em treze Estados (até o dia 10), durante a jornada nacional de lutas contra as transnacionais. O objetivo é denunciar os problemas causados pela atuação de grandes empresas que são beneficiadas pelo agronegócio e pelo modelo econômico. Em São Paulo (SP), a Polícia
Militar reagiu com violência contra uma manifestação num prédio da Votorantim. Cerca de 600 pessoas protestavam contra a construção de usina no Vale do Ribeira, a qual deverá produzir energia para uma fábrica de alumínio da transnacional. Em Minas Gerais, uma ferrovia da Vale foi ocupada, assim como estradas e usinas em várias outras regiões do país. Págs. 2 e 3
Desemprego juvenil cresce, freqüência na escola também Um estudo do Ipea traçou um amplo panorama da juventude brasileira. Entre os dados mais relevantes, está o crescimento do desemprego de jovens (entre 15 e 29 anos). Atualmente, apenas 56% têm trabalho, sendo que só a metade com carteira assinada. Por outro lado, a freqüência dos jovens no ensino médio aumentou em 96,3% nos últimos dez anos. Pág. 8
Ivan Cruz/Ag. A Tarde/Folha Imagem
EUA dão asilo para acusado de assassinar 60 bolivianos
Polícia de SP segue impune por crimes contra pobres
Cerca de 50 a 80 mil habitantes de El Alto (Bolívia) participaram de uma manifestação em frente à Embaixada dos Estados Unidos em La Paz. A mobilização criticou o asilo político concedido pelo presidente estadunidense, George W. Bush, a Carlos Sánchez Berzaín, ministro da Defesa à época da Guerra do Gás, em outubro de 2003. O episódio, motivado por protestos contra a exportação da fonte de energia que lhe dá nome, deixou 60 mortos e 400 feridos. “Asilo deve ser dado a políticos perseguidos, não a delinqüentes que nos roubaram. Levaram muito dinheiro e cometeram um genocídio”, protestava indignado o comerciante Roberto García Ortega. Pág. 10
Três casos de morte em que há suspeita do envolvimento de policiais de São Paulo continuam sem esclarecimento. Para entidades de direitos humanos, a falta de apuração na “Operação Castelinho”, no massacre dos moradores de rua e nos “Crimes de Maio” fazem parte de um processo de impunidade que existe em relação a violências cometidas pela polícia paulista contra pessoas de baixa renda. Para o advogado Danilo Chammas, a não-responsabilização de agentes do Estado que cometeram crimes abre precedente para que a polícia continue matando: “A impunidade é uma mensagem clara a todos os agentes públicos, matem à vontade que nós encobrimos vocês”. Pág. 7
Cerca de 500 agricultores ocuparam a usina de Sobradinho (BA), no dia 10, em protesto contra a construção de barragens no rio São Francisco Walter Sotomayor
A energia cara, segundo uma ótica marxista O preço da energia elétrica no Brasil dobrou do início dos anos 1990 para a década atual. O processo que determina essa elevação é elucidado em tese do pesquisador Dorival Gonçalves Júnior, recentemente defendida na USP, que procura percorrer as transformações no setor segundo um viés marxista. Setor este marcado, hoje, pela exploração do trabalhador e pela concorrência entre os capitais de investidores pelos recursos naturais. Pág. 6
Entre a Amazônia e o Cerrado, o desmatamento está liberado
Reprodução
Lula cede a pressões para desmatar mais florestas O governo Lula recuou novamente diante das pressões dos ruralistas, capitaneados pelo governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PR). A portaria para punir os responsáveis pelo desmatamento na zona de transição entre a Floresta Amazônica e o Cerrado, vetando o acesso a recursos públicos, foi derrubada. Acabou excluída das restrições uma área que compreende 96 municípios localizados no Mato Grosso, Maranhão e Tocantins. Para especialistas, os produtores dessa faixa poderão seguir desmatando a floresta com financiamento do Estado. Pág. 5
DOCUMENTÁRIO Todo poder para o povo: o partido dos Panteras Negras retrata o grupo que pautou a autodeterminação nos EUA. Pág. 12
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editorial
1 – AGRONEGÓCIO não significa apenas uma operação comercial com produtos agrícolas, como diz o dicionário e como alguns articulistas da imprensa corporativa querem usar. No Brasil, esse é um modelo específico de organizar a produção e o comércio na agricultura e que se transformou numa categoria socioeconômica. Ele representa a aliança que se produziu a partir do neoliberalismo entre os grandes proprietários de terra com as empresas estrangeiras. Essas grandes transnacionais, como Monsanto, Bunge, Cargill, ADM, Syngenta, Bayer, Basf, Dreyfus, Unilever, Nestlé e Danone, dominam todo o comércio mundial e os preços dos insumos e dos produtos agrícolas. Esse modelo impõe o monocultivo especializado com uma só planta em grandes extensões de terra. E, para se viabilizar, precisa de mecanização intensiva, muito veneno agrícola (os agrotóxicos) e pouca mão-deobra. Basicamente toda a produção é voltada para o comércio exterior. Exportam a maior parte da soja, mi-
debate
O alerta dos camponeses contra o agronegócio lho, algodão, café, açúcar, etanol e laranja que fabricam. Tudo isso financiado com dinheiro público, com juros subsidiados. E, apesar de estarem ganhando muito dinheiro, o governo renegociou com os grandes ruralistas uma dívida de R$ 75 bilhões, por 20 anos! Além disso, desde os tempos do governo de FHC, foi aprovada a Lei Kandir, que isenta de ICMS todas as exportações de matérias-primas agrícolas e minerais. Ou seja, o agronegócio não paga nada de imposto nas exportações. Isso representa um grande subsídio. Então, alguém precisa avisar o Lula, quando reclama dos benefícios agrícolas dados pelos governos dos Estados Unidos e Europa aos seus fazendeiros, que aqui no Brasil o subsídio em termos porcentuais é até maior.
O fato é que o Brasil está virando uma nova colônia dos capitalistas estrangeiros, que querem apenas nossa natureza para produzir o que eles precisam e enriquecer ainda mais. E nós ficamos com a degradação do meio ambiente, com a transferência da água, que vai dentro dos produtos, com a destruição da biodiversidade imposta pela monocultura e com os alimentos contaminados, que geram muitas enfermidades para a população. Por isso, as elites se protegem comendo apenas produtos orgânicos, cada vez mais caros nas gôndolas de supermercados. Enquanto isso, o povo fica com o desemprego, a pobreza e o êxodo rural, que expulsa a mão-de-obra do campo para as favelas da cidade. Portanto, o agronegócio só interessa às empresas estrangeiras e aos
grandes proprietários – que, aliás, vivem nas cidades sem trabalhar – e não ao povo brasileiro, que apenas paga a conta. 2 – Mas há alternativas. É possível produzir em larga escala, com técnicas da agroecologia, que protegem o meio ambiente e garantem a biodiversidade através da policultura e da combinação de plantas. É possível e necessário produzir alimentos saudáveis e baratos. Essa alternativa significa organizar a produção agrícola na forma de pequenas e médias unidades, com mão-de-obra familiar e na forma camponesa, combinando essa produção com agroindústrias cooperativadas e fixando a juventude e as pessoas no meio rural. Ou seja, é possível produzir muito mais alimentos, em vez de etanol e eucalip-
crônica Leonardo Boff
Sérgio Haddad
Fala mestra! Fala mestre! É preciso ouvir a voz do professorado A IMAGEM do professorado da escola pública está desgastada. A cobertura da educação na mídia é o espelho desse desgaste. Uma vez ao ano, no Dia do Professor, os meios de comunicação esforçam-se para mostrar profissionais travestidos de heróis – sempre um exemplo individual de uma pessoa boa e comprometida que não exerce uma profissão, mas sim um sacerdócio. No coletivo, como categoria profissional, o professorado de escola pública só aparece na mídia de forma negativa. Quase sempre a ele é imputada a responsabilidade sobre todos os males do ensino: ou é mal formado, ou sem interesse, ou falta muito às aulas, ou é incompetente, ou é corporativo, só pensa no salário e na carreira e não nos alunos ou, ainda, é um coitado, vítima da violência dos próprios alunos. Quase sempre a voz que aparece nos meios de comunicação é a voz dos dirigentes ou dos chamados especialistas, e nunca do professorado. Entre os “especialistas”, ultimamente, quem mais tem falado são os empresários. Falam do sentido de uma educação para o desenvolvimento e para a economia, criticam o modelo de gestão, falam em produtividade do sistema e em como obter melhores respostas com menores custos. Se pudessem, substituiriam os professores por máquinas, pois podem ser domadas. As soluções apresentadas para a melhoria da qualidade sempre são definidas independentemente dos professores, por cima deles, dando por princípio que eles são pacientes das reformas, e não agentes. Afinal, se são culpados por todos os males, por que então tomá-los em consideração? O silêncio dos professores e das professoras da escola pública é um reflexo de dois fenômenos complementares: de um lado, a desvalorização do trabalho do docente; por outro, a existência de mecanismos repressivos que impedem o seu livre expressar. Já de muito o trabalho docente vem sendo deixado de ser considerado como fundamental. Seu lugar social e o seu papel foram sendo desprestigiados pelas contínuas reformas educativas que em seu nome são implementadas. Inicialmente, pela constante desvalorização do seu salário, o que torna o trabalho docente desprestigiado frente às demais categorias profissionais, além de evasão de quadros e da super exploração daqueles que têm que estar em muitos lugares ao mesmo tempo, para poder pagar as suas contas. O excesso de trabalho, além de prejudicar a saúde do professor, não permite que ele prepare bem as suas aulas, que se atualize, que mantenha condições de ter um acompanhamento mais próximo dos seus alunos. O professor, desta forma, é levado a se desumanizar e passa a ser um “dador” de aulas, que entra na sala quase sempre de forma mecânica para cumprir suas muitas jornadas de trabalho. Sua voz tende a ser a da repetição, e não a da criação, da discussão, da produção de conhecimentos. Mas as reformas também pouco se preocupam com a prática do professor, com a sua experiência de trabalho,
to, e com menos recursos. A grande propriedade usa muito mais crédito, e de maneira irresponsável, do que os agricultores familiares. Por isso, na primeira quinzena desse mês, em todo o Brasil, os trabalhadores rurais da Via Campesina estão se mobilizando para denunciar o modelo do agronegócio. Para que o povo da cidade saiba que está comendo alimentos envenenados e pagando a conta. Para que o povo saiba qual o motivo do preço dos alimentos terem aumentado. A sociedade precisa saber por que o clima anda cada vez mais descontrolado. Por que falta água em tantas regiões do país e por que há aquecimento global, enquanto meia dúzia de empresas estão acumulando muito dinheiro. Por tudo isso, os camponeses se mobilizaram em locais símbolos do agronegócio, como as sedes das grandes empresas – campeãs na multiplicação de sementes transgênicas, no monocultivo de eucalipto de exportação –, nos portos e ferrovias utilizados para exportação de nossas riquezas.
Luís Vieira
afinal, dizem os dirigentes, é preciso instrumentalizá-los para que exerçam sua profissão com qualidade. Não é necessário pensar, basta um currículo centralizado, um material didático descritivo nas mãos dos professores, e orientações de como transmitir o conteúdo. As avaliações de massa servem para que os alunos se comparem quanto ao seu desempenho, no jogo do mercado educacional, e assim busquem, por vontade própria, aprender o não aprendido ou mudar de escola ou de professor. E assim vamos seguindo de reforma em reforma, de cima para baixo, tentando fazer da profissão docente uma peça na engrenagem constituída de fora para dentro das salas de aulas. Mas então, por que os professores não se expressam sobre suas condições de trabalho, sobre as mudanças que julgam necessárias, sobre o ofício de docente? Em conversas com jornalistas sobre a ausência da voz do professorado nas reportagens e matérias sobre políticas educacionais, foi identificado o tolhimento da sua expressão livre, baseado em mecanismos repressivos, explícitos ou não. Uma das formas de tolhimento da voz do professor é o Estatuto dos Funcionários Públicos. Conforme levantamento realizado pelo Observatório da Educação da Ação Educativa em 25 Estados do País , em 18 deles professores e outros servidores têm sua liberdade de expressão cerceada. O texto varia entre os Estados, mas, de um modo geral, “tem o mesmo sentido: proíbe que funcionários públicos emitam publicamente opinião a respeito de atos da administração. Na prática, o artigo permite que a crítica a uma política pública de educação, por exemplo, seja punida como referência depreciativa.” Dos 18 Estados identificados, em 10 os Estatutos foram produzidos durante a ditadura militar e até o momento não houve revogação; já nos outros 8 Estados, as leis já nasceram inconstitucionais, pois foram elaboradas na década de 1990. Aplicado ou não o Estatuto nos dias
de hoje, a grande verdade é que ele permanece como uma espada sobre a voz pública do professor, condicionando-o a pedir permissão aos seus superiores para poder expressar sua opinião, em particular em relação às políticas dos seus governos. A escola pública tem sido muito criticada, mas não há condições de resgate da sua qualidade sem a participação ativa dos seus professores e professoras. Participação ativa significa uma participação humanizadora, respeitadora da sua condição de profissional, que é, ao mesmo tempo, transmissor de conhecimentos, mas, fundamentalmente, produtor de conhecimentos. Isto significa que respeitar a sua dignidade é respeitar a sua capacidade de analisar a sua prática e construir os instrumentos e conhecimentos necessários ao aprimoramento como profissional. Só há aprendizagem quando ela ocorre de dentro para fora, quando o docente se identifica em sua prática cotidiana como profissional e faz dela seu vínculo com alunos, colegas e a comunidade onde a escola está inserida. O professor é o principal elo entre o aluno, sua vida e o conhecimento. Só ele é capaz de impor qualidade e isto significa que seu papel e sua voz são fundamentais. Reformas educativas que não consideram isto tendem a violentar a profissão docente e estão fadadas ao fracasso. Leis que amordaçam o professorado ou criam ambientes de tolhimento da liberdade de expressão, tendem a calar a participação docente com sua experiência e conhecimentos como o principal instrumento para a melhoria da escola pública. A voz do professorado é essencial na construção da educação pública, universal e de qualidade, por isso... Fala mestra!, Fala mestre! Sérgio Haddad é economista, doutor em educação, coordenador geral da Ação Educativa e Diretor Presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Correio eletrônico: sergio@acaoeducativa.org
Agir rápido, agir juntos FINALMENTE AS Igrejas também estão se mobilizando para enfrentar as mudanças climáticas da Terra. O secretáriogeral da ONU, Ban Ki-moon, visitou em março o Conselho Mundial das Igrejas em Genebra e disse: “Um problema global exige uma reposta global. Nós precisamos da ajuda das Igrejas”. E elas responderam prontamente com uma conclamação aos milhões de cristãos dispersos pelo mundo afora com estas palavras: “Agir rápido, agir juntos, porque não temos tempo a perder”. Citaram a Bíblia para enfatizar que Deus nos entregou a Terra como herança, para administrar e não para dominar, pois esta palavra biblica, “dominar”, significa cuidar e gerenciar. Acolheram os dois imperativos propostos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês): a mitigação e a adaptação. A mitigação quer identificar as causas produtoras do aquecimento global, que é o nosso estilo delapidador de produção e consumo ilimitado e individualista. A adaptação considera os efeitos perversos, especialmente nos países mais vulneráveis do Sul do mundo que demandam solidariedade, pois se não conseguirem se adaptar, assistiremos, estarrecidos, a grandes dizimações. As Igrejas assumem uma função pedagógica: ao evangelizarem, devem propor o ideal de uma sobriedade voluntária e de uma austeridade jovial e ensinar o respeito a todos os seres, pois todos saíram do coração de Deus. Sendo dons do Criador, devem ser condivididos solidariamente entre todos, a começar pelos que mais precisam. A Igreja Católica oficialmente ainda não propôs nada de relevante. Mas a Conferência dos Bispos do Brasil em suas Campanhas da Fraternidade, sobre a água e sobre a Amazônia, ajudou a despertar uma consciência ecológica. Os bispos canadenses publicaram recentemente uma bela carta pastoral com o título: “A necessidade de uma conversão”. Atribuem à conversão um significado que transcende seu sentido estritamente religioso. Ele implica “encontrar o sentido do limite, pois um planeta limitado não pode responder a demandas ilimitadas”. Precisamos, dizem, libertar-nos da obsessão consumista. “O egoísmo não é somente imoral, ele é suicida; desta vez não temos outra escolha senão uma nova solidariedade e novas formas de partilha”.
É mais fácil enviar pessoas à lua e trazê-las de volta do que fazer com que os humanos respeitem os ritmos da natureza. Agora estamos colhendo os frutos envenenados da dessacralização da vida, induzida pelo poder da tecno-ciência, a serviço da acumulação de uns poucos Chegamos a esse ponto, reconhecem, porque há séculos não respeitamos mais as leis da vida, olvidando a sabedoria ancestral que ensinava: “Não comandamos a natureza senão obedecendo a ela”. É mais fácil enviar pessoas à lua e trazê-las de volta do que fazer com que os humanos respeitem os ritmos da natureza. Agora estamos colhendo os frutos envenenados da dessacralização da vida, induzida pelo poder da tecno-ciência, a serviço da acumulação de uns poucos. A fé hebraico-cristã possui suas razões próprias para fundar um comportamento ecologicamente responsável. Parte da crença, semelhante àquela da moderna cosmologia, de que Deus transportou a criação do caos ao cosmos, quer dizer, de um universo marcado pela desordem a um outro no qual vige a ordem e a beleza. E Deus disse: “Isto é bom”. Colocou o homem e a mulher no jardim do Éden para que o “cultivassem e o guadassem”. “Cultivar” implica cuidar e favorecer o crescimento, e “guardar” significa proteger e assegurar a continuidade dos recursos; como diríamos hoje, garantir um desenvolvimento sustentável. Importa refazer a conexão rompida com a natureza para que possamos de novo gozar de sua beleza e confiar em seu futuro. Esta fé funda a esperança de que a criação possui um fim bom, tão finamente expresso no livro da Sabedoria: “Senhor, tu amas todos os seres e a todos poupas porque a ti pertencem, ó soberano amante da vida” (11, 24 e 26). Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Jorge Pereira Filho, Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Leandro Spezia, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131- 0812/ 2131-0808 ou assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar: (11) 2131-0815
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brasil
Militantes ocupam a Votorantim em SP JORNADA DE LUTAS Ação teve objetivo de denunciar ações da transnacional; PM reprimiu violentamente os manifestantes Dafne Melo da Redação Com boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e bandeira da Via Campesina nas costas, Marina* abaixa a cabeça e se mostra reticente diante do pedido de entrevista; mas, após ouvir a primeira pergunta, levanta a cabeça bruscamente e responde decidida: “Estou aqui para a Votorantim não tirar o pão da minha família.” A adolescente é filha de pescadores da região do Vale do Ribeira, onde a empresa de Antônio Ermírio de Moraes planeja construir a barragem de Tijuco Alto para atender às demandas energéticas de suas fábricas de alumínio. Essa foi uma das denúncias apresentadas durante a ocupação do escritório da Votorantim no Centro da cidade de São Paulo, na manhã do dia 10. Cerca de 300 militantes da Via Campesina, Educafro, Assembléia Popular, Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Marcha Mundial de Mulheres e Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab) entraram no saguão térreo do prédio por volta das 9 horas. Durante meia hora, gritaram palavras de ordem e leram, em voz alta, as denúncias contra a transnacional brasileira. Aos funcionários que iam descendo, al-
Divulgação
guns assustados, eram entregues panfletos que explicavam o motivo da manifestação; a organização da ocupação deixou claro que qualquer um deles poderia sair do prédio a qualquer momento, se quisessem. A ação se inseriu dentro da jornada nacional de lutas contra as transnacionais que ocorre em todo o país entre na primeira quinzena desse mês. De acordo com nota à imprensa da Via Campesina, a mobilização quer “denunciar os problemas causados pela atuação das grandes empresas no país, especialmente as estrangeiras, que são beneficiadas pelo modelo do agronegócio e pela política econômica neoliberal.”
Repressão “Não vai dar para ir agora, não. Vou ter que agüentar a dor”, diz, com a voz tremida, um militante do MST, encarregado da segurança da ocupação. Com uma tipóia improvisada com pedaços de camisetas, ele conta por que não quer ir a um hospital. “Agora, não. Se eu chegar lá assim vão saber que eu estava na manifestação e chamar a polícia, melhor esperar.” O sem-terra relata o tratamento dado pela PM paulista. “Já chegaram atirando com bala de borracha e jogando bombas. Aí eu não conseguia respirar e tive que subir as escadas, mas não conseguia. Então, umas com-
Manifestantes no saguão da Votorantim; cinco foram presos pela PM
panheiras me deram vinagre [para aspirar] e melhorou, consegui sair e pegar ar de novo, foi quando tomei a cacetada, uma só, mas bem dada”, relembra, mostrando o ombro inchado. A Polícia Militar teria entrado por uma porta lateral e jogou bombas de efeito moral, gases lacrimogêneo e pimenta nos manifestantes. Segundo diversos militantes, entrevistados pelo Brasil de Fato, que estavam fazendo a
segurança da ação nas entradas do prédio, a PM não procurou realizar nenhum tipo de negociação para uma saída pacífica. Índio, trabalhador rural assentado, mostra três marcas de porrete nas costas. “Levei também uma na cabeça que quebrou o cassetete do PM”, diz, abaixando a cabeça para mostrar o inchaço provocado pela pancada. “A verdade é que eu não fiquei surpreso. É o capitalismo, né? A po-
lícia vai sempre oprimir os pobres e defender o capital do Antônio Ermírio de Moraes”, completa. Houve tentativa de diálogo para a desocupação?, pergunta, mais uma vez, a reportagem. “Diálogo para eles é isso aqui”, diz um trabalhador do acampamento Che Guevara, de 65 anos, arregaçando a manga da blusa para mostrar a marca do golpe de cassetete que levou no braço. Reginaldo, estudante da Educafro, escuta toda a conversa e finali-
za: “Não entendi por que tanta bomba. Estava tudo ordeiro, sem quebra-quebra ou armas. Eram só idéias.”
Prisões Cinco manifestantes que não conseguiram sair do prédio foram presos pela PM. Uma militante recebeu pancadas na cabeça, no braço e na perna quando já estava no chão. Todos foram liberados no final da tarde, mas responderão inquérito policial por danos ao patrimônio privado. Aos 300 manifestantes se somaram outros e todos seguiram em marcha pelo Centro de São Paulo. A assessoria de imprensa da Votorantim, contatada pela reportagem, limitou-se a emitir uma nota em que repudia a manifestação, mas não respondeu a nenhuma das denúncias feitas pelos movimentos. Já a polícia, por meio do coronel Álvaro Camilo, comandante da área Centro, rebateu as alegações. “Eles trancaram a porta e não deixaram a PM entrar. Entraram, fecharam a porta, colocaram cadeado e tiveram atitudes fora das normas da sociedade.” Para o oficial, a ação da PM foi “moderada” e justificada, uma vez que o ato dos manifestantes “era totalmente ilegal.” * Foram usados apenas os primeiros nomes, ou nomes fictícios, a pedido dos entrevistados.
Em Minas, os impactos sociais da Vale Transnacional causa danos até em bairros da capital Belo Horizonte Eduardo Sales de Lima da Redação Minas Gerais é um exemplo concreto da insustentabilidade das atividades da Vale. No bairro de São Geraldo, em Belo Horizonte, cerca de 500 pessoas bloquearam pacificamente a linha férrea da Ferrovia Centro Atlântica (FCA), pertencente à transnacional, entre as 7 e as 12 horas do dia 10, para denunciar os problemas causados pela passagem do trem. Um dos principais é o bloqueio de passagem de veículos e pessoas por até duas horas, várias vezes ao dia. Desde 2007, quatro pessoas morreram dentro de ambulâncias por causa do trancamento. Integrantes da Assembléia Popular dos bairros de São Geraldo, Caetano Furquim, Boa Vista, Casa Branca e Vila Mariana de Abreu pedem, há 25 anos, a transposição da linha e a indenização das famílias que tiveram parentes mutilados ou mortos. Uma comissão formada pela Assembléia Popular local e comunidades atingidas apresentou como pauta a exigência da transposição dos trilhos. Os representantes da FCA e da Vale garantiram o início das obras no prazo de 40 dias. Até essa data,
será desenvolvido um projeto de transposição que inclui uso social para a área hoje ocupada pela linha. “No final eles podem recuar, mas as lideranças ficaram satisfeitas”, afirma Kelli Maria da Fonseca, integrante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e da Assembléia Popular de Minas Gerais.
Táticas da Vale Segundo Franco Santana, também da Assembléia Popular mineira, apesar da vitória parcial, os representantes da FCA têm levado as negociações com a “barriga”, além de utilizarem táticas para desarticular a organização das comunidades prejudicadas pela linha férrea. “Há cinco anos foi aberto um diálogo com a empresa; porém, nesse período, eles cooptaram e dividiram lideranças das comunidades através de ações judiciais”, conta. De acordo com ele, cerca de 20 lideranças sofreram ação de interdito proibitório, que impede a aproximação dos trilhos em uma distância menor que 100 metros. Uma das lideranças que sofreu esse tipo de ação foi o líder comunitário Vagner dos Santos “Buda”, integrante da Liga Comunitária do bairro de São Geraldo. Sem querer entrar nesse debate, ele destaca uma for-
ma mais sutil do que ações judiciais que visam esfacelar as organizações populares: brindes. Moradores e crianças de escolas da região por onde passa a linha férrea recebem réguas, canetas, bonecos, todos com o logotipo da FCA/Vale. “A gente tenta fazer uma manifestação que desenvolva a consciência das pessoas, mas, por meio da FCA, a Vale dá esses objetos para ludibriar os moradores e as crianças, que acabam gostando”, relata. Tais “presentes” não escondem, porém, que o trem também inviabiliza as aulas da Escola Municipal Pe. Francisco Carvalho Moreira por causa de seu barulho e abala a estrutura das casas. “A escola chega a parar suas atividades em uma hora”, conta Franco Santana. Dos trilhos, a partir do bairro de São Geraldo, os manifestantes foram para a Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais e finalizaram a atividade em frente à Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Segundo a Assembléia Popular, a Vale, por ser uma empresa que exporta a maior parte das riquezas extraídas do Brasil, prejudica o meio ambiente e as comunidades onde atua, representando um símbolo que induz à luta dos trabalhadores.
Em Sobradinho, ação contra a transposição O protesto foi o mesmo da segunda greve de fome de frei Cappio Tatiana Merlino da Redação A barragem de Sobradinho, na Bahia, foi ocupada por 700 militantes e representantes de movimentos sociais de mais de 20 comunidades dos Estados de Pernambuco e Bahia. Durante a primeira ocupação desse caráter no local, no dia 10, os manifestantes protestaram contra grandes projetos, como a transposição do Rio São Francisco. A ação teve início às 6 horas, quando os trabalhadores que chegaram de 12 ônibus ocuparam a área de acesso à sala de controle da Usina. Policiais militares e federais foram ao local para negociar uma possível saída dos manifestantes, mas os trabalhadores deixaram a área às 13 horas, após decisão em
assembléia. “Nosso objetivo era denunciar a expansão do agronegócio, o aumento da pobreza dos trabalhadores, exigir regularização fundiária e protestar contra a construção de novas barragens”, afirma Clarice Maia, da Articulação São Francisco Vivo. De acordo com ela, além dos movimentos da Via Campesina, outras organizações da região, como pastorais e entidades que defendem a convivência com o Semi-Árido, estiveram presentes na manifestação. A Barragem de Sobradinho foi construída há 30 anos a 50 quilômetros de Juazeiro (BA), pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), e assim formou-se o maior lago artificial do mundo, com uma área de 4.214 km2 e capacidade para 37,5 bilhões de metros cúbicos
de água. Conhecida como “coração artificial do São Francisco”, foi chamada de “coração artificial e doente” pelo frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA). Com a construção da represa, quatro cidades foram atingidas – Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado – e dezenas de vilarejos foram submersos. Mais de 70 mil pessoas foram deslocadas. O local foi palco, entre novembro e dezembro de 2007, da segunda greve de fome de frei Luiz contra as obras da transposição. “A pauta da manifestação de hoje era a mesma, nosso foco maior foi a transposição, mas essa é a vez dos movimentos”, afirma Clarice. De acordo com ela, entre as bandeiras dos manifestantes também estava a revitalização do São Francisco.
Protestos em outros 10 Estados Alagoas, Ceará, Espírito Santo, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina e Tocantins da Redação Até o dia 10, a Via Campesina e a Assembléia Popular fizeram manifestações em defesa da mudança do modelo econômico e da produção agrícola em 13 Estados. De modo geral, o objetivo da jornada é distribuir renda e reduzir o preço dos alimentos. No Rio Grande do Sul, manifestantes ocuparam área de uma das maiores transnacionais do setor de alimentos, a Bunge, na cidade de Passo Fundo. Segundo documento divulgado pelos organizadores da ação, as empresas de alimentos são as principais responsáveis pela alta dos preços desses produtos, pois exercem um monopólio no setor. Em Santa Catarina, ocorreram duas manifestações, uma delas em frente à Klabin, empresa de papel e celulose que detém 160 mil hectares de pinho e eucalipto no Estado; outra no trevo da BR 282, onde os manifestantes trancaram a rodovia, que dá acesso à cidade de Aurora, para protestar contra a Aurora, que representa o modelo de produção do agronegócio. O alvo no Paraná foi a usina de Salto Santiago, ocupada por 300 manifes-
tantes. Eles criticam o fato de serem impedidos de chegar a menos de 100 metros da mata ciliar que envolve o lago da barragem.
Nordeste Já no Ceará, mais de mil pessoas ocuparam o Porto do Pecém, situado em São Gonçalo do Amarante (região metropolitana). Foram fechadas as áreas de carga e descarga do terminal em protesto contra o projeto de instalação de cinco termoelétricas, uma refinaria e uma siderúrgica no complexo, que vão causar danos ambientais e sociais. Os trabalhadores também protestam contra a transposição do Rio São Francisco e a instalação de uma refinaria da Petrobras, que será construída em cima da bacia hidrográfica, tendo consumo de água equivalente a uma cidade de 30 mil habitantes. Por conta da construção de uma série de canais, o complexo será o destino final da mega-obra do governo federal no Velho Chico. Também contra a transposição, cerca de mil pessoas de diversas organizações populares fizeram protestos na hidrelétrica de Xingó, em Alagoas. Além disso, criticaram a construção de novas barragens e a baixa vazão do
rio. Segundo os manifestantes, as obras beneficiam apenas os latifundiários do agronegócio. Na Paraíba, mais de 200 trabalhadores rurais da Via Campesina ocuparam o latifúndio Nossa Senhora de Lourdes, localizado a 5 km da cidade de Mari, que possui 1.100 hectares plantados com a monocultura da cana. Já em Pernambuco, aproximadamente 200 agricultores da Via Campesina ocuparam a Estação Experimental de Cana-de-Açúcar (EECAC), no município de Carpina, Zona da Mata Norte de Pernambuco, em protesto contra o avanço da monocultura de cana-deaçúcar na região, que contribui para a elevação da crise dos alimentos no país.
Norte e Sudeste Em Roraima e no Tocantins, aconteceram protestos contra a construção de usinas hidrelétricas no rio Madeira e a de Estreito, respectivamente. Ambos também protestaram contra a devastação da Amazônia provocada pela monocultura de exportação da soja. Por fim, no Espírito Santo, 500 integrantes da Via Campesina protestaram contra a monocultura da cana e a produção de agrocombustíveis.
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brasil
Etanol não mitigará aquecimento global MEIO AMBIENTE Todo o etanol produzido no Brasil a partir da cana tem potencial ínfimo para diminuir emissões de gás carbônico Jonathanrdunbar
Dafne Melo da Redação A PRODUÇÃO brasileira de etanol tem, hoje, um potencial para reduzir apenas 0,125% do total de emissões mundiais de dióxido de carbono (CO²). Esse é o resultado de um estudo realizado pelo biólogo Marcos Buckeridge, pesquisador do Instituto de Botânica da Universidade de São Paulo (USP). Entretanto, ao que tudo indica, além de ignorar as conseqüências sociais da monocultura da cana-de-açúcar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também desconhece a ineficiência do etanol para mitigar o aquecimento global. “O Brasil tem insistido no enorme potencial dos biocombustíveis. Eles são decisivos no combate ao aquecimento global e podem jogar um papel importantíssimo no desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres”, declarou Lula durante a Cúpula sobre Segurança Alimentar, promovida pela divisão das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
“Outros países, como a África do Sul, China e Austrália pesquisam fortemente cana e etanol. Podem vir a produzir variedades melhores que a nossa, inclusive”, alerta biólogo da USP Buckeridge – que defende o plantio da cana e a produção de etanol em condições diferentes das que existem hoje – também põe em perspectiva a capacidade da planta fazer o chamado seqüestro de carbono. O total de carbono armazenado nas florestas de todo o mundo está na casa de 1,2 trilhão de toneladas. A quantidade de cana cultivada hoje equivale a apenas 0,0007% desse total, ou seja, seu potencial de seqüestro de carbono é ínfimo. Além do mais, como esse carbono capturado pela cana não fica estocado, mas é logo liberado para atmosfera pela queima da biomassa, o seqüestro feito pela cana é desprezível.
Cana e regeneração O pesquisador da USP entende que o etanol pode ser um bom substituto para a gasolina, porém não acha que o Brasil deva produzir álcool para o mundo. “Podemos contribuir, mas nem é factível produzir tanto etanol. Há cálculos que mostram que teríamos que cobrir todo o planeta várias vezes com plantação de cana para suprir a demanda”, afirma. Ele também defende que o cultivo da cana deve ser feito de forma sustentável. “O Brasil já tem tecnologia, mas é preciso planejamento político para isso”. Buckeridge desenvolve pesquisas que mostram a possibilidade de se plantar cana e fazer regeneração de florestas ao mesmo tempo. “Se houvesse corredor de florestas no meio dos canaviais, devolveríamos gradativamente uma parte de biodiversidade. O Brasil tem uma das melhores tecnologias de regeneração de florestas, e
Quanto
3 bilhões
de toneladas de carbono ao ano são emitidas por queimadas na Floresta Amazônica podemos aliar isso à produção de um biocombustível ambientalmente mais amigável. Isso para regenerar Cerrado e Mata Atlântica”, aponta o pesquisador, que não cogita o plantio da cana em áreas da Amazônia. Além disso, o biólogo também observa que é possível cultivar a cana em condições que garantam que ela capture mais gás carbônico, ou seja, mais biomassa em sua composição, melhorando a qualidade da planta. Assim, seria necessária uma área menor de plantio para se fabricar uma mesma quantidade de etanol. “Se o cultivo é feito numa atmosfera com mais gás carbônico, ela seqüestra muito CO² e chega a ter até 60% a mais de açúcar que uma cana normal”, exemplifica.
Queimadas Para Buckeridge, essa saída seria inclusive mais estratégica comercialmente: “Outros países, como África do Sul, China e Austrália pesquisam fortemente cana e etanol. Podem vir a produzir variedades melhores que a nossa, inclusive. Mas tecnologia de regeneração de floresta só nós desenvolvemos. Esse pode ser nosso diferencial”. De acordo com o pesquisador, o combate ao desmatamento na Amazônia e a regeneração de florestas é a medida mais acertada para aplacar o aquecimento global. “Algumas estimativas sugerem que só as queimadas na floresta Amazônica emitem cerca de 3 bilhões de toneladas de carbono em um ano. Imaginemos então que consigamos diminuir as queimadas para dez vezes menos que esse valor. Estaríamos, assim mesmo, emitindo um total de carbono muito maior do que conseguimos produzir com as plantações de cana”, finaliza.
Para entender Aquecimento global – De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), há bases científicas sólidas que apontam para um aumento da temperatura no planeta nas próximas décadas. O uso de combustíveis fósseis para diversos fins e a agroindústria (incluindo a pecuária) têm sido os principais emissores de gases de efeito estufa (dióxido de carbono, metano e óxido nitroso) nos últimos 250 anos. A emissão desses gases nos últimos 40 anos foi maior do que em qualquer outra época durante os últimos 2 mil anos. Seqüestro de carbono – É o processo de remoção de gás carbônico (CO²) da atmosfera, por meio dos vegetais existentes nos oceanos e florestas, que, por meio de fotossíntese, capturam e estocam o carbono, lançando, em troca, oxigênio na atmosfera. O CO² é o principal gás causador do efeito estufa. Esse fenômeno, por sua vez, leva ao aumento da temperatura terrestre. Por isso, o desmatamento florestal é um dos principais fatores que contribuem para o aumento da temperatura na Terra.
Ipea faz fórum permanente sobre mudanças climáticas da Redação Em maio, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) deu início a um fórum permanente que tem o objetivo de discutir os impactos do aquecimento global no Brasil, assim como propostas de mitigação. “Queremos debater e conscientizar sem alarmismos”, define o pesquisador e coordenador do projeto, José Aroudo Mota. Sem data marcada para acabar, os debates podem ocorrer tanto entre a comunidade científica e acadêmica, como também em escolas da rede pública. Todos os documentos e eventos serão registrados na página do Ipea (www.ipea.gov.br). “O objetivo desse Fórum é não só discutir os temas dentro de gabinetes, mas fazer uma ampla parceria com a sociedade civil, Congresso, Estados e municípios a fim de formular políticas públicas”, declarou Mota no evento de abertura do Fórum. Uma das primeiras iniciativas é a elaboração de uma cartilha didática, em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e a Fundação Esquel,
Quanto
92
% da Mata Atlântica já foi derrubada que será distribuída nas escolas públicas brasileiras. O presidente do Ipea, Márcio Pochmann, acredita que o Fórum “é mais que uma rede de produção do conhecimento, ele se propõe a pensar a sociedade, quiçá o mundo, em novas bases”. Mota defende que, por mais que existam modelos e leituras diferentes de como será o aquecimento global e quais serão seus impactos, há algumas questões que certamente estarão presentes no debate, como o desmatamento da Amazônia e de outros biomas brasileiros. “O problema do desmatamento já se arrasta no país. Nos anos de 1970, a Amazônia tinha 2% de sua área desmatada; hoje, 20% da floresta já foi derrubada. Só há 20% de Caatinga, e de Araucária, só 1,4%. O Cerrado já foi degradado em 40%. E a Mata Atlântica em 92%. Precisamos regenerar essas florestas também”, opina. (DM)
A queimada, que é feita para facilitar o corte manual da cana, emite poluentes
Transporte emite mais gás carbônico do que a indústria Solução não é substituição da gasolina pelo etanol, mas investimento em transporte público de qualidade e combate ao desperdício Mari Gao
da Redação Conter o desmatamento de florestas e regenerá-las não é a única medida a ser tomada para conter o aquecimento global. Investir no transporte coletivo, buscar maior aproveitamento energético pelas indústrias e apostar em fontes limpas e renováveis de geração de energia (solar e eólica, por exemplo) seriam algumas medidas essenciais para se diminuir a emissão de gases causadores do efeito estufa. Nos Estados Unidos país que emite a maior quantidade desses gases, dados da Agência Nacional de Proteção ao Meio Ambiente mostram que as termelétricas são responsáveis por um terço das emissões. O setor de transporte vem logo atrás, com 28%, ficando à frente da atividade industrial, com 19%. Para muitos especialistas, o modelo de carro individual e o predomínio do transporte rodoviário são um tiro no pé. Beneficiam apenas as indústrias automobilísticas e de combustíveis fósseis. Essa é a avaliação do professor do Instituto de Física da USP, Américo Kerr, que inclusive questiona a produção de etanol. “Não adianta produzir agrocombustível para continuar sustentando um modelo de transporte baseado no carro individual, algo totalmente insustentável, não só do ponto de vista ambiental, mas energético também. É desperdício de um combustível fóssil não renovável, é absurdo”, opina. A solução é simples: investir em transporte público coletivo de qualidade. Nos grandes centros urbanos, isso significaria não apenas diminuir as emissões de CO², mas também melhorar a qualidade do ar (os carros tam-
A solução seria investir em transporte coletivo de qualidade
bém são os maiores emissores de gases e partículas poluentes) e aliviar o trânsito. Resumindo, teria-se uma melhoria na qualidade de vida da população.
Indústria O setor industrial é o segundo maior emissor de CO² no Estado de São Paulo. De acordo com uma pesquisa feita em abril pela Companhia de Tecnologia de Sa-
“Considerando-se apenas a queima de combustível fóssil, a indústria emitiu 29 milhões de toneladas em 2006, enquanto o setor de transportes foi responsável pela emissão de 43 milhões de toneladas”, informa pesquisador da Cetesb
Países que mais emitem gás carbônico Colocação
País
Porcentagem (%)
1
Estados Unidos
20,2%
2
China
18,4%
3
Rússia
5,6%
4
Índia
4,9%
5
Japão
4,6%
6
Alemanha
7
Canadá
2,3%
8
Grã-Bretanha
2,2%
9
Coréia do Sul
1,7%
10
Itália
1,7%
16
Brasil
3%
1,2% Fonte: ONU – Indicadores do milênio
Quanto
8 empresas são responsáveis
por 63% das emissões do setor industrial paulista
neamento Ambiental (Cetesb), da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, oito empresas são responsáveis por 63% das emissões do setor industrial no Estado. São elas: Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão; Petrobras, em Paulínia; Petrobras, em São José dos Campos; Petrobras, em Cubatão; Petroquímica União S/ A, em Santo André; Companhia Brasileira de Alumínio, em Alumínio; Votorantim Cimentos do Brasil S/A, em Salto de Pirapora; Rhodia Poliamida e Especialidades LTDA., em Paulínia. O levantamento da Cetesb listou as 100 empresas que mais emitem o gás causador do efeito estufa. O inventário, explica Carlos Tomatsu, pesquisador da Companhia, avaliou primeiro apenas a atividade industrial, mas agora o órgão irá analisar o setor de transportes. “Considerando-se apenas a queima de combustível fóssil, a indústria emitiu 29 milhões de toneladas em 2006, enquanto o setor de transportes foi responsável pela emissão de 43 milhões de toneladas”, informa Tomatsu. No ramo industrial, Américo Kerr aponta que há estudos que mostram que a eficiência energética – ou seja, melhor aproveitamento das fontes energéticas disponíveis, combatendo desperdícios – poderia ser otimizada em até 25%. Carlos Tomatsu também aponta esse caminho. “A maioria das medidas para a redução de CO² na indústria está relacionada com a suficiência energética. As empresas precisam melhorar a eficiência da queima e o aproveitamento energético”, observa. (DM)
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Lula cede a ruralistas e libera desmatamento no Cerrado MEIO AMBIENTE Governo muda portaria assinada pela ex-ministra Marina Silva e Estado seguirá financiando a produção de quem desmata a floresta Michelle Amaral da Redação DIANTE DE pressões dos ruralistas e do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PR), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu recuar em uma medida de combate ao desmatamento no Brasil. Ainda no fim de sua gestão, a ex-ministra Marina Silva idealizou uma portaria para punir os responsáveis pela derrubada de árvores na Amazônia e no Cerrado vetando o acesso a recursos públicos. Após sua renúncia, o governo decidiu excluir das restrições nada menos do que uma área equivalente ao Estado do Acre: cerca de 155 mil quilômetros quadrados entre 96 municípios localizados em Mato Grosso, Maranhão e Tocantins. Produtores incluídos nessa faixa poderão seguir derrubando árvores da floresta e tendo suas atividades financiadas pelo Estado. Na prática, o governo bancará o desmatamento desta região. E não poderá alegar que desconhecia os impactos ao meio ambiente. Justamente nesta área, considerada de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, as formações vegetais características correm risco de desaparecimento. É o que informou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em levantamento divulgado no dia 4. A pesquisa apontou também que 15% da área total da floresta já foi desmatada. Segundo o IBGE, o principal inimigo da floresta é a expansão das atividades agrícolas (sobretudo a monocultura da soja) e pecuárias. O recuo do presidente Lula foi o desfecho de um dos conflitos travados – e perdidos – pela ex-ministra Marina no governo. A portaria 96/2008 foi assinada no final de março. Marina determinou que órgãos públicos cumprissem a resolução 3.545, do Conselho Monetário Nacional (CMN), e interrompessem a concessão de créditos agrícolas para os produtores que desmatam a floresta.
Reação dos produtores A medida provocou a ira dos proprietários rurais, que usaram o governador Blairo Maggi como porta-voz. O Mato Grosso, Estado líder no desmatamento, seria o mais atingido pela restrição. Dentre os maiores produtores de soja do mundo e alia-
do do governo Lula, Maggi exerceu forte pressão no governo, o que resultou na decisão do presidente Lula de alterar a portaria. Contou, ainda, com apoio da bancada ruralista, cujos integrantes compõem a base aliada do governo no Congresso. Para Marcelo Marquezini, do Greenpeace de Manaus (AM), o recuo do governo é uma sinalização perigosa. “Mostra que a lei só serve para a Amazônia. Como pode uma portaria, que tem o papel de reforçar a legislação, recuar? É como se a lei não existisse no Cerrado e não fosse preciso cumprir nenhuma lei ambiental”, acrescenta ele. O anúncio das mudanças foi feito pelo novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. Para ele, não houve alteração na lei, mas sim “apenas detalhamento”. Minc diz que a portaria deveria tratar apenas do bioma Amazônia e, por isso, exclui as áreas do Cerrado e de faixas de transição. Prometeu, futuramente, editar portaria semelhante para outros biomas.
“Isso significa que se pode desmatar o Cerrado e ainda conseguir recursos para isso. Existe um paradoxo, pois a preservação da Amazônia depende da preservação do Cerrado”, afirma professora da UnB Enquanto isso, o governo seguirá financiando o desmatamento. Pior para o meio ambiente. Justamente esta área excluída da portaria possui uma vegetação conhecida como ecótonos, de alta riqueza biológica e que apresenta espécies típicas tanto da Amazônia como do Cerrado (veja box). “A revogação da portaria, liberando créditos àqueles que desmatam a região, é uma clara posição de não cumprimento das leis de preservação. Isso significa que se pode desmatar o Cerrado e ainda conseguir recursos para isso. Existe um paradoxo, pois a preservação da Amazônia depende da preservação do Cerrado”, declara a professora do Departamento de Engenharia Flores-
Mesmo na Amazônia, governos estaduais vão determinar as restrições da Redação Não é apenas a exclusão das áreas do Cerrado que fomenta as críticas de ambientalistas às mudanças na portaria anunciadas pelo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. Na nova redação do documento, o governo entregou aos governos estaduais o poder de determinar quais propriedades rurais serão impedidas ou autorizadas a tomar empréstimos públicos na Amazônia. Para escapar aos efeitos da medida, os fazendeiros precisarão de declaração do órgão ambiental estadual atestando que a terra está fora do bioma Amazônia. O ministro admitiu que o sistema pode abrir espaço para fraudes, mas prometeu acionar
Quanto
155 mil km² é a extensão das áreas excluídas da restrição; algo próximo às dimensões do Acre
tal da Universidade de Brasília (UnB), Jeanine Felfili.
Mais concessões Mas mesmo com o recuo de Lula, o governador Blairo Maggi e os ruralistas seguem pressionando o governo para que a portaria seja revogada mesmo para as áreas da Amazônia. A nova regra está prevista para vigorar a partir de 1º de julho e incluirá regiões do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins. “Defendo que a resolução deixe de existir”, disse o governador. Segundo o ruralista, o corte dos financiamentos públicos imposto pela resolução do Conselho Monetário Nacional atinge 45% da área agrícola e 42% da produção de Mato Grosso. Em sua opinião, a medida provocaria um dano irreparável à economia local e ao abastecimento de alimentos. Maggi defende que 90% dos agricultores do Mato Grosso dependem do financiamento para produzir, e que o Estado não terá condições de repor a quantia necessária nem os agricultores têm dinheiro disponível. A mais recente frente de batalha dos ruralistas é um projeto de Decreto Legislativo, de número 13, no qual tentam derrubar, no Congresso, as principais medidas de combate ao desmatamento na Amazônia. O alvo do projeto apresentado pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO) é o decreto 6.321, assinado em dezembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O decreto estabelece as principais medidas de controle ao desmatamento e visa a atualização cadastral junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) dos imóveis rurais da Amazônia, a fim de monitorar a ocorrência de novos desmatamentos, bem como impedir as ações ilegais e penalizar os infratores. O bloqueio do crédito rural a produtores que tenham desmatado ilegalmente suas propriedades, regulamentado por resolução do Banco Central, seria só uma das vítimas da ação em curso.
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para fiscalizar a distribuição do documento a agricultores, pecuaristas e madeireiros. Já o novo presidente do Ibama, Roberto Messias Franco, disse que ao mesmo tempo em que a medida abre espaço para fraudes, também pode ser um caminho para um comportamento ético. “Faremos a fiscalização por amostragem. O Ministério Público atuará. Não creio que algum secretário assinará que uma propriedade que está dentro do bioma (Amazônia) esteja fora, arriscando perder o seu cargo e amargar alguns anos na prisão, ou plantando árvores na Amazônia e no Cerrado”, declara Franco. É incontestável, no entanto, que o Executivo estadual é ainda mais suscetível à influência dos interesses econômicos. No próprio Mato Grosso, por exemplo, o Ministério Público Federal questiona uma decisão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, que liberou projetos de hidrelétricas em propriedades do governador Blairo Maggi. Os procuradores afirmam que as usinas vão prejudicar o curso dos rios que passam por terras indígenas, aspecto que não foi observado no planejamento do projeto. (MA)
“Cerrado é fundamental para as florestas”, diz pesquisadora Bioma abriga a nascente das três principais bacias hidrográficas da América Latina da Redação Embora tenha uma rica biodiversidade, o Cerrado não está entre os biomas brasileiros protegidos pela Constituição, caso somente da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. “Pouco se fala sobre a preservação do Cerrado, existe uma portaria que visa a sua inclusão nos biomas protegidos, mas está em tramitação na Constituição há 5 anos”, ressalta Jeanine Felfili, professora do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB).
“Se o desmatamento interromper os fluxos de umidade atmosférica que passam da Amazônia para o Sudeste e o Sul do Brasil, será uma calamidade para o Centro-Oeste e o Sudeste”, diz professor da UnB A pesquisadora aponta o agronegócio como a principal causa do desmatamento nesta região. Para ela, o bioma não conseguirá resistir às pressões agrícolas sem a criação de unidades de conservação que funcionem de fato. Ela defende também a ampliação do tamanho das reservas da região. “Enquanto as da Amazônia são de 1 milhão de hectares, as reservas do Cerrado são todas pequenas, não passam
da casa do milhar. Uma família de onças não consegue viver em um parque nacional”, exemplifica. O Cerrado compreende a grande região que abrange o sul do Estado do Pará, sudeste do Amazonas, norte do Mato Grosso e pequenas faixas a leste de Rondônia e oeste de Tocantins. Mas, de toda a sua extensão, apenas 2,6% é protegida por Unidades de Conservação. Já a Amazônia tem 12% de sua área em conservação. A situação hoje já é grave. Segundo um estudo feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), metade do Cerrado está degradada. Outros institutos não-governamentais apontam até 70% de degradação. “Mesmo que o correto seja os 50%, considerando-se que a degradação do Cerrado começou nos anos 70, é considerável o avanço do desmatamento”, ressalta Jeanine.
Caixa d’água “Para o mundo, a Amazônia é importante pelo clima e pela grande biodiversidade. Mas para que ela seja mantida, é necessário o equilíbrio das águas. O Cerrado está em áreas altas e abriga a nascente das três principais bacias hidrográficas da América Latina: Tocantins, São Francisco e rio da Prata. Para que as florestas sejam mantidas, é necessário que o Cerrado seja preservado também”, acrescenta a professora. Donald Sawyer, assessor do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e também professor da Universidade de Brasília (UnB), ressalta que o Cerrado tem a
função de caixa d’água, pois os principais rios nascem e crescem na região antes de seguirem para as bacias hidrográficas. Além disso, a sua degradação pode trazer enormes prejuízos na geração elétrica. Sawyer afirma que cerca de 95% da população brasileira depende da energia gerada pelas águas do Cerrado. O professor alerta que, “se o desmatamento interromper os fluxos de umidade atmosférica que passam da Amazônia para o Sudeste e o Sul do Brasil, será uma calamidade para o Centro-Oeste e o Sudeste”. Isso porque as nuvens de chuva que vêm do norte poderão não chegar mais com umidade suficiente para manter a agricultura e o abastecimento. “São os rios voadores que transportam a umidade atmosférica do Atlântico para levar chuva às regiões Sudeste e Centro-Oeste”, completa. Sawyer acrescenta ainda que o desmatamento no Cerrado gera emissões significativas de carbono. Ele explica que o solo da região é rico em carbono e emite uma considerável quantia desse elemento, principalmente durante as secas ou em áreas desmatadas. Segundo ele, a expansão do agronegócio se dá principalmente pela pecuária e pela agricultura, no cultivo de soja, algodão, canade-açúcar e eucalipto. “O desmatamento é galopante no Cerrado, que é a savana mais rica em biodiversidade do mundo, com um potencial de utilidade no contexto do aquecimento global, uma vez que suas espécies são resistentes à seca e ao calor”, alerta. (MA)
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O alto preço da energia, segundo Marx ENTREVISTA Pesquisador elucida o processo de dominação do setor elétrico brasileiro por agentes financeiros Eduardo Sales de Lima da Redação O PREÇO da energia elétrica no Brasil é alto, resultado do processo de privatização do setor nos anos de 1990, quando os capitais investidores iniciaram uma disputa para obter o melhor trabalho excedente na geração de eletricidade: lucro, a grosso modo. Internacionalizada, a tarifa de energia no país é balizada pelo petróleo. A partir de 1995, o Estado propiciou liberdade para o capital explorar seus trabalhadores e seus recursos naturais. Hoje, após mais de uma década do início do processo de privatização, a energia paga pelos brasileiros está no mesmo patamar daquela que, em outros países, é produzida a partir do carvão mineral e do petróleo. O preço da eletricidade residencial aumentou mais de 180% entre 1995 a 2002, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), que calcula a inflação, subiu 58% no mesmo período. Para somar uma nova visão sobre o debate, o professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Dorival Gonçalves Júnior desenvolveu um estudo sobre o processo histórico-social de mudanças na organização da indústria de eletricidade brasileira, sob o título Reformas na indústria elétrica brasileira: a disputa pelas “fontes” e o controle do trabalho excedente. A tese de doutorado foi defendida, em setembro de 2007, no Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia (PIPGE) da Universidade de São Paulo. Ele destaca que seu trabalho procura percorrer o passado e o presente das mudanças no setor segundo a “teoria do valor” e a “teoria do trabalho”, desenvolvidas por Karl Marx. O estudo aponta que, em 1994, essa indústria empregava 188.208 trabalhadores e, em 2004, apenas 106.409, reduzindo, em 10 anos, 81.799 postos de trabalho. Números que refletem a medida clássica empregada no capitalismo: elevação da exploração dos trabalhadores. Gonçalves aponta que as reformas na indústria elétrica ocorridas nos anos de 1990 propiciaram o aumento da concorrência dos capitais pelas melhores fontes de energia. E hoje, mais do que nunca, o sistema financeiro tem o controle sobre o que é prioritário para setor. Segundo o estudo, o atual modelo de crédito, “além de concentrar o poder de decisão da expansão dos sistemas de produção nas mãos dos agentes financeiros, acabou lhes conferindo ainda a capacidade de poder definir a organização da produção e a circulação da quase totalidade da cadeia produtiva da eletricidade, em acordo com os seus interesses de acumulação”. Na entrevista a seguir, o pesquisador coloca o Estado brasileiro como mais um colaborador para os “agentes financeiros”, “aperfeiçoando” o atual modelo e diminuindo os riscos dos investidores. “Basta ver o balanço das empresas a partir de 2005. Jamais a indústria de eletricidade brasileira alcançou a lucratividade que ela tem alcançado agora”, defende. Brasil de Fato – Por que fazer uma análise das reformas estruturais do setor energético no Brasil segundo um ângulo marxista? Dorival – Por meio do estudo, foi possível realizar um resgate histórico da indústria elétrica, desde sua origem. Até para discutir que a noção de energia é capitalista; que é tida como algo objetivo da natureza, sem entender que essa noção foi produzida num dado momento histórico, numa sociedade que se organizava na forma capitalista. Em qual período “nasce”
Reprodução
essa nova concepção estrutural de exploração capitalista em relação aos recursos naturais e ao trabalhador? No final dos anos de 1980 e início dos 1990, se inicia um debate nacional a respeito do processo de reestruturação produtiva da indústria de infra-estrutura de um modo geral, mas principalmente da indústria elétrica. A partir de 1989, havia melhores condições políticas mundiais para começar essa implementação. No Brasil, como se dá hoje a apropriação da natureza e do trabalho pelo capital no setor elétrico? A forma da exploração capitalista segue aquele modelo clássico que está discutido em O Capital, que é a busca pela lucratividade por meio do trabalho excedente. Para que possa produzir um trabalho bem superior ao necessário, o capitalismo procura estender a jornada e conjugar a exploração dos meios de produção e da força de trabalho, o que irá produzir mais trabalho excedente durante a jornada, ao que chamamos de “mais-valia relativa”. Mas o que isso tem a ver com a internacionalização do preço da energia? Os capitalistas vendem um recurso natural que é a base da maior produtividade do trabalho. Eles conseguem mais lucratividade por meio da maior taxa de exploração da fonte e do trabalhador. No caso brasileiro, o domínio dos recursos hidráulicos significou gerar eletricidade em uma cadeia produtiva que é base para acesso ao maior trabalho excedente, comparado, por exemplo, com a eletricidade produzida a carvão mineral ou a gás natural. No final, a eletricidade é vendida pelo mesmo preço, independente de ser produzida por uma cadeia produtiva hidráulica, de gás natural ou de petróleo, porque, desde os anos 1990, a eletricidade tem uma tendência de se transformar em uma mercadoria mundial. Mas assim que o setor foi reestruturado, não houve crescimento da concorrência, como argumentam os defensores de sua privatização? As grandes transnacionais não concorrem entre si, mas aos locais de maior taxa de exploração do trabalho. Vou citar concretamente esse último leilão de Jirau [hidrelétrica que será construída no rio Madeira, em Rondônia]. Havia dois grupos disputando, um ancorado no Estado através de Furnas e outro através da Eletrosul. É claro que, se eu olhar pelo viés da ideologia dominante, a todo o momento que os capitais concorrem. Na verdade, o que eu precisava era de uma teoria para poder mostrar onde ocorre o concorrência, que é a “teoria do valor” e o “trabalho social”, de Marx. A gente vai compreender que os capitais concorrem entre si na busca dos locais onde haja maior taxa de exploração. Para combater essa idéia de que a indústria elétrica pode ter concorrência, eu resgato que, desde a sua origem, ela nunca concorreu, de fato. Por ser intensiva em capital, é al-
A partir dos anos de 1990, a exploração dos trabalhadores brasileiros do setor elétrico insere-se na internacionalização do preço da energia
go suicida entre os capitalistas fazer uma disputa sem uma certa regra. Eles aprenderam com o que aconteceu logo no princípio da indústria elétrica, entre o final do século 19 e início do passado. Inicialmente, montou-se uma cadeia produtiva que estava fundada na produção de energia em corrente contínua. Logo em seguida, foi descoberta a corrente alternada e feita uma cadeia produtiva a partir dela. Todo o setor da corrente contínua sucateou sem que tivesse recuperado o capital necessário daquela cadeia produtiva. Por isso, ao ser intensiva em capital constante, há uma dificuldade muito grande de haver inovações tecnológicas e, por conseqüência, competição. Daí decorre também o porquê dessa indústria, logo no final do século 19 e início do 20, fazer as grandes fusões. Como isso se refletiu em nosso país? Até 1993, as empresas distribuidoras de energia eram todas nacionais, e o preço da eletricidade, único em todo o território. Em 1994, antes desse processo, a eletricidade residencial passa de 70 dólares para 130 dólares; e a energia industrial salta de 40 para 80. O governo já providenciava uma normatização dos preços da eletricidade nesse patamar internacional. A partir daí, a grande disputa é por essa cadeia produtiva, cuja base de recurso natural é capaz de obter grande produtividade, fazendo com que o trabalho excedente seja bastante elevado e que a lucratividade seja muito alta. É importante mostrar que isso não é uma volta ao que era a indústria elétrica nos 1930, quando era privada. Hoje, o capitalismo financeiro atinge o poder de organizar o processo industrial, e a forma como está concebida a organização industrial da produção de energia elétrica no Brasil está de acordo com os mecanismos monetários de reprodução do capital do sistema financeiro. Como você avalia as políticas sociais de energia do governo Lula, como o programa Alvaro Alkschbirs
Barragem no caminho de Brotas (SP)
Luz para Todos? E a “tarifa social”, que determina que todos os consumidores com gastos menores que 200 kWh/mês sejam beneficiados com descontos ? A “tarifa social” é uma política compensatória. Tendo em vista que o preço da eletricidade se tornou tão exacerbado, grandes segmentos da população ficariam sem nenhum acesso. Quanto ao programa Luz para Todos, também é compensatório e atende, inclusive, aos interesses das empresas distribuidoras, porque também se transformou num grande negócio. Na verdade, quem dirige esses processo de expansão são as concessionárias de energia dos Estados. Por outro lado, não dá para negar que o Luz para Todos é, em relação ao governo passado, eficiente, na medida que o trabalhador não paga pela construção das linhas de transmissão, mas somente pela eletricidade. Qual o papel do governo Lula para minimizar os oligopólios que surgiram a partir dessas “reformas”? O governo Lula, no setor da indústria elétrica, foi o que aperfeiçoou o processo iniciado nos anos de 1990. O modelo que está aí hoje foi criado nesse governo, em 2004, pela Lei nº 10.848, que dispõe sobre o processo de comercialização da energia elétrica. Ele trouxe muito mais segurança para o capital. Foi esse governo que criou a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para assumir a responsabilidade dos estudos da viabilidade técnica, econômica e ambiental e, mais do que isso, fez o confronto com a sociedade. Além disso, quem ganhou a concorrência em Jirau e Santo Antônio [também no rio Madeira], saiu com 70% de sua energia vendida por 30 anos. É como se um capitalista tivesse uma fábrica de produção de sapatos com capacidade de produzir 100 pares e ganhasse a concessão de explorar já com um mercado de 70 pares comprados. E isso também se sucede na indústria de distribuição. O governo manteve toda a regulamentação do período de Fernando Henrique, que visava garantir uma tarifa da venda de energia do mercado regulado de maneira tal que garantisse o equilíbrio econômico-financeiro das empresas. Esse governo, do ponto de vista da indústria da eletricidade, aperfeiçoou o processo de exploração do trabalho excedente, criando uma cadeia produtiva de elevada lucratividade e baixo risco para os capitalistas.
fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Libertação já Ganha força novamente a campanha pela libertação de cinco cubanos presos e condenados injustamente, em 2001, na Flórida, Estados Unidos. Os cinco patriotas – Ramón Labañino, Fernando González, Antonio Guerrero, René González, Gerardo Hernández – pegaram penas de 15 anos a prisão perpétua, em julgamentos irregulares, sem provas e sem direito a defesa. Trata-se de uma perseguição inaceitável e odiosa. Crise gaúcha O envolvimento do governo tucano do Rio Grande do Sul com o escândalo de corrupção no Detran gaúcho já derrubou quatro secretários, o comandante da Brigada Militar e deve atingir mais gente próxima da governadora Yeda Crusius, do PSDB. Há quem aposte que a crise só acaba com o impeachment ou com a renúncia da governadora. A dama moralista está perdendo a arrogância, a pose e a carreira política. Compadre vivo Voltou ao olho do furacão o advogado Roberto Teixeira, antigo compadre do atual presidente da República. Agora o advogado está envolvido nas negociações de compra e venda da Varig, VarigLog e Gol, operação que lhe teria rendido a bagatela de 5 milhões de dólares. Mais uma vez, especula-se a suposta interferência do Palácio do Planalto em transações privadas cheias de aspectos obscuros. Puro entreguismo Nos anos de 1970, quando foram inaugurados os primeiros trechos do metrô de São Paulo, os trens eram construídos por empresas brasileiras. Nas últimas concorrências da Companhia do Metropolitano, já na era tucana, as encomendas dos trens foram feitas para empresas francesas e espanholas. Quantos empregos o Brasil perdeu com esse retrocesso industrial? Risco ambiental Levantamento da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), em 1970, indicou que 73% da área original de caatinga nordestina ainda estavam preservados. Dados recentes revelam que 59% da área desse bioma já foram alterados e destruídos. A caatinga nordestina está correndo um sério risco de perder toda a sua variedade de plantas e animais. Quem defende a caatinga? Cinismo total Envolvida em inúmeros processos por danos am-
bientais, desde produzir “remédios” que provocam o apodrecimento do úbere das vacas, herbicidas venenosos, até sementes transgênicas que não se reproduzem, a transnacional Monsanto tem a cara de pau de lançar um prêmio para projetos de pesquisa científica e comunicação social denominado de “agro-ambiental”. Por que ninguém impede a atuação nefasta da Monsanto no Brasil?
Grilo ianque De acordo com o Incra, existem atualmente 33 mil imóveis registrados em nome de estrangeiros, a maioria na região amazônica, e com uma área total de 55 mil quilômetros quadrados. O próprio órgão admite que o número verdadeiro de terras nas mãos de estrangeiros é cinco vezes maior que o registro cartorial. As estimativas indicam que os estrangeiros controlam área superior a vários Estados brasileiros. Pode? Recado acreano A ex-ministra do Meio Ambiente, senadora Marina Silva (PT-AC), estreou dia 9 como articulista da Folha de S.Paulo. No primeiro artigo deixou claro a que veio: “Há agora uma discussão importante que resume tudo: é preciso dinheiro para implementar medidas e normas criadas, porém a relatoria ambiental do Orçamento, que está sendo discutido no Congresso, foi entregue à bancada ruralista, cuja oposição às medidas de combate ao desmatamento é conhecida.” Cenário oficial Alguns Estados estão acelerando a realização de plenárias regionais preparatórias da Conferência Nacional de Comunicação Social, que deverá acontecer até o final do ano. As plenárias, que devem reunir jornalistas e comunicadores de meios alternativos e comunitários e debater a reforma do sistema de rádio e TV, correm o sério risco de se tornarem encontros da imprensa chapa-branca. Nada mais do que isso!
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brasil
Polícia de SP: licença para matar pobres SEGURANÇA Falta de esclarecimento em três casos em que a polícia paulista é suspeita de cometer crimes evidencia impunidade Tatiana Merlino da Redação DIA 5 de março de 2002, 12 supostos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) foram mortos na rodovia Castelo Branco, nas proximidades de Sorocaba (SP), quando viajavam num ônibus, de acordo com a polícia, para praticar um assalto a um avião pagador. O fato ficou conhecido como “Operação Castelinho”. Em 19 de agosto de 2004, sete moradores de rua foram assassinados enquanto dormiam embaixo de um viaduto no Centro de São Paulo (SP). Entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, 493 pessoas foram mortas na capital paulista, numa contra-ofensiva a ataques do PCC. O caso ficou conhecido como “Crimes de Maio”. De acordo com as próprias autoridades de segurança pública, a facção vitimou apenas 46 pessoas. Nos três eventos, há fortes indícios de participação da polícia de São Paulo nas mortes, mas, passados seis, quatro e dois anos das mortes, nenhum dos casos foi esclarecido. Segundo juristas e organizações de direitos humanos, os episódios fazem parte de um processo de impunidade que existe em relação a crimes cometidos pela polícia paulista contra pessoas de baixa renda. Nas mortes ocorridas em 2002, 2004 e 2006, as vítimas eram pobres.
Política de extermínio De acordo com Danilo Chammas, advogado e membro da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), os episódios revelam a existência de uma “política de extermínio praticada pelo Governo do Estado de São Paulo com o absoluto consentimento das autoridades federais”. Além disso, segundo ele, os eventos demonstram como a gestão da segurança pública “é classista e serve para proteger os ricos dos pobres. Casos de vítimas pobres não são investigados, já de vítimas ricas perpetuam-
Quanto
493 pessoas foram
mortas na resposta da polícia aos ataques do PCC, em 2006
se nos telejornais”. Para o advogado Ariel de Castro Alves, secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), a falta de interesse em apurar tais mortes ocorre por dois motivos: “primeiro pela própria ligação da polícia com os crimes, e por isso faz de tudo para dificultar o esclarecimento, e também pelo fato de se tratar de pessoas excluídas, algumas suspeitas da prática de crime”, afirma. Para as autoridades, explica, “são vidas vistas como descartáveis, sem nenhum valor. É muito
diferente de casos como o da menina Isabella Nardoni, que envolvem a classe média. Aí há uma prioridade e total dedicação da polícia em esclarecer”, compara.
Impunidade Na avaliação do jurista e exvice prefeito de São Paulo Hélio Bicudo, a decisão da Justiça no caso do massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, é um caso exemplar de nãoresponsabilização de agentes do Estado que cometeram crimes: “É um paradigma, porque até agora ninguém foi punido, e o coronel Ubiratan [Guimarães, o comandante da operação para debelar a rebelião], foi absolvido”. Assim, abre-se caminho para que a polícia continue matando. “É um estímulo à violência”, observa. Para ele,
é muito provável que as mortes de 2002, 2004 e 2006 irão pelo mesmo caminho. Chammas concorda: “a impunidade é uma mensagem clara a todos os agentes públicos: matem à vontade que nós encobrimos vocês”. Um dos fatores apontados por defensores de direitos humanos para a perpetuação da impunidade em crimes cometidos por agentes do Estado é a ausência de organismos de controle da polícia que trabalhem de maneira autônoma. “O próprio Ministério Público age de forma seletiva, escolhe alguns casos que dão ibope para a classe média e acompanha”, acredita Ariel de Castro Alves. Para a historiadora Angela Mendes de Almeida, diretora do Observatório das Violências Policiais-SP, esses casos
e muitos outros mais “fazem parte de um mesmo processo feito de um conjunto de irregularidades processuais, corporativismo da parte dos órgãos policiais e suas corregedorias, e má-vontade do Poder Judiciário e do Ministério Público em investigar os crimes cujas vítimas são os pobres”.
Internacionais Diante da morosidade e da ineficiência da Justiça para apurar casos de violência cometida por policiais, um dos mecanismos utilizados por organizações de direitos humanos é recorrer à instâncias internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Como não há nenhuma instância nacio-
Alderon Costa
Vigília pelos sete moradores de rua que foram assassinados no dia 19 de agosto de 2004 no centro de São Paulo; além dos sete mortos, outros oito ficaram feridos
Caso Castelinho aguarda decisão na OEA
Crimes de Maio completam 2 anos: omissão do Estado
Processo se arrasta em virtude de artimanhas jurídicas utilizadas pela defesa e pela própria PM
De acordo com advogado, secretaria de segurança pública bloqueou acesso do Ministério Público aos boletins de ocorrência
da Redação Passados seis anos da morte de 12 pessoas em uma ação da Polícia Militar de São Paulo, ainda não há uma decisão judicial estabelecendo se o que ocorreu foi um ato legítimo da corporação ou uma emboscada organizada por autoridades estaduais com o pretexto de eliminar supostos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC). De acordo com o jurista Hélio Bicudo, a ação, conhecida como “Operação Castelinho”, foi resultado de um acordo da Justiça, do Governo de São Paulo e do extinto Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), da Polícia Militar. No dia 5 de março de 2002, quatro presos foram soltos com autorização judicial para recrutar interessados em roubar um suposto avião pagador que pousaria em Sorocaba (SP). Os 12 recrutados embarcaram em um ônibus e, saindo de São Paulo (SP), foram interceptados pela PM. Todos morreram. Segundo o advogado Danilo Chammas, integrante da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), o processo crime para apurar a responsabilidade de 53 PMs e de dois dos presos “infiltrados” “arrasta-se em razão das artima-
nal que possamos apelar para termos um processo decente e uma sentença justa, então recorremos à área internacional”, explica Bicudo, que, quando presidia a FIDDH, enviou tanto o caso Castelinho quanto o dos moradores de rua para a OEA. Segundo Ariel de Castro Alves, “só nos cabe recorrer aos organismos internacionais, porque há uma demora injustificada para concluir os casos. O pior é que, mesmo com a pressão, alguns casos não são resolvidos”. A falta de empenho do governo no esclarecimento das mortes de maio de 2006 foi também criticada pela organização não-governamental Human Rights Watch, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e pela Anistia Internacional.
nhas usadas pelos acusados, advogados de defesa e pela própria PM, com o consentimento do Poder Judiciário, que pouco ou nada fez para coibir a epopéia sem fim que se converteu esse processo”. De acordo com ele, a estratégia utilizada, “como sempre, é procrastinar até que se caia no esquecimento público”. O ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, que era acusado de envolvimento na Operação, foi absolvido pelo órgão especial do Tribunal de Justiça. Em 2003, Bicudo, que presidia a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), apresentou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA) uma denúncia para que o fato fosse apurado pela entidade com o argumento de que, embora não tenham sido esgotados os recursos internos, a morosidade da Justiça pode ser um fator para a impunidade. Em outubro, o caso será apreciado pela comissão da OEA e, prevê Bicudo, “certamente virão recomendações ao Estado brasileiro, como punição aos envolvidos, indenização às famílias e reconhecimento da violência cometida. Esse processo não pode durar o tempo da impunidade”. (TM)
da Redação A impunidade em relação à contra-ofensiva da polícia de São Paulo aos ataques do PCC, que culminou em 493 mortes por armas de fogo em apenas oito dias – de 12 a 20 de maio –, completou dois anos recentemente. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, entre as mortes, apenas 114 estão sendo investigadas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e 14 casos de homicídios foram esclarecidos até o momento, sendo que, desses, 13 eram de agentes do Estado.
“A situação desses crimes é o retrato da impunidade concentrada entre todas as autoridades do Estado de São Paulo, ao nível dos três poderes. É simplesmente um escárnio”, critica historiadora Para a historiadora Angela Mendes de Almeida, diretora do Observatório das Violências Policiais-SP, “os ‘Crimes de Maio’ são uma caixa preta em que ninguém mexe”. Ela lembra que, segundo as próprias autoridades policiais, o PCC matou apenas 46 pessoas. Assim, questiona “quem matou as outras 447 pessoas”. Angela aponta ainda que, em ou-
tubro de 2007, foi noticiado que, no período de 27 de abril a 11 de julho de 2006, os gravadores do Centro de Operações da Polícia Militar e do aparelho restaurador de fitas sofreram simultaneamente uma pane. “A situação desses crimes é o retrato da impunidade concentrada entre todas as autoridades do Estado de São Paulo, ao nível dos três poderes. É simplesmente um escárnio”, critica a historiadora. De acordo com ela, está na hora das entidades de direitos humanos levarem o caso aos aos organismos internacionais. O advogado Danilo Chammas, integrante da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), afirma que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo resistiu em trabalhar de maneira transparente, o que motivou o Ministério Público Federal a propor a criação de uma comissão independente para acompanhar as investigações – da qual fizeram parte o Conselho Regional de Medicina (Cremesp), a Defensoria Pública Estadual e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). “Essa comissão impediu que vítimas sem identificação e já necropsiadas fossem sepultadas como indigentes”, afirma. “A SSP também bloqueou o MP de acessar dados de boletins de ocorrência”, lembra. “Além disso, o secretário de segurança foi à Globo e disse que a população poderia ficar tranqüila, porque ‘em poucos dias, em reação aos ataques, nós já matamos mais de 100’. Isso parece revelar algo, não?”, indaga Chammas. (TM)
Moradores de rua: lentidão da Justiça Procurador-geral da República não aceitou o pedido de federalização das investigações da Redação A Justiça também caminha a passos lentos na apuração dos assassinatos de sete moradores de rua, ocorridos em 19 de agosto de 2004 no centro de São Paulo. Em 2005, as investigações apontaram uma quadrilha formada por cinco policiais militares e um segurança como autores do massacre. Além dos sete mortos, outros oito moradores de rua ficaram feridos. O caso está tramitando. “O juiz de primeira instância não aceitou a denúncia, e o Tribunal de Justiça analisa o recurso do Ministério Público”, explica o advogado Ariel de Castro Alves, secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Para ele, “essa demora colabora para a impunidade, porque testemunhas vulneráveis como os moradores de rua acabam sumindo, além do que, depois de tanto tempo, a repercussão acaba não sendo a mesma”. Diante da morosidade na apuração do assassinato dos moradores de rua, o advogado e ex-vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo, solicitou a transferência da investigação do caso para a Justiça Federal. O pedido de Bicudo, que presidia a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), foi negado pelo procurador-geral da República, Claudio Fonteles, apesar da reforma do Judiciário, de dezembro de 2004, possibilitar a federalização de crimes de “grave violação aos direitos humanos”. Bicudo também apresentou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA). (TM)
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Analfabetismo e evasão escolar caem, porém aumenta o desemprego juvenil JUVENTUDE Especialista sugere bolsa para jovens permanecerem na escola e mais contratos de aprendizagem para ingressar no mercado Renato Godoy de Toledo da Redação UM ESTUDO do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulado Juventude e Políticas Sociais no Brasil, traçou um panorama dos jovens brasileiros. A definição de jovem do Ipea abrange todos os cidadãos entre 15 e 29 anos, que totalizam 52 milhões de pessoas, mais do que a quarta parte do total da população do país. O levantamento revela que a situação da juventude não é das mais confortáveis, apesar de ter apresentado uma sensível melhora nos últimos 10 anos. Entre os principais problemas enfrentados pelos jovens estão o desemprego, o subemprego e a evasão escolar, motivada pela necessidade precoce de procurar trabalho para complementar a renda familiar. No Nordeste, o analfabetismo continua sendo um problema crônico entre jovens, sobretudo na faixa entre 25 a 29 anos, em que a taxa é de 11%. Além disso, os jovens, especialmente homens e negros, são as principais vítimas da violência urbana. O levantamento do Ipea aponta que a juventude está freqüentando mais a escola, mas que o desemprego juvenil vem aumentando desde 1985. Nesse ano, a taxa de desempregados entre 15 e 24 anos era de 6%; no último levantamento, de 2005, o número passou para 19%. No entanto, a proporção de jovens, de 15 a 29 anos, no total dos desempregados diminuiu de 59,8%, em 1985, para 46,6%, em 2005. Dos 52 milhões de jovens, 66% estão fora das salas de aula. Daqueles que têm entre 17 e 18 anos, apenas 48% estão cursando o ensino médio, o que revela a evasão escolar alta, e que há uma baixa proporção de jovens em idade adequada no ensino médio. Entre os homens, o trabalho para complementar a renda familiar foi o principal motivo alegado para o abandono dos estudos. Já entre as mulheres, a gravidez foi apontada como fator decisivo para a evasão.
Precarização Para especialistas ouvidos pela reportagem, a principal conseqüência do abandono dos estudos é o ingresso dos jovens no mercado de trabalho por meio de empregos de menor qualidade e remuneração. Entre os 56% de jovens que estão empregados, apenas a metade possui carteira assinada.
Quanto
48% dos jovens de 17 e
18 anos estão no ensino médio
A exigência de experiência é um dos principais obstáculos ao ingresso do jovem no mercado. Como solução a esse entrave, alguns analistas costumam sugerir isenções fiscais a empresas que contratam jovens. Para Roberto Gonzales, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea que coordenou o capítulo de trabalho e renda do estudo, os incentivos fiscais às empresas não devem ser o foco de uma política pública para incluir a juventude no mercado de trabalho. “Esse argumento não é válido, porque o custo para contratar e demitir um jovem já é muito baixo para as empresas”, assinala. O pesquisador explica que a juventude é preterida no mercado de trabalho pelo fato de as empresas optarem por funcionários mais experientes, para não gastar com investimento na formação dos recém-formados. “Apesar de ter recuado nos últimos anos, a taxa de desemprego ainda é muito alta. Temos muitos trabalhadores procurando empregos, por isso as empresas continuam bastante seletivas. Uma hipótese que deve ser considerada é que as empresas têm receio de investir na formação desses jovens, pois isso exige esforço de preparação. Eles optam por não aproveitar o jovem e preferem trabalhadores mais experientes”, avalia. Para superar esse quadro, o pesquisador aponta a necessidade de ampliar a oferta do contrato de aprendizagem, em que o empregador tem o compromisso de liberar metade da jornada do aprendiz para que este se dedique à sua formação, subsidiada pela empresa. “O contrato de aprendizagem tem que ser feito para formar o jovem trabalhador, e não para utilizá-lo como força de trabalho barata”, alerta.
Incentivo Para estimular os jovens de famílias de baixa renda a permanecerem na escola, o pesquisador do Ipea sugere até a distribuição de bolsas. “Entre os jovens de 15 a 17 anos, ainda há um espaço para que eles permaneçam na escola. Se não houver esse incentivo, as oportunidades para eles no mercado serão muito frágeis. Por isso, o Estado pode incentivar a sua permanência, até por bolsa, levando em consideração a situação da família”, defende Gonzalez.
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 a 29 anos de idade (1996 e 2006) 15 a 24 anos Brasil e regiões
25 a 29 anos
1996
2006
Var. %
1996
2006
Var. %
Brasil
6,5
2,3
(64,6)
8,1
4,8
(40,7)
Norte*
4,1
2,1
(48,8)
7,1
5,5
(22,5)
Nordeste
15,3
5,3
(65,4)
19,4
11,6
(40,2)
Sudeste
2,2
1,0
(54,5)
3,3
1,7
(48,5)
Sul
2,4
0,9
(62,5)
3,8
1,6
(57,9)
Centro-Oeste
3,2
1,0
(68,8)
4,8
2,4
(50,0)
Fonte: Pnad/IBGE.
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea.
Nota: * Exclusive as áreas rurais dos estados do AC, AP, AM, PA, RO e RR.
Ensino médio: taxas de freqüência líquida da população de 15 a 17 anos (1996 e 2006) Brasil e regiões
1996
2006
Var. %
Brasil
24,1
47,3
96,3
Norte*
15,9
35,0
120,1
Nordeste
12,8
33,3
160,2
Sudeste
31,6
58,0
83,5
Sul
32,5
55,3
70,2
Centro-Oeste
23,5
48,4
106,0
Fonte: Pnad/IBGE.
Elaboração: Diretoria de Estudos Sociais do Ipea.
Nota: * Exclusive as áreas rurais dos estados do AC, AP, AM, PA, RO e RR.
Ensino fundamental é “quase universal”, diz pesquisador Mesmo com avanços, acesso de jovens e adultos está longe do ideal da Redação A taxa de analfabetismo apresentou um importante recuo entre 1996 e 2006, segundo o estudo Juventude e Políticas Sociais no Brasil, realizado pelo Ipea. No entanto, algumas regiões do país, como a Norte e Nordeste, apresentam números ainda alarmantes, mesmo com um quadro de redução (ver tabela). A faixa etária que apresentou maior redução foi a de 15 a 24 anos, passando de 6,5%, em 1996, para 2,3%, em 2006. Enquanto a faixa etária de 25 a 29 anos obteve uma redução mais tímida, de 8,1% para 4,7%. Esses dados estão diretamente ligados ao aumento da taxa de freqüência dos alunos do ensino médio. Na média nacional, essa freqüência aumentou em 96,3% nos últimos 10 anos (ver tabela). Para o coordenador da área de educação do estudo do Ipea, Paulo Corbucci, a diminuição de maior intensidade do analfabetismo entre a parcela mais jovem é reflexo da “quase universalização” do ensino
fundamental. Corbucci afirma que a faixa entre 15 e 24 anos encontrou mais facilidade no acesso à escola do que os mais velhos. “Essa categoria da juventude (de 15 a 24 anos) tem sido beneficiada pela melhoria do acesso ao ensino fundamental. A taxa de analfabetismo entre jovens diminui de forma mais rápida que nos adultos e idosos. Tudo isso são ganhos, mas não estamos na situação ideal”, interpreta. Essa quase universalização do ensino fundamental, apontada por Corbucci, foi impulsionada por uma pressão da sociedade sobre os governos para matricular seus filhos nas escolas e também pelo advento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), mecanismo criado pelo governo federal para complementar as verbas da educação. Neste ano, o aporte do governo para o Fundeb deve ser de R$ 3 bilhões. Mesmo com esses avanços, Corbucci afirma que ainda há muitos problemas a serem resolvidos, como a predominância de cursos de ensino médio ministrados no período noturno. “Houve uma diminui-
ção do período noturno, mas uma boa parte dos cursos ainda é ministrado nesse período. Isso não é o ideal, pois o aluno rende menos após ter trabalhado o dia inteiro e o professor ministra essas aulas após uma longa jornada”, analisa.
EJA A Educação de Jovens e Adultos (EJA), prevista no programa Brasil Alfabetizado, é considerada insuficiente pelo estudo do Ipea. Corbucci explica que, inicialmente, o programa foi repassado para a gestão de ONGs e agora passou por uma reformulação, sendo ministrado por professores do ensino médio. “Com isso, eles pretendem obter uma melhoria no ensino”, afirma. A diminuição mais tímida do analfabetismo entre jovens de 25 a 29 anos, adultos e idosos é apontada pelo pesquisador não apenas como um problema estrutural. “O número de matrículas na EJA não depende apenas da oferta de vagas, mas também do desejo e a disponibilidade do aluno. Muitas vezes eles estão em áreas rurais e em locais de difícil acesso às aulas”, diz. (RGT)
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internacional “Se sou negro de cor Meu irmão de minha cor O que te peço, é luta sim Luta mais. Ouve minha voz Luta por nós Que a luta está no fim. Cada negro que for Mais um negro virá Para lutar, com sangue ou não, Com uma canção, Também se luta irmão Luta negra demais, é lutar pela paz Luta negra demais, para sermos iguais”
O que é que o Obama tem? ELEIÇÕES Nascido no Havaí, de pai queniano, Obama ganhou a vaga democrata pela disputa à presidência dos EUA devido ao seu carisma e por ter se tornado queridinho de Wall Street Divulgação
(João Bosco e Wilson Simonal, “Tributo a Martin Luther King”)
Memélia Moreira de Orlando (EUA) O SENADOR negro Barack Hussein Obama, representante do Estado de Illinois, nascido no Havaí, de pai queniano, jamais se alinhou a nenhuma das correntes dos movimentos negros do Estados Unidos. Nesse ano e meio desde que começou a campanha das primárias (quando políticos do mesmo partido disputam a indicação para candidatura à presidência), nunca se referiu à negritude, a não ser quando provocado. Chegou inclusive a declarar ser “um senador disputando indicação e que, por acaso, é negro”. E mais, nem em sonhos, ouviu falar de Wilson Simonal e seu parceiro João Bosco na música “Tributo a Martin Luther King”, que convida os negros a conquistarem seu espaço além do céu africano. Chegaram lá. A partir de sábado, 7 de junho, Obama é o primeiro negro de um país “branco” a chegar à vizinhança do poder. Desde o dia 2 de junho, quando, mesmo perdendo as primárias de Dakota do Sul, conquistou o número de delegados suficientes para ser indicado candidato pelo Partido Democrata às eleições do país mais poderoso do mundo, gravou para sempre seu nome não apenas na história dos negros estadunidenses, mas na própria história dos EUA. Ele se tornou, de fato, o candidato dos democratas. Chegou trazendo nas costas o peso de uma história de ódios e lutas que se arrasta há exatos quatro séculos. Quando o Mayflower aqui chegou, em 1620, os escravos negros já viviam no país há 16 anos, trazidos nos navios negreiros dos maiores mercadores de escravos do mundo, os portugueses. Eles aportaram na colônia inglesa de Jamestown, localizada no Estado da Virgínia, então apenas uma colônia da Inglaterra. E esperaram mais 200 anos para que o tráfico fosse proibido pelo Congresso, em 1808, e mais 55 anos para que o presidente Abraham Lincoln assinasse a abolição da escravatura, que só foi reconhecida pelo Congresso dos Estados Unidos dois anos depois, em 1865. Nesse meio tempo, os antigos escravos foram queimados vivos pela intolerância dos brancos agrupados em organizações paramilitares, tais como a Ku-Klux Klan, e negros que ousaram lutar por direitos iguais terminaram seus dias na cadeia ou foram sumariamente executados, a exemplo do que aconteceu com Martin Luther King e Malcolm X. Isso sem contar as manifestações racistas diárias, que vão desde o tratamento desigual nos processos judiciais até um explícito olhar de desaprovação, quando negros se sentam em restaurantes até há pouco tempo proibidos para quem não ostentasse uma pele cor de rosa.
Decisão arrastada
“Quero começar por parabenizar o senador Obama e seus partidários pela corrida extraordinária que venceram. O senador Obama inspirou muitos estadunidenses a se interessarem pela política, e incentivou muitos outros a se envolverem. E nosso partido e nossa democracia estão mais fortes e dinâmicos por sua causa. Somos gratos por isso.” Quem ouviu as primeiras palavras desse discurso feito pela senadora Hillary Clinton acreditava que, naquele momento, ela renunciaria à cam-
92% dos negros dos Estados Unidos, entre democratas e republicanos, vão votar em Barack Hussein Obama. Em contrapartida, 12% dos democratas se recusam a votar nele. Obama é um dos mais jovens candidatos à presidência dos Estados Unidos, concorrendo exatamente com um dos mais velhos que já se apresentaram nessa corrida, John McCain, de 71 anos panha. Mas não. Derrotada desde janeiro, depois das prévias de Iowa (Estado do Centro-Oeste), quando se tornou claro para qualquer pessoa razoavelmente alfabetizada de que ela jamais atingiria o número suficiente de delegados que garantissem sua indicação para disputar a presidência, a ex-primeira dama dos Estados Unidos arrastou sua derrota por seis meses, até sábado, 7 de junho, quando se rendeu às evidências. Naquele dia, negros de todos os Estados Unidos, democratas ou republicanos, sentiram um sabor de vitória. As manifestações foram discretas, mas um dia depois da renúncia de Hillary, domingo 8 de junho, uma conhecida casa de blues da cidade de Orlando, que aos domingos oferece brunch ao som de blues, jam session e gospel, todos os músicos de todas as bandas, antes do início de cada apresentação, levantaram o braço esquerdo com o punho fechado, na antiga saudação dos Panteras Negras. Nenhuma palavra sobre Obama. Nem precisava. As pesquisas falaram por eles: 92% dos negros dos Estados Unidos vão votar em Obama.
As vitórias de Obama
Para chegar a ser candidato, Barack Obama venceu uma verdadeira corrida de obstáculos, a começar dentro do próprio Partido Democrata. A máquina partidária vem sendo controlada pelos Clinton (Bill e Hillary) há mais de 20 anos. Tanto o expresidente quanto sua esposa concentravam poderes inclusive junto aos “superdelegados”, integrantes do partido detentores de mais de um voto. Por causa disso, a candidatura de Hillary era fato consumado e consagrado. Em outras palavras, uma candidatura incontestável. Obama cometeu então sua primeira ousadia: lançou seu próprio nome para disputar as primárias. Os Clinton esboçaram um sorriso de sarcasmo. Bill Clinton viu no gesto apenas uma teimosia infantil de um jovem senador negro (aos 46 anos, Barack Obama é um dos mais jovens candidatos à presidência dos Estados Unidos, concorrendo exatamente com um dos mais velhos que já se apresentaram nessa corrida, John McCain, de 71 anos). Foi a primeira vitória de Obama. O ex-presidente Clinton chegou mesmo a apostar que, depois de Carolina do Sul, Obama colecionaria derrotas. Mas as vitórias e apoios começaram a pipocar da costa Leste à costa Oeste. Obama tornou-se incontrolável e passou a ser atacado pelo casal Clinton. O primeiro ataque desferido referia-se à sua idade e “inexperiência”. Hillary se autoproclamava experiente, embora jamais tenha sido prefeita ou governadora, situação semelhante à de Obama. Mas depois do primeiro debate, ela não repetiu mais a crítica porque Obama, num momento de absoluta ironia, perguntou que experiência tinha sua
concorrente, e se ela se julgava experiente, Michelle Obama, esposa de Barack, também tem experiência de senadora. Hillary deu uma resposta reticente, mas não voltou ao tema, porque seria obrigada a dizer que governou junto com o marido. Resposta que não seria de todo irreal. Depois disso, começaram as referências à cor. Quem desferiu o golpe foi Bill Clinton, ao dizer que o senador e pastor negro Jessie Jackson também vencera as prévias de Carolina do Sul, Estado majoritariamente negro. A declaração foi criticada pelo tom racista. Obama superou a crise, inclusive calando os líderes religiosos que morderam a isca. Essa foi mais uma vitória de Obama. Foi então que Flórida e Michigan fizeram suas prévias sem esperar decisão do partido. Os dois Estados seriam favoráveis à Hillary. Mas as prévias foram anuladas, com a aprovação de Hillary, e a corrida continuou. As primárias chegaram a Iowa. De sã consciência, a senadora tinha certeza de que já estava perdida e passou ao jogo de sedução. Convidou Obama para ser vice. Era uma situação ridícula. Hillary tinha menos votos e queria submeter o concorrente à vice-presidência. A jogada não deu certo. A partir desse convite, os delegados democratas começaram a se afastar de Hillary. O primeiro golpe veio de Al Gore, que foi vice-presidente de Bill Clinton. Sempre escanteado pelo “casal 20” do Partido Democrata, Al Gore, que perdeu as eleições de 2000 para George W. Bush e que agora, depois de se engatar no movimento ecológico desfruta de uma popularidade que jamais teve, declarou seu voto em favor de Obama. Aconteceu então o efeito cascata. Daqui e dali, os delega-
dos começaram a anunciar seu voto. E essa foi a quarta vitória de Obama.
Anula, não anula
No final de maio, ainda resistindo ao nocaute, Hillary resolveu voltar atrás e bateu pé dentro do partido. Queria a contagem dos votos de Michigan e Flórida. Tinha absoluta certeza de que conseguiria então o número de delegados necessários para derrotar Obama. Mas aí a máquina do partido já estava se movimentando por conta própria e frustrou as expectativas da ex-primeira dama. Decidiu que seriam contados só a metade dos votos. E essa foi a vitória final de Obama dentro de seu partido. Mesmo assim, Hillary insistia em permanecer na disputa, repetindo 24 horas por dia, em todos os canais de televisão, que ela sim tem a maioria do voto popular (o voto popular nos Estados Unidos é quase simbólico, porque quem define o resultado final das eleições são os delegados), com 18 milhões de eleitores. O discurso não colou e, além de ver o sonho de ser candidata se afastando cada vez mais, Hillary e Bill Clinton estavam acumulando dívidas de campanha. Não conseguiram convencer os grandes doadores. Essa foi mais outra vitória de Obama.
Queridinho
O que é que Obama tem? Negro, jovem inexperiente, com um programa de governo um tanto nebuloso, que fenômeno o transformou no personagem mais discutido da política estadunidense e mundial? A primeira palavra para explicar esse fenômeno é carisma. Um carisma que levou Caroline Kennedy, filha do presidente Kennedy, assassinado em 1963, a dizer: “apóio Obama porque ele traz de volReprodução
Lincoln, com quem Obama gosta de se identificar, e Kennedy, com quem as pessoas identificam Obama
ta a esperança representada por meu pai. Ele nos faz lembrar de meu pai”. Esperança é a outra palavra que explica o fenômeno. Num país cuja economia dá sinais irreversíveis de erosão, envolvido em duas guerras perdidas (Iraque e Afeganistão), que vê o preço da gasolina ter aumento de 100% em oito meses (em setembro, o galão custava 2,29 dólares e agora está por 4,02 dólares), que assiste perplexo a alta dos alimentos, quer ouvir, nem que seja para sonhar, alguém falando da esperança de dias melhores. E essa é a palavra de Obama. Talvez por isso, ele tenha se tornado o queridinho de Wall Street. Os aplicadores da Bolsa de Valores de Nova York, inclusive o megaespeculador George Soros, estão apostando em Barack Obama, que também já recebeu doação dos 19 mais importantes executivos do Silicon Valley, onde se concentra grande parte do PIB dos Estados Unidos. Nesses 16 meses de campanha das primárias, Wall Street remeteu 7,9 milhões de dólares para a campanha de Obama. McCain, até agora, só conseguiu 4,1 milhões do setor financeiro. De acordo com a lei, a doação máxima que cada pessoa pode fazer é de 2.300 dólares. Mas esse probelema foi superado. Os grandes investidores não se inibem em usar laranjas para contribuir. E essas doações têm sido feitas por meio da internet, a maior arma de propaganda de Obama. Não se tem notícia de que Wall Street esteja rasgando nota de 100 dólares, ou atirando as “verdinhas” pela janela. Pelo menos, não em público. Isso signfica que o mundo financeiro acredita na vitória de Obama.
Vitória final
A corrida de obstáculos chegou ao fim. Ainda faltam alguns acertos para Obama se considerar vitorioso dentro do Partido Democrata. O principal desses acertos é afastar qualquer possibilidade de Hillary entrar na chapa como candidata a vice. E essa será das mais árduas tarefas a se enfrentar. Depois vem o grande momento, dia 4 de novembro, dia das eleições. Obama só tem mais cinco meses para conquistar o eleitorado. McCain já está em campanha há mais de dois meses. E foi na segunda-feira, 9 de junho que, finalmente, Barack Obama pôde começar sua campanha para a Casa Branca. E começou exatamente num reduto republicano, Carolina do Norte, onde há mais de 30 anos os democratas não vencem as eleições. Colorado, Nevada e Virgínia vêm em seguida. No Colorado, ele vai enfrentar um barulhento “fogo amigo”, quando partidários de Hillary Clinton pometem fazer manifestação de repúdio a Obama (12% dos democratas não votam em Obama e sequer o perdoam por ter entrado na disputa contra Hillary). Daí em diante, Obama segue para os Estados onde se concentram os latinos, um eleitorado francamente favorável aos republicanos e que não esconde sua total aversão aos negros. Seu grande desafio é a Flórida. Os latinos do Novo México já começam se deixar conquistar, mas mesmo assim, Obama pretende passar mais de uma vez por lá. Caso consiga sucesso nessa empreitada, Obama pode ser eleito presidente. Segundo um republicano convicto, “os Estados Unidos já está preparado para ter um presidente negro”. Bom, mas isso só as urnas podem responder. Caso seja eleito, o senador Barack Hussein Obama, representante do Estado de Illinois, nascido no Havaí, de pai queniano, só pode se considerar virorioso caso cumpra integralmente seu mandato, sem que uma bala com endereço interrompa sua trajetória, fato bastante comum na história dos Estados Unidos. Esse é o país que mais conviveu com assassinatos de presidentes carismáticos, entre eles, Abraham Lincoln, com quem Obama gosta de se identificar, e John Kennedy, com quem as pessoas gostam de identificar Obama.
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américa latina Indymedia Bolivia
Policiais protegem Embaixada dos Estados Unidos em La Paz; entre 50 mil e 80 mil moradores de El Alto, cidade vizinha à capital, dirigiram-se ao local no dia 9
Sue Iamamoto
Bolívia nega asilo dos EUA a ex-ministro GUERRA DO GÁS Governo de George W. Bush concede asilo político a um dos acusados pelas mortes de mais de 60 pessoas em outubro de 2003
UM SENHOR de traços indígenas, por volta dos 50 anos, vestindo terno e gravata marrom, acompanha a multidão que protesta nas imediações da Embaixada dos EUA em La Paz. O celular toca, ele atende e esclarece a seu interlocutor: “Estou aqui, cumprindo minha obrigação.” Seguindo o seu exemplo, entre 50 mil e 80 mil moradores da cidade de El Alto, vizinha da capital boliviana, dirigiram-se ao edifício diplomático estadunidense, no dia 9, para se manifestar contra a concessão de asilo político, por parte do governo de George W. Bush, a Carlos Sánchez Berzaín, ministro da Defesa à época da Guerra do Gás, em outubro de 2003. Na ocasião, a repressão do governo boliviano às mobilizações em El Alto, contra a exportação do gás através de um porto do Chile, resultou em mais de 60 mortos e 400 feridos. “Asilo deve ser dado a políticos perseguidos, não a delinqüentes que nos roubaram. Levaram muito dinheiro, e cometeram um genocídio”, protestou indignado o senhor do celular, o comerciante Roberto García Ortega, dirigente de uma das associações de moradores (juntas vecinales) de El Alto.
Intromissão “O que deixa bravos todos os bolivianos é que existe muita intromissão estadunidense nos nossos assuntos internos. Eles deveriam deixar que a Justiça boliviana determinasse o grau de delito que possuem esses dois [Berzaín e o expresidente Gonzalo Sánchez de Lozada, também nos EUA]”, completou. Os altenhos, como são chamados os habitantes de El Alto, marcharam desde as primeiras horas do dia 9 em direção à embaixada estadunidense em La Paz. Em frente ao local, entoando gritos como “EUA, asilo de assassinos!”, começaram a soltar rojões em direção ao prédio, protegido pela Polícia Nacional. Segundo a dona-de-casa Norma Apaza, os acontecimentos de outubro de 2003 ainda estão muito presentes na mente dos moradores de El Alto. “Isso não se esquece. Enquanto não trouxerem Sánchez de Lozada, continu-
aremos lutando, porque o que ocorreu é como se fosse ontem”, afirmou. Para ela, o asilo político dado a Berzaín não é justo: “Eles não tiveram compaixão, mataram um monte de nossos irmãos. É preciso trazê-los aqui para pagarem pelos delitos que cometeram.” Por diversas vezes, um grupo de manifestantes tentou entrar na Embaixada dos EUA, sem sucesso. Na última tentativa, a polícia dispersou a mobilização com gases pimenta e lacrimogêneo. A partir de então, a situação se acalmou.
Proteção No dia 6, o governo boliviano convocou o embaixador estadunidense na Bolívia, Philip Goldberg, a esclarecer a situação do ex-ministro da Defesa. A reunião no Ministério das Relações Exteriores deve acontecer nos próximos dias. Em um discurso público, o presidente Evo Morales fez duras críticas ao governo dos EUA. “Não é possível que seja protetor dos criminosos, das pessoas que causaram muitos danos não só à Bolívia, mas a toda América Latina, quem sabe ao mundo inteiro”, protestou. Na opinião de Rogelio Mayta, advogado das vítimas da Guerra do Gás, o que se pode entrever da concessão de asilo político ao exministro da Defesa boliviano é uma espécie de retribuição àqueles que, quando estiveram no poder, “colaboraram justamente com os EUA, dentro do âmbito relativo às diretrizes da política econômica.” Ambas as gestões de Sánchez de Lozada como presidente (1993-1997 e 20022003) foram marcadas pela aplicação da receita neoliberal, com privatização de empresas estatais e recursos naturais. Portanto, segundo Mayta, a ação do governo estadunidense não possui caráter jurídico, e sim político, o que “impossibilita que centenas de bolivianos obtenham justiça.” Para ele, se Sánchez de Lozada também já pediu ou pedirá asilo, o caso Berzaín abre um sólido precedente. Informação falsa Ainda de acordo com o advogado, o ex-ministro da Defesa forneceu informação falsa no formulário de solicitação de asilo político. Por exemplo, assegurou que não sofria processo judicial em nenhuma parte do mundo, quando, pelo menos na Bolívia, existia um pro-
de La Paz (Bolívia)
Sue Iamamoto
Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)
Advogado de acusados é assessor de Barack Obama Em meio às notícias de concessão de asilo político a Carlos Sánchez Berzaín, outro dado revelado pelo advogado das vítimas da Guerra do Gás chamou a atenção. Gregory B. Craig, que atua na defesa de Berzaín e do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada no processo que sofrem nos EUA, é também o líder da Comissão de Relações Internacionais da campanha do candidato do Partido Democrata à presidência estadunidense, Barack Obama. Por isso mesmo, Rogelio Mayta teme que uma vitória democrata possa significar um empecilho no processo de extradição dos dois acusados. “Em termos jurídicos, tudo deveria ser invariável. Mas, em termos políticos, o fato de Craig estar muito próximo do presidente beneficiaria Lozada e Berzaín”, lamenta. Ele lembra que a última decisão sobre a extradição de um acusado pela justiça é do Poder Executivo, mesmo que a sentença judicial seja contrariada. No currículo de Craig cons-
ta, também, que ele foi advogado de Juan Miguel González, pai do menino cubano Elián González; assessor do expresidente Bill Clinton; e diretor de planejamento político do Departamento de Estado durante seu governo. Sobre o processo sofrido por Lozada e Berzaín, afirmou que o que aconteceu na Bolívia em outubro de 2003 foi o ataque de manifestantes armados – que fizeram reféns – a um governo democraticamente eleito. Tal argumentação vai de encontro à posição do governo dos EUA. De acordo com o jornal estadunidense Miami Herald, a administração George W. Bush já expressou que o governo boliviano, em 2003, estava sob cerco, e que as forças de segurança foram emboscadas e atacadas, sendo a resposta proporcional à ameaça que representavam os manifestantes. “Essa hipótese foi desmentida historicamente”, refuta Mayta. “Não tem nenhum fundamento. Passaram cinco anos, houve uma investigação ampla e não há uma prova sequer que os ajude a validar essa afirmação.” (IO)
Manifestantes gritavam “Estados Unidos, asilo de assassinos”
cesso penal contra ele. “Esperamos que o governo dos EUA, conhecendo esses elementos, possa retirar a concessão”, diz. No entanto, o que mais surpreendeu aos bolivianos foi o fato de que Berzaín obteve o asilo político há mais de um ano, em março de 2007. A informação foi revelada no dia 5, quando ele e Sánchez de Lozada apresentaram tal argumento na tentativa de anulação do processo civil que sofrem nos EUA por parte de familiares das vítimas de outubro de 2003 (veja matéria nesta página). A concessão do asilo foi confirmada pelo próprio Berzaín. “Sou um asilado político, de acordo com convênios das Nações Unidas sobre refúgio político, pela Convenção de Roma, que estabelece proteger pessoas que são perseguidas por razões políticas e ideológicas”, afirmou, em entrevista a uma rádio boliviana. O ex-ministro da Defesa disse, ainda, que não confia na justiça da Bolívia, pois os promotores e juízes responderiam ao presidente. Ele afirma ter sido vítima de um complô de setores sociais dirigidos por Evo e Felipe Quispe Huanca. Em um dos documentos de defesa, Berzaín disse que é persegui-
do pelo atual governo e que, se voltar para a Bolívia, corre risco de morte.
Extradição O advogado Rogelio Mayta discorda veementemente: “As acusações são de delitos comuns, não políticos.” Para ele, o asilo foi concedido com base em uma argumentação “absolutamente falsa.” Berzaín estaria sustentando que, como ministro da Defesa, ele era o principal inimigo do narcotráfico no país, e seu opositor seria o então líder dos cocaleiros (plantadores de coca), Evo Morales. Ou seja, hoje, o atual presidente não buscaria justiça, e sim vingança. “É uma construção de discurso sem nenhuma sustentação”, opina Mayta. De acordo com o advogado, as vítimas da Guerra do Gás seguirão trabalhando para que a justiça boliviana emita uma solicitação de extradição de Lozada e Berzaín aos EUA. Nesse caso, o atendimento desse pedido superaria a concessão de asilo político. Por sua parte, o ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, anunciou que apresentará uma queixa formal ao governo de George W. Bush, a quem acusou de “proteger os que violam os direitos humanos.”
O massacre em El Alto de La Paz (Bolívia) Em 19 de setembro de 2003, a população de El Alto deu início a bloqueios, paralisações e greves em protesto contra um projeto do então presidente, Gonzalo Sánchez de Lozada, de exportar gás natural para os EUA através de um porto do Chile, país responsável pelo fato de a Bolívia não possuir saída para o mar. Em determinado momento, as exigências passaram a incluir a industrialização do gás em território boliviano, para ser usado no desenvolvimento interno. No entanto, a resposta do governo boliviano foi uma dura repressão, que deixou mais de 60 mortos e 400 feridos. As mobilizações invadiram outubro e, no dia 13, Lozada decidiu suspender a exportação do gás. No entanto, isso não foi suficiente, já que os manifestantes agora exigiam sua renúncia. No dia 17, ela aconteceu, e o ex-presidente fugiu para os EUA – onde viveu boa parte de sua vida –, acompanhado de membros do seu go-
verno, entre eles o ex-ministro da Defesa, Carlos Sánchez Berzaín. Exatamente quatro anos depois, em 17 de outubro de 2007, o promotor-geral da República, Mario Uribe, anunciou a formalização da acusação contra os dois e mais 15 pessoas, entre ministros da época e oficiais das Forças Armadas. Eles são acusados pelos crimes de genocídio (quase 100% da população de El Alto é formada por indígenas aymaras), massacre sangrento, homicídio, lesões graves e leves, delitos contra a liberdade de imprensa, invasão de domicílio, humilhação e torturas, entre outros. No julgamento, cerca de 2,5 mil pessoas testemunharão, entre eles os atuais presidente e vice da Bolívia, Evo Morales e Álvaro García Linera. No entanto, se no momento do julgamento oral os réus não estiverem no país, o processo em relação a ele fica suspenso. Por essa razão, o pedido de extradição das exautoridades tramita na Corte Suprema de Justiça. Em 19 de setembro de 2007, um grupo de dez parentes de vítimas da Guerra do Gás apresentou duas demandas civis em tribunais dos EUA: uma contra Lozada, outra contra Berzaín. (IO)
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américa latina
Os desafios do poder popular no México ENTREVISTA Dois anos depois das revoltas de Oaxaca, organização que a liderou procura superar dispersão e espontaneísmo Waldo Lao Fuentes da Cidade do México NO DIA 31 de maio, um ato político em razão dos quase dois anos de nascimento da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) foi realizado na região sul da Cidade do México. O evento, chamado “Fórum de Informação e Análise da APPO e suas Perspectivas”, teve uma mesa composta por Florentino López Martínez, porta-voz da APPO, Soledad del Roció “Mamalucha”, conselheira da Coordenação de Mulheres Oaxaqueñas, German Mendoza, professor da Sección 22, Pedro Miguel, articulista do jornal La Jornada, o advogado José Enrique González, entre outros. Leia a seguir uma entrevista com Florentino López Martínez. Brasil de Fato – Como definir a APPO? Florentino López Martínez – É uma assembléia popular e plural, organizada horizontalmente. Suas decisões são tomadas em consensos e é a expressão mais acabada do que foi a participação de todo o povo de Oaxaca. A APPO foi originada por algumas organizações e frentes unitárias, como a Unidade Nacional contra o Neoliberalismo, diferentes sindicatos, a Sección 22 e a repressão exercida sobre to-
dos os movimentos sociais, que fez necessária a organização em uma só frente de todos os movimentos de Oaxaca. Uma das questões que caracterizou a APPO foi a participação e o apoio que teve por parte da sociedade civil. Como o senhor explica essa relação? Praticamente todo o povo de Oaxaca participou. Foi uma incorporação total, superou todas as visões segmentadas que se poderiam fazer, de ser apenas um movimento sindical, urbano popular, indígena ou meramente da sociedade civil. Incluiu todas as classes sociais oprimidas de Oaxaca. O que também chamou atenção foi o controle dos meios de comunicação oaxaqueños. Como foi o caso do canal 9 e de algumas rádios? O povo, ao perceber que os meios de comunicação de massa jogavam um papel contra o movimento, tiveram que se apoderar dos meios existentes, como um direito à comunicação. Em que medida os atos de repressão ocorridos em dezembro de 2006 mudaram os rumos da APPO?
ARTIGO
Na Alemanha, Brasil põe biodiversidade em risco Entidades civis denunciaram atuação do Brasil durante conferência da ONU realizada na cidade de Bonn Gabriel Fernandes Entre os dias 12 e 16 de maio, foi realizado, em Bonn (Alemanha), o 4º Encontro das Partes (MOP 4, na sigla em inglês) do Protocolo de Biossegurança, que teve como tema central a definição do regime de responsabilidade em caso de danos decorrentes dos transgênicos. As organizações brasileiras que acompanham o assunto defendem a adoção de um regime de responsabilidade objetiva, vinculante e que englobe todos os danos relacionados ao uso, manipulação e transporte de transgênicos. Após uma semana de debates e negociações, os governos lá representados chegaram a um resultado muito limitado. Houve entendimento quanto à necessidade de um regime de responsabilidade com aspectos vinculantes, em oposição ao regime voluntário defendido por alguns países. Mas nada se avançou além disso, tendo o Brasil agido como um dos principais articuladores do adiamento da decisão. A posição brasileira foi a de que o Protocolo não pode legitimar práticas discriminatórias de comércio nem criar regras que possam representar barreiras ao mercado. Assim, qualquer definição sobre responsabilidade por danos decorrentes de transgênicos nos movimentos transfronteiriços está postergada até 2010, quando o tema será pauta do novo Encontro das Partes, no Japão. Até lá, uma ou duas reuniões menores serão realizadas com o intuito de se avançar na definição dessas regras. Contraditoriamente com a posição adotada pelo Brasil, internamente, o regime de responsabilidade estrita ou objetiva é o que impera em todos os aspectos atinentes à biossegurança, conforme definido na Lei de Biossegurança, na legislação ambiental e no Código de Defesa do Consumidor. É ainda o regime que disciplina a conduta do Poder Público, conforme previs-
to em nossa Constituição. Ou seja, os danos causados pelos transgênicos à saúde dos consumidores, ao meio ambiente, à agricultura convencional e/ou agroecológica ou a qualquer outro bem juridicamente protegido deverão ser reparados, independentemente da existência de culpa, podendo recair o dever sobre todos aqueles que originaram o dano. É indiscutível que o detentor da tecnologia, aquele que desenvolveu e patenteou o transgênico, deve ser responsabilizado sempre que sua “invenção” der causa ao dano. Trata-se do risco da atividade, e sobre isso não há dúvida. Por outro lado, também pode ser responsabilizado o Poder Público, por ter autorizado o plantio e a comercialização. Foi nesse contexto que seis organizações brasileiras apresentaram denúncia contra o governo por descumprimento do Protocolo. Foi a primeira vez que uma denúncia como essa foi realizada nesse âmbito. Para as organizações, em se tratando de país megabiodiverso e grande exportador de alimentos, o comportamento do governo representa riscos para o planeta. A denúncia revela que o Brasil descumpriu aspectos fundamentais do Protocolo. Dentre os fatos citados, destaca-se a não-adoção de medidas para evitar riscos à biodiversidade e à saúde humana e a inexistência de estudos sobre o impacto do milho transgênico no meio ambiente. As entidades baseiam-se em dados da Anvisa e do Ibama, que pedem que sejam suspensas as decisões que liberaram o plantio de milho transgênico. As organizações também denunciam a inação do governo ante os plantios ilegais, e ainda o descaso com a decisão da última MOP, que determina, quando possível, a identificação dos carregamentos com transgênicos destinados a exportação. Gabriel Fernandes é agrônomo da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA).
A repressão foi contra todos os dirigentes, desde os conselheiros da APPO até os que construíam barricadas, chegando até o povo humilde. Isso gerou condições difíceis de organização, inclusive grande parte das estruturas da Assembléia tiveram que passar por um período semi-clandestino. E essa repressão continua em Oaxaca?
Sim, totalmente. A APPO tem quatro presos políticos e cinco estão desaparecidos desde os últimos 12 meses. Uma situação que nunca havia acontecido na história de Oaxaca. Em seus quase dois anos, como está a APPO? Hoje o movimento está em um período de dispersão, mas também existe um processo de reorganização bastan-
te avançado. A tarefa fundamental, atualmente, é converter um movimento disperso e espontâneo em uma só entidade organizada.
Ruiz Ortiz (do Partido Revolucionário Institucional – PRI), o cancelamento das ordens de prisão e a indenização às vítimas.
Quais são as demandas atuais da APPO? A libertação dos presos políticos, a apresentação com vida dos desaparecidos e o castigo aos responsáveis pela repressão. Isso passa pela saída do governador Ulises
E as novas propostas? Nos dias 15 e 16 de novembro, ocorrerá o Congresso Constitutivo da APPO, no qual se discutirá o programa de luta da Assembléia Popular para definir seus alcances e perspectivas.
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cultura DOCUMENTÁRIO Nos anos de 1960, partido pautou autodeterminação dentro dos EUA e se tornou a principal ameaça à segurança interna
Panteras Negras e o desafio da periferia Reprodução
A face mais conhecida dos Panteras Negras foi a ativista negra Angela Davis. Perseguida, ela chegou a integrar a lista dos dez fugitivos mais procurados pelo FBI por “atentar contra o Estado”. Presa já nos anos de 1970, Angela fez o governo dos EUA amargar protestos de intelectuais de todo o mundo ocidental pedindo pela sua liberdade. Foi candidata à vice-presidente dos Estados Unidos, na chapa do presidente do Partido Comunista daquele país
Abdias Santos Recentemente foi legendado em português (e disponibilizado no site YouTube) um documentário que poderá nos ajudar a reavaliar nossas referências de luta dos anos de 1960. Trata-se do documentário de longa-metragem Todo Poder para o Povo: O Partido dos Panteras Negras e Além, lançado em 1997. Até agora, o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966 e destruído em meados dos anos de 1970, era mais conhecido no Brasil através de um filme de ficção de 1995, perfeitamente ajustado aos padrões comerciais.
A história Já o documentário de 1997 foi concebido após as revoltas negras de Los Angeles, ocorridas em 1992, quando a impunidade da violência policial sobre o povo negro gerou quatro dias de levante massivo, com mais de 7 mil imóveis incendiados e 53 mortos. Enquanto a TV anunciava os estragos de mais de um bilhão de dólares, o documentarista Lee Lew-Lee decidiu se perguntar qual foi o verdadeiro dano histórico que provocou aquela explosão. O resultado é o resgate audiovisual de uma experiência profundamente consistente de organização e luta negra. O filme parte do movimento de não-violência pelos direitos civis, que lutava pela integração do negro à sociedade estadunidense. Essa linha não garantiu profundas transformações. Enquanto caía a credibilidade do método não-violento, outra proposta ia se desenhando. Nas palavras de Malcolm X: “sejam não-violentos apenas com aqueles que forem não-violentos com vocês”. Ele defendia a legítima defesa e recusava qualquer conciliação com a estrutura de poder branco e capitalista: “Se vocês vivem numa sociedade supostamente ba-
seada na lei e ela infringe a sua própria lei, porque a cor de uma pessoa é considerada errada, então esse povo está justificado a agir por qualquer meio necessário para realizar a justiça que seu governo não oferece”. Malcolm X foi assassinado em 1965, mas as condições estão maduras o bastante para que, no ano seguinte, surgisse a organização que vai levar a idéia de legítima defesa às suas últimas conseqüências. O Partido dos Panteras Negras organizou a saúde e a alimentação de su-
as comunidades, enfrentou a polícia com armas em punho e chegou a ter 5 mil militantes negros no final dos anos de 1960. O documentário nos mostra a vitalidade do Partido e também a reação do governo, feita com assassinatos de lideranças, prisões de centenas de militantes sob acusações ridículas, infiltrações, difamação e criminalização do Partido, tudo através de ampla articulação entre diversas agências de governo, resultando na destruição dos Panteras. A bem da verdade, o filme
peca quando faz questão de destacar que as mulheres tinham a mesma participação que os homens no Partido. O documentário mesmo desmente essa pretensão. As próprias imagens de época e depoimentos atuais exibem um poder de decisão muito maior nas mãos dos homens. Sinal de que o valoroso exemplo dos Panteras Negras guarda espaço para melhoramentos. Mas, voltando à lista de virtudes, o longa coloca a intensificação do tráfico de drogas em perspectiva histórica e revela seu surpreendente papel
em “retirar toda uma geração de jovens negros da cena política”. Quando a repressão, por si só, não foi suficiente para conter os Panteras, foram as drogas o principal fator interno de contenção, injetado nas comunidades num momento em que o levante das periferias efetivamente ameaçou a estrutura de poder branco estadunidense.
Enigmas Por incrível que possa nos parecer, o contexto mundial de lutas de autodeterminação contou com um capítulo in-
terno aos Estados Unidos. A descolonização africana não só repercutiu nesse país como incentivou uma manifestação original de luta pela libertação nacional. Sim, dentro dos Estados Unidos. “Os negros nos Estados Unidos são tratados como os vietnamitas ou como qualquer outro povo colonizado. A polícia invade nossa comunidade como uma tropa estrangeira ocupa um território. A polícia em nossa comunidade não poderia de jeito nenhum estar lá para proteger a nossa propriedade, porque não possuímos nenhuma propriedade. [...] É necessário lutar em duas frentes: devemos libertar as colônias assim como estimular a revolução em nosso país”, diziam os Panteras Negras num filme de 1968 (Off the Pigg!). O Brasil é a segunda maior nação negra do mundo e conta com batalhões policiais famosos pelas táticas de combate nas estreitas ruas dos morros, caçando um inimigo permanente chamado de traficante, mas identificado como “elemento cor-padrão”. Polícia, ONGs e meios de comunicação se esforçam diariamente para confundir o potencial de resistência das periferias com o perigo criminoso. Para nós, após assistir ao documentário, certas perguntas são incontornáveis: como pudemos ignorar ou subestimar o Partido dos Panteras Negras por tanto tempo no Brasil? A resposta não é simples nem confortável, mas é indispensável. Afinal, como um militante brasileiro poderia conceber guetos negros parindo “a ameaça número 1 à segurança interna dos Estados Unidos”, como dizia o chefe do FBI, J. Edgar Hoover? Quais são os critérios de uma memória seletiva que exalta as lutas estudantis de maio de 1968 e sonega a constituição de um exército de libertação negra em solo estadunidense? Será que conseguimos aceitar e celebrar a luta dos vietnamitas justamente porque o Brasil não tem 75 milhões de descendentes de asiáticos, mas sim de negros vivendo em favelas? Até quando vamos subestimar a força de transformação sitiada nas periferias brasileiras? Malcolm X diria que esses são enigmas que apenas o povo negro, com suas próprias mãos, poderá resolver. Abdias Santos é do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).
FUTEBOL
Liberdade pressentida 30 anos longe do estádio, longe do Corinthians, longe do céu Augusto Juncal Chegou na catraca, o bilhete ficou preso, desesperado falou, quase chorando: “Juro que coloquei o ingresso. Eu juro”. O segurança abriu a catraca, retirou o bilhete enganchado, devolveu. Ele arfou e olhou agradecido. Passou a catraca, cruzou o portão principal e adentrou o Pacaembu. Percorreu todo o estádio com os olhos, inspirou a energia que se produzia nas arquibancadas. Nos pulmões o ar virou tornado de grito, que subiu devastando brônquios, traquéia, laringe e glote. Redemunhou no gogó, adquirindo mais força, atingindo de cheio as cordas vocais. Estas preguiçosas e desavisadas. Não por preguiça ou desatenção. Por falta de costume mesmo. Elas vinham de onde quem fala mais é quem fala menos. Onde se engole o choro e o medo. As cordas vocais de susto se retesaram e vibraram como se fossem o eco do mundo; “Vai Curinthiá”. Gritou uma, duas, três vezes, enquanto mantinha o braço direito em volta da companheira e o esquerdo levantado no ar. A companheira mantinha seus braços cruzados, e o rosto grave. Andava levada pela euforia dele. A noite anterior tinha sido dela. Agora a tarde era do Timão. Ela compre-
endia isso. Ela estava grave de uma outra gravidade. “Dá um sorriso”, ele pediu. “Depois”, ela retrucou. Ele olhou com concentração para a arquibancada para escolher bem onde iam ficar. Para ela tanto fazia. Ela não estava indo ver jogo nenhum. Só queria estar segura de que nada de errado aconteceria. Tinha receio de que alguma briga, uma confusão, por mínima que fosse, acontecesse. Ali tinha polícia. Nada de errado poderia acontecer naquele dia. Era o dia de recomeçar a vida. Novas chances. Novas oportunidades. Não havia espaço para erro nenhum. Pensando nisso tudo, ela subiu os degraus da arquibancada com ele. Ele via tudo. Ela só via ele. De braços cruzados, e respaldada pelo braço direito dele, que virava e mexia, pressionava com força de carinho os ombros dela. Assim ela se deixava. De braços cruzados, rosto grave, mas sutilmente entregue aos carinhos dele. Ele achou um lugar. Já iam 15 minutos de jogo, quando finalmente se acomodaram. Bem em frente de um outro casal. Estes, que chegaram com antecedência, viramse privados de sua visão privilegiada. Ele tão contente como guizo de palhaço, nem notou a irritação do casal de trás. Para cada lance do jogo ele beijava sua companheira. Ele não can-
sava de beija-la. A mulher do casal de trás estava irritada pela perda da visão privilegiada e por ter que presenciar aqueles amassos todos. “Ora!”, ela pensava, “É jogo. Quem vem para estádio tem que vir para ver jogo. Não pra ficar agarrando mulher. Ainda mais essa que nem bonita é”. Ela pensou, mas não fez comentário algum. Pois o seu companheiro estava para lá de irritado. O celular tocou várias vezes. Ele atendia todas. Falava em códigos. A companheira tirou o braço dele de seus ombros, e o fuzilou com um olhar: “Vê se não faz cagada!” Ele seguia falando ao telefone. O rapaz do casal de trás explodiu um sussurro para sua companheira: “Isso é um desaforo”. Ela desanuviou: “Deixa pra lá. Não tá vendo que ele tá feliz com a vida? Que nem se tocou do que fez? Tá feliz com alguma coisa. Deixa pra lá”. Disse e puxou seu companheiro pro degrau
de baixo para recuperar a visão privilegiada perdida. Ele percebeu esse movimento. Então percebeu tudo. A garoa que caía quietinha, dando a cara de São Paulo, dando a cara para um Pacaembu em domingo de jogo, de jogo do Corinthians, decidiu que era hora de chover. E engrossou. Rápidos como ratos que saem dos esgotos à noite, os vendedores de capinha apareceram de todas as partes. Ele comprou duas. Tratou logo de agasalhar sua companheira com uma, enquanto dava a outra para a companheira do casal de trás, que agora era o casal do lado: “O senhor se incomoda se eu der de presente pra ela?” “Enfia essa capinha no cú”, era uma primeira resposta que ameaçava chegar na boca. “A mina tá comigo, não tá vendo?” era a segunda resposta. “Qual é a sua, cara?” era a terceira resposta. Mas veio uma quarta respos-
ta: “Sem problema, amigo”. Ele fez uma reverência aristocrática, meio desajeitada, com matiz medieval, para reafirmar suas boas intenções e seu jeito favelado de ser elegante. “Aceita?”. A companheira dele olhou para a companheira do outro e pela primeira vez desde que saíram de casa pra o jogo, ela se descontraiu e deixou escapar um largo sorriso. “Aceito, claro!” E respondeu com ademã de donzela de castelo, também de matiz medieval, correspondendo com seu jeito literário à elegância do favelado. E logo pôs a capa. Em campo, o jogo seguia do jeito que todo corintiano gosta. No intervalo do primeiro tempo, quase se formou uma fila de pessoas para cumprimentá-lo. Eram abraços seguidos de fortes tapas nas costas. E assim foi todo o segundo tempo: sempre alguém aparecendo para falar com ele. Parecia ser ele um parente distante,
que não se via há muito tempo. E assim era. Não parente. Mas um amigo vindo de uma longa distância de tempo. 30 anos. O celular tocou mais uma vez. “Cara, é você?! Mano, você não sabe onde eu tô, ao vivo e a cores. Zóio tá aí? Me passa pra eu falar com ele. Meu, foi só eu sair e os irmão já me empurraro pra cá...Cabeção tá aí? Me passa preu falar com ele. Mano, trinta anos sem ver o Coringão jogar!” Foram de fato 30 anos sem o espaço aberto do imenso céu azul que é a abóbada de um estádio de futebol. O azul do céu que cobre o estádio em dia de jogo é o azul máximo da liberdade. O céu do Pacaembu era cinza naquele dia e se cobria de chuva. Mas a liberdade pressentida pulsava do outro lado das nuvens. Ele virou pro casal do lado e disse: “30 anos na cadeia, você multiplica vezes cinco cada dia. E você vê que envelheceu 150 anos!” Enquanto o jogo ia caminhando para o seu término de 3 a 1 para o Corinthians, faltando 20 minutos para o apito final, ele segurou a mão de sua companheira e deixaram o estádio em silêncio. Tanto silêncio que o casal do lado não viu quando eles foram embora. O casal do lado ainda procurou em algum outro degrau aquela alegria amassada por 30 anos. Deixaram o estádio com uma vitória de 3 a 1, e uma capinha de chuva. Augusto Juncal é integrante da torcida organizada Gaviões da Fiel e do Coletivo de Projetos Internacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).